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Delito de Opinião

Do princípio ao fim (29)

José António Abreu, 05.12.16

(O Pedro Correia encerrou oficialmente esta série há pouco mais de uma semana. Não desejo reabri-la, mas não tive coragem para apagar este texto, alinhavado em meados de Novembro.)

 

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Saio dos melhores livros de Virginia Woolf com uma sensação de plenitude. Não recordo uma história, mas sei que o livro fez sentido. Cada frase, cada parágrafo, contribuiu para uma imagem global – e, neste caso, o termo «imagem» não é aleatório – que nenhuma sinopse tem o poder de encapsular. As melhores páginas de Virginia Woolf têm a lógica de uma melodia ou - cá vamos novamente - de uma pintura. Isto não acontece por acaso: Woolf deixou apontamentos que mostram a intencionalidade do efeito. Em The Waves (um livro difícil), a estrutura esforça-se por replicar os padrões do pensamento humano. Em Mrs. Dalloway e, acima de tudo, em To the Lighthouse (Rumo ao Farol), a intenção é mesmo replicar o efeito de uma pintura, na qual os detalhes podem revelar génio bastante para que se pare a analisá-los, mas onde acima de tudo interessa a sensação geral, frequentemente obtida aumentando a distância em relação à tela, num efeito similar a tantos acontecimentos na vida humana. A intenção é tão explícita que Lucie Briscoe, uma das personagens, vai realmente pintando um quadro enquanto observa o que se passa. No parágrafo final, termina-o. Encontrou uma imagem que, podendo não ter interesse nem fazer sentido para qualquer outra pessoa (ou até mesmo para ela, noutro instante), podendo transmitir uma mensagem difícil de aceitar (a da inutilidade da vida, por exemplo), fecha algo; permite um momento de compreensão. E não apenas todos os bons finais são momentos de compreensão como momentos de compreensão são tudo o que se pode desejar de uma pintura, de um livro, da vida.

 

Quickly, as if she were recalled by something over there, she turned to her canvas. There it was - her picture. Yes, with all its greens and blues, its lines running up and across, its attempt at something. It would be hung in the attics, she thought; it would be destroyed. But what did that matter?, she asked herself, taking up her brush again. She looked at the steps; they were empty; she looked at her canvas; it was blurred. With a sudden intensity, as if she saw clear for a second, she draw a line there, in the centre. It was done; it was finished. Yes, she thought, laying down her brush in extreme fatigue, I have had my vision.

(Lamento, mas não tenho uma versão em português.)

Do princípio ao fim (balanço)

Pedro Correia, 26.11.16

Outra série colectiva do DELITO DE OPINIÃO chegou ao fim, é tempo de fazer um balanço - tal como já sucedera aqui, por exemplo - para se lembrar o que escrevemos.

Desta vez chamou-se Do princípio ao fim e destacou os inícios e finais de livros (romances, contos, ensaios, banda desenhada) que por qualquer motivo mais nos impressionaram.

 

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 Kafka

 

Foram estes:

A Metamorfose, de Franz Kafka. Escolha minha.

Sputnik, Meu Amor, de Haruki Murakami. Escolha da Helena Sacadura Cabral.

Calvin & Hobbes, de Bill Watterson. Escolha do João Campos.

A Casa de Astérion, de Jorge Luis Borges. Escolha do Rui Herbon.

O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós. Escolha do Luís Naves.

Desde Portugal, de Miguel de Unamuno. Escolha do Diogo Noivo.

O Processo, de Franz Kafka. Escolha do Luís Meneses Leitão.

Herrumbrosas Lanzas, de Juan Benet. Escolha do José Navarro de Andrade.

The Long Goodbye, de Raymond Chandler. Escolha do José Navarro de Andrade.

Crónica de uma Morte Anunciada, de Gabriel García Márquez. Escolha da Francisca Prieto.

Pela Estrada Fora, de Jack Kerouac. Escolha minha.

A Estrada, de Don DeLillo. Escolha do José António Abreu.

A Fera na Selva, de Henry James. Escolha da Patrícia Reis.

Pedro Páramo, de Juan Rulfo. Escolha do Rui Herbon.

