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Delito de Opinião

Trump

José Meireles Graça, 22.01.21

Anteontem, Belzebu deixou Washington e entrou o Arcanjo Gabriel, com hino de Lady Gaga, sob comedido aplauso local e entusiástico entre nós. Excepto pelo amor do cozido à portuguesa, sinto-me muito pouco irmanado com a maior parte dos meus concidadãos. Por isso, tencionava deixar consignada neste canto a minha opinião, que naturalmente respeito. Mas calhou ler um texto que apreciei e que por isso, a benefício dos leitores que não sabem inglês, traduzi. O autor chama-se John Hinderaker, e são dele portanto os méritos da opinião; e as deficiências da tradução minhas.

TRUMP LUTOU CONTRA O PÂNTANO, E O PÂNTANO GANHOU

 

Donald Trump foi facilmente, na minha opinião, o nosso melhor presidente desde Ronald Reagan. As suas realizações são impressivas: as leis sobre Cortes nos Impostos e do Trabalho, o maior esforço de desregulamentação desde sempre, a melhoria dos acordos de comércio, a baixa recorde do desemprego, o aumento substancial pela primeira vez em décadas dos salários para as famílias operárias e da classe média, o encorajar do desenvolvimento dos recursos de petróleo e gás, o recuo do politicamente correcto e da teoria crítica do racismo das instituições, etc. E, no fim, a Operação Alta Velocidade, baixando as barreiras regulamentares para acelerar o desenvolvimento de vacinas contra a Covid em tempo recorde.

O registo da política externa de Trump é igualmente impressivo: enfrentando tanto a China como a Rússia, revigorando a OTAN, destruindo o ISIS, tratando Israel como um aliado e não como um pária, e dando largos passos a caminho da paz no Médio Oriente. Tudo enquanto evitava com sucesso operações militares no exterior.

As realizações de Trump são ainda mais notáveis tendo em conta a incansável hostilidade e obstrucionismo a que foi sujeito desde o dia em que tomou posse. A peça de resistência foi, claro, a aldrabice do conluio com a Rússia, paga pela campanha de Hillary Clinton, adoptada pelo FBI e outras agências governamentais, e institucionalizada sob a forma de um procurador especial. Nunca nenhum presidente foi sujeito a nada de parecido, muito menos com bases tão ténues.

Mas isto não foi tudo: Além da aldrabice – acolitada, deve-se notar, pela comoção ucraniana e as destituições de ópera-cómica – Trump defrontou-se não apenas com oposição, mas ódio não-stop da imprensa, Grandes Tecnológicas e grandes empresas em geral, a Academia, Hollywood e o resto da indústria do entretenimento, as escolas públicas, a quase totalidade da burocracia federal (incluindo a porta giratória do burocrata/”perito”), o lobby chinês, em suma, o resto do Pântano.

Por que teve sucesso Trump tantas vezes, enfrentando tão incansável, e muitas vezes enlouquecida, oposição? Porque representava o povo americano, e as suas políticas faziam sentido. Quando Trump disse “América primeiro”, o mundo oficial desmaiou de horror. Mas, por outro lado, a maior parte das pessoas pensa que isso é a descrição da função de presidente. É um sinal dos tempos que o compromisso de um candidato presidencial de defender o povo americano, e promover os interesses da América, fosse visto por muitos como radical.

E todavia, no fim o Pântano ganhou. Há para isso, penso, duas razões. A primeira é o vírus de Wuhan. Para os Democratas, era um maná dos céus – más notícias, quando durante anos tinham sido esmagadoramente boas. A doença apresentava oportunidades sem fim para demagogia, e os Democratas aproveitaram-nas todas. No fundamental, a Covid, ou os confinamentos resultantes, privaram Trump da capacidade de concorrer com o programa de maior sucesso para todas as reeleições: paz e prosperidade.

A segunda razão tem a ver com a personalidade de Trump. Como um herói da tragédia clássica, foi derrubado em boa parte pelos seus próprios defeitos de carácter. Está muito bem dizer que Trump era um lutador e que nunca poderia chegar onde chegou se não estivesse disposto a combater a imprensa e, para repetir, os Democratas. Mas cometeu demasiados erros, e a sua combatividade impressionou demasiados eleitores como beligerância e egomania. Foi o que, no fim, o afundou.

O contraste com Reagan é instrutivo, acho. Como Trump, Reagan era detestado pelos Democratas e a maior parte do mundo oficial. Até que Trump chegou, julgava que nunca veria outro presidente sujeito a um ódio tão incessante. Também como Trump, as políticas do primeiro mandato de Reagan foram altamente bem-sucedidas. Para ser justo, os sucessos de Reagan foram argumentavelmente mais espectaculares, uma vez que começou com o país num buraco mais fundo no que toca à economia e política externa. E Reagan não teve de se defrontar com uma epidemia que descarrilou o crescimento económico.

Mesmo assim: quando Reagan se recandidatou em 1984, ganhou com uma das maiores viragens da história, vencendo em 49 estados. Os Democratas chamavam a Reagan “o presidente Teflon”, a maneira deles se queixarem de os seus ataques não pegarem. De facto, falharam espectacularmente. Uma grande parte da razão era o feitio de Reagan. A sua equanimidade nunca falhava. A sua patente razoabilidade envergonhava os ataques histéricos dos Democratas. Era evidente para a maior parte dos eleitores que ele era simplesmente melhor homem, e mais sintonizado com os seus valores, do que os dos que o queriam atirar abaixo. No fim, vulneráveis como estavam os Democratas o ano passado, e por pouco atraentes que fossem os seus candidatos, a maior parte dos eleitores não tiraram a mesma conclusão a respeito de Donald Trump.

Assim, para resumir, dou a Trump um B+. Fez um excelente trabalho para o povo americano, cumpriu as suas promessas num grau notável, tendo em conta uma completa falta de cooperação dos seus rivais políticos. Mas no fim o Pântano ganhou, e Trump carrega alguma da responsabilidade pela sua própria queda.

Donald Trump(a)

Pedro Belo Moraes, 14.01.21

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A imagem que acompanha este texto reforça o que aqui quero dizer e com urgência: de Trump só se aproveitam as piadas que dele se fazem. O todo e o resto do Donald são deploráveis. 

O legado que deixa é imensamente vergonhoso para a Nação norte-americana, toda ela, a que do mesmo é cúmplice e a que dele é vítima. A herança que deixa é preocupante, assustadora. O Donald é um cancro cujas metástases prosperam na política e na sociedade daqueles que são hoje - por enorme e afincado empenho de Don - os grandes Estados Desunidos da América.  

Já lá vai o tempo em que à antiga estrela de reality show se dava o mero e desculpabilizante rótulo de sintoma. "Ele é um sintoma, não é a causa dos verdadeiros e profundos males do mundo", disseram-me e repetiram-no vezes e vezes sem conta. Fizeram-no durante quatro anos e ainda o fazem hoje. Espantosamente há ainda quem isso afirme, passando uma esponja embebida, talvez, em hidroxicloroquina ou até lixívia sobre os quatro desastrosos anos de permanentes atropelos ao Estado de direito e de violações constantes de todas as regras do jogo democrático, que Trump inquinou, corrompeu e instrumentalizou em benefício próprio.

