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Delito de Opinião

A primeira derrota de Donald Trump

Pedro Correia, 01.05.25

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Há quatro meses, o Partido Liberal - que dominou o panorama político do Canadá durante mais de dois terços do século XX - parecia irremediavelmente condenado ao desaire eleitoral. A 6 de Janeiro, demitiu-se o primeiro-ministro Justin Trudeau, no cargo desde 2015. Em quebra drástica de popularidade, foi substituído pelo economista Mark Carney, antigo presidente do Banco do Canadá e do Banco de Inglaterra. Já em cenário pré-eleitoral, num momento em que as sondagens atribuíam uma vantagem de 25 pontos percentuais ao Partido Conservador, histórico rival dos liberais.

Os dados pareciam lançados. Até Donald Trump entrar em cena. Mal tomou posse a 20 de Janeiro, na senda do que já afirmara durante a corrida eleitoral norte-americana (quando chamava «governador Trudeau» ao chefe do Governo), ameaçou anexar a nação vizinha, transformando-a no «51.º estado dos EUA». E decretou pautas aduaneiras de 25% às importações de produtos deste país. Quebrando uma longa, estável e frutuosa parceria vigente na América do Norte.

Carney, sem sombra de temor reverencial ao inquilino da Casa Branca, enfrentou estas ameaças à soberania e à economia do seu país com palavras vigorosas e contundentes, despertando o nacionalismo canadiano que parecia adormecido: «Trump will never break us.» Enquanto o seu rival conservador Pierre Poilièvre, próximo de Trump em termos ideológicos, ia titubeando. Quando tentou reagir, já era tarde.

Mais de 60% dos canadianos passaram a boicotar os produtos importados dos EUA. Valia muito mais do que uma sondagem, como se viu.

Trump, com a sensibilidade de um rinoceronte, conseguiu num par de meses afundar a maré conservadora e oferecer de bandeja o triunfo eleitoral aos liberais, que no início do ano nenhum analista político antevia. Carney emerge das urnas, nestas legislativas de 28 de Abril, como justo e categórico vencedor.

Foi a primeira derrota geopolítica do sucessor de Joe Biden, empossado há cem dias. Está muito longe de ser a última.

A tarifa dos nossos descontentamentos*

José Meireles Graça, 19.04.25

Pode-se ocupar menos proveitosamente o tempo não lendo Hillbilly Elegy. Não será, literariamente, uma obra brilhante, mas retrata com fidelidade e sem intenções panfletárias uma região deprimida e uma classe social desestruturada (com perdão do adjectivo).

As indústrias que conformaram o modo de vida da região fugiram para o estrangeiro, deixando atrás manchas de desemprego de gente que não pôde ser completamente reabsorvida, famílias desfeitas, problemas de difusão de droga, tudo num pano de fundo da maneira de ser americana, tradicionalmente violenta.

Ganharam os consumidores americanos, que passaram a ter acesso a produtos mais baratos, os donos das empresas, que conservaram ou aumentaram os seus lucros, disponíveis para novos investimentos na mesma ou noutras áreas, e os trabalhadores estrangeiros, que puderam melhorar o seu nível de vida.

Coisas da liberdade de comércio: No conjunto, há progresso material e, sem ela, há arrastar de pés. Mas mesmo que estes novos pobres americanos apenas o sejam estatisticamente (têm carros, ainda que em segunda ou terceira mão, à porta, e atocham-se de junk food que os faz obesos, o que tudo os faria serem considerados milionários em muitos países do Mundo) sentem-se, com razão, à margem.

Também sou de uma região que já foi um centro do linho, dos curtumes, que teve a maior fábrica de sapatos do país, de brinde porque o centro principal nem era aqui, e várias têxteis de dimensão apreciável, além de inúmeras médias e pequenas, bem como cutelarias. Das grandes, uma gabava-se de ser a maior em têxteis-lar da Europa, pelo que é bem possível que estivesse no quarto ou quinto lugar.

A maior parte disso foi para o galheiro, completamente no caso dos dois primeiros sectores. E todavia a indústria reinventou-se: diversidade na oferta, prazos mais curtos, séries mais pequenas, empresas de menor dimensão e mais ágeis, modernização do equipamento, além de uma explosão na oferta de serviços. De modo que crise social não há, o que há pelo contrário é falta de mão-de-obra, o que leva a recurso crescente a imigrantes.

Espertos, estes vimaranenses, e burros aqueles americanos? De todo: indústrias pesadas, quando emigram, deixam um buraco, não sendo de esperar que o antigo operário, que sabia lidar com um forno ou montar um tablier e tem 40 ou 50 anos, aprenda de repente a sentar-se diante de um computador de uma linha automatizada de não sei quê ou a prestar serviços sofisticados de grande valor acrescentado.

Esta gente, infelizmente, vota, e quer pouco saber de teorias económicas que provam que o progresso vem da concorrência e da eficaz afectação de recursos; mas quer muito da dignidade do trabalho que desapareceu, e dos rituais da antiga comunidade que se esfrangalhou. De modo que pode até comprar artigos made in China, mas vai acumulando uma surda revolta contra uma América que não entende e que está distante dos fulgores dos anos do pós-guerra, e um ódio crescente ao Chinês e ao Mexicano, e de maneira geral ao imigrante, ao economista que lhes diz que não valem nada, ao intelectual e político que com sobranceria lhes desprezam as crenças religiosas e lhes tentam enfiar pela goela abaixo as doutrinas woke.

