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Delito de Opinião

Eça no panteão?

jpt, 27.09.23

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(Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

Eça de Queirós é a referência na prosa portuguesa. Isto nem é eco de proclamações da elite literária ou da literata. É o sentimento da população, por difuso que seja, por gente que o lê e relê apaixonadamente ou apenas o sofreu no final do ensino secundário. E, também, por aqueles tantos que a esse final não acederam, e que nunca o terão lido. E por mais respeitáveis e apaixonáveis que sejam outras figuras - passadas ou presentes - das letras portuguesas, consoante os gostos e a formação de cada um (os ícones Camões e Pessoa, que serão menos lidos do que amados, Camilo para os irredutíveis, o Nobel ideológico Saramago e o não-Nobel menos ideológico Lobo Antunes, para os mais "presentistas", Rodrigues dos Santos, para os mais populares, Fernão Mendes Pinto para um qualquer antropólogo que sonhe recriar-se como arisco, ou um pequeno punhado de outros). Ou seja, "Eça" encima o Panteão Nacional. Essa entidade metafísica, criação perene e algo estanque ainda que porosa, crida e querida pelos cidadãos crentes. Nem deveria haver mais discussão sobre o assunto. 

Outra coisa é este processo político de transportar "Eça" para o panteão nacional, edifício sito no centro da capital, ao qual acorrem turistas nacionais e internacionais - principalmente para prestarem homenagem aos féretros da Diva Amália Rodrigues e do Rei Eusébio da Silva Ferreira, sendo que há algumas décadas me constou ainda haver movimentações das ditas "viúvas de Sidónio", mas isso não posso afiançar. A instituição (museológica, se se quiser) "panteão nacional" é interessante em si mesma - nunca li algo sobre a sua génese, apenas a presumo refracção de similar projecto brotado após a Revolução Francesa, uma deriva da laicidade republicana nacionalista, até deísta, querendo elevar a o ideário dos "cidadãos". E talvez por esses fundamentos terá sido esse nosso "panteão" terreno exponenciado desde a I República. É por isso interessante em si mesmo, deverá ser preservado - e nisso animado - como peça em si mesmo, demonstração de uma mundividência nacionalista tipica de uma (longa) era. 

Mas continuar a enviar para lá ossadas (ou símbolos) de cidadãos "que da lei da morte se libertaram"? Não sendo grave é uma desnecessidade. Até apoucando o espaço. De facto, aquilo já é um "bric-a-brac" de vultos, escolhidos por critérios não só de época (contextuais) mas até nisso muito discutíveis. Por exemplo, porquê o ilustre Teófilo Braga mas não o ilustre Leite de Vasconcelos? Ou, sendo ainda mais comparativo, em termos de escolhas no tempo longo, porquê o geniquento Sidónio Pais, verdadeiro antecessor da "Ordem Nova" internacional, e não o geniquento Joaquim Agostinho, verdadeiro ícone do "a salto" que vigorou no século XX português?

Ou  seja, em última análise, para quê levar as ossadas de Eça de Queiroz para aquele (já) verdadeiro "albergue espanhol" de restos mortais e placas evocatórias? É uma paupérrima homenagem. E tão desnecessária - até porque, de facto, Eça, ainda que muito menos antissistema ou revolucionário do que tantos o pintam, se fartou de apoucar políticos e politiqueiros, esses que se acotovelam tanto no "panteão", os já defuntos, como nas homenagens que lá se vão fazendo, os próximos defuntos. Enfim, cerimonial pechisbeque que esta fotografia do fotógrafo e meu amigo Miguel Valle de Figueiredo muito melhor explica do que tudo aquilo que eu possa perorar.

Mas há uma última nota: Eça de Queiroz morreu há 123 anos. As instituições democráticas decidiram homenageá-lo desta pobre forma. E o processo está parado devido à oposição de alguns dos seus trinetos, que terão as suas respeitáveis razões. Mas ocorre-me isto, apesar de não ser eu um estatista. Que direitos particulares, peculiares, especiais, sobre o legado simbólicos de alguém, têm os seus longínquos descendentes 123 anos após a sua morte? Seja para apoiarem ou desapoiarem uma acção?

Quando Jesus disse: «Aqui estou»

O SUAVE MILAGRE, de Eça: deslumbrante conto de Natal

Pedro Correia, 23.12.22

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«O reino de Deus está dentro de nós.»

Lucas XVII, 21

 

Foi uma das mais fecundas viagens da literatura portuguesa. As sete semanas da jornada de José Maria Eça de Queiroz (1845-1900) ao Egipto e à Terra Santa entre Outubro e Dezembro de 1869, a pretexto da inauguração do Canal do Suez, serviram de inspiração ao escritor até ao fim da sua vida demasiado breve. De lá o jovem jurista trouxe três cadernos de bolso e uma grossa pasta com tiras de papel almaço cheias de notas que jamais o abandonariam.

Teve a noção imediata do impacto que aquela digressão produziria na sua obra. E assim o confessaria anos depois, em alusão polvilhada de ironia, pela boca de uma das suas mais inconfundíveis criações literárias, Teodorico Raposo: «Esta jornada à terra do Egipto e à Palestina permanecerá sempre como a glória superior da minha carreira.»

Não se enganava. A viagem por terras do Oriente, como assinalou o seu biógrafo João Gaspar Simões, libertou-o do «metaforismo visionário dos folhetins» ao introduzi-lo nas virtudes da observação e da anotação. Proporcionando-lhe material para o que viria a ser um livro póstumo (O Egipto), um dos seus mais corrosivos e admiráveis romances (A Relíquia), diversas crónicas jornalísticas e aquele que figura entre os melhores contos escritos no nosso idioma: O Suave Milagre.

 

Com esta história (definição que Eça sempre preferiu à de conto), Jesus Cristo irrompe como inesperada personagem na literatura portuguesa.

Vasco Graça Moura não duvidou em classificá-la de «grande realização» no seu prefácio à antologia As Mais Belas Histórias Portuguesas de Natal (Quetzal, 3.ª edição, 2016). Num sentido metafórico, podemos na verdade inseri-la entre as prosas de recorte natalício, aliás com ampla tradição na nossa literatura. Mas O Suave Milagre, na brevidade das suas dez páginas, tem um alcance mais vasto: é uma pequena obra-prima sobre a inspiração da fé impregnada no recôndito da alma humana.

