Programa Acelerar a Economia*
Os Planos de Fomento do tempo da Velha Senhora incidiram especialmente sobre obras públicas (estradas, escolas, pontes, por exemplo), e bem assim sectores industriais ou de apoio à indústria como metalúrgica, siderúrgica, barragens, etc.
Quer dizer, o que o sector privado não queria ou não podia fazer. Se espreitarmos por trás da cortina da lenda negra que obnubila as realizações económicas do Estado Novo, e formos ver os números da época, que estão disponíveis inclusive em trabalhos de economistas de esquerda, aqueles Planos resultaram, ainda que coroados com a adesão à EFTA no início da década de 60, que originou o mais consistente e duradouro período de convergência com os países da então CEE, e com os que a ela viriam a aderir no futuro.
Esse mundo foi escavacado pelo PREC, que deitou fora o clássico menino com a água do banho. E só com Cavaco se encetou verdadeiramente o regresso a uma economia de mercado sem os cancros de alguns sectores reservados à propriedade pública, com alguma disciplina no mundo do trabalho, a reversão de nacionalizações, etc.
Por essa altura, isto é, desde a adesão à CEE, veio o maná dos fundos. E com ele os programas para os distribuir, elaborados por distintos economistas que sabiamente explicavam de que forma é que a economia se ia modernizar e expandir, quais as empresas e sectores que deviam ser alavancados, e que requisitos deveriam preencher os potenciais beneficiários para serem bafejados com a chuva de milhões. Para escolher e avaliar projectos uns funcionários de agências governamentais, os sobrolhos franzidos de concentração, gastavam as meninges recheadas de conhecimentos sobre investimentos, técnicas de gestão de empresas, e escaninhos da farta legislação que entretanto apareceu às resmas para regular procedimentos e estabelecer critérios, e com essa armadura escolhiam uns e rejeitavam outros. Gabinetes para elaborar candidaturas tornaram-se de rigueur, uns mais prestigiados porque conseguiam apoios, e outros menos porque tinham um grandessíssimo azar, ou ingenuidade.
Alguns casos de corrupção chegaram a lume, nomeadamente no âmbito da formação profissional, mas nada que empanasse o brilho dos de sucesso porque se tivesse havido muitas histórias obscuras e torrefacção de fundos decerto se conheceriam, credo. Também houve alguns falhanços clamorosos, mas nunca o sucesso dos programas foi avaliado por outra coisa que não fossem os montantes distribuídos e a rapidez da sua distribuição, além do mais por falta de tempo: atrás de um programa vinha outro, mais sofisticado, lúcido e prenhe de futuros radiosos que o anterior.
Assim vivemos desde então mas a convergência do tempo dos consulados cavaquistas começou a estiolar, coitadinha, e nos vinte anos mais recentes foi atacada de reumatismo agudo que leva alguns espíritos mais cépticos a achar que a UE tem mesmo de transferir fundos durante um número indeterminado de décadas, a ver se um dia atingimos o PIB por cabeça da Dinamarca no caso de esta aprofundar o regime socialista que se imagina por lá reina.
Ele há programas e programas, uns discretos e outros grandiosos. O PRR, emanado da ínclita cabeça do adiantado mental Costa e Silva, está em curso. Em tempos fiz um exercício de penitência e li-o, tendo concluído que aquilo era um arrazoado de fantasias sortidas que iria disfarçar a melancólica realidade de um Estado obeso incapaz de investir e até funcionar satisfatoriamente, e que nisso se esgotaria o seu préstimo. Ou quase. Que o PRR, como todas as outras esmolas da munificência europeia, engorda o PIB artificialmente.
Agora há um novo programa económico e nele se fala menos de fundos e mais de redução de impostos e de uma impressionante lista de objectivos generosos e inspirados.
Fui ler e apenas a minha condição de agnóstico me impede de com este sacrifício reclamar um desconto nos meus pecados.
Começa pela redacção, num dialecto de economês rançoso misturado com muito english de grande dinamismo e cultura empresarial de pacotilha. Vejamos:
“Destacam-se 20 desafios que a economia portuguesa enfrenta”
A economia portuguesa não enfrenta desafios, quem isso fará é o meu Vitória, logo que comece a época. O que a economia tem são problemas, dificuldades, obstáculos, oportunidades e circunstâncias. Para resolver, ultrapassar, aproveitar, melhorar e mais algumas dezenas de verbos regulares e irregulares o que se deseja é lucidez sobre o que deve ser o papel do Estado e da fiscalidade, como melhorar o ensino e o funcionamento da Justiça e qual o grau necessário e razoável de intervenção (e regulação) na vida económica. Ou seja, um bom programa para a economia deveria começar por inexistir porque as matérias pertinentes são transversais a todo o espectro governativo ou, existindo, identificar apenas o que cada ministério deverá fazer para tirar o Estado da frente, pô-lo a funcionar eficazmente onde é imprescindível (como nos tribunais administrativos e fiscais, uma ferida exposta), e reconhecer o seu carácter subsidiário enquanto agente económico – o contrário do que este, e todos os programas anteriores, faz.