Não! Trump não é um sintoma do que está mal entre governos e governados. A ainda administração da maior potência do mundo depressa se emancipou da ligeira condição sintomática para se transformar numa das verdadeiras causas dos males do mundo de hoje.

Prova disso é a complacência com que o evasor fiscal é tratado e analisado depois de todos os abusos, ilegalidades e mesmo crimes cometidos sentava-se ele na Sala Oval.

Os trumpistas, os ruidosos e os serenos racionais, uns e outros, ao nomearem uma só que seja nota positiva da miserável presidência que agora finda (a económica, é sempre essa mais que discutível virtude que invocam), ao não exigirem o seu imediato afastamento da presidência e compulsivo julgamento pelos sucessivos e gravíssimos atentados à democracia, todos eles compõem afinal a deslumbrada plateia que em 2016 aplaudiu a tirada alarve e alarmante do destruidor de casinos, disparada no decorrer da primeira corrida à Casa Branca: "Podia dar um tiro em alguém na 5.ª Avenida e não perdia votos."

Ao contrário de outros assuntos, neste Trump não está mesmo nada longe da verdade: dos 75 milhões que votaram nele no último 3 de Novembro, 71% continuam ao seu lado, permanecem fiéis ao maestro, cuja batuta incitou uma multidão marioneta à insurreição, ao inédito e chocante assalto ao Capitólio, com o único e determinado propósito de impedir que o Congresso, os senadores e os representantes, uns e outros eleitos pelo povo, confirmassem a vitória eleitoral de Joe Biden, o candidato cuja maioria dos americanos escolheu para desalojar Trump da Casa Branca e desempenhar o papel de 46.º presidente dos EUA. 

"We love you!", mimou-os a figura laranja, esforçada na missão impossível de sequer aparentar estadismo. Como o cabelo e a cor da pele, tudo nele é fake, instrumental, encapotado. A declaração de amor feita ao mesmo tempo que pedia à turba cega que deixasse o edifício que invadia e destruía assegurando-lhes que "We love you!", fazendo de novo uso da ferramenta preferida dele, o dog whistle, o som soprado pelo apito que só a matilha ouve. E a matilha desembestada ladrou, mordeu e matou. Morreram cinco pessoas e a democracia ferida de morte. 

Trump tem de ser julgado e condenado no Senado mas também nos tribunais. Tem de ser destituído da presidência e também barrado, impedido com força de lei de exercer todo e qualquer cargo federal para o resto da vida. 

Aquilo que ele mais abomina nos outros é o que ele é: um loser. Perdeu tudo. A Casa Branca, a começar e a acabar, primeiro nas urnas, depois nos tribunais, passando pelos Congressos estaduais e culminando no gritinho sumido do Ipiranga berrado pelo seu vice no Congresso Federal. Mentiroso e ele sim fraudulento, em tribunal nunca provou a fraude eleitoral que alegou ter dado a vitória ao adversário e assim perdeu em todas as mais de 60 tentativas interpostas na justiça para na secretaria inverter a derrota que Biden lhe impôs.

Trump é um loser, um falhado, como é o projecto de poder que encabeçou e que culminou na revelação de outro enorme derrotado. Chama-se Partido Republicano e hoje assusta-se com a besta que alimentou para benefício maquiavélico e que agora lhe ameaça o futuro. Ao fim de quatro anos, o trumpismo devolveu a maioria da Câmara dos Representantes e do Senado aos democratas. Enfraqueceu os republicanos, portanto, e isso dividiu-os. Divisão que poderá ser larvar e que por sobrevivência de alguns poderá ditar a facada mortal nas costas de Trump como nos Idos de Março quando no Capitólio for o momento de votar o processo de destituição.

O vendedor de muros deixou de ser um trunfo para os republicanos, passou a ser incómodo.  

Desconcertantemente há por cá gente mais trumpista que o Trump. São os anti-Partido Democrata que o rotulam de feroz e perigoso esquerdista. Um quase promotor de uma nova Cortina de Ferro. Por cegueira ideológica e anti-esquerdismo primário alinham, portanto, na conveniente propaganda do empresário da construção. A esses trumpistas tenho a dizer que a dita direita moderada e liberal portuguesa está à esquerda do Partido Democrata. Veja-se como são as economias, os papéis e pesos do estado num e noutro país. O Partido Democrata é pelo capitalismo mas mais regulado, é pela iniciativa privada, nasce e cresce no caldo cultural da meritocracia avessa a amiguismos e clientelismos. Podemos dizer isto da dita direita moderada e liberal portuguesa? Não. 

Admirador dos Estados Unidos da América que sou, a Trump não lhe perdoo tê-los tornado pequenos no Mundo. O nacionalismo bacoco, o isolacionismo estéril, a rejeição do multilateralismo criaram mais desordem e incerteza no globo. Apostando naquelas máximas e comprando uma guerra tarifária com a China deixou vazios que os chineses exploraram nos bastidores, reforçando-se à conta da inépcia diplomática e geostratégica de Donald John Trump, o 45.º presidente dos Estados Unidos da América de quem nada se aproveita a não ser as piadas que dele podemos e devemos fazer.

Trump e Hitler?

jpt, 09.01.21

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Há um mês, durante a campanha publicitária do seu novo livro, o jornalista e escritor José Rodrigues dos Santos falou com leviandade sobre a "Solução Final" nazi, o extermínio dos judeus (e ciganos, etc.). Gerou-se um coro indignado - ver por exemplo o artigo de Irene Flunser Pimentel; e as respostas de JRS às críticas recebidas (também eu botei sobre o assunto) - com aquela leveza, a medíocre incapacidade de perceber a especificidade de Hitler e seus milhões de sequazes, a sua "normalização" que JRS assim promovia. 

Leio agora, pois basto partilhado nas redes sociais, um texto do renomado sociólogo Boaventura Sousa Santos, "maître à penser" de vastos feixes da intelectualidade portuguesa: "Trump não tomará cianeto". Que surge imensamente mais leviano, indo muitíssimo mais longe nessa "normalização" do nazismo, na sua "banalização". No artigo vem o habitual (no autor) ditirambo contra os EUA, e para isso ali se compara - em retórica de "analogia" - Hitler e Trump, Himmler e Pence, os passos ocorridos no final do regime nazi com este final da presidência americana.

Nem vale a pena comentar o conteúdo. Mas é interessante, pois relevante, notar o silêncio crítico que uma "coisa" destas colhe. Tantos contestaram José Rodrigues dos Santos e todos se calam diante de algo muitíssimo mais intenso nesta "naturalização" do nazismo. Um silêncio que é muito significativo deste "pensamento crítico" em voga: há quem não possa espirrar que logo é apupado. E há quem diga as atoardas que quer, que logo é louvado (e "partilhado"). Chama-se a este seguidismo apatetado "epistemicídio". Pois trata-se do genocídio da análise crítica.