A República dos Sonhos, de Nélida Piñon. Escolha da Inês Pedrosa.

Numa Casca de Noz, de Ian McEwan. Escolha do José António Abreu.

Finnegans Wake, de James Joyce. Escolha do Bandeira.

Lolita, de Vladimir Nabokov. Escolha da Teresa Ribeiro.

A Balada do Café Triste, de Carson McCullers. Escolha da Ana Lima.

A Short History of Nearly Everything, de Bill Bryson. Escolha do João André.

How to... Make Love Like a Porn Star, de Jenna Jameson e Neil Strauss. Escolha do Alexandre Guerra.

O Estrangeiro, de Albert Camus. Escolha da Isabel Mouzinho.

O Principezinho, de Saint-Exupéry. Escolha da Joana Nave.

Alegria Breve, de Vergílio Ferreira. Escolha minha.

O Retrato de Ricardina [e outras], de Camilo Castelo Branco. Escolha do Luís Naves.

The End of the Affair, de Graham Greene. Escolha do Adolfo Mesquita Nunes.

Os Maias, de Eça de Queirós. Escolha minha.

O Falcão de Malta, de Dashiel Hammett. Escolha do José António Abreu.

 

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 Hammett

 

Vinte e oito textos, publicados ao longo de seis semanas - entre 23 de Setembro e 4 de Novembro.

Lembro a lista para memória futura. E para que sirva de incentivo suplementar à procura de qualquer destas obras, que possam ter suscitado a curiosidade dos nossos leitores.

Espero que tenham gostado da série. Outras vão seguir-se.

 

Do princípio ao fim (28)

José António Abreu, 04.11.16

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Samuel Spade's jaw was long and boney, his chin a jutting v under the more flexible v of his mouth. His nostrils curved back to make another, smaller, v. His yellow-gray eyes were horizontal. The v motif was picked up again by thickish brows rising outward from twin creases above a hooked nose, and his pale brown hair grew down - from high flat temples - in a point of his forehead. He looked rather pleasantly like a blond satan.

 

A tradução (de Baptista de Carvalho, para o nº 34 da colecção Vampiro original) é fraquinha:

O rosto de Samuel Spade era longo e ossudo e o seu queixo formava um pronunciado V, sob o V mais suave da boca. As narinas abriam-se, também sob a forma de um V mais pequeno. Os seus olhos verde-claros rasgavam-se horizontalmente, em forma de amêndoa. Sobranceiras a um nariz aquilino, viam-se duas rugas paralelas donde emergiam espessas sobrancelhas cuja configuração era, uma vez mais, a de um V bem vincado, caprichosamente invertido. O cabelo castanho-claro tinha como fronteira uma testa alta e despida de rugas sobre a qual avançara, como um istmo original, uma porção de cabelo que formava, assim, no centro, um «bico de viúva». À primeira vista, Spade tinha o aspecto agradável de um demónio saxão. Naquele momento, inquiria de Effie Perine:

- Que se passa, meu amor?

 

Na primeira vez que li O Falcão de Malta, de Dashiell Hammett, o início não me chamou a atenção. Poucos adolescentes gostam de descrições, excepto se forem de partes anatómicas mais sugestivas do que a face das personagens. Lembro-me, porém, de ficar fascinado - e horrorizado - com a frieza de Sam Spade, o detective privado no centro do enredo. James Ellroy, que muitos consideram herdeiro de Hammett - começando talvez pelo próprio, pouco dado a demonstrações de modéstia -, afirmou numa entrevista à The Paris Review preferir Hammett a Chandler por este ter escrito do ponto de vista do homem que gostaria de ser enquanto Hammett escrevera do ponto de vista do homem que temia ser(*). Eu admito que Chandler era globalmente melhor escritor do que Hammett mas, ainda assim, compreendo Ellroy. E, pegando novamente há uns anos n'O Falcão de Malta, descobri com surpresa que o jogo estava claro desde o primeiro parágrafo. Sam Spade é o diabo. Ou, vá, um diabo. Uma versão refinada do Continental Op dos livros anteriores, no sentido em que é fisicamente atraente, como qualquer verdadeiro diabo terá de ser (representá-lo com formas grotescas não passa de um truque para tornar mais fácil resistir-lhe). Nenhum humano normal, passível de compromissos, distracções, hesitações, ingenuidades e emoções, chega a ter qualquer hipótese de enganar Spade. A mulher fatal, que Hammett praticamente inventara em Red Harvest e que, pelo menos ao nível psicológico, desgraça o detective em tantos outros livros e filmes, está condenada desde o início(**). No momento-chave, Spade é-lhe imune e, pouco depois, parece já nem se lembrar da sua existência. Não é impossível que as garantias de amor dela fossem verdadeiras. Mas é irrelevante. Ao contrário de Philip Marlowe, o alter ego de Chandler, Spade não é homem para permitir-se actos sentimentais. Não é homem para arriscar o pescoço sem que exista algo tangível a ganhar. Para Spade, o amor seria sempre - e apenas - um benefício colateral.