Estes, os deplorables, como lhes chamou a deplorável Hillary Clinton, fizeram inclinar a balança a favor de Trump, que tem paulatinamente vindo a responder aos anseios de quem lhe deu a vitória.

Daqui as taxas alfandegárias que lançaram o mundo em convulsão, ainda que não só por isto: o bom do Trump quer de uma assentada resolver o problema da dívida pública (que é maior do que a portuguesa e que não dá quaisquer indícios de vir a diminuir), da ameaça geoestratégica percebida do risco de défices permanentes da balança comercial, e da dependência em materiais críticos para uma autonomia militar e industrial ou até para artigos de consumo sofisticados.

Conta com um aumento da receita fiscal e regresso de empresas americanas que se expatriaram, ou estrangeiras que se queiram estabelecer para aproveitar sem penalização de taxas o mercado americano.

Infelizmente, a generalidade dos economistas, consabidos magos destas coisas, acha isto uma loucura que não vai ajudar, pelo contrário, os Americanos, ainda por cima prejudicando o resto do mundo. E eu, que bem gostaria de discordar daquela ilustre agremiação, tendo a dar-lhe razão, ainda que nem sempre pelos mesmo motivos: Não se pode parar a evolução natural das coisas e da economia, abandonar uma fábrica para a estabelecer noutro lado onde a pastagem seja mais verde é um caminho imensamente mais fácil do que o percurso inverso, a fábrica que desapareceu há décadas já não existe porque a evolução tecnológica a transformou noutra coisa, e o que a América fez não é na substância diferente do que fizeram outras economias de sucesso. Fizeram ou estão a fazer: a China já exporta empresas para países de mão-de-obra mais barata.

Pode ser que o progresso científico e tecnológico venha no futuro a modificar os dados deste problema – não sabemos; e também pode ser que a evolução demográfica altere tudo porque a China (o principal “inimigo”) não faz crianças em número suficiente, de modo que o séc. XXI talvez não seja deles.

Resta que os outros problemas, isto é, o da dependência com implicações geostratégicas e o da dívida pública, requeriam uma abordagem paciente e cirúrgica, não esta motosserra desgovernada, cujos estilhaços vão fazer ricochete; e o segundo não será resolvido com a imaginária receita acrescida das taxas alfandegárias, antes com a horrível maçada de deixar de ter défices. O que Trump, aliás, não esqueceu, daí o DOGE, os violentos cortes na USAID, a exigência da divisão equânime das despesas entre os vários países da NATO, e o planeado abandono de agências internacionais minadas por burocratas e esquerdistas sortidos. Mesmo aqui, porém, o esbracejar e as pressas não são bons conselheiros: o acumular de erros e injustiças reais (não necessariamente as gritadas pelos telhados da comunicação social de lá e de cá) podem fazer deitar fora o clássico menino com a clássica água do banho. Destes erros um, recente, é a ameaça a universidades americanas de retirar apoios no caso de estas se recusarem a substituir a ideologia woke e o anti-judaísmo não pela liberdade crítica, essencial à vida universitária, mas pelas posições de Trump em tais matérias. Não excluo que Vance, o VP autor do livro que mencionei a princípio, já esteja a pensar que o que é demais é erro.

Em suma: Poderá Trump recuar na desastrada iniciativa da guerra comercial, embrulhando o recuo na retórica de ter sido tudo planeado a benefício de algumas vantagens?

Seria bom. Porque, como já disse tantas vezes, a personagem é detestável a vários títulos, excepto por ser depositário de algumas ideias de direita que outras direitas não têm força anímica para combater: o estatismo, a engenharia social, a limitação da liberdade de expressão – entre muitas outras.

* Publicado no Observador

Indignidade moral

Pedro Correia, 15.04.25

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Manhã de Domingo de Ramos: Vladimir Putin ordena aos seus esbirros para bombardearem Sumy, na Ucrânia. Com total desprezo pela vida humana. 

Dois mísseis foram lançados para o centro da cidade enquanto centenas de pessoas iam à missa. Morreram 34 civis e 119 ficaram feridos, alguns em estado muito grave. Sete dos mortos eram menores.

Ao contrário do que apregoavam os propagandistas da Casa Branca, nem a guerra na Ucrânia terminou em 24 horas nem há qualquer sinal de que tenha fim à vista. Continuam a ser ali cometidas as maiores atrocidades - pelo quarto ano consecutivo. 

Confrontado com este mais recente crime de guerra, Donald Trump voltou a poupar Putin: nem um esboço de crítica ao carrasco da Ucrânia. Começou por uma declaração tipo Miss Mundo, geral e abstracta, dizendo que «as guerras são horríveis». Depois limitou-se a chamar «erro» à nova acção criminosa do psicopata russo. E desviou logo a rota, lançando culpas sobre o seu antecessor na Casa Branca. Parece convencido de que a campanha presidencial norte-americana ainda não terminou, daí nunca abandonar a rasteira linguagem de comício. Dando a entender que o responsável dos massacres na Ucrânia é Joe Biden, não Putin.

Em contraste absoluto com a reacção imediata de Keith Kellogg, para quem o bárbaro ataque a Suny «ultrapassa qualquer linha de decência». Palavras dignas que o colocarão ainda mais à margem do processo negocial: Donald Trump, que detesta Zelenski e admira Putin, parece já não contar com o general para contactos com Kiev.