Adenda: A ligação entre EUA e a Alemanha nazi é um tópico nos escritos de Sousa Santos. Veja-se este texto de 2019: "Os EUA flertam com o direito názi" (sic).

Já agora, e porque este vem a talho de foice, não deixa de ser notável que o consagrado académico escreve sobre este "flertar" (de novo, sic) entre EUA e o nazismo a propósito das invenções de "inimigos internos" e não surja agora no mesmo molde a associar António Costa ao nazismo - pois também este cultor da imagem do "inimigo interno", assim tratando os sociais-democratas que lhe são críticos. É notável mas não surpreendente ...

Dia de Reis, 2021, fim de década

jpt, 08.01.21

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Dia de Reis, 2021: Washington, parlamento.

Estes anos 10 de XXI foram, de facto, a "década chinesa" - e isso notou-se bem quando em final de 2020 se assinou o tratado de comércio livre dos 15 da Ásia-Pacífico, enquanto a semi-intelligentsia cristo-"ocidental" discutia com minúcia erotizada o iminente Brexit e as eleições americanas. Julgo que daqui a largos anos sobre esta era os vindouros afirmar-lhe-ão ainda outros dois traços centrais: a continuidade do até surpreendente solavanco indiano (pois o choque dos gigantes asiáticos será estruturante desse futuro); e - num nível que lhes será bem mais fundamental do que tanto tonto ainda grasna - a incapacidade dos países ricos em enfrentarem a reconversão industrial ecologicamente imposta.

Mas neste nosso reduto, o tal "Ocidente" - esgarçando-se como o centro do mundo, que o foi nos últimos 250 anos -, a "década" teve outros traços fundamentais muito, demasiado, marcados pelos abalos internos nos EUA, provocados pela decadência da pax americana, promovida por forças bem mais relevantes do que a óbvia incompetência externa das suas últimas presidências. Por um lado, o crisma das eunucas "agendas identitárias" - total reprise do que a lenda narra como ambiente ideológico aquando da queda de Constantinopla diante do imperialismo islâmico, aquilo da querela sobre o "sexo dos anjos" - submergiu o velho pensamento progressista, metastizado após a queda do comunismo.

E por outro lado, o recrudescer das "agendas soberanistas" - mero invés das outras, pois de facto também elas apenas "identitárias" -, de cariz ferozmente reacccionário, mesclando laivos de liberalismo económico, demagogicamente apropriados, com um conservadorismo radical. Foi esta a "década" encetada pelo movimento Tea Party, de facto um proto-fascismo teocrático. E mais perto de nós, entre outros epifenómenos na Mitteleuropa, os manobrismos de Farage, acoitados pelo paupérrimo Cameron. E tudo isto exponenciado nesta ascensão de Charles Foster Kane à presidência do país mais poderoso do mundo. 

Muito se diz que a democracia ("sempre frágil, sempre vulnerável, corruptível e muitas vezes corrupta", disse-a Bobbio, quando dela fez a apologia) é frágil. Sim, é-o, tem esse enorme vigor. O da fragilidade. No Dia de Reis de 2021 a "década" acabou - esta, que tanto demonstrou essa fragilidade. Findou de modo algo sanguinolento. Mas como farsa. Resta-nos, acima de tudo, olhar os farsantes e seus adeptos, seja lá qual for a sua "identidade", como o que são: farsantes. Alguns malévolos. A maioria apenas imbecis. E combatê-los. Com denodo, aos primeiros. E com infinita ferocidade aos outros, pois muito mais perigosos. E numerosos. Vera pandemia que são.

O Donald

José Meireles Graça, 07.01.21

Cansei-me de, durante o mandato Trump, dizer: Olhem para o que faz, não para o que diz. Isto porque ele tinha meia dúzia de ideias certas sobre a economia, a imigração e as relações com o resto do mundo, enquanto os Democratas tinham e têm meia dúzia de erradas sobre os mesmos assuntos.

A tarefa dos trumpistas (como me chamam, com finura, alguns amigos) sempre foi dificultada pelo Donald, cujas eructações no Twitter tendiam, volta e meia, a ser embaraçosas, e pelos seus discursos de improviso, confrangedores, a sua retórica de vendedor de automóveis, que não era, e a sua prodigiosa grosseria de novo-rico, que também não.

Perdeu as eleições. Não é verosímil que, dada a diferença de votos, as chapeladas (que houve, e agravadas pela quantidade de votos não presenciais e uma multiplicidade de sistemas de contagem), e não obstante inúmeras decisões judiciais que não se basearam em recontagens, o resultado pudesse ser diferente.

Nunca é suficientemente dito que o papel dos vencidos é essencial em democracia: porque sem eles não haveria vencedores e porque os vencidos de hoje podem ser, se conservarem o seu pecúlio e souberem aumentá-lo, os vencedores de amanhã.

O saldo do seu mandato é francamente positivo. Não elenco aqui os sucessos: já o fiz noutra maré e, de todo o modo, como todos os mandatos são feitos de sucessos e falhanços, acertos e erros, nunca poderia convencer senão convencidos. O previsível regresso às agendas mundialistas, como o Acordo de Paris, as pazes com a ONU e as suas agências, e a política externa titubeante, em que ditadores mal vistos pela comunicação social, como Putin ou Jong-un, são hostilizados, enquanto outros mais perigosos como Jinping ou os mullahs iranianos, são relativamente poupados, estão de regresso.

Trump poderia guardar o seu capital (teve a segunda maior votação de sempre), e administrá-lo, talvez não para si porque já está velho para novas aventuras, mas para promover outro futuro candidato.

Não fez assim. Na sua estreita cabeça quem perde é um loser, e conceder senão à 25ª hora uma atitude de fracos. A pressa em executar condenados federais nem para apoiantes da pena de morte, como é a maioria dos Americanos, pode ter deixado de parecer aquilo que é: uma vingança raivosa por a sua liderança, cruel e primitiva em matérias penais, estar em risco. E a invasão do Capitólio por uma turba alucinada, que provocou com tweets incendiários e não susteve logo que se desencadeou, deixa uma mancha indelével no seu mandato.

Talvez no meio daquela multidão houvesse provocadores do ANTIFA; não se percebe como as forças policiais no local não reagiram; e, politizadas e abaladas como estão as instituições, não é certo que as investigações venham a apurar o que exactamente se passou. Mas a ideia de que invadir o Capitólio não é diferente das  manifestações da esquerda americana, que destruíram ruas e inúmeros negócios e outros bens, e que contaram com a complacência de uma comunicação social pela maior parte democrata, isto é, de esquerda, é desvalorizar o simbolismo de atacar impunemente a casa da democracia: se nesta uma sessão para apurar o resultado das eleições pode ser suspensa por um motim apalhaçado, a mensagem a retirar é a de que a polícia é uma anedota, os senadores uns cabeças de turco, os tribunais de faz de conta e o Poder o da rua. E até o grotesco ditador da Venezuela se permitiu vir, com um comunicado, traduzir a sua barrigada de riso.  