 

P.S.: O carácter pouco heróico de Sam Spade está bem presente na adaptação cinematográfica de 1941, realizada por John Huston, com Humphrey Bogart no papel principal. De resto, Huston poucas vezes mostrou heróis tradicionais nos seus filmes e o próprio Bogart - em 1941, ainda longe do nível de estrelato que viria a atingir - desempenhou frequentemente personagens antipáticas (recorde-se outra colaboração com Huston: O Tesouro de Sierra Madre). Se alguém vir um herói no Spade do filme, tal dever-se-á provavelmente ao charme que o cinismo possui e ao peso que, não obstante a carreira variada, o nome Bogart adquiriu.

 

Aviso: o texto da edição actual, cuja capa se reproduz acima, está em «acordês».

_______ 

(*) Chandler wrote the kind of guy that he wanted to be, Hammett wrote the kind of guy that he was afraid he was. Chandler’s books are incoherent. Hammett’s are coherent. Chandler is all about the wisecracks, the similes, the constant satire, the construction of the knight. Hammett writes about the all-male world of mendacity and greed. The Paris Review, nº 201.

 

(**) Segundo algumas opiniões, o destino da mulher fatal é precisamente ser punida pelo herói, que castigaria assim o uso de comportamentos pouco consentâneos com o tradicional papel feminino. Pode haver nesta interpretação algum fundo de verdade (um dos receios - mas também uma das fontes de excitação - dos homens sempre foi a possibilidade de as mulheres usarem o sexo como elemento manipulador) mas a generalização - e a inerente acusação de misoginia - parece-me um pouco abusiva.

Do princípio ao fim (27)

Pedro Correia, 03.11.16

Não faltam epílogos memoráveis na literatura portuguesa. Mas talvez nenhum tão marcante  – desde logo pelo seu simbolismo – como o desfecho desse enorme romance que é Os Maias. Um vasto fresco sobre as classes dominantes no Portugal do rotativismo monárquico, caricaturadas pela pena de alguém que bem as conhecia: Eça de Queirós (1845-1900).

Desmedido e torrencial, o livro apresenta-nos uma inesquecível galeria de personagens, figuras-tipo da alta-roda lisboeta da época, num tempo em que o País cabia todo “entre a Arcada [Terreiro do Paço] e São Bento” – uma das incontáveis frases corrosivas desta obra magistral que continua a seduzir leitores, fascinados com o paralelo que pode estabelecer-se entre a segunda metade do século XIX e as décadas iniciais do século XXI.

Encontramos aqui expressões que podiam ter sido pronunciadas em qualquer serão deste mês em que vivemos. “A bancarrota é tão certa, as coisas estão tão dispostas para ela, que seria mesmo fácil a qualquer, em dois ou três anos, fazer falir o País”, observa o banqueiro Jacob Cohen, como quem faz uma elementar operação aritmérica.

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Eça atribui o endémico fracasso português à mediocridade das supostas elites nacionais, vergastadas sem remissão nas páginas deste romance, surgido em 1888. É a visão desencantada de um estrangeirado, que se encontrava havia década e meia longe da pátria, em sucessivas missões diplomáticas que o conduziram às Antilhas Espanholas, ao Reino Unido e finalmente a França, onde permaneceria até à morte.