Em Washington, apesar de tudo, acende-se uma ténue luz de esperança. Congressistas republicanos começam a pressionar Trump para se mostrar sensível ao sofrimento ucraniano. É muito provável que este esforço esteja condenado ao insucesso. Mas se não falarem agora arriscam-se a ficar tão contaminados pela indignidade moral como ele.

A guerra de Trump aos pinguins

Pedro Correia, 03.04.25

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Donald Trump tem a ambição, juram alguns, de receber o Prémio Nobel da Paz. 

Embalado nesse sonho, vá-se lá saber porquê, acaba de declarar guerra comercial ao mundo inteiro com a imposição de tarifas brutais - 20% a Portugal, via União Europeia.

Nem escapam uns ilhéus perto da Antárctida que servem apenas de morada a pinguins, como revelou o primeiro-ministro australiano, com visível espanto. Certamente pensa o mesmo que muitos de nós: a Casa Branca transformou-se em Nave dos Loucos.

 

Mundo inteiro? Parece que exagerei.

Vendo bem, há uma parcela do planeta imune às trovejantes sanções do sucessor de Joe Biden: a Rússia, maior Estado do globo. O ditador Putin tem mais sorte do que os pinguins: Trump nem ousa beliscá-lo.

Coincidência? Claro que não.

Motivo acrescido para eu repetir o que aqui escrevi há quase um mês: trumpistas e putinistas vão-se fundindo a ritmo acelerado.

Que diferença entre Roosevelt e Trump...

Pedro Correia, 10.03.25

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«Quando a guerra terminar usarei um fato. Talvez semelhante ao seu, talvez melhor e talvez mais barato.»

Zelenski, a um repórter que o questionou na Sala Oval por não usar fato e gravata

 

Em Dezembro de 1941, o mundo mergulhara no mais devastador conflito bélico da História. Winston Churchill, primeiro-ministro britânico, foi convidado a visitar Washington, onde conferenciou com o Presidente norte-americano, Franklin Roosevelt.

Apareceu perante o anfitrião e os jornalistas com o seu macacão de corte militar como símbolo de combatente, realçando o facto de representar um país em guerra.

Roosevelt tratou-o com cortesia e cordialidade: nada mais natural, tratando-se de um aliado. Jamais lhe passaria pela cabeça dizer - ou permitir que alguém proferisse - qualquer frase menos cordata sobre a indumentária do visitante.

Outros tempos. Totalmente ao contrário do que ocorreu há dias, no mesmo local, durante a visita do Presidente ucraniano, quando Zelenski se apresentou ali com a sua icónica sweatshirt militar, que jurou usar até ao fim da matança dos ucranianos pelos russos. Foi quanto bastou para desencadear um chorrilho de ganidos soezes, e .

Que diferença abissal entre a Casa Branca de Roosevelt e a Casa Branca de Donald Trump. Até nisto. Parecem dois mundos antagónicos: nada a ver um com o outro.

"É para um amigo..."

jpt, 09.03.25

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Como preâmbulo: no "Observador" Paulo Dentinho deixou um bom artigo, "O tempo dos autocratas", breve resenha do que se passa. Deixo excertos: "Aos poucos, estamos a assistir à ascensão de regimes iliberais, onde a fachada democrática se mantém, mas esvaziada dos seus princípios essenciais. (...) Orbán reivindica Budapeste como a capital do iliberalismo e a sua “democracia iliberal” é hoje um modelo exportável. Tem seguidores em vários outros países europeus. Mas não só.

Com o seu modelo, o Estado e as suas instituições são capturados a pouco a pouco. A separação de poderes desvanece-se, torna-se aceitável: o parlamento é quase irrelevante, a justiça dobra-se. A imprensa é vilipendiada até só sobrarem os jornalistas amestrados. (...)

Os imigrantes são, normalmente, bodes expiatórios, as organizações internacionais e o sistema global de alianças é desprezado. As elites empresariais alinham-se. E no centro de tudo, o culto do líder.

Com maior ou menor dose, Modi e Erdogan fazem também parte da lista. Já em Moscovo, Vladimir Putin tem um sistema ainda mais aperfeiçoado.

Na Rússia há eleições, mas só para validar resultados já decididos. Putin não governa, domina o exército, a justiça, os oligarcas, os serviços secretos, a imprensa, a justiça. Tudo. O modelo é claro: não se cala a oposição, alguma é mesmo tolerada por ser cúmplice. Mas eliminam-se os opositores não desejados. Simples.

E agora, os Estados Unidos. Nesta segunda presidência de Donald Trump há já alguns sinais reveladores. Internos e externos. Ambos exercidos com dose significativa de brutalidade.

Internamente, há uma obsessão em controlar a justiça e a comunicação social. Externamente, o alinhamento com Vladimir Putin é uma simples constatação. O presidente americano já não fala da Rússia como uma ameaça, mas como um parceiro. Desfez as alianças tradicionais. Não negoceia. Impõe. Distribui taxas alfandegárias como uma espécie de punição a uns, e ameaça com elas vários outros antigos aliados da América.

A ascensão dos autocratas não acontece por acaso. Deriva da crise do modelo liberal-democrático, da ausência de resposta ao crescimento das desigualdades, do ressentimento com o sistema político, da percepção real ou empolada da corrupção das elites.

Os autocratas detetam as falhas, oferecem respostas simplistas, frequentemente demagógicas e populistas: um inimigo, uma promessa de grandeza e uma narrativa em torno de um líder capaz de restaurar a ordem.(...)".