No início do seu mandato escrevi um artigo em que previa que correria bem. Era o tempo em que se se anunciava a III Guerra Mundial e as sete pragas do Egipto que se abateriam sobre o mundo e a América.

Correu bem. E acabou mal. Donald Trump não soube estar à altura da sua obra.

Gringos

José Meireles Graça, 18.10.20

Não vi o debate entre Trump e o snowflake Biden.

Mas com relatos e comentários de amigos, desamigos e consultores de vária pinta, nacionais e estrangeiros, cujos artigos me chegam via internet, foi como se tivesse visto.

Fiz bem em entreter-me com outras coisas. Que é humano, compreensível e inevitável ligar à empatia que têm ou não os candidatos. E o meu candidato é tão transparentemente grosseiro e primário que se torna difícil defendê-lo, e um sacrifício ouvi-lo.

A famosa pergunta “compraria um carro usado a este homem?” foi, parece, usada para castigar Nixon na campanha eleitoral que levou à eleição de Kennedy. E quando muito mais tarde o mesmo Nixon chegou à presidência veio a confirmar com o caso Watergate que comprar-lhe um carro usado era um negócio de alto risco. De Trump, realmente, pode-se legitimamente suspeitar que até o seu handicap no golfe seja uma vigarice, de modo que comprar-lhe um carro também não parece uma ideia muito atilada.

Sucede que Kennedy ficou na memória como o cabeça de uma casa real que os tão igualitaristas americanos nunca tiveram, e o autor de frases grandiloquentes mas ocas (“ask not what your country can do for you – ask what you can do for your country”), ou de desafios espectaculares e empolgantes significando muito e realizando nada (“Ich bin ein Berliner”). Deixou saudades e, fossem outros os tempos, tinha perfil para um D. Sebastião americano. Já Nixon ninguém recorda com saudade, mas foi um excelente presidente.

Mas isto que nos interessa, a nós portugueses? Seja o presidente o Francisco ou o Manuel, estamos condenados a estar do lado americano porque isso é do nosso interesse, e quem quer que seja o ungido sempre as instituições americanas defenderão, com maior ou menor lucidez, o deles. Portugal, um vago país situado algures no norte de África, se é que não está lá para o meio do continente negro, ainda por cima com menos autonomia que a Lusitânia no tempo dos Romanos, significa quando muito a necessidade de insinuar aqui uma ameaça pouco discreta, e ali um aceno com uma mão-cheia de dólares. Os locais borram-se com a primeira, e são muito sensíveis à segunda.

Porém. Porém.  Trump é o candidato do anti bem-pensismo. Não dá nada para o peditório do MeToo, do Antifa, da destruição das universidades americanas pela rasoira do conformismo progressista, da importação de uma imaginária social-democracia nórdica que lhe mataria o dinamismo económico, nem das discriminações positivas que vão instalando, em nome da igualdade, um sistema de apartheid. Nenhuma dessas coisas nem das outras que compõem o ramalhete do esquerdismo travestido de progresso da humanidade que entre nós tem o seu principal representante nos dementes do Bloco e, edulcorado, no PS.

De modo que Biden é o candidato da esquerda portuguesa, acolitada no caso por uma mole de idiotas úteis que julgam que não lhe estão a fazer o jogo; e Trump, dentro do campo democrático, o contrário disso.

É assim que quem, por detestar compreensivelmente o homem, precisar de boas razões, poderá talvez lembrar-se de que: não ganhou o Nobel da Paz mas não bateu o record, que detém Obama, de assassinatos políticos selectivos em países longínquos;  não iniciou guerras nem andou pelo mundo, como os neocons, a despejar bombas com o louvável propósito de converter os bombardeados à democracia; estabeleceu boas relações com ditadores que não deixariam de o ser se as relações fossem más; identificou a ascensão da China como o principal problema do futuro, com isso alertando salutarmente as democracias; deu passos sérios para a paz no Médio Oriente e na península coreana, ignorando os avisos de peritos em geoestratégia fajuta; tentou desvalorizar a Covid, que cedo intuiu não ter a perigosidade que vários interesses racionais e medos irracionais lhe conferem, procurando evitar que os danos colaterais fossem maiores do que os propriamente ditos; e combateu o Estado regulamentar, um cancro que mina as economias.

Era melhor se abandonasse o Twitter, não falasse de improviso, contratasse uma boa equipa para lhe redigir discursos, guardasse as gabarolices para o grupo de amigos em Mar-a-Lago e jogasse mais golfe.

Mas é o que há. Podia ser pior. Como Biden, por exemplo.

"We are in great shape"

Sérgio de Almeida Correia, 20.03.20

No momento em que o Governador do Texas, Gregg Abbott, envia aos seus concidadãos a Declaration of a Public Health Disaster in the State of Texas, e acontece mais uma corrida às armas por parte dos estado-unidenses, certamente para combater a tiro o COVID-19, convém recordar o que Donald Trump foi dizendo ao longo das últimas semanas. Um verdadeiro monumento à estupidez.

We are in great shape! Indeed.

Desconstruir análises

Alexandre Guerra, 07.02.20

Meses depois do conselheiro especial da Casa Branca, Jared Kuschner, ter apresentado ao mundo árabe a componente económica do plano de paz americano para o Médio Oriente, durante um "workshop" em Manama, Bahrein, recentemente foi a vez do Presidente Donald Trump revelar os contornos políticos e mais "quentes" daquilo que ele classifica de "Visão" (Vision for Peace, Prosperity and a Brighter Future) para a resolução do conflito israelo-palestinino. Se na vertente económica já era sabido que se estava perante um potencial investimento de cerca de 50 mil milhões de dólares,  no patamar político, o documento com a "Visão" de Trump apresentado há semanas concretiza muito claramente os intentos de Washington e Telavive para a "sua" solução de "dois Estados.

Não se pretende aqui analisar em detalhe todos os contornos do plano apresentado, mas sim desconstruir as análises erradas que se fizeram na imprensa, porque aquilo que alguns comentadores vêem como (novas) consequências provocadas pelo plano de Trump, são na verdade realidades que existem "de facto" desde a intifada de al Aqsa, em Setembro de 2000: a questão da descontinuidade territorial; a criação do sistema de "apartheid"; e o isolamento dos territórios palestinianos com os Estados limítrofes. 