A acção, iniciada no pretérito mais-que-perfeito para acentuar a aura simbólica, decorre na época em que Cristo peregrinava pela Galileia, convertendo multidões à sua passagem. Aqui Eça recorre às paisagens visuais que lhe ficaram impressas na memória, transformando-as em matéria literária. Em 1869 o futuro romancista deambulara por Jerusalém, escutara missa no Santo Sepulcro, visitara o rio Jordão, o Monte das Oliveiras, as colinas de Judá, as ruínas do Templo, o Mar Morto. Numa espécie de rito iniciático que o sagraria como escritor – ali no centro da civilização do Livro. Logo a ele, que na juventude várias vezes se proclamou ateu militante.

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O Suave Milagre teve três versões.

A primeira, surgida em 1885 e denominada Um Amável Milagre, integrou-se numa colectânea intitulada Um Feixe de Penas, organizada com intuitos de beneficência por Maria Amália Vaz de Carvalho.

A segunda, mais seca e resumida, imprimiu-se em 1897 sob o título Um Milagre na edição inaugural de uma tal Revista Cor de Rosa.

No ano seguinte seria enfim divulgada a versão definitiva, na Revista Moderna, magazine editado em Paris, onde Eça desempenhava as funções de cônsul. É claramente a que tem uma escrita mais apurada, fruto do perfeccionismo constante de um prosador sempre insatisfeito em questões formais.

Em livro só sairia no volume de Contos, lançado em 1902, numa edição póstuma.

 

«Nesse tempo Jesus ainda se não afastara da Galileia e das doces, luminosas margens do Lago de Tiberíade: — mas a nova dos seus milagres penetrara já até Enganim, cidade rica, de muralhas fortes, entre olivais e vinhedos, no país de Issacar.»

É o sugestivo parágrafo inicial do conto, redigido segundo a toada dos textos evangélicos, com profusão de topónimos e antropónimos colhidos in loco, naquela viagem tão determinante para a vida e obra do autor.

Mas nem só o estilo bebe o exemplo dos Evangelhos: o mais determinante aqui é a intenção moral. Com uma assumida dicotomia entre os ricos e poderosos, que acumulam bens materiais mas são afinal impotentes no combate aos abismos da doença e da morte, e os pobres e despojados de bens materiais mas iluminados pela luz da fé.

 

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Entre os primeiros figura o velho Obed, «senhor de fartos rebanhos e de fartas vinhas — e com o coração tão cheio de orgulho como o seu celeiro de trigo». Um «vento de desolação» arrasara-lhe as terras de cultivo e os pastos para o gado, e em consequência ele «ruminava queixumes contra Deus». Ao ouvir falar do rabi que fazia milagres na Galileia, imaginou-o como um feiticeiro capaz de lhe restituir a sorte e enviou uns servos com «cinturões de oiro» no seu encalço.

Em vão.

Figura também o centurião romano Publius Septimus, comandante do forte implantado no vale da Cesareia, «homem áspero», veterano de mil guerras que «enriquecera durante a revolta da Samaria com presas e saques»Adoecera-lhe a filha e ele despachou três centúrias de soldados às suas ordens para lhe acharem aquele rabi de que todos falavam, convicto de que o favoreceria com o seu «superior feitiço».

Também em vão: ninguém encontrou Jesus.

 

Cristo aparecerá, sim, mas ao mais humilde dos humildes: um menino entrevado, residente num casebre com a pobre mãe, que mais não tinha senão umas ervas secas para lhe mitigar a fome. Ao contrário do rico proprietário e do poderoso centurião, ele nada pede, nada exige, nada reclama: diz apenas à mãe que gostaria de «ver Jesus».

Querer ver sem duvidar do invisível: eis a expressão mais pura da crença despida de artifícios ou disfarces. Este menino sem nome, arquétipo universal de uma fé capaz de mover montanhas, será recompensado. Tal como a samaritana pecadora que deu de beber a Cristo no poço de Jacob. Ou como Inger, a mulher ressuscitada na sequência de uma prece do “tontinho” Johannes Borgen numa cena crucial d’ A Palavra, de Carl Dreyer – um dos mais belos filmes da história do cinema, estreado 70 anos após a publicação d' O Suave Milagre na sua versão inicial.

 

Jesus, personagem literária, profere neste conto apenas duas palavras: «Aqui estou.» É quanto basta enquanto essência da mensagem cristã – tanto mais divina quanto mais humana, tanto mais humana quanto mais divina.

Eis Eça, o ateu incerto que se ajoelhou por atávico impulso religioso no Santo Sepulcro, a reconduzir-nos ao espírito mais genuíno do cristianismo: aquele que depura o dom da fé, libertando-o do ilusório poder material, da ostentação postiça, do farisaísmo dos sepulcros caiados.

«Aqui estou.» História de Natal, sim. Deslumbrante revelação de todos os verdadeiros Natais.

 

Texto reeditado

Eça e a Rússia (2)

jpt, 01.08.22

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Há tempos citei uma das crónicas de Londres, em que Eça de Queirós se mostrava clarividente a respeito da guerra entre Rússia e Turquia (1877-8). Vários outros trechos se poderão retirar dessas crónicas para sedimentar esse olhar pertinente sobre aquela actualidade,  tanto sobre a referida guerra - que o autor termina por sumarizar como a definitiva expulsão dos muçulmanos da Europa, encetada um milénio antes na Reconquista ibérica -, como sobre outros assuntos: desenvolvimentos tecnológicos, alguma reabilitação da sua querida França após a guerra franco-prussiana, a situação italiana e o papado, etc. Eça era um homem do seu tempo - como todos o são. Nunca foi um visionário, terá sido um jovem contestatário e depois veio sendo um desiludido, mesmo sarcástico, dissecador. 

O que me é aqui interessante foram as reacções de alguns comentadores - em blog e no facebook - àquele meu postal sobre Eça e a Rússia. Logo surgiram os defensores da actual política imperialista russa - essa amálgama de monárquicos ultramontanos ("miguelistas", por assim dizer); fascistas; "frentistas" de extracção comunista - a apontarem Eça de Queirós não só a sua desatenção pelo mundo de então como a sua mediocridade intelectual. É o habitual vitupério anacrónico a la carte... O qual está imenso na moda, como bem mostra este afã na "reescrita da História" que preenche a "nova" esquerda identitarista.