É uma sátira da qual ninguém escapa ileso. Nem políticos, nem financeiros, nem aristocratas, nem jornalistas, nem escritores – um desfile de gente venal e falhada, incapaz de libertar o País de males atávicos. Por incompetência, por dolo, por desinteresse, por manifesta impreparação. A literatura era “latrinária". O jornalismo revelava-se como "escória da sociedade". Os ministros tinham como único fito “cobrar o imposto”. Lisboa – no vértice do poder – surgia aos olhos de qualquer observador lúcido como “uma canalha de terra”. Portugal agonizava, povoado de uma “colecção grotesca de bestas”.

 

O imaginário queiroseano, com as suas críticas demolidoras, foi transitando de geração em geração, influenciando sucessivas camadas de pensadores que – sem o talento literário do autor d’ O Crime do Padre Amaro nem a sua verve satírica – se limitaram a reproduzir a caricatura, assumindo-a como facto unidimensional. Não passa um dia sem que vejamos estampada nos jornais a versão contemporânea de que o País é “uma choldra ignóbil”, tomando pelo valor facial a expressão de João da Ega, personagem central do romance, em paralelo com Carlos da Maia, o seu melhor amigo.

Dois falhados, como seria inevitável: o primeiro matriculou-se em Direito sem seguir o curso e sonha com gloriosas obras-primas da literatura que jamais escreverá; o segundo revela-se incapaz de exercer medicina devido ao “veneno do diletantismo” que caracteriza a atmosfera reinante à época, corroendo qualquer hipótese de regeneração social. Daí Ega bradar nos saraus mundanos: “Portugal não necessita reformas, Portugal o que precisa é a invasão espanhola.”

Nesta óptica, todo o esforço estaria condenado ao insucesso. Os diálogos entre Ega e Carlos da Maia acabaram por funcionar até hoje como simbólica chave decifradora do “atraso estrutural português”, numa espécie de fatalidade genética, surgindo Eça – certamente à sua revelia – como avalista deste determinismo que parece perpetuar-se em lei granítica.

É certo que o escritor integrou o grupo dos Vencidos da Vida – designação também irónica de uma tribo intelectual que congregou Ramalho Ortigão, Antero de Quental e Oliveira Martins, entre outros. Mas ele próprio, com a excepcional obra literária que nos legou, acabou por ser a demonstração viva do oposto das teses que algumas das suas personagens pretendiam ilustrar.

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E regresso ao princípio. Ou seja, ao fim. Declina a tarde, Carlos e Ega descem em passo indolente a rampa de Santos partilhando a apologia retórica do “fatalismo muçulmano” que nos aconselha a “nada desejar e nada recear”: assim se evitam “esperanças e desapontamentos”.

Carlos, o médico que não exerce, sentencia: “Não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma…”

Ega, o escritor das perenes folhas em branco, remata: “Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder…”

 

Enquanto assim falavam, via-se ao longe a lanterna vermelha do americano – transporte público que circulava em carris, movido por tracção animal.

«De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para apanhar o “americano”, os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela Rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.»

Magnífico parágrafo final. Que desmente a peregrina tese sobre a inutilidade de todos os esforços, propalada até à náusea por uma legião de epígonos menores de Eça, incapazes de ler nas entrelinhas. O criador d’ Os Maias, um dos nossos maiores escritores de todos os tempos, sabia muito bem como as palavras servem tantas vezes apenas para iludir intenções e camuflar desejos.

É um final em aberto, próprio da literatura moderna: nunca saberemos se Ega e Carlos apanharam o transporte. Mas sou capaz de apostar que sim.

Do princípio ao fim (26)

Adolfo Mesquita Nunes, 19.10.16

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Procure-se pelas melhores primeiras frases de livros e lá constará, com certeza, a frase inicial do The End of the Affair, do Graham Greene.

 

A story has no beginning or end; arbitrarily one chooses that moment of experience from which to look back or from which to look ahead.

 

Gosto deste começo, de me saber escritor, aqui também personagem, na decisão sobre o momento certo, o pretexto por onde começar, descobrindo afinal que somos uma extensão de momentos, sem princípio nem fim, porque a nossa história nunca começa ou acaba connosco, nem pode sequer ser lida de forma sequencial (o romance, precisamente, não é assim narrado). Esta percepção do tempo, apesar de me interessar muito, não é a razão pela qual escolho o The End of the Affair. Permitam-me que partilhe o parágrafo todo.   