Este paleio dos “desafios” não é inocente: destina-se a inculcar a ideia de que uns senhores políticos e funcionários vão adoptar a postura de Ronaldo quando tem de marcar livres e, com as pernas abertas e o olhar determinado, enfrentar a hidra da estagnação a golpes de intervencionismo. E para reforçar o carácter de especialistas em empreendedorismo e gestão nada melhor do que o recurso a uma impressionante lista de expressões em inglês, não vá o cidadão comum julgar que esta gente não sabe onde fica o Silicon Valley. Respigo: small mid cap; participation exemption; goodwill; deep tech; vouchers; startups; call inov-id; pre-seed; seed; early stage; massive open online courses; go-to-market; avaliação cut-off; the just transition mechanism; big science. Há mais mas desisto a meio porque nesta maré já o leitor do Programa se vê com a cabeça toda fucked up.
Em Português também temos direito a finezas como descarbonização, capacitar e capacitação, agilização, economia circular (uma repristinação do velho princípio salazarista do “guarda o que não te faz falta, encontrarás o que te é preciso”), acidificação do oceano, etc., ficando porém a impressão geral de as alterações climáticas não terem um papel particularmente relevante na lista de obsessões, o que se saúda. Talvez o actual Governo considere que o que se passa aqui nesta pontinha da Eurásia não conta nada para a saúde do planeta, e que o nosso principal problema não é o aquecimento global, é o atraso local. Não ouso todavia imaginar que uma tal dose de bom senso já tenha penetrado nas cabeças governamentais.
Há lá pelo meio coisas boas, graças a Deus, e destas não falaria mais do que de raspão se me desse ao trabalho de comentar ponto a ponto. Coisa que não faço porque a experiência me diz que ninguém lê até ao fim artigos de opinião com mais de 4 páginas A4, a menos que à 5ª aparecesse um caso de corrupção e à 6ª um adultério entre membros do governo, incidentes de que infelizmente não estou ao corrente.
Três porém merecem especial consideração, e são a da redução do IRC, a alteração do regime do IVA e o compromisso com os pagamentos do Estado a 30 dias.
Diz-se algures, e bem, que a diminuição da receita será compensada pelos impostos sobre distribuições de lucros ou IRC a gerar no futuro como consequência de alocação de lucros a investimento, e no caso do IVA que há uma saudável preocupação com a tesouraria das empresas
Mas nem aqui estamos no mar chão da simplicidade: as excepções, os limites disto e daquilo, o IVA de caixa que é para uns e não para outros, a conta-corrente com a AT sem precauções especiais por se tratar de um Estado dentro do Estado com tradições mafiosas, e a salganhada das regulamentações especiosas, contrariam um objectivo maior, que deveria ser a diminuição do labirinto fiscal. Boas notícias para os fiscalistas, especialistas que são de desarranjos do foro da predação estadual: antecipa-se um novo surto de diarreia legislativa.
Já no caso dos prazos de pagamento não se diz, mas poderia dizer-se, que se trata de restaurar lentamente a figura do Estado-pessoa-de-bem, há muito transmutada na do Estado-patife. O diabo, como sempre, encontra-se nos detalhes: Que acontece aos serviços e instituições que não cumpram? De que forma os credores que se vejam preteridos em relação a outros podem reagir sem se exporem a represálias? Quais os mecanismos previstos para assegurarem transparência outra que não comunicados auto-congratulatórios de um departamento qualquer inimputável? Ritmo de evolução? Sanções?
Uma palavra final para os 15% derivados da transposição da Diretiva 2022/2523 (Pilar 2), que cria um mecanismo harmonizado de tributação mínima em sede de IRC a grupos multinacionais e grandes grupos nacionais.
Mais impostos para grandes empresas, geralmente detidas, como é sabido, por sinistros indivíduos pertencentes à casta plutocrática internacional não-europeia, aquecerão decerto os corações justiceiros das Mortáguas desta vida. A impostagem, todavia, é um atributo da soberania. E mesmo que no caso das multinacionais haja buracos e hiatos que facilitem a concorrência desleal, abrir a porta a decisões formalmente cobertas por tratados mas na realidade tomadas pela burocracia bruxelense, é encetar sem retorno o caminho da harmonização fiscal dentro do espaço da UE. Ou seja, matar a concorrência fiscal. A Europa perde terreno no mundo há décadas, evolução da qual uma parte é inevitável por causa da ascensão da Ásia. Mas outra parte decorre do lento deslizar para um regime económico socialista pan-europeu, que cristaliza países e regiões nas suas posições relativas.
E então, em resumo, esta montanha programática vai parir um rato? Sim. Simpático aqui e além, mas um rato.