Enfim, foram esses dislates dos adeptos putinófilos que me apelaram a este postal, motivo para regressar ao delicioso "Álbum de Glórias", uma preciosa colecção de perfis da Lisboa de finais de XIX, com desenhos de Rafael Bordalo Pinheiro e textos de vários autores, especialmente de Guilherme Azevedo (João Rialto) e de Ramalho Ortigão (João Ribaixo). E assim aqui deixo o que sobre Eça - afinal tão medíocre, a crermos nos putinófilos de hoje - desenhou Bordalo Pinheiro e escreveu Guilherme Azevedo, seus contemporâneos:

"Quando ele, há alguns anos, soltou os primeiros vagidos nos folhetins da Gazeta de Portugal, houve antigos escritores cheios de introspecção que morreram de ataques apoplécticos! Eça de Queirós era um inspirado estranho que vinha, no concerto ameno da literatura familiar, tocar uma nota desusada e quase incompreensível para muitos espíritos educados no amor e melancolia.

Ele acabara de percorrer a Terra Santa, sentara-se a cismar no Jardim das Oliveiras, e desse jardim não trouxera simplesmente a crença que constitui o fundo único de tantas declarações românticas; do Jardim das Oliveiras arrancara uma pernada com que principiou a desancar a antiga retórica do país, destronando os velhos tropos e lançando os fundamentos daquele estilo fotográfico que é o seu grande poder e uma das suas grandes glórias.

No Oriente não viajara só. A memória de Chateaubriand acompanhara-o, e Leconte de Lisle e Charles Baudelaire, que eram então triunfadores, fizeram com ele o percurso da Terra Santa. Desta camaradagem estranha resultou a original feição que Eça de Queirós imprimiu nas figuras bíblicas tão nossas conhecidas e que então, pela primeira vez, se apresentavam diante de nós falando uma linguagem meio apocalíptica e meia humana, que estava muito longe de ser a linguagem oficial do velho cristianismo clássico. 

O destino fez dele em seguida administrador do concelho de Leiria. Assim como o Jordão lhe revelara a Antiguidade, o Lis revelara-lhe a realidade. O místico sublime morrera: principiava o autor do Crime do Padre Amaro (...). O vidente transformou-se num anatomista. Dentro da sociedade portuguesa existiam coisas de que alguns já teriam suspeitado mas que ninguém ainda trouxera claramente à superfície." (...)

E agora, século e meio, no afã de defenderem o indefensável, assomam os remanescentes desses patéticos românticos, hiper-reaccionários, no saudosismo da pretérita "Nação" que imaginam ter existido e/ou da épica "Revolução" pela qual anseiam, sebásticos, e brandem a "linguagem oficial" de hoje, esta do vil anacronismo punitivo. Eça ainda os incomoda. Que melhor elogio se pode dar a um legado literário e intelectual?

 

Adicção que soma e segue

Maria Dulce Fernandes, 20.07.22

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Fiquei radiante por poder partilhar com o mundo algumas linhas que me chegaram em mãos que tratam de resumir a verdadeira essência de "Os Maias" e poderão ser de extrema relevância para quem não comungue da otarice de almas que, como eu, já folhearam por mais de quantos dedos uma mão tem, as seiscentas e setenta e quatro páginas e meia da obra capital de um dos maiores, senão mesmo o maior autor português contemporâneo. 

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Tenho de confessar a minha adicção pelos livros de Eça; é o primeiro passo dos doze que percorro até, não direi à cura total, mas até conseguir algum controle na compulsão que me arrasta diariamente até velhas, obscuras, tortuosas e sombrias prateleiras onde há sempre um calhamaço que me tenta e onde a fraqueza da carne e do espírito acabam por sucumbir derrotadas, uma e outra vez.
No programa dos doze passos que se resume em experienciar um despertar espiritual, fazer um inventário pessoal e reparar danos cometidos sob a influência do viciante, é importante impor a distância necessária ao auto-controle.
Por me encontrar já a meio do caminho da recuperação - que isto dos caminhos nunca tem fim, pois que por cada passo em frente sempre acabamos por retroceder dois - e por já me ser permitida alguma leitura supervisionada pelo sponsor, coisa leve como resumos, o Borda d'Agua, a revista Caras, a Hola¡ e alguns blogs mais pictóricos, achei por bem quinhoar convosco o meu percurso, para que através dele me vejam como a pessoa que fui, má, destrutiva, egoísta, vegetando diariamente de e para o vício, e possam dar a mão à pessoa que hoje sou, boa, empreendedora, altruísta, risonha - não fora o riso a mais antiga e mais terrível forma de crítica, talvez mais onagra, mas consciente da minha consciência.
Desconstruindo um notório aforismo, não sou artista, mas sou crítica: tenho análise e emoção... possuo também pensamento próprio, que é livre como só o vento o consegue ser.
 

Eça e a Rússia

jpt, 06.07.22

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Enquanto foi cônsul em Newcastle, Eça de Queirós escreveu estas "Crónicas de Londres" em 1877/8, 15 textos publicados no jornal A Actualidade, os quais vieram a ser coligidos em livro apenas aquando do centenário do seu nascimento (Editorial Aviz, 1944). E ainda bem que o foram. Não tanto pela sua ironia, cáustica até roçar o sarcasmo, e nisso eivada de moralismo, sobre as características da sociedade inglesa, as quais, como lhe foi muito comum, tomava como tiques. Mas muito mais pela forma como dali ecoava o mundo - e nisso muito a França de Mac-Mahon, e de Hugo, ainda que esta não seja aqui sombra tutelar -, assim informando o rincão, nisso deixando um olhar que aparece hoje imensamente contemporâneo. Nas reflexões sobre a influência da imprensa, a real e a então imaginada, mas também no entusiasmo pelas inovações tecnológicas que tanto a transformavam, sem com isso deixar de cutucar os desmandos informativos a que ia assistindo.