Neste contexto é interessante ver as reacções do pequeno bando de fascistas portugueses entusiasmados com o ressurgimento de Trump. Há neles duas dimensões: por um lado afirmam-se nacionalistas - e muito do  que  escrevem deriva, explicita ou implicitamente, da sua sanha contra a União Europeia que, dizem, põe em causa a "Europa das Nações", a estas dando primazia, essencial, ôntica, até sacra. E é relevante que nesse eixo de entendimento saúdam, até efusivos, as políticas económicas de Trump porque serão boas para os EUA. Glosando a velha frase - que é verídica e não crítica - assumem que "o que é bom para a General Motors é bom para os EUA". Mas, dado o seu reiterado "nacionalismo", é evidente que dela retiram um silogismo: "o que é bom para a General Motors é bom para os EUA e como tal é bom para Portugal". Ainda não vi escrito o raciocínio económico - que  não o político, social, cultural ou religioso - que sustenta esta conclusão. E este é exigível, exactamente por os locutores se reclamarem - se fundamentarem - no tal seu arreigado nacionalismo. Quero fazer-me entender: não reclamo uma justificação de teor político, tipo "nós (governos portugueses, "europa") temos más/custosas políticas". É mesmo económico - assente em visões de curto, médio ou longo prazo. É que se não houver essa abordagem, todo este apreço "nacionalista" pelo anunciado rumo económico americano e seus hipotéticos efeitos em Portugal assenta numa aversão aos interesses económicos portugueses. Uma traição, intelectual que seja. Ou, dado que o termo "traição" caiu em desuso, tornado até anacrónico, é uma convocatória para a resposta: "estes tipos que vão para a americana que os pariu".

Há uma outra via que sedimenta os apreciadores deste influxo autocrático. Está esparramada noutro texto do pluralista "Observador", do nosso José Meireles Graça. Onde opta pelo registo "É para um amigo..." - e sou particularmente sensível a esse rumo pois também tenho alguns amigos, um pequeno  ramalhete, que assim seguem. Nesse texto identifica-se o apreço por Trump e quejandos como suportado numa "guerra cultural", contra o politicamente correcto (dito agora wokismo). Esse sobre o qual o democrata Pedro Correia escreveu "Tudo é Tabu", interessantíssimo roteiro sobre as aleivosias do extremismo "identitarista". Pois para aquele "amigo" - e para a fileira destes "amigos" - é tamanha a angústia diante dos discursos das minorias dos que têm ansiedades sobre as respectivas genitálias, dos esparvoados académicos que querem "denunciar" a história, ou dos radicais racialistas, ditos "identitaristas", que preferem apoiar gente como Putin. Pouco importa que este seja um ditador assassino, cleptocrata e imperialista. Pois é defensável dado ser presumível adversário do conteúdo do programa da disciplina do ensino secundário "Educação para a Cidadania" - que estes seus mais ou menos tímidos apoiantes, já agora, nem sequer conhecerão, apenas lhes disseram que é um espaço onde ensinam os rapazolas a enrabarem-se uns aos outros.  

E nisto tudo, para além da abjecção de se andar a botar elogios a um ditador como Putin, invectivam-se os críticos de Trump - nós estúpidos (quiçá até um pouco wokistas) porque ficamos presos a análise do seu perfil moral e intelectual e não aos presumíveis ganhos das suas  políticas (os tais interesses americanos imaginados como se portugueses fossem...). Pois não é um questionamento político aquele que fazemos, será apenas ligeireza "pessoalista". Neste peculiar eixo de entendimento do que é "política" é saudável, pois anti-woke, que o presidente do mais relevante país grunha "ninguém ouviu falar do Lesotho" e à sua volta todos ululem gargalhadas. E que se louve por ter cortado apoios à pesquisa sobre "ratos transgénicos" , e mais gargalhem. Pois tudo isso, os lesothos e os ratinhos de laboratório e tantas outras coisas, é entendido como "wokismo" - o que é ainda sublinhável por provir de gente que não se coíbe de contestar a "investigação científica" "financiada". E que tem a ufana incultura de o ... escrever. 

De facto, isto é puro grunhismo. Não o do Trump. Não o do (refinadíssimo) Putin. Mas o dos "amigos...". E é um grunhismo fascista. Desavergonhado. 

O cerco a Zelenski na Sala Oval

Pedro Correia, 01.03.25

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Donald Trump só fala em dólares: nunca em princípios nem valores.

A legalidade internacional está ausente da sua incessante verborreia nas redes digitais.

Nunca o ouvimos enaltecer ou defender direitos humanos. Prefere mencionar, sem rodeios, a exploração de recursos naturais noutros países.

Governa em nome de uma nação, mas só a pensar numa claque. A sua.

Parece um político saído das páginas de "Império", o romance de Gore Vidal centrado nas presidências de William McKinley e Theodore Roosevelt, que tomaram de assalto as últimas parcelas ultramarinas espanholas nas Antilhas e no Pacífico.

 

Ontem recebeu na Casa Branca o seu homólogo da Ucrânia, Volodímir Zelenski, como se dignasse avistar-se com um serviçal. Exibindo um comportamento inaceitável. Quase aos gritos, de forma insultuosa, depois de lhe ter chamado "ditador" (algo que jamais fez com Putin) e de ter dito que foi a Ucrânia a iniciar a guerra (jamais se atreveu a dizer coisa semelhante sobre a Rússia invasora). 