Com o ressurgimento da violência israelo-palestiniana, em Setembro de 2000, espoletada pela provocatória visita do então primeiro-minsitro, Ariel Sharon, ao Monte do Templo (para os judeus) ou Haram al-Sharif (para os muçulmanos), o território da Cisjordânia foi sendo asfixiado e fragmentado pela política de colonatos judaicos e de segurança israelita. São várias as localidades e cidades dentro da Cisjordânia que, desde estão, ficaram totalmente controladas pelas IDF, sendo que, em muitos casos, a liberdade de circulação está limitada pelos inúmeros checkpoints levantados pelas IDF. A intensidade desta realidade vai sempre variando e dependendo do grau de violência que se vai vivendo no âmbito do conflito israelo-palestiniano. Por exemplo, durante os anos da intifada de al-Aqsa, os checkpoints entre a capital Ramalhah e a localidade universitária de Bir Zeit, a 20 minutos de carro, eram recorrentes a várias horas do dia. 

E quando há uns analistas que falam num novo “apartheid”, estão a ignorar por completo o que se passa há vinte anos na Cisjordânia, onde existem estradas que ligam directamente Israel aos colonatos, sem que os palestinianos possam utilizá-las, apesar de atravessarem território palestiniano. Estão a ignorar que os checkpoints são impostos discricionariamente de acordo com a vontade das IDF, muitas vezes de uma hora para o outra, impedindo que muitos palestinianos regressem as suas casas ou não possam deslocar-se de um local para outro, obrigando-os a esperar horas e até dias. Estes mesmos analistas, que agora vêem nesta “Visão” a fonte de todos os males, ignoram a realidade de duas décadas, onde milhares de palestinianos ficaram impedidos de atravessar a “fronteira” em Jerusalém para irem trabalhar diariamente em Israel. Ignoram ainda que desde 2000, Israel cortou com a ligação entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, provocando, nalguns casos, a separação de famílias. Muito dificilmente um palestiniano da Cisjordânia conseguirá chegar à Faixa de Gaza através de Israel. Quanto muito, terá que sair da Cisjordânia pela Jordânia e entrar em Gaza pelo Egipto.   

Recuperemos então algumas passagens do documento apresentado por Donald Trump. Na sua introdução, é referido que: "Gaza and the West Bank are politically divided." É verdade, mas como foi acima sublinhado, é omitido que também estão fisicamente separados desde o início da intifada de al Aqsa, em Setembro de 2000, por imposição das IDF. Ainda de acordo com a mesma introdução, lê-se: "Since 1946, there have been close to 700 United Nations General Assembly resolutions and over 100 United Nations Security Council resolutions in connection with this conflict." É obra, mas é revelador da ineficácia completa da comunidade internacional na tentativa de resolução desta questão. E como é que Trump vê estas resoluções da ONU? "This Vision is not a recitation of General Assembly, Security Council and other international resolutions on this topic because such resolutions have not and will not resolve the conflict."

Sendo os “males” potenciais identificados por muitos analistas, na verdade, evidências bem reais há vários anos, não será de estranhar que o plano de paz de Washington seja uma ferramenta diplomática tendenciosa para os interesses de Israel. A determinada altura lê-se: "It must be recognized that the State of Israel has already withdrawn from at least 88% of the territory it captured in 1967." Ora, depende da interpretação que se fizer e do território em causa. É que em 1967, Israel ocupou a Cisjordânia, Gaza, Montes Golã e um enclave ao Líbano e Síria (Shebaa Farms). Entretanto, retirou as IDF de Gaza, mas manteve o controlo fronteiriço; retirou a presença militar dos Golã, mas manteve a soberania e não devolveu à Síria (tal como as Shebaa Farms). Na Cisjordânia, recuou nalgumas zonas, mas isolou outras e fragmentou o território, enchendo-o de colonatos.

Um dos pontos mais importantes deste documento e mais estratégico para a sobrevivência de Israel tem a ver com algo a que não vi qualquer analista fazer referência: “The State of Israel will retain sovereignty over territorial waters, which are vital to Israel’s security and which provides stability to the region.” Ao contrário de outras matérias em disputa, como a questão da capital em Jerusalém (mais simbólica do que estratégica) ou dos colonatos (mais ideológica do que securitária), há dois temas que ameaçam directamente a existência de Israel (não, não é o Hamas nem o Irão): o acesso à água e o factor demográfico. Este tema ficará para um próximo texto.

O tiro de partida.

Luís Menezes Leitão, 05.02.20

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O Iowa é normalmente considerado o tiro de partida para a nomeação do candidato democrata às presidenciais americanas, podendo atribuir ao vencedor da noite um avanço considerável na corrida. Foi assim com Barack Obama que emergiu decisivamente do Iowa como o candidato presidencial dos democratas em 2008. Mas já não parece que vá ser assim em 2020. As confusões no apuramento do vencedor, com Peter Buttigieg a cantar vitória, apesar de estar taco a taco com Bernie Sanders, e o afundamento de Joe Biden não auguram nada de bom para a candidatura democrata, que aliás se afundou na tentativa desastrada de impeachment de Donald Trump. Esse foi um erro de principiante de quem pareceu esquecer que um processo de impeachment não é apenas do foro criminal, mas também eminentemente político. Neste âmbito, um processo de impeachment pode ser facilmente decretado perante um presidente que perdeu o apoio popular, como aconteceu com Dilma Rousseff no Brasil, e iria facilmente acontecer com Richard Nixon após o escândalo Watergate. Mas não haveria qualquer possibilidade de o decretar perante um Presidente que mantém intacta a sua base de apoio popular, como é o caso de Trump. Como bem disseram os senadores republicanos, isso seria visto como um golpe de Estado por metade do país, uma situação em que obviamente o Senado nunca se poderia envolver.

Restam assim as eleições de Novembro e estas manifestamente começaram mal para os democratas. Pela primeira vez em muitos anos, corre-se o risco de não emergir das primárias um candidato definido, o que deixaria a nomeação presidencial para uma convenção aberta, onde até Hillary Clinton poderia voltar a ter hipóteses de ser nomeada. Vamos ver se New Hampshire permite recuperar do cenário do Iowa. Mas manifestamente as coisas não estão fáceis para os democratas. Trump soma e segue, e a menos que de facto surja um candidato democrata forte, tudo aponta para que seja facilmente reeleito em Novembro.

A compra da Gronelândia.

Luís Menezes Leitão, 22.08.19

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Henry Kissinger costumava dizer, quando lhe falavam na possibilidade de ser Presidente dos Estados Unidos, que essa possibilidade dependia de os Estados Unidos anexarem a Baviera, que tinha sido o local onde nascera, uma vez que a Constituição Americana reserva o cargo de Presidente aos naturais dos Estados Unidos. A afirmação pode parecer uma piada mas a história da América é uma história de anexações, especialmente no continente americano que desde a doutrina Monroe foi declarado de influência exclusiva dos EUA.

A expansão dos EUA ocorreu normalmente através da compra de territórios. Como se pode confrontar aqui, os EUA compraram sucessivamente a Louisiana à França (1803), a Flórida à Espanha (1819), o território de Gadsen ao México (1853), o Alasca à Rússia (1867) e as Ilhas Virgens Americanas à Dinamarca (1917). Outras vezes a anexação de territórios resultou de guerra, como a Guerra Mexicano-Americana (1846), que resultou na anexação do Texas, Califórnia, Novo México e Arizona, ou a Guerra Hispano-Americana (1898), que resultou para os nossos vizinhos espanhóis na perda de Cuba, Porto Rico e as Filipinas, sendo que neste caso apenas Porto Rico permaneceria ligado aos EUA. Noutros casos, a anexação resultou de pedido dos próprios países, como sucedeu com o Hawai em 1898. 