 

A story has no beginning or end: arbitrarily one chooses that moment of experience from which to look back or from which, to look ahead. I say 'one chooses' with the inaccurate pride of a professional writer who - when he has been seriously noted at all - has been praised for his technical ability, but do I in fact of my own will choose that black wet January night on the Common, in 1946, the sight of Henry Miles slanting across the wide river of rain, or did these images choose me? It is convenient, it is correct according to the rules of my craft to begin just there, but if I had believed then in a God, I could also have believed in a hand, plucking at my elbow, a suggestion, 'Speak to him: he hasn't seen you yet.”

 

A razão pela qual escolho o The End of Affair está nesta continuação da primeira frase, a suspeição de que Alguém nos subtrai o livre arbítrio, se sobrepõe a nós nas nossas escolhas, ou pelo menos provoca as condições em que as fazemos. Terá sido Deus, mesmo um ateu se pergunta, a empurrar o protagonista para este momento inicial, para o primeiro diálogo, para o encontro com o marido da ex-amante? Foi Deus que me colocou aqui, neste país, nesta família, neste ambiente? E se o fez, porquê? E este é um tema que me interessa ainda mais.

 

Todo o livro nos confronta com esta omnipresença e omnipotência de Deus, de tal forma que o protagonista passa o tempo inteiro a querer provar justamente o contrário, que Ele não existe ou que, pelo menos, não exerce qualquer poder sobre ele, ainda que o apanhemos a rezar no final.

 

Neste sentido, há uma certa linha paralela com o Hazel Motes do Wise Blood, de outra escritora de que gosto muito, a Flannery O’Connor, nesta persistência em livrar-se de Deus, de uma autoridade que o anteceda e comande, sendo que aqui Deus exerce uma função rival, quase o antagonista sexual com quem Maurice compete por Sarah. Há por isso uma convicção de que Deus nos dificulta, nos perturba, sendo por isso mais fácil viver sem ele, mas há também uma noção de Deus enquanto nosso adversário, não apenas nosso arbítrio.

 

Volto várias vezes a este tema da nossa relação com Deus, quase sempre pela literatura, e talvez por isso goste tanto dos dois autores que refiro neste post. Não tenho por hábito partilhar reflexões demasiado pessoais na blogosfera, pelo que termino o post, sem sugestões, mas com a convicção de que há neste romance do Graham Greene um desenhar de combate que conheço muito bem. 

Do princípio ao fim (25)

Luís Naves, 18.10.16

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Camilo Castelo Branco começou muitos dos seus livros com uma grande frase, como por exemplo este “o progresso é uma voragem”, ideia que inicia uma obra menos conseguida, Vinte Horas de Liteira. Um dos textos maiores do autor, Romance de um Homem Rico, começa de forma simples, mas eficaz, pois já ali se resume a história: “Na Primavera de 1859, comprei, na estação de Santa Apolónia, um bilhete de via férrea, para a ponte da Asseca”. Camilo lança alguns livros com uma gargalhada de desafio, basta citar O Retrato de Ricardina, que começa desta forma arrasadora e plena de ironia: “O abade de Espinho, um dos mais ricos da diocese de Viseu, pecara na mocidade. Coisa rara, senão singular, em abades”. Também gosto do começo de As Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado, que em tão poucas linhas consegue transmitir o carácter essencial desta personagem cómica: “Basílio Fernandes é um sujeito de trinta e sete anos, com senso comum, engraçado a contar histórias da sua vida, activo negociante de vinhos do Porto, amigo do seu amigo, e bastante dinheiroso — o que é melhor que tudo já dito e por dizer”.

Amor de Perdição e O Bem e o Mal, duas das obras-primas de Camilo, começam com frases sintéticas, mas em comparação algo frouxas, demonstrando sem equívoco que um mau início nada nos diz sobre a qualidade geral da obra, sendo provavelmente errada aquela ideia feita de se avaliarem os romances pela força das primeiras palavras, um pouco à semelhança de se julgarem as pessoas pela primeira impressão, que pode ser um dos maiores erros das nossas vidas.