Houve cerco a Zelenski na Sala Oval, para gáudio dos jornalistas, como se aquilo fosse um freak show. Estavam também o secretário de Estado e o secretário da Defesa, entre outros elementos da administração norte-americana. Mas o mais vociferante foi o vice-presidente. J. D. Vance - a quem alguns portugueses dignos de respeito prestam vénia por motivos insondáveis - ia repetindo, em tom provocatório, a ladainha putinista sobre a «falta de homens e de munições» sentida pela Ucrânia. E ousou dar lições de etiqueta política ao convidado - logo ele, que há duas semanas, em Munique, interferiu grosseiramente no processo eleitoral alemão com apoio explícito à direita mais exteremista e pró-russa.

O mesmo Vance que, enquanto senador republicano do Ohio, há um ano tudo fez para travar o pacote de ajuda a Kiev no Congresso norte-americano.

 

Ontem, a meus olhos, Zelenski agigantou-se ainda mais ao enfrentar isolado aquela assembleia hostil, onde nem faltavam repórteres com questões provocatórias: um idiota chegou a perguntar-lhe porque não usa fato.

Mas receio por ele. Putin anda há três anos a tentar eliminá-lo. Agora que a cumplicidade entre a Casa Branca e o Kremlin se tornou indisfarçável, essa ameaça avoluma-se: os esbirros de Moscovo sentem-se mais encorajados a riscá-lo do mapa.

Quem imaginar o contrário mora no País das Maravilhas - muito longe deste mundo concreto e cada vez mais perigoso em que vivemos.

Obsceno

Pedro Correia, 27.02.25

Este vídeo que o novo-velho inquilino da Casa Branca partilhou na sua rede digital sobre Gaza "reconstruída" e transformada na putativa "Riviera do Médio Oriente" só merece um qualificativo: obsceno.

Obscena, a visão mercantilista do esbulho programado e glorificado.

Obscena, a concepção neocolonialista da administração norte-americana, cobiçando eventuais lucros futuros à custa da martirizada população palestina, que - Trump dixit - deve ser «expulsa» para outras paragens. 

Obscena, a fita «gerada por inteligência artificial» de um Elon Musk emulando o cocainado Leonardo di Caprio no filme O Lobo de Wall Street, de Martin Scorsese. Lançando ao ar muitas notas de dólar, símbolo supremo do domínio sobre os indígenas, tributo despudorado ao deus-dinheiro.

Obscena, enfim, aquela estátua de Donald Trump banhada em ouro. Que logo associamos ao bezerro de ouro imortalizado na Bíblia.

Êxodo, 32: «Todos tiraram as argolas das orelhas e levaram-nas a Aarão. Ele recebeu tudo aquilo, deitou o ouro num molde e fundiu um bezerro de metal. E todos exclamaram: "Povo de Israel, aqui tens os teus deuses, que te fizeram sair do Egipto!" Quando Aarão viu isto, construiu um altar em frente do bezerro e disse em voz alta: "Amanhã haverá festa em honra do Senhor. No dia seguinte, de manhã, ofereceram holocaustos e sacrifícios de acção de graças. O povo sentou-se a comer e a beber e depois começaram a divertir-se.» 

Versículos que estes alegados cristãos embalados pela embriaguez da suposta lei do mais forte parecem desconhecer por completo. Ou escarnecer deles, na alucinada vanglória que se apossou deles desde 20 de Janeiro.

Sem título

jpt, 26.02.25

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Sem título e... com que texto? Posso compreender os eleitores norte-americanos, decidiram em função das suas considerações sobre o seu país. Mas que posso eu dizer sobre os doutores portugueses que ronronam com isto, que dão largas a interpretações refinadas - transaccionalismo e coisas quejandas - sobre isto? A minha querida irmã ausentou-se por uns dias. Mas deixou instruções explícitas à minha querida filha - que dentro de dias se ausentará - para que ela mantenha a guarda durante a sua ausência: "não deixes o teu pai escarrapachar nos blogs o que pensa desses doutores trumpófilos. Por mais razão que ele tenha! Mesmo nesses palavrões que só ele conhece...".

"Zé, então e como está aquilo em Moçambique?..." (2): um novo ciclo

jpt, 25.02.25

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(A fotografia retrata uma exposição da Magma Fotografia, na estação dos CFM de Maputo, em 2009. A fotografia exposta será de Solange dos Santos ou de Dominique Andereggen, não tenho a referência completa)

"Zé / Zezé, então e como é que está aquilo em Moçambique?...", perguntam-me diariamente amigos, agora que "as coisas" de lá se afastaram um pouco dos "escaparates" da imprensa. - escrevia eu há um mês. Agora perguntam-me menos, as notícias por cá escasseiam e outras questões prementes convocam o interesse: as nossas inúmeras trapalhadas do CHEGA, às quais se seguiram as previsíveis de Montenegro. Lá fora mantém-se a desgraça de Gaza, acoplada ao patético/pateta anseio de uma Riviera ali medrada. E, agora mesmo, a ascensão final da Criatura TrumPutinEsta tanto animando essa execrável mescla, vigente desde a invasão da Ucrânia, fez ontem três anos (!), dos nossos comunistas - das versões III e IV Internacionais - e fascistas - entre estes em especial os que estiveram estas décadas travestidos de "sociais-democratas" pêessedistas ou "demo-cristãos". Os quais andam agora, eufóricos pois "saídos do armário", quais "bichas loucas" em histriónica "parata fascista".