Nestes textos há uma enorme actualidade que sobreviveu na verve de então, agora ainda mais patente pela atenção analítica - ora em tons sarcásticos ora militantes - à guerra russo-turca que decorria, essa sequela da guerra da Crimeia de vinte anos antes, mais uma etapa dos anseios moscovitas de aceder ao Mediterrâneo. Embrenhado no debate britânico de então, entre os radicais pacifistas e os paladinos da intervenção em prol da Turquia, Eça deixou páginas esplêndidas. Entre elas escolho estes dois trechos- tão contemporâneos que de difícil digestão para muitos literatos de ardor russófilo, esses que por cá ainda abundam:

- 10 de Janeiro de 1878

"Onde estão os tempos saudosos em que cada telegrama nos trazia uma vitória turca? Onde estão êsses dias em que os correspondentes nos pintavam as cargas irresistíveis da infantaria otomana atroando os céus com o grito de Allah! Allah! e apavorizando divisões russas?

Onde estão os vitoriosos e os ghazis? Onde estão as lágrimas do Imperador da Rússia choradas nas noites de derrota? Onde estão as tardes alegres em que um coração liberal se regozijava, pensando que o Czar e o seu Govêrno autoritário, despótico, teocrático, semi-bárbaro, humilhado pelas derrotas na Bulgária, seria na Rússia feito em pedaços por uma revolução niilista? Ai, tudo nos passou! Hoje o que se nos diz, cada dia, é que mais uma fortaleza turca foi tomada, mais um regimento aprisionado, mais um passe dos Balcãs atravessado, mais uma enxadada cavada na sepultura da Turquia. O Czar não só não é destronado, mas é recebido em Sampetersburgo com um fanatismo tão alucinado, que pessoas deixam-se atropelar para se poderem prostrar, beijando-lhe as botas, tocar com a ponta dos dedos na sua espada santa! E são os ministros do Sultão, que dizem ao novo Parlamento em Constantinopla: Estamos perdidos, rendamo-nos!

É doloroso ver que esta guerra injusta tem como resultado fortificar, enfatuar, perpetuar um govêrno inimigo de tôda a liberdade, defensor de todo o despotismo, cuja justiça se chama Sibéria, cuja administração se chama Polónia, que tempera a liberdade dos jornais pelo assassinato dos jornalistas, que liberta os servos para melhor poder explorar pelos impostos, que condena um romancista ou um poeta a prisão perpétua, se o seu poema ou a sua novela desagradam à polícia, que expulsa todo o estrangeiro suspeito de liberalismo como se enxota um cão, que tem como sistema de govêrno a delação e a espionagem, que chicoteia as mulheres cujos maridos não convêm, que exila os maridos cujas mulheres convêm, e que civiliza as raças de civilização inferior - destruindo-as.

Eu não tenho certamente nenhuma simpatia pelo Sultão: uma tão rica porção de território europeu, como a Turquia, nas mãos de uma raça preguiçosa e asiàticamente passiva, é certamente uma perda para a civilização, é uma esterilização de fôrça produtiva; mas se o golpe ao Urso Branco, ao campeão da tirania, pudesse vir da Turquia - hurrah! pela Turquia! hurrah! pelo chino ou pelo mongol! hurrah! por qualquer povo negro ou nu, que pudesse libertar a Rússia, a Europa, a liberdade e o pensamento desta tenebrosa entidade, o Govêrno do Czar! (...) (183-185)

- 26 de Janeiro de 1878

"Um dos meus grandes ódios políticos é a Rússia; não o povo russo, que tem qualidades magníficas, mas o Govêrno russo, que não só exerce o despotismo em sua casa, mas que o defende, o auxilia e o promove nas casas alheias. (...) o grande paladino do absolutismo na Europa; em tôda a parte em que um movimento de liberdade se manifestava, ele corria a ajudar a sufocá-lo; todo o trono despótico e tirânico que uma revolução abalava, tinha-o ao seu lado como defensor oficial do despotismo. 

O actual Czar (...) tem apoiado com a sua influência, com os seus conselhos, com o seu dinheiro, tôdas as tentativas mais ou menos aventureiras que se têem feito contra o livre espírito da época: foi êle que mais embaraçou e contrariou o movimento liberal de 68 em Espanha; foi ele que deu o mais alto aplauso ao Ministério Broglie, de ominosa memória; foi dêle que D. Carlos, na sua criminosa guerra civil, recebeu as palavras mais animadoras; o seu desejo seria colocar o Conde de Chambord em França, D. Miguel em Portugal, restabelecer os Bourbons em Nápoles e restituir os ducados de Itália aos príncipes fanáticos e tiranetes. Isto, reunido à maneira como a Rússia é governada, tornam-no pouco simpático a todo o espírito liberal." (...) (201-202)

O preconceito dos traumas

Cristina Torrão, 01.07.22

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A vida de qualquer um de nós daria um romance, bastava saber escrevê-lo. O grande escritor Eça de Queirós não representa uma excepção, a sua vida é tão interessante como muitos dos enredos por ele criados. O texto que registou a sua entrada neste mundo não podia ser mais absurdo: filho de "mãe incógnita". Lendo eu, na publicação acima representada, que ele foi baptizado na igreja matriz de Vila do Conde a 1 de Dezembro de 1845 e estando habituada a fazer pesquisas familiares online, pus mãos à obra. E, em menos de cinco minutos, encontrei o registo de baptismo de José Maria, com a carta que seu pai fez questão de acrescentar ao livro paroquial:

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À altura do seu nascimento, os pais, Carolina Augusta Pereira d'Eça e o Dr. José Maria Teixeira de Queirós, não eram casados, só dariam o nó quatro anos mais tarde. A condição de mãe solteira parece ter sido vergonhosa demais para a jovem de boas famílias. Mal nasceu, o pequeno José Maria ficou aos cuidados de uma ama. O registo de batizado reza: ".. filho natural de José Maria d'Almeida de Teixeira de Queiroz e mãe incógnita". O pai fez questão de acrescentar ao documento a cópia de uma carta que enviara dias antes a Carolina Augusta, dizendo ter recebido instruções do seu próprio progenitor para fornecer apelido burocrático ao pequeno. E justificava: "Isto é essencial para o destino futuro do meu filho, e para que, no caso de se verificar o meu casamento consigo (...) não seja preciso em tempo algum justificação de filiação".