Em relação à Gronelândia, há muito que os EUA a cobiçam, tendo sido proposta a sua compra à Dinamarca por Truman em 1946, a qual foi rejeitada pelos Dinamarqueses. Nessa altura a Gronelândia era considerada uma colónia da Dinamarca, o que contrariaria a doutrina Monroe, que não admite a existência de colónias europeias no continente americano. A questão veio a ser resolvida com a integração plena da Gronelândia no Reino da Dinamarca, o que até levou a que tivesse aderido à então CEE em 1973. A adesão duraria, no entanto, pouco tempo uma vez que os habitantes da Gronelândia consideraram uma ficção a sua integração na Europa, sendo uma região vizinha do Canadá. Em 1979 a Dinamarca transforma a Gronelândia numa sua região autónoma, sendo que esta em referendo decide em 1982 a sua saída da então CEE. Nessa altura a CEE perdeu metade do seu território.

Face a isto, quando Trump anunciou a sua intenção de propor a compra da Gronelândia não estava manifestamente a brincar, como foi considerado pelos Dinamarqueses, levando a este episódio de cancelamento da sua visita à Dinamarca. Trump é um narcisista, estando obcecado com o legado da sua presidência, encarando naturalmente com agrado a possibilidade de aparecer como um dos Presidentes que dilataram o território dos Estados Unidos. E, neste caso, o facto de a Gronelândia ser uma região autónoma da Dinamarca, com apenas 57.000 habitantes para um território de 2.166.000 km2, torna especialmente fácil essa aquisição, o que foi facilmente percebido pelo homem de negócios que Trump é. Imagine-se que os EUA oferecem a cada um dos 57.000 gronelandeses a cidadania americana originária e mais 1 milhão de dólares, adquirindo assim os EUA o território por apenas 57.000 milhões de dólares, e permitindo aos gronelandeses ir viver como nababos para a Califórnia ou para a Flórida. Um referendo com esta proposta de anexação seria rejeitado pelos gronelandeses? Sinceramente, duvido. Aguardo as cenas dos próximos capítulos.

Pelosi, the comeback

Alexandre Guerra, 03.01.19

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Nancy Pelosi no primeiro dia em que, pela primeira vez, uma mulher assumiu o cargo de "speaker" da House. Foi em 2007. Agora, regressa ao cargo/Foto:Stephen Crowley/The New York Times

 

Nancy Pelosi torna-se a partir desta Quinta-feira a mulher mais poderosa da política americana ao assumir o cargo de "speaker" da Câmara dos Representantes do Congresso dos Estados Unidos. Pelosi, que já ocupou aquele cargo entre 2007 e 2011, tem agora o seu “comeback” para o topo da cúpula de poder. Note-se que o líder ou a líder da câmara baixo do Congresso é a segunda maior figura na hierarquia do Estado, a seguir ao Presidente. De certa forma, em termos institucionais, é semelhante ao nosso presidente da Assembleia da República, mas, em termos políticos, a diferença é abismal, uma vez que o "speaker" assume um papel preponderante na política quotidiana dos Estados Unidos, sobretudo numa altura em que o embate ideológico e político entre a Casa Branca e a maioria democrata na House será estrondoso.

 

New York Times referia-se a Pelosi como “um ícone do poder feminino” e, após 15 anos como congressista democrata da Califórnia, tem agora a oportunidade de selar a sua carreira política ao mais alto nível. Já em 2007 tinha feito história, ao tornar-se na primeira mulher a assumir o cargo de "speaker" da House. Agora, aos 78 anos, enfrenta, provavelmente, o seu mais difícil desafio no Congresso, naquilo que pode ser visto como mais do que um combate político. Para Pelosi, mãe de cinco e avó de nove, será acima de tudo uma luta de valores e de princípios contra um Presidente que, para muitos, representa uma traição àquilo que os ideais americanos defendem.

 

Curiosamente, numa altura em que o mundo vê surgirem lideranças mais jovens, seja no poder ou na oposição, nos EUA, o combate político de primeira linha entre a Casa Branca e o Partido Democrata vai ser personificado por dois veteranos. Antecipa-se um confronto feroz entre Pelosi e Trump, entre a House e a Casa Branca. A vitória dos democratas nas eleições de Novembro para a Câmara dos Representantes alimentou as expectativas e a esperança de milhões de americanos anti-Trump, que, após dois anos de domínio republicano na Casa Branca e Congresso, vêem neste novo arranjo parlamentar uma hipótese de travar as políticas do Presidente. Pelosi acaba por beneficiar destas circunstâncias, canalizando para si os anseios de muitos eleitores, perante a frustração que foi a eleição e a governação de Donald Trump.

As condições para "impeachment"

Alexandre Guerra, 22.08.18

Os casos judiciais que envolveram Paul Manafort e Michael Cohen, outrora homens poderosos que fizeram parte do círculo mais próximo do Presidente Donald Trump, servem de “combustível” para manter vivo o “lume” até às eleições intercalares de Novembro. Um “lume” que os opositores de Trump esperam que se transforme nas “chamas do inferno”, com um processo de “impeachment” que, na actual configuração do Congresso (Câmara dos Representantes e Senado), é impossível de passar. É por isso que, provavelmente, nunca em tantos anos nos EUA, as eleições intercalares tiveram uma importância tão directa no destino do Presidente, porque se os republicanos perderem a maioria no Congresso e, consequentemente, a liderança de algumas comissões, poderão estar criadas as condições para o início formal de um processo de “impeachment”. Reconheça-se que, por menos, muito menos, Bill Clinton foi alvo de um processo destes, embora tenha sido absolvido e cumprido o seu segundo mandato até ao final, terminando com os mais altos índices de popularidade que um Presidente teve desde a II GM.  

 

Para um processo destes ter possibilidade de avançar, são sobretudo precisas duas condições: a primeira tem a ver com uma conjuntura política adversa contra Trump e um ambiente muito hostil instalado numa significativa franja da opinião pública; a segunda condição é partidária e prende-se com a composição do Congresso que, maioritariamente, tem que se opor ao Presidente.

 

Se polémicas com actrizes porno ou casos de polícia, como os do antigo director de campanha e o do ex-advogado de Trump, são excelentes para criar bases jurídicas e um sentimento cada vez mais adverso contra o Presidente, empolado diariamente pelos principais órgãos de comunicação social americanos, com a ajuda de muitos artistas e personalidades “activistas”, nada disto servirá se depois não houver correspondência no poder legislativo. Que é isso que acontece actualmente.