Enfim, olhando a História, percebemos que a revivemos. Pois a oriente temos hordas de guerreiros norte-coreanos rumo a Viena, os boiardos russos vão sendo defenestrados em massa, o pretendente Navalny foi morto há um ano (cumpriu-se há pouco). Entretanto, a oeste Drake vagueia pelas nossas costas, reforçado por frota de mercenários vikings, convertidos ao calvinismo africano. E há dias, arrogante, mandou-nos como emissário um puritano de Salem, para exigir "tributo". E esta nossa gentalha rejubila. Porquê? Por não gostar que "Roma" imponha alguns limites às superstições locais... São uns labregos, já o referi.

Neste ambiente como atentar nas coisas de Moçambique? Mesmo assim ainda há quem me pergunte novidades sobre o país. Faço então um curto resumo, para não cansar os (um pouco) interessados. O candidato presidencial Venâncio Mondlane, autoproclamado "presidente do povo", continua as suas sortidas, colhendo impressionantes e espontâneos banhos de multidão: agora em Vilanculos, há dias em zonas populares de Maputo e em localidades da sulista província de Gaza (a Gaza moçambicana, não a mediterrânica, como julgou o ex-viking Musk). Alguns dos seus seguidores mais próximos continuam a sofrer tentativas de assassinato, ditos como praticadas pelos consabidos "esquadrões da morte". A isso reage a população, destruindo algumas instalações estatais e do partido do poder, fenómenos mais correntes no Sul do país, algo relevante pois em zonas de tradicional adesão maioritária ao Frelimo. E continuam a grassar bloqueios rodoviários e em torno de zonas comerciais, sinalizando a imprevisibilidade do rumo nacional e a atrapalhação da "ordem pública". Como detalhe, verdadeira minudência, lembro que algumas rádios de Nampula viram-se impedidas de transmitir, tendo regressado algum tempo depois, decerto que tendo tomado em conta o "aviso à navegação" recebido. Bastante preocupantes são as notícias da disseminação de grupos amotinados (agora ditos "namparamas", num uso inovador do termo, que vem substituir os anteriores "bandidos armados" ou "insurgentes"), os quais alastram, principalmente nos distritos da Zambézia. E diante dessa epidemia de "jacqueries" temo que se venha a tornar em pandemia.

Entretanto há dias houve a ansiada reunião do Comité Central do Frelimo, sobre a qual muitos diziam ser o momento da passagem do testemunho, efectivando uma maior autonomia política do actual presidente Chapo, abrindo assim o "novo ciclo" de poder - este por cá já há tempos "anunciado na tv" pelos comentadores lóbistas Paulo Portas e Miguel Relvas -, e concomitantes novas práticas de exercício governativo. 

E alguns dias após essa reunião magna houve pronunciamentos dos próceres moçambicanos, delineando o conteúdo desse "novo ciclo". O antigo presidente Guebuza deu uma conferência na semana passada, explicitando que "o colono trouxe a ideia que o africano é corrupto". Entenda-se, que a premente acusação de corrupção generalizada do regime se deve ... à maldade exploratória dos colonialistas. Para os alheados das questões moçambicanas (e africanas) esta formulação tem de ser esmiuçada, pois não é apenas uma diatribe. As elites políticas que ascenderam ao poder após as independências sempre se legitimaram pelo seu papel anticolonial. E o Frelimo sempre insistiu nesse tópico. Agora, 50 anos depois da independência, com o país naquele estado, face a uma população cuja esmagadora maioria tem menos de 35 anos - netos e bisnetos dos colonizados -, tentar insistir neste tópico (certeiro ou errado, pouco importa) é evidência de que a elite política (na qual Guebuza é importantíssimo) não compreende o real, não reflecte sobre ele. E assim nunca assumirá um qualquer "novo ciclo" (apesar do que por cá dizem os comentadores televisivos Miguel Relvas e Paulo Portas...).

Logo de seguida o novo presidente Chapo foi mais longe no sistematizar do conteúdo desse "novo ciclo": primeiro que a luta contra as "manifestações é a continuidade da guerra dos 16 anos". A expressão é um programa político: por um lado, o epíteto "guerra dos 16 anos" é um lema dos frelimistas (ladeado por outro "título", o de "conflito armado"), que nega a referência a uma "guerra civil", forma de então - e ainda agora - negar a realidade social da Renamo, reduzindo-a a marioneta de agressão estrangeira. E, por arrasto, afixando essa "inexistência" ao que se passa agora. Por outro lado, Chapo - mais novo que Guebuza - ao afirmar isto não só procura reduzir os manifestantes a agressores (externos) como busca a legitimação do poder na invocação da pacificação de uma guerra terminada há... 30 anos. E um discurso autolegitimador que, como o anterior, não colhe diante desta pirâmide etária. Ou seja, tanto pela negação sociológica como pela retórica autolegitimadora, a via do actual presidente sublinha que a elite política - e nesta caso a das fracções vigentes - não compreende o real, não reflecte sobre ele. E assim, repito, nunca assumirá um qualquer "novo ciclo"...

Depois, e para que não restem dúvidas sobre as suas intenções e as do poder instituído, foi a Pemba discursar e anunciou ontem que "Vamos derramar sangue para combater as manifestações", enfatizando ainda que "vamos fazer jorrar sangue"...

Enfim, "Zé/Zezé, então e como está aquilo em Moçambique?...", perguntam-me os amigos, diante da imperial do fim da tarde. "Não sei", respondo, entristecido. 