Seria lógico que, ao verificar-se o casamento, em 1849, a jovem família enfim se reunisse. Mas tal não aconteceu. Depois da morte da ama, o pequeno, de cinco anos, foi enviado para Verdemilho, propriedade dos avós paternos. Tendo falecido a avó, foi despachado, aos onze anos, para casa de uns tios, no Porto, e passou a frequentar o Colégio da Lapa, pois os pais «repetiam a estranha rejeição de o manter fora do seu convívio - e do dos irmãos entretanto nascidos» (Visão - Biografia, p. 24). Só depois de ter concluído a Licenciatura, em Coimbra, José Maria Eça de Queirós foi autorizado a viver com a família, entretanto mudada para Lisboa.

É impossível circunstâncias destas não marcarem, de alguma maneira, a vida de uma pessoa. O mais curioso é não saberem lidar bem com o assunto aqueles que se ocupam, ou ocuparam, da vida e da obra deste escritor. Oscilam entre o exagero de um trauma profundo, como João Gaspar Simões, no seu tomo biográfico dedicado a Eça de Queirós, e o ignorar de qualquer marca, como Maria Filomena Mónica, que, na entrevista dada à Visão - Biografia afirma ser «altíssima (...) a percentagem de filhos ilegítimos em Portugal na altura em que Eça nasceu». Como se o facto de o caso não ser único  invalidasse o impacto na pessoa em questão. O termo "altíssima" é muito relativo, pois a grande maioria dos recém-nascidos, no século XIX, eram legítimos. A ilegitimidade era sempre um estigma.

Bem, é verdade que Eça de Queirós acabou por ser perfilhado. Mas Maria Filomena Mónica acrescenta: «Depois de ter acabado o curso em Coimbra, passou até a viver em casa dos pais que, entretanto, se tinham casado». Esta frase é de uma frieza incrível. A investigadora apaga a infância e a juventude do escritor, mais de vinte anos rejeitado pela casa paterna, impedido de convivência íntima com os pais e os irmãos, apesar de legalizada a situação. Pergunto-me mesmo que tipo de contacto ele tinha com os pais, nomeadamente com a mãe. Se é que tinha algum.

Parece que há uma certa vergonha em aceitar que um génio da literatura possa ser afectado por circunstâncias constragedoras na sua formação. Como se não se tratasse de um ser humano! E esquecendo que a escrita de Eça, simbolizada na sua obra-prima, se centra numa situação de incesto entre dois irmãos que não se conheciam. Não esqueçamos igualmente que a ideia para Os Maias amadureceu a partir de uma outra situação, ainda mais difícil de engolir: a relação incestuosa entre uma mãe e um filho.

A Tragédia da Rua das Flores permaneceu mais de cem anos entre os manuscritos inéditos do autor, só foi publicada em 1980, altura em que deixou de estar na posse dos herdeiros e passou a pertencer ao domínio público. Ou seja, os descendentes próximos de Eça pareciam não se sentir confortáveis com o enredo. E deixemo-nos de pruridos: o escritor denota uma certa obsessão pelo tema, essa possibilidade de duas pessoas de parentesco muito próximo, mas que não se conhecem, se apaixonarem. Foi algo que obviamente lhe ocupou grande parte da vida (caso contrário, não conseguiria escrever sobre isso) e o motivo poderia muito bem ter sido o impedimento de privar com a própria mãe e os irmãos, num altura fulcral da sua formação. Além disso, muitas das suas personagens, mesmo algumas secundárias, são criadas por avós ou tios.

Isto diminui, de alguma maneira, a grandeza de Eça? Pelo contrário! Denota coragem, capacidade de lidar com os seus fantasmas, analisá-los, inventar um enredo nisso baseado e passá-lo para o papel. É aliás isso que define um grande escritor ou escritora: a capacidade de se servir das próprias vivências, de as enfrentar, de as arrancar do seu interior para as observar e analisar perante si. Onde vai um artista buscar as ideias, o material a ser moldado, a fim de criar a obra de arte, senão à sua própria vida?

O papagaio e o bastardozinho

Pedro Correia, 16.08.21

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Vou relendo vagarosamente Os Maias, saboreando cada página, cada parágrafo, cada frase. Há livros que lemos na adolescência, como comigo foi o caso deste, a que é indispensável regressar na idade adulta. Porque aquilo que nos interessava então deixou de nos interessar tanto agora – o enredo, a trama, as peripécias amorosas – e cada capítulo volta a ser uma fascinante descoberta de pormenores. Com as grandes obras da literatura é assim: quando as lemos, de alguma forma elas também nos lêem a nós.

É um Portugal antigo, muito datado, que emana destas páginas. Mas é também um Portugal contemporâneo, um país que teima em ser intemporal para além de todos os ciclos e de todas as modas. Como se nos víssemos ao espelho. Paradoxalmente, sendo um escritor realista, que descrevia com minúcia lugares emblemáticos e situações características da sua época, Eça de Queiroz - falecido faz hoje 121 anos - é também um escritor eterno. Porque foi capaz de apreender e captar aquilo que permanecia imutável para além da ilusão das aparências. Costuma-se dizer, neste sentido, que é um “escritor actual”. Nada mais certo.

E depois há a linguagem. A saborosa, inconfundível linguagem queiroziana. Eça, como sucede aos maiores escritores, reinventou o idioma, dando-lhe graça, verve e colorido. Basta o primeiro capítulo d’ Os Maias para detectar isto. Em expressões como «a paz dormente do bairro», «aquela doce quietação de subúrbio adormecido ao sol», «uma impressão de causar aneurismas», «era um amor à Romeu».

E há ainda a ironia – a célebre ironia de Eça, que tantos tentaram imitar sem o menor sucesso. Por ser tão pessoal, por ser tão intransmissível. Também patente logo no capítulo inicial. Afonso da Maia, irritado com a beatice da mulher: «Quando sentia na casa a voz de rezas, fugia, ia para o fundo da quinta, sob as trepadeiras do mirante, ler o seu Voltaire.» O filho, Pedro, passando de menino atinado a adulto devasso: «Foi despontando naquela organização uma grande tendência amorosa: aos dezanove anos teve o seu bastardozinho.» E até ao conhecermos um dos animais domésticos lá de casa: «À janela o papagaio, muito patuleia e educado por Pedro, rosnava injúrias aos Cabrais.»