 

Não custa a acreditar que, daqui até Novembro, a primeira condição seja reforçada ainda mais, atendendo à habilidade de Trump para se meter em problemas criados por si próprio. A questão que se coloca é saber se os ventos de mudança chegarão ao Congresso. Para a segunda condição ser cumprida, tanto a Câmara dos Representantes como o Senado terão que mudar a sua composição (ou então, teria que haver uma alteração no pensamento de muitos republicanos, o que não parece verosímil). Na Câmara dos Representantes basta uma maioria simples para dar início ao processo de “impeachment”, já ao nível do Senado, a confirmação da queda do Presidente precisa sempre de uma maioria de dois terços. Ora, se em teoria, é possível que os democratas conquistem a maioria na Câmara dos Representantes, já que todos os seus 435 assentos irão a eleições, no Senado, dos seus 100 lugares, apenas 35 estarão em disputa, sendo que a maioria destes são actualmente ocupados por democratas. Mesmo admitindo que os democratas conquistem a maioria no Senado (perfeitamente possível), dificilmente chegariam a uma maioria de dois terços, porque pressuponha que, além de conquistarem lugares novos, teriam que convencer outros republicanos que já lá estão.

 

Do que se vai analisando, a estratégia de oposição a Trump passa por manter o Presidente debaixo de fogo até Novembro, explorando ao máximo todos os seus casos polémicos e, sempre que possível, abrindo novas “frentes de batalha”. Basta ver órgãos como o New Times e a CNN para se perceber que os próximos dois meses e meio vão ser de ataque constante a Trump e é por isso que casos como o de Manafort ou de Cohen são autênticas armas de destruição maciça contra o Presidente. O que a oposição a Trump está a tentar fazer é criar uma espécie de “casus belli”, na esperança de que em Novembro a maioria do Congresso mude de mãos e formalize o “impeachment”. E se isso vier a acontecer, é muito provável que muitos republicanos congressistas e senadores mais moderados se sintam tentados a dar o “empurrão” final a Donald Trump.

Distracções

Alexandre Guerra, 21.06.18

O mundo de hoje é mesmo assim, tão cedo as pessoas e as redes sociais se revoltam e se indignam com uma tragédia, como, rapidamente, a esquecem e as suas atenções se desviam para um outro assunto. O jornalismo histriónico, munido de comentadores e analistas pouco atentos, alimenta estas dinâmicas ilusórias, e os governantes (quase todos) vão navegando na espuma dos dias. Se, algures, uma injustiça é revelada ao mundo, surgem de imediato as vozes de indignação, os movimentos de sensibilização, as frentes comuns de “batalha” (parece que agora se está a formar um frente “anti-fascista, signifique lá o que isso significar). O problema é que este “despertar” súbito da sociedade para os problemas, não deixando de ser louvável, é efémero e, muitas vezes, contraproducente, porque aborda as questões pelo seu pior ângulo: o imediato e, muitas vezes, o demagógico.

 

Os dramas de natureza política e social, ao contrário das catástrofes naturais, normalmente, não surgem de rompante nem de surpresa. Há sinais, indícios, que podem perspectivar determinados acontecimentos. É claro que para os identificar e interpretar é preciso tempo, conhecimento, dedicação profissional e, sobretudo, interesse. Admite-se que esse não seja o papel dos cidadãos comuns, que têm os seus empregos e actividades no quotidiano profissional e social, dando, assim, o seu contributo à comunidade. Para as pessoas, enquanto massa (sociologicamente falando) integrada numa democracia, está reservado o derradeiro papel: o voto. Essa leitura atempada e atenta deveria ser feita pelos “observadores” e actores dos respectivos sistemas políticos, por forma a produzirem-se decisões que pudessem, se não evitar, pelo menos atenuar o impacto de alguns dos dramas que acabam por irromper mais tarde.

 

É extraordinário constatar como, desde há poucos dias, se fazem ouvir as vozes revoltosas de comentadores, analistas, políticos e activistas, como se tivessem “acordado” agora para um tema, tema esse que se tivesse contado com este mesmo empenho há mais de um ano, provavelmente, mais de duas mil crianças não tinham sido separadas dos seus pais migrantes ilegais vindos do México em direcção aos Estados Unidos. Mas poderá o leitor perguntar, como é que isso seria possível, se só há cerca de dois meses se começou a concretizar esta política promovida pelas autoridades americanas. A questão é totalmente pertinente, no entanto, lá está, os tais sinais já existiam há mais de um ano. E nem se pode dizer que eram indícios ténues. Nada disso.

 

A 3 de Março de 2017, ou seja, há mais de um ano, a MSNBC avançava com um exclusivo que dizia: “Trump admin. plans expanded immigrant detention”. O que vinha nessa notícia era absolutamente assustador, porque ia muito para além de meras declarações estapafúrdias do Presidente Trump. Pelo contrário, essa notícia não trazia qualquer declaração do Presidente, demonstrava, isso sim, uma sistematização daquilo que poderia vir a ser o novo modelo de tratamento dos migrantes ilegais com filhos vindos do México.

 

Lia-se: “In a town hall with Department of Homeland Security staffers last month, Asylum Division Chief John Lafferty said DHS had already located 20,000 beds for the indefinite detention of those seeking asylum, according to notes from the meeting obtained by All In. This would represent a nearly 500% increase from current capacity.

The plan is part of a new set of policies for those apprehended at the border that would make good on President Trump’s campaign promise to end the practice critics call ‘catch and release’. 

‘If implemented, this expansion in immigration detention would be the fastest and largest in our country’s history’, says Andrew Free, an immigration lawyer in Nashville who represents clients applying for asylum. ‘And my worry is it’ll be permanent. Once those beds are in place they’ll never go away.’

[…]

Under the plan under consideration, DHS would break from the current policy keeping families together. Instead, it would separate women and children after they’ve been detained – leaving mothers to choose between returning to their country of origin with their children, or being separated from their children while staying in detention to pursue their asylum claim.”

 

Sublinhe-se. Este exclusivo foi avançado a 3 de Março de 2017 pela MSNBC, que ainda há dias voltou a relembrar o tema. Curiosamente, das muitas vozes agora indignadas, que estão “avalizadas” para comentar nos jornais e televisões e para decidir nos gabinetes, não se ouviu ao longo deste mais de um ano qualquer comentário ou acção concreta sobre este assunto. Tinham palco e condições para o fazer. Se não o fizeram não foi, supostamente, por falta de boa vontade, foi, simplesmente, porque, mais uma vez, estavam distraídos. Se tivessem estado um pouco mais atentos, talvez se pudesse ter evitado o choro e sofrimento de mais de duas mil crianças. Infelizmente, este é apenas um de muitos outros tristes exemplos.

O comentário da semana

Pedro Correia, 16.06.18

«Ainda é cedo para reconhecer o legado de Trump, mas a economia tem crescido, a importante questão do controlo de armas parece estar realmente na agenda política, e, evidentemente, o mundo ainda cá está. Para grande desgosto de Rachel Maddows.