No caso do romance contemporâneo, a primeira impressão é geralmente enganadora, pois os autores ganharam consciência do valor dos inícios fulgurantes e, frequentemente, o tom alucinante do lançamento vai abrandando, as ideias enterram-se no pântano de um miolo mal resolvido, o autor não consegue fixar as personagens, que se diluem em contradições, e o livro arrasta-se num lamaçal de monotonia. As primeiras frases de impacto são fundamentais em crónicas, mas talvez não o sejam em romances.

 

 

Do princípio ao fim (24)

Pedro Correia, 16.10.16

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Raras vezes li um início de romance que me surpreendesse tanto, que me agarrasse tanto. Logo ali, nas primeiras frases sincopadas, escritas pelo protagonista-narrador, confrontado com o envelhecimento e o declínio enquanto último habitante que resta da sua aldeia natal, perdida na imensidão da montanha.

«Enterrei hoje minha mulher – porque lhe chamo minha mulher? Enterrei-a eu próprio no fundo do quintal, debaixo da velha figueira. Levá-la para o cemitério, e como? Fica longe. Ela pedira-mo uma vez, inesperadamente, acordando-me a meio da noite. Queria que a enterrasse junto ao muro que dá para o caminho, porque se vê daí a casa dela. Habituara-se a olhar para aquele sítio depois que ficou só. E pensava: “Verei dali a janela do meu quarto.” Mas teria de transportá-la para lá. Não tenho forças e cai neve. A quantos estamos? É Inverno, Dezembro talvez, ou Janeiro. Tiro a neve com uma pá, traço o rectângulo e cavo. Dois cães assomam à porta do quintal, chupados de ódio e de fome. Ainda há cães pela aldeia? Babam-se e uivam sinistramente. Tomo uma pedra, disparo-a contra um, desaparecem ambos a ganir. E de novo o silêncio cresce a toda a volta, desde a montanha que fico a olhar até me doerem os olhos.”

 

São as frases de abertura de um dos mais belos romances portugueses do século XX: Alegria Breve (1965), de Vergílio Ferreira – magnífico prosador e pensador a cujas páginas regresso, com a devoção de um leitor de sempre, neste ano em que se assinalam em simultâneo o centenário do seu nascimento e o vigésimo aniversário da sua morte.

Romancista de ideias, fiel ao ideário de um Sartre que usava a ficção como veículo de aproximação à filosofia, o autor de Aparição foi de algum modo escrevendo o mesmo livro de título em título desde Manhã Submersa, que representou o corte definitivo com a estética neo-realista que até aí lhe servira de fonte primacial. O cânone em voga apontou-lhe o dedo acusador, argumentando que caíra nas malhas do “esteticismo”, grave pecado numa época em que se entendia a arte como mera reprodutora da realidade.

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Foi um corte traumático com antigos companheiros de percurso, mas Vergílio Ferreira tinha razão ao recusar toda a forma de expressão artística como mero instrumento da intervenção política de circunstância. Interessava-o muito mais enquanto forma de interrogação acerca do destino do ser humano no mundo tangível que lhe cabe em sorte. Interrogação que leva ao limite neste admirável romance que me conquistou logo às primeiras linhas, tão devedoras dessa perturbação existencial que perpassa no inesquecível parágrafo de abertura d’ O Estrangeiro, de Albert Camus.

Como Mersault, personagem central dessa novela, aqui o protagonista Jaime Faria experimenta uma situação extrema, numa espécie de exílio interior, confrontado com a força e a fraqueza da sua condição humana. Último homem, primeiro homem, longe da multidão, cada vez mais perto da sua verdade essencial.

 

“Jamais a técnica romanesca moderna da temporalidade segmentada se ajustou mais exactamente ao movimento profundo de uma consciência. Estamos dentro de um cérebro, no tumulto da memória-emoção, e experimentamos a insuportável violência da vida que se exprime pelo tema do grito”, sublinhou justamente Robert Bréchon no prefácio à tradução francesa de Alegria Breve.