Em tempo de papagaios com novos motes e de outros bastardozinhos, revisitar esta obra-prima é um prazer inesgotável: eis a melhor forma de mergulhar, através da literatura, no Portugal de sempre.

O incontornável Eça

Cristina Torrão, 20.08.19

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Imagem RTP

Andamos a seguir, com muito interesse, aqui na Alemanha, a série O Nosso Cônsul em Havana, que a RTP Internacional começou a transmitir no passado dia 10, ao ritmo de dois episódios por semana, aos Sábados à noite. Apesar de as séries portuguesas não terem a qualidade de outras, vindas do estrangeiro, o meu marido Horst costuma interessar-se muito. O ano passado, estando de férias em Portugal, adorou a série baseada n’ O Mandarim, transmitida pela RTP Memória (e que eu também não conhecia).

Há qualquer coisa no estilo destas séries portuguesas que fascina o Horst. Será o charme da realização lusa, cativante na sua simplicidade? Ou será por causa do Eça, de quem ele já leu a tradução alemã de Os Maias, O Crime do Padre Amaro, A Relíquia e A Ilustre Casa de Ramires?

Viva o Eça!

Da inutilidade dos esforços

Pedro Correia, 15.01.19

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Foto Filipe Amorim / Global Imagens

 

Um dos pormenores mais relevantes que tornam Os Maias uma perene obra-prima da literatura portuguesa é o seu final em aberto, rompendo os cânones da época. Nunca saberemos se os dois amigos, Carlos da Maia e João da Ega, conseguirão apanhar aquele veículo de tracção animal mesmo correndo desenfreadamente, rampa de Santos abaixo, momentos após terem concluído da inutilidade de todos os esforços.

Imagino os protagonistas do romance novecentista, transportados para a política portuguesa do século XXI, proclamando como Carlos: «Não vale a pena fazer um esforço, correr para coisa alguma.» E mesmo assim correndo, como se o dedo do destino lhes tivesse lançado uma praga digna de Sísifo. António Costa acelerando o passo, numa tentativa inglória de demonstrar ao País a competência do ministro da Educação que alguém lhe recomendou em momento nada inspirado. Assunção Cristas em desesperada corrida contra as sondagens que teimam em congelar as perspectivas eleitorais do seu partido. Catarina Martins, afogueada na rota descendente, procurando incutir aos militantes do Bloco a ilusória garantia de que o chamado “caso Robles” lhe manteve intactas as expectativas de voto. Jerónimo de Sousa ainda capaz de enumerar os méritos da sua rendição ao PS perante os militantes que viram os socialistas, à boleia da “geringonça”, arrombar praças-fortes vermelhas como Almada, Barreiro e Beja.

Mas talvez a figura mais romanesca, do actual elenco de dirigentes políticos portugueses, seja o presidente do PSD – capaz de tiradas dignas de suscitar inveja a um Eça de Queiroz. Como a que proferiu em recente reunião do Conselho Nacional do seu partido, ainda o maior da oposição. Para empolgar e motivar os companheiros? Não, para lhes transmitir uma confissão antecipada de derrota: «Podemos perder à primeira, à segunda, à terceira, à quarta, à quinta… Mas virá o dia em que perceberão a diferença.»

É fácil imaginá-lo à desfilada, ladeira abaixo, procurando apanhar a tempo o “americano” sem macular um vinco do paletó, mão agarrada à aba da cartola. O político ideal, nesta óptica, é aquele que melhor sabe assimilar uma consistente soma de derrotas. Elas anunciam-se para o PSD em 2019: nas europeias, nas legislativas, até nas regionais da Madeira. Vale a pena prosseguir? Rio da Ega dir-vos-á sempre que sim, lançando o passo, largamente, rumo àquilo a que os filósofos da bola costumam chamar vitória moral: a do perdedor que não desiste.

Já não estamos apenas nos domínios de Eça: entrámos também no imaginário de Samuel Beckett, notória fonte inspiradora do líder laranja. É um ensinamento dele que parece dar-lhe a táctica: «O importante é tentar outra vez, falhar outra vez, falhar cada vez melhor.»

 

Publicado originalmente no jornal Dia 15

Grandes romances (25)

Pedro Correia, 19.12.18

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O SÉCULO XIX AQUI TÃO PERTO

Os Maias, de Eça de Queiroz

 

Muito mais do que um romance, este vasto fresco sobre as classes dominantes no Portugal do rotativismo monárquico, caricaturadas pela pena de alguém que bem as conhecia, é um monumento. Uma obra ímpar na literatura portuguesa e um dos grandes títulos da literatura mundial, com admiradores da envergadura de um Jorge Luis Borges.

Misto de ficção, de reportagem detalhada da Lisboa oitocentista e de ensaio sobre a perpétua crise de identidade das elites portuguesas, Os Maias contém uma inesquecível galeria de personagens, situações e frases que rapidamente se incorporaram no imaginário português, fundindo-se com a realidade. Objectivo supremo da estética realista que José Maria d’ Eça de Queiroz (1845-1900) cultivou com esmero, crente de que só a verdadeira arte podia mudar o mundo.

«O realismo é a negação da arte pela arte; é a proscrição do convencional, do enfático e do piegas. É a abolição da retórica como arte de promover a comoção usando o inchaço do período, da epilepsia da palavra, da congestão dos tropos. É a verdade com o fito na verdade absoluta. Por outro lado o realismo é uma reacção contra o romantismo: o romantismo era a apoteose do sentimento; o realismo é a anatomia do carácter.» Palavras do autor na sua controversa intervenção sobre «A Literatura Nova ou o Realismo como Nova Expressão de Arte», na quarta Conferência do Casino, em Junho de 1871.

 

Surgem aqui figuras-tipo da alta roda lisboeta da época, num tempo em que o País cabia todo «entre a Arcada [Terreiro do Paço] e São Bento»– uma das incontáveis frases corrosivas desta obra que continua a seduzir leitores, fascinados com o paralelo que pode estabelecer-se entre a segunda metade do século XIX e as décadas iniciais do século XXI.

