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Delito de Opinião

Voltaren

jpt, 15.08.21

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Na sempre aziaga sexta-feira 13 tombei, inopinadamente, sob a urgência dos unguentos. Acabrunhado pelo império da radiculite fiquei à mercê de mãos caridosas, as quais me aspergiram com a última edição da "Visão", boletim que nunca leio - à excepção da sua excelente (fora-de-)série "Visão História", que sempre recomendo.
 
Assim sendo, neste meu imobilismo desalentado, deparei-me com uma entrevista a José Pacheco Pereira (publicitando um novo livro, o que não sendo soez é característica...), cuja retorcida argumentação muito acalentou os sintomas dos meus "bicos de papagaio". Mas tenho de ser justo, ali deparei também com uma belíssima crónica, "O avô António e um restaurante à beira da estrada" de Dulce Maria Cardoso, uma pérola rara nos periódicos nacionais, um verdadeiro Voltaren moral adequado os meus actuais padecimentos. Se não encontrardes a revista acorrei à pirataria pdf e lede o texto...
 
Madrugo hoje, insone de incómodo, e noto que no pavilhão vacinatório de Odivelas a turba rodeou o vice-almirante Gouveia e Melo, apupando-o e apodando-o de "assassino". Uma vera feira medieval, moles ululantes feitas de corcundas, raquíticos, alguns leprosos camuflados, desembarcados das "naves de loucos", suplicantes, um ou outro escravo eslavo, bruxas, pernetas, prostitutas e manetas, "endireitas" agitadores, pajens pernósticos, frades demoníacos, agentes de Castela e Aragão, mendigos ladinos e quantos mais, e isto enquanto os israelitas se escapavam, lestos, desde logo sabendo que a procissão irá sobrar sobre eles... É assim na capital do Reino.
 
Por cá, na vila a Sul do Tejo, narram-me o que se passa na vacinação. Inoculadas que foram todas as gerações mais velhas, sem preocupações nem incidentes, chegou agora a vez dos jovens, os dezoitonários, mancebos e mancebas... Que vêm acompanhados das mães, pedem apoio qual recobro sofrido, neste chegam a desmaiar, e é tamanha a histeria que - e só agora, apenas para esta leva júnior - se instalaram colchões no chão do pavilhão para que recuperem da "agressão" vacinatória.
 
De todas estas desvairadas coisas logo se soube alhures. Ao largo da costa aprestam-se os barcos bárbaros, velame já visível desde o promontório, e da raia chegam novas de que se agitam os berberes. D'El-Rei nada se espera, cirandando como sempre...
 
E eu, amarfanhado por este grifo que me acomete, feneço. Pois, afinal, não há Voltaren a dar-lhe.

A ler

Sérgio de Almeida Correia, 21.01.19

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"Somos a nossa memória, começou por dizer, a memória determina o que sentimos, o que sabemos, o que imaginamos, o que intuímos, somos a nossa memória e quando lhe perdemos o acesso, mergulhamos num vazio inimaginável, sem acesso à memória não poderemos saber dos valores morais que nos guiam, dos amores e dos medos, das ambições, dos erros e fracassos, tornamo-nos tão imprevisíveis e misteriosos como qualquer recém-nascido, mas enquanto o recém-nascido é um desmemoriado programado para criar memória, para se tornar um adulto autónomo e independente, estes desmemoriados estão impedidos de criar e guardar memórias, estão impedidos de tornar a ser, de mentis, do latim, mente vazia, podemos dizer sem exagero que se assiste à construção do nada, percebe?" (Dulce Maria Cardoso, Eliete, Tinta-da-China, Lisboa, 2018, pp. 244/245)

 

Parti para a sua leitura sem saber o que iria encontrar, embora pensasse que de uma consagrada como Dulce Maria Cardoso, vencedora de inúmeros prémios, traduzida e publicada em duas dezenas de países, nunca se pode esperar pouco. E não me enganei.

Não sei se existe aquilo a que já alguém chamou uma "escrita no feminino", expressão que considero detestável mas que entendo como querendo referir-se a uma escrita feita por mulheres e que por isso mesmo carregaria um estilo muito próprio, com preocupações que não seriam as decorrentes de um texto sobre o mesmo tema escrito por homens.

Pensei nisso várias vezes ao longo da leitura desta "Parte I A Vida Normal". A vida de uma mulher escrita por outra mulher, num período histórico muito próprio, percorrendo momentos pré e pós-revolucionários, a revolução social operada em Portugal e o universo muito particular e espacialmente localizado de Cascais e da linha do Estoril, percorrendo a emancipação profissional e sexual da mulher, os dramas da família e do casamento, a partida, a separação, a ausência, a dor, o esquecimento, o nascimento, a velhice e a morte. Um olhar que até no julgamento que faz de Jorge se torna cruel de tão cristalino. 

Está lá tudo numa narrativa consistente, com uma escrita poderosa, que flui e nos agarra ao longo das quase três centenas de páginas, antes de um final que será tudo menos expectável. A linguagem é desprovida de ornamentos, forte, por vezes mesmo agreste, rude, apesar de perfeitamente enquadrada nas cenas descritas, nas deambulacões da personagem principal. 

Costumo dizer que os melhores livros são os que me surpreendem pela qualidade da escrita do seu autor e pela projecção da narrativa. Quando um livro me faz esquecer as suas páginas ao longo da leitura, para me fazer saltar as suas próprias barreiras e é capaz de me levar para uma outra dimensão do pensamento e da palavra, com a mesma simplicidade com que me transporta ao longo dos seus parágrafos, quase como que projectando as suas diversas histórias numa só, e misturando as nossas com as do texto, é sinal de que está muito para lá daquilo que é o romance ou a novela convencional, fazendo esquecer a obra em que todos os cânones se revêem, são respeitados, onde tudo surge muito limpinho, muito formal, muito compenetrado e insípido.

O sal da escrita de Dulce Maria Cardoso está na luz que projecta, no modo como ilumina ao leitor o trajecto de Eliete e o faz dele participar, muitas vezes sem que seja possível para quem lê aperceber-se logo das opções tomadas pela autora e da multiplicidade de sentimentos que assolam vidas aparentemente simples e normais. Como que a dizer-nos que não existem vidas simples nem normais. Há apenas vidas. Cada uma tem a sua cor. O segredo está em saber colocá-las todas nas páginas de um livro, sem cansar e enriquecendo-nos a memória.