Trair a Europa, apunhalar a Ucrânia

Pedro Correia, 21.02.25

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Foi notícia esta tarde: Donald Trump poderá viajar em 9 de Maio a Moscovo, onde se sentará ao lado de Putin no chamado "desfile da vitória" - grande parada bélica na Praça Vermelha. Falta confirmar, mas com o antecessor/sucessor de Joe Biden nada é garantido. Por ter uma relação muito atribulada com a verdade. 

Inequívoca é a sua aversão a Zelenski, que - diz ele - «não tem lugar à mesa das negociações» para pôr fim a três anos de invasão russa. Enquanto confessa estar «já farto de ouvir» o homólogo ucraniano.

Decalcando cada vez mais a narrativa do Kremlin, o novo-velho inquilino da Casa Branca trai a Europa e apunhala a Ucrânia. Em velocidade furiosa, no 32.º dia do seu mandato presidencial. 

Há muitas maneiras de passar à História: pode ser também pelos piores motivos. Trump candidata-se desde já a isso.

Afinal quem é que «abana a cauda»?

Pedro Correia, 20.02.25

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Vladimir Putin dizia recentemente que os europeus «vão acabar por abanar a cauda a Trump». Elegantíssima expressão. Não admira, vinda de onde vem.

Afinal, por estes dias, parece ser Donald Trump quem «abana a cauda» ao ditador russo, de tal modo que nem hesita em adoptar quase ponto por ponto o argumentário do Kremlin para denegrir Volodímir Zelenski. 

Tanto em declarações feitas anteontem como num alucinado pedaço de prosa ontem divulgado na sua rede digital, o novo-velho inquilino da Casa Branca dispara um chorrilho de insultos ao Chefe do Estado ucraniano que em nada diferem das habituais invectivas de Moscovo - incluindo "comediante sem sucesso" e "ditador", entre outras expressões próprias de um inimigo, não de um aliado.

Garante que ele só tem hoje «4% de aprovação» entre os ucranianos. Chega a culpá-lo de iniciar a guerra, numa inversão total dos factos. Como se o bombardeamento de Pearl Harbor em Dezembro de 1941 tivesse sido feito pela aviação norte-americana em vez do Japão. E acusa-o de suspender eleições na Ucrânia, que se encontra desde Fevereiro de 2022 sob lei marcial em resposta à agressão russa, o que inviabiliza qualquer processo eleitoral - como aliás aconteceu no Reino Unido, sob a liderança de Winston Churchill, entre 1940 e 1945. Além de que a própria Constituição da Ucrânia interdita a realização de eleições com o país em estado de guerra, o que não causa qualquer surpresa.

Sobre a manifesta falta de democracia na Rússia, nem uma palavra. Sobre o facto de Putin - ele sim - ser um tirano, nem um sussurro.

 

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Esticou-se de tal maneira que forçou Boris Johnson a sair em defesa de Zelenski, também numa plataforma digital.

O antigo primeiro-ministro conservador britânico, sem papas na língua, desmonta as falácias de Trump, repondo a verdade. Foi obviamente Moscovo a iniciar a guerra, é impossível um país sob invasão estrangeira organizar eleições presidenciais, a quota de popularidade de Zelenski equivale à de Trump.

As falsas alegações do norte-americano forçaram o seu antigo vice-presidente, Mike Pence, a sair igualmente em socorro da verdade: «Senhor Presidente, a Ucrânia não iniciou esta guerra. A Rússia lançou uma invasão brutal e não provocada, ceifando centenas de milhares de vidas. O Caminho para a Paz deve ser construído sobre a Verdade.»

Na mesma linha se pronunciou John Bolton, que foi conselheiro nacional de segurança no primeiro mandato de Trump: «Caracterizar assim Zelenski e a Ucrânia é uma das observações mais vergonhosas alguma vez feitas por um Presidente dos EUA. O nosso apoio à Ucrânia nunca foi uma questão de caridade, pois a maneira como vivemos em casa depende da nossa força no exterior.»

 

Esforços louváveis, mas inglórios. Não é segredo que o antecessor/sucessor de Joe Biden é imune ao rigor factual. Só lhe interessa a matéria ficcional que vai compondo como narrativa para mobilizar os mais fanáticos - incluindo os que moram deste lado do Atlântico.

Lá no seu búnquer de Moscovo, Putin tem amplos motivos para sorrir. Já conseguiu que o putativo "homem mais poderoso do mundo" se portasse perante ele como um potro amestrado. E ainda só decorreu um mês: esperem pelo que aí vem.

 

ADENDA 1: Por imposição dos EUA, a expressão "agressão russa" não deve constar do comunicado conjunto do G7 que assinala o terceiro aniversário da invasão da Ucrânia.

ADENDA 2: Washington recusa apoiar resolução da ONU de condenação da guerra desencadeada por Moscovo em 2022 no país vizinho.

O ditador Putin e o amigo americano

Pedro Correia, 18.02.25

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A administração Trump prepara-se para proporcionar hoje, em Riade, um enorme triunfo diplomático à Rússia de Vladimir Putin, que há três anos lançou sobre a Ucrânia um ataque sem precedentes, desencadeando o mais sangrento conflito no continente europeu desde a II Guerra Mundial - com o propósito declarado de riscar o país vizinho do mapa dos Estados soberanos.

Convém lembrar que em Fevereiro de 2022 os blindados de Moscovo chegaram a 15 quilómetros de Kiev. Dissolver as instituições ucranianas, instalar no palácio presidencial um fantoche semelhante ao bielorrusso Lukachenko e eliminar o Presidente Volodimir Zelenski eram os objectivos do ditador russo.