Encontramos no romance expressões que podiam ter sido pronunciadas em qualquer serão deste mês em que vivemos. «A bancarrota é tão certa, as coisas estão tão dispostas para ela, que seria mesmo fácil a qualquer, em dois ou três anos, fazer falir o País», observa o banqueiro Jacob Cohen, como quem faz uma elementar operação aritmética. Com ele desfilam a ruiva Condessa de Gouvarinho, que utiliza a sedução como eficaz instrumento para combater o tédio; João da Ega, um vulto da verborreia pós-prandial; Dâmaso Salcede, típico deslumbrado social desprovido de ética; Palma Cavalão, um escrevinhador do lumpen jornalístico; o Eusebiozinho, “menino bem” que se arrasta por lupanares; o poeta Alencar, símbolo do lirismo mais palavroso e pueril.

Como acertadamente observou Arnaldo Jabor, um dos seus melhores leitores brasileiros, «Eça funda um realismo caricatural contra as perdidas ilusões ibéricas que passa por traços grossos, pelo riso deslavado, por uma proposital "falta de subtileza" (que resulta depois subtilíssima) na tradição de um realismo quase carnavalizado, sem anseios de transcendência.»

 

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Desmesurado em vários sentidos, este romance publicado em 1888 funciona ainda hoje como a mais impiedosa, sarcástica e demolidora autópsia das classes dirigentes nacionais. Estas, mesmo quando não gostaram de se descobrir no retrato, aproveitaram a imparável vaga de popularidade da obra para se impregnarem do seu espírito e da sua letra, rosnando imprecações contra o País, amaldiçoando o seu passado e predizendo horrores sobre o seu futuro.

Quantas vezes, ao longo de anos, não temos lido e escutado Egas de pacotilha berrando aos quatro ventos enormidades contra o famigerado destino português, parafraseando o autor das eternamente inacabadas Memórias de um Átomo nos seus dichotes bem regados contra a teimosa sobrevivência da pátria-mãe?

«Portugal não precisa reformas, Cohen, Portugal o que precisa é a invasão espanhola. (…) Meninos, nada regenera uma nação como uma medonha tareia… Oh! Deus de Ourique, manda-nos o castelhano! E você, Cohen, passe-me o St Emilion.» (pp. 138-139, edição Moderna Editorial Lavores, Estarreja, 2008).

É uma sátira da qual ninguém escapa ileso. Nem políticos, nem financeiros, nem aristocratas, nem jornalistas, nem escritores – um desfile de gente venal e falhada, incapaz de libertar o País de males atávicos. Por incompetência, por dolo, por desinteresse, por manifesta impreparação. A literatura era «latrinária». O jornalismo revelava-se como «escória da sociedade». Os ministros tinham como único fito «cobrar o imposto». Lisboa – no vértice do poder – surgia aos olhos de qualquer observador lúcido como «uma canalha de terra». Portugal agonizava, povoado de uma «colecção grotesca de bestas».

 

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Residente como diplomata no estrangeiro desde 1875, este romancista que se dizia sem biografia («Eu não tenho história, sou como a República do vale de Andorra») concebeu durante anos uma obra que funcionasse como um implacável e lúcido retrato da realidade portuguesa através da exibição dos seus mais destacados representantes – na banca, na finança, na política, nas letras e no jornalismo.

Seria, de algum modo, a obra de um estrangeirado – alguém capaz de mirar sem réstia de compaixão o chão que o gerou. Mas com um sentimento misto de nojo e nostalgia, como revela em carta a Ramalho Ortigão endereçada de Havana em Julho de 1873: «O exílio importa a glorificação da pátria. Estar longe é um grande telescópio para as virtudes da terra onde se vestiu a primeira camisa. Assim eu, de Portugal, esqueci o mau - e constantemente penso nas belas estradas do Minho, nas aldeolas brancas e frias - e frias! -, no bom vinho verde que eleva a alma, nos castanheiros cheios de pássaros, que se curvam e roçam por cima do alpendre do ferrador...»

Vivia-se então um dos períodos mais pujantes de que há memória em Portugal – as chamadas décadas da Regeneração, que tiveram como expoente o chefe do Governo Fontes Pereira de Melo – sob a monarquia constitucional, letrada, respeitadora das liberdades essenciais, incluindo a liberdade de expressão, e dos princípios basilares da democracia política. Mas Eça e alguns dos seus pares – Antero de Quental, Ramalho, Guerra Junqueiro, Oliveira Martins – olhavam para o País e só viam estagnação, vergastada de viva voz em lautas comezainas à mesa do Marrare ou do Tavares.

O romancista atribui o endémico fracasso português à mediocridade das supostas elites nacionais. É a visão desencantada de alguém que se encontrava havia década e meia longe da pátria, em sucessivas missões diplomáticas que o conduziram às Antilhas Espanholas, ao Reino Unido e finalmente a França, onde permaneceria até à morte, numa espécie de desterro voluntário pontuado com ocasionais incursões à pátria. 

 

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Fotograma do filme Os Maias, de João Botelho (2014)

 

O imaginário queiroziano, com as suas críticas demolidoras, foi transitando de geração em geração, influenciando sucessivas camadas de pensadores que – sem o talento literário do autor d’ O Crime do Padre Amaro nem a sua verve satírica – se limitaram a reproduzir a caricatura, assumindo-a como facto unidimensional. Não passa um dia sem que vejamos estampada nos jornais a versão contemporânea de que o País é «uma choldra ignóbil», tomando pelo valor facial a expressão de João da Ega, personagem central do romance, em paralelo com Carlos da Maia, o seu melhor amigo.

Dois falhados, como seria inevitável: o primeiro matriculou-se em Direito sem seguir o curso e sonha com gloriosas obras-primas da literatura que jamais escreverá; o segundo revela-se incapaz de exercer medicina devido ao «veneno do diletantismo» que caracteriza a atmosfera do reino, corroendo qualquer hipótese de regeneração social. Daí Ega bradar nos saraus mundanos: «Portugal não necessita reformas, Portugal o que precisa é a invasão espanhola.»

Nesta óptica, todo o esforço estaria condenado ao insucesso. Os diálogos entre Ega e Carlos da Maia acabaram por funcionar até hoje como simbólica chave decifradora do “atraso estrutural português”, numa espécie de fatalidade genética, surgindo Eça – certamente à sua revelia – como avalista deste determinismo que parece perpetuar-se em lei granítica.