Qual foi o legado de Obama? Tirando o cool black guy. A Primavera Árabe? O maior número de vítimas civis por ataques de drones? O deixa-andar que quase levou a uma guerra sino-nipónica? A anexação da Crimeia? Um clima de violência racial quase inédito nos EUA? A total submissão a Wall Street? A história o dirá, mas considero-o uma lástima.

Reagan, o actor de segunda, derrubou o muro de Berlim e reunificou a Alemanha. Se Trump conseguir dar o primeiro passo para a reunificação da Coreia será um feito mais digno do Nobel da Paz que deram a Obama. Estas coisas levam tempo, mas é preciso começar. Coisa que o outro não fez. Está agora na Netflix, num reality show. Hum...»

 

Do nosso leitor António. A propósito deste texto do Alexandre Guerra.

Todos devem apoiar Trump

Alexandre Guerra, 12.06.18

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No sistema internacional, por vezes, as relações pessoais entre líderes contam muito/Foto: Evan Vucci/AP 

 

Por mais que custe a admitir aos opositores e detractores de Donald Trump, e independentemente do parco conteúdo da declaração conjunta da cimeira de Singapura e do inexistente “road map” a ser seguido nos próximos tempos, ao fim de várias décadas de gelo diplomático entre os EUA e a Coreia do Norte, seria sempre preferível ter um encontro amigável de alto nível, mesmo que inócuo, do que não ter nada e manter-se o clima instável e volátil que se vinha sentindo nos últimos meses entre Washington e Pyongyang. A guerra de palavras entre Trump e Jong-un tinha escalado para níveis nunca dantes vistos nas relações internacionais entre dois chefes de Estado, mas o problema maior tinha a ver com o processo nuclear norte-coreano que, apesar de tudo, foi fazendo o seu caminho, com testes atrás de testes e lançamentos atrás de lançamentos. Se a Coreia do Norte continuasse a seguir este caminho, seria muito provável que viesse a conseguir dotar-se de uma capacidade plena e eficaz nuclear, quer ao nível dos seus vectores de lançamento, quer na miniaturização das respectivas ogivas. Até ao momento, daquilo que se foi sabendo, ainda havia muito trabalho a fazer, mas algum dia esse percurso teria que ser travado… diplomática ou militarmente. Sendo a capacidade nuclear um factor de poder enormíssimo na hierarquia dos Estados no sistema internacional, uma coisa é Washington negociar com Pyongyang nesta fase, outra coisa seria um líder americano sentar-se à mesa com o seu homólogo norte-coreano numa altura em que este país já fizesse parte do exclusivo “clube” das potências nucleares. Aqui, as condições de negociação seriam certamente outras.

 

Trump deslocou-se a Singapura numa altura em que a Coreia do Norte ainda está longe de ser reconhecida como uma potência nuclear, com capacidade para militarizar a tecnologia até agora desenvolvida. Ainda não alcançou o estatuto de países como a Índia, o Paquistão ou Israel. Mas para lá caminha(va). Mais, Trump foi até Singapura com a certeza de que a Coreia do Norte está desesperadamente à procura de recursos financeiros (e outros) para colmatar a “falência” daquele país. Tudo na Coreia do Norte é uma ficção, uma ilusão, excepto a crise humanitária que aflige milhares de pessoas em proporções que, na verdade, não são verdadeiramente conhecidas.

 

Além disso (e isto em política internacional é muito importante), nota-se uma ânsia de diálogo e abertura por parte do líder Kim Jong-un. Não quer dizer necessariamente que seja uma vontade de suavizar o regime ou de “abrir” a sociedade, mas, para quem tem acompanhado com alguma atenção o percurso deste jovem líder, constata que há em si um ímpeto para ir além-fronteiras e estabelecer pontes com outros países e governantes. Às vezes quase que parece uma criança num loja de chocolates quando se confronta com a novidade. Parecem pormenores, mas, num regime unipessoal como é o da Coreia do Norte, estas matérias de personalidade podem fazer toda a diferença nos desígnios de uma nação.

 

Trump poderá estar certo quando diz que sentiu da parte do seu interlocutor vontade genuína para negociar. Resta saber o que será negociado e em que condições. Para já, pouco se sabe, mas presume-se, caso a cimeira tenha sido bem conduzida os seus protagonistas bem assessorados, que tenham sido estabelecidas as metas, os grandes objectivos políticos a serem alcançados. É para isso que servem estes encontros. Depois a forma de como lá se chega, concessão aqui, concessão ali, é um trabalho de bastidores, de muita paciência e, sobretudo, confiança entre as partes.

 

Se for verdade aquilo que Trump tem anunciado nestas últimas horas, então o mundo deve congratular-se pelo facto de aqueles dois líderes terem definido a “desnuclearização da Península da Coreia” como o principal objectivo. Provavelmente, os EUA terão que pagar um preço muito elevado como contrapartida, mas, a médio e a longo prazo, quem sabe se Washington não terá na Coreia do Norte um gigantesco receptor de ajuda financeira, à semelhança do Egipto e da Jordânia, países que, apesar das suas diferenças religiosas, culturais e políticas, se mantiveram sempre como preciosos aliados da Casa Branca.

 

Para já, e por mais disparates e erros que Trump tenha feito nos últimos meses e ódios que suscite, este esforço diplomático merece ser reconhecido e é por isso que ainda esta semana o insuspeito Nicholas Kristof escrevia que os democratas no Congresso não deveriam adoptar a mesma atitude dos republicanos e criticar por criticar a iniciativa do Presidente americano. Porque, neste momento, é do interesse de todos que esta jogada arrojada de Donald Trump se revele certeira.

O estado das relações internacionais

Luís Menezes Leitão, 10.06.18

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Costuma dizer-se que uma imagem vale mais do que mil palavras. Esta foto bem pode considerar-se histórica e demonstradora do actual estado das relações internacionais.

 

Demonstrando a realização do seu slogan "make America great again", o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, é o único que aparece sentado, na pose de um monarca, a quem pedem para ouvir os seus súbditos, mas que o faz com enfado, de braços cruzados, com a linguagem corporal já a demonstrar que não vai aceitar nenhuma exigência. Tensa, apoiando-se na mesa, e curvada, a demonstrar cansaço, a chancelerina Merkel bem tenta fazer-se ouvir e convencer o presidente americano. Ao seu lado o presidente francês Macron tenta dar-lhe apoio, adoptando uma atitude mais simpática e distendida. Mas o presidente americano parece não lhes ligar, evidenciando um manifesto desdém por ambos. Atrás, o primeiro-ministro do Japão Shinzo Abe assiste à cena com distanciamento, testemunhando a inutilidade dos esforços dos representantes dos países europeus.

 

Acho que nunca a decadência da Europa no mundo actual foi demonstrada de forma tão evidente. Neste momento a América largou a Europa sozinha e esta aparece em reuniões internacionais numa posição de pedinte dos Estados Unidos, a quem estes não ligam nenhuma. Se as pessoas continuarem a não querer ver o que está diante dos seus olhos, vamos ter um grande sarilho.