Sem ter feito a menor concessão, graças apenas à benevolência de Donald Trump, Putin vê o novo-velho inquilino da Casa Branca reconhecer-lhe estatuto de líder credível e digno de confiança, indiferente ao facto de haver contra ele, desde Março de 2023, um mandado de captura do Tribunal Penal Internacional. Indiferente também aos numerosos crimes de guerra cometidos pelas forças russas em território ucraniano. Em cidades-mártires como Butcha, Irpin e Mariúpol

 

Alguns, no conforto da Europa Ocidental, aplaudem. Alheios aos atentados aos direitos humanos cometidos na própria Rússia, onde Putin não hesita em assassinar opositores políticos. Enquanto vão pervertendo a palavra paz, associando-a ao carrasco de Alexei Navalny.

Argumentam que o fundamental é «haver um acordo». Como se fosse possível selar um acordo sobre o futuro da Ucrânia nas costas de Zelenski e com a total ausência de representantes da União Europeia, que nestes três anos enviou 145 mil milhões de dólares em assistência financeira, militar e humanitária a Kiev.

Falando em acordos, vale a pena mencionar duas datas:

5 de Dezembro de 1994. O dia em que foi assinado o Memorando de Budapeste. Honrando este compromisso, a Ucrânia entregou à Rússia todo o arsenal nuclear existente no seu território desde os tempos da URSS, em troca do reconhecimento da sua soberania e da sua integridade territorial. O acordo foi também subscrito por representantes dos EUA e do Reino Unido. Sabemos o que aconteceu depois. Em Março de 2014, Moscovo anexou a Crimeia e instalou governos de fachada, totalmente manobrados pelo Kremlin, nas províncias ucranianas de Donetsk e Lugansk.

12 de Fevereiro de 2015. O dia em que russos e ucranianos assinaram o segundo Acordo de Minsk, com mediação alemã e francesa. Kiev reconheceu a autonomia de Donetsk e Lugansk, em troca da promessa russa de respeitar a integridade territorial do país vizinho e retirar apoio militar aos separatistas. 

Sabemos o que aconteceu depois: Putin não respeitou nenhum dos compromissos. As últimas ilusões dissiparam-se em definitivo a 24 de Fevereiro de 2022.

 

Saia o que sair hoje de Riade, onde a União Europeia não comparece por óbvio veto de Moscovo, valerá coisa nenhuma. De caminho, desonra a administração norte-americana. Que em menos de um mês desde a entrada em funções já demonstrou viver num mundo às avessas: ameaça os históricos aliados de Washington e robustece os tradicionais inimigos dos EUA.

Antigos presidentes norte-americanos como John Kennedy e Ronald Reagan (que defenderam ao limite a "ilha" de Berlim Ocidental cercada por soviéticos como fronteira do mundo livre) e George Bush (que há 35 anos liderou uma coligação internacional, respaldada pela ONU, para libertar o Koweit invadido pelo Iraque) devem dar muitas voltas nas respectivas tumbas.

Dia após dia, Trump anda a trair o legado de todos eles.

Preservativos para Gaza

jpt, 11.02.25

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Esta é a melhor do dia. Elon Musk contestou o envio de preservativos para Gaza - juntando-lhe, na sua rede X, uma veemente crítica questionando a razão de serem todos "Magnum" os preservativos atribuídos aos palestianos (ao Hamas, dir-se-á).
 
Mas, afinal, o envio era para Gaza, Moçambique....
 
(Neste filme o homem, ladeando o presidente Trump, explica o seu erro. Convém ver. Principalmente os que simpatizam com o novo governo dos EUA, para melhor entenderem os modos como aquilo está a decorrer... Surreais modos.)

Quem brinca com o fogo pode queimar-se

Pedro Correia, 23.01.25

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Abertura do Canal do Panamá, em 15 de Agosto de 1914

Donald Trump não perdeu tempo: no próprio discurso da tomada de posse, na segunda-feira, deixou bem claro que pretende repor o Canal do Panamá sob a tutela de Washington. Alegando que é uma obra de engenharia dos EUA, que de facto assumiram entre 1904 e 1914 a edificação desta rota marítima artificial entre o Mar das Caraíbas e o Oceano Pacífico por onde hoje circula cerca de 6% do comércio mundial. Mas não é menos verdade que Washington abdicou voluntariamente do exercício da soberania no canal em 1977 com a assinatura dos tratados Carter-Torrijos, que concediam à República do Panamá a plena jurisdição da zona a partir de 1999, como veio a acontecer.

O novo-velho inquilino da Casa Branca parece mesmo disposto a mandar às malvas o direito internacional, tal como aconteceu com o ditador russo ao ocupar parcelas da Ucrânia. Será que isto legitima a partir de agora também a França e o Reino Unido a "reconquistarem" o Canal do Suez, inaugurado em 1869 e nacionalizado pelo Governo egípcio em 1956 apesar dos protestos de Paris e Londres?

Já que o mapa geopolítico anda a ser "redesenhado", perante o aplauso de uns quantos, convém não deixar o Suez de fora. Até por ali fluir cerca de 12% do comércio internacional - dobrando a percentagem do Canal do Panamá.

Este é o problema de quem semeia ventos: deve preparar-se para colher tempestades. O efeito de contágio é fatal: basta o rastilho de uma fogueira para que ela se multiplique por cem ou mil. E há sempre a hipótese de os tiros fazerem ricochete - mesmo que por enquanto não passem de tiros verbais.