É certo que o escritor integrou o grupo dos Vencidos da Vida – designação também irónica da tribo intelectual que o acolhia. Mas ele próprio, com a excepcional obra literária que nos legou, acabou por ser a demonstração viva do oposto das teses que algumas das suas personagens pretendiam ilustrar.

 

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Bastaria o desfecho do romance para lhe conceder honras de panteão literário. Declina a tarde, Carlos e Ega descem em passo indolente a rampa de Santos partilhando a apologia retórica do «fatalismo muçulmano» que nos aconselha a «nada desejar e nada recear»: assim se evitam «esperanças e desapontamentos».

Carlos, o médico que não exerce, sentencia: «Não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma…»

Ega, o escritor das perenes folhas em branco, remata: «Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder…»

Enquanto assim falavam, via-se ao longe a lanterna vermelha do americano – transporte público que circulava em carris, movido por tracção animal.

«De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para apanhar o “americano”, os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela Rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.»

 

Magnífico parágrafo final. Que desmente a peregrina tese sobre a inutilidade de todos os esforços, propalada até à náusea por uma legião de epígonos menores de Eça, incapazes de ler nas entrelinhas. O criador d’ Os Maias sabia muito bem como as palavras podem servir apenas para iludir intenções e camuflar desejos.

É um epílogo em aberto, próprio da literatura moderna: nunca saberemos se Ega e Carlos apanharam o transporte. Mas sou capaz de apostar que sim.

 

 

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Anteriores textos desta série:

 

A Marcha de Radetzsky - O passado é um país distante

O Coração das Trevas - Quanto pior, melhor

O Fim da Aventura - Efémero amor eterno

O Anão - O Infra-homem

Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch - A lei do frio e da fome

A Mancha Humana - A América vista ao espelho

O Raposão, com a ministra no México

jpt, 27.11.18

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(Teodorico e Alpedrinha por Rui Campos Matos)

 

Foi-se a ministra, orgulhosamente lesbiana, a Guadalajara, decerto que com adido à ilharga – mas não a Cuernavaca com o necessário Cônsul, estou disso certo – e por lá resmungou algo, sobranceira a portugueses, Portugal e seus jornalistas e jornaleiros. Entretanto, cá longe, noutro “lá fora”, ando eu a reler, 35 anos depois, o “Relíquia”. Eça não é, diz quem sabe, o Zola, o Balzac, muito menos o Flaubert, mas é o que temos, e ainda que me solavanque o encanto – tetrali o “Os Maias” por causa do filme de João Botelho, e disso me apercebi, já nada adolescente ou vinteanista, franzindo o meu cenho ao traço grosso da caricatura que escorrega daquele Ega – continua uma delícia.

 

Enfim, perorava a ministra lá em Guadalajara quando o Raposão, o bom do Teodorico, me aportou a Alexandria, naquela sua ímpia, pois humana, peregrinação à então Terra Santa. Logo se acolheu ao afamado e recomendado “Hotel das Pirâmides”, deparando-se com um patrício (onde é que não há um português?), “moço de bagagens e triste“, ali algo desvalido dados os infortúnios de amores e impensares, o Alpedrinha, figura ímpar do panteão queiroziano, mais que não seja por aquela sua sábia e monumental saída, que em mim habitava sem lhe recordar a autoria (“Tu já estiveste em Jerusálem, Alpedrinha?“, perguntou-lhe o Teodorico, “Não senhor, mas sei … Pior que Braga, algo que talvez tenha acicatado aquele Luiz Pacheco). Chegava-se pois, no mesmo fim-de-semana da ministra no México, o bom do Teodorico às terras da Esfinge e, lá de tão longe, responde à sáfica governante: “E se o cavalheiro trouxesse por aí algum jornal da nossa Lisboa, eu gostava de saber como vai a política.”, atreveu-se o Alpedrinha. “Concedi-lhe generosamente todos os “Jornais de Notícias” que embrulhavam os meus botins“, logo concedeu o malandrote.

Isto nem em Cuernavaca lá iria. Quanto mais em Guadalajara.

Citação literária

Luís Menezes Leitão, 03.03.16

A propósito disto, lembrei-me desta citação, para mostrar que neste país há coisas que nunca mudam:

"Carlos e Ega foram os derradeiros a sair, depois de um brandy and soda, de que a condessa partilhou, como inglesa forte. E em baixo, no pátio, acabando de abotoar o paletó, Carlos pôde enfim soltar a pergunta que lhe faiscara nos lábios toda a noite:

- Ó Ega, quem é aquele homem, aquele Sousa Neto, que quis saber se em Inglaterra havia também literatura?

Ega olhou-o com espanto:

- Pois não adivinhaste? Não deduziste logo? Não viste imediatamente quem neste país é capaz de fazer essa pergunta?

- Não sei... Há tanta gente capaz...

E o Ega radiante:

- Oficial superior duma grande repartição do Estado!

- De qual?

- Ora de qual! De qual há-de ser?... Da Instrução pública!"

EÇA DE QUEIROZ, Os Maias, 1888.

Possível parágrafo de uma continuação impossível

Ana Vidal, 05.08.13

 

Pi-pi. pi-pi. Alô, Claudine? Daqui é o Peix... digo, o Carlos da Maia. Quê?? Não, filha, esse gajo era um chato do caraças (ou será que devia dizer "um chato de galochas"?)... enfim, o que interessa é que eu sou muito mais cool! Olha, liguei só para confirmar o nosso encontro mais logo no Oceanário. Mas tem de ser uma rapidinha, ok? Já sabes como a Dudu é desconfiada e ciumenta. Nem parece minha irmã, caramba. Pensando bem, acho que esta noite vou arrancar-lhe um cabelinho para mandar fazer um teste de ADN... com essa é que ela não conta, olarilas. Vantagens de viver no século 21. Bom, mon petit choux, agora tenho de desligar que ela é capaz de tudo, tem espiões por todo o lado. Até logo. Junto ao lago das morsas, não te esqueças. E vê lá onde estacionas a calèche, que já estou farto de pagar as tuas multas.