Regresso com frequência à prosa cintilante de Vergílio Ferreira - delicada como filigrana, consistente como granito. Eis-me novamente, por estes dias, como testemunha muda daquela gesta espartana de Jaime Faria, daqueles gestos esquálidos dos seus braços usando a pá para remover a neve e escavar a sepultura da mulher - derradeiro habitante da aldeia, agora casado apenas com a devastadora solidão do mundo.

Do princípio ao fim (23)

Joana Nave, 15.10.16

"UMA VEZ, tinha eu seis anos, vi uma imagem magnífica num livro sobre a Floresta Virgem chamado "Histórias Vividas". Era uma jibóia a engolir uma fera. Copiei o desenho para vocês poderem ver como era."

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Logo no primeiro parágrafo somos impelidos a entrar no mundo da imaginação...

O meu exemplar deste livro é de 1987, a par das marcas do tempo, tem também as do manuseamento.

Foi-me oferecido pela minha Mãe, como todos os livros que li durante a minha infância e juventude.

Não me recordo do número de vezes que o reli, mas sei que foram muitas.

É um daqueles livros intemporais e que se recomenda em qualquer idade. É didáctico, interessante e mágico.

O Universo do Principezinho mostra-nos tesouros escondidos em cada um de nós. Sempre que o lemos descobrimos uma nova forma de entender o Eu e o Outro.

Do princípio ao fim (21)

Alexandre Guerra, 13.10.16

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Lendo com atenção os magníficos textos que têm composto esta rubrica, registo uma enorme qualidade na abordagem feita pelos meus companheiros de blogue a diferentes livros que, de uma maneira ou de outra, lhes terão marcado "do princípio ao fim". A questão é que nestas coisas da literatura, a impressão com que cada um de nós fica de um livro pode ser influenciada por diferentes factores, que podem ir desde a qualidade da obra ao “mood” com que cada um de nós parte para a sua leitura.

São vários os livros sobre os quais poderia escrever, mas apeteceu-me ir para algo mais “pornográfico”. O leitor poderá ficar desde já tranquilo porque o texto que segue em baixo cumpre todos os requisitos dos bons costumes e da decência. Na verdade, estou a falar de um livro biográfico altamente respeitável, que foi New Times Best Seller e que teve como co-autor Neil Strauss, jornalista, escritor, ghost writer, e colunista da Rolling Stone e do New York Times.

Neste livro, Strauss ajuda a contar a história de vida de Jenna Jameson que, para quem não conhece, é uma das maiores “porn star” dos EUA, que se tornou num ícone da cultura pop norte-americana. O livro está longe de ser uma grandeza literária, mas tem o seu valor, por ser cru e pragmático, espelhando aquilo que a sociedade americana é. Se, por um lado, os preconceitos e o puritanismo fazem parte do quotidiano de uma certa América, por outro lado, aquela sociedade é de tal forma livre ao ponto de uma pessoa poder chegar ao topo, sendo aceite pelo sistema “mainstream” e não ser julgada pela sua “profissão” ou passado. De facto, o “céu é o limite” e o “american dream” é sempre possível, independentemente de onde se venha ou do que se tenha feito.

E o capítulo Um do livro começa assim:

“There comes a moment in every life when a choice must be made between right and wrong, between good and evil, between light and darkness. These decisions are made in an instant, but with repercussions that last a lifetime. My troubles began the day I chose the darkness – the day I chose Jack.

At age sixteen, I finally grew the breasts and pubic hair I had been praying for since sixth grade. It was as if they just appeared overnight. And suddenly I transformed from a homely wallflower to a full-bodied woman who turned heads. It was every father’s nightmare.”

O livro chama-se How to… Make Love Like a Porn Star e foi editado em 2004. E termina da mesma forma como começa, sem floreados ou figuras de estilo: “Because we were too busy at the time to travel, we decided to have our honeymoon at the Ritz-Carlton in Phoenix, so we booked the rest of the week there. That first night, we had fantastic sex – especially compared with my first wedding, when I didn’t-have sex at all – and fell asleep in each other’s arms.

When we woke up at 10 A.M, I looked into his eyes. He looked into my eyes. And we both said the same thing: ‘Let’s go home.’”

Do princípio ao fim (20)

João André, 12.10.16

Para variar, e para ser comme d'habitude diferente dos meus colegas de blogue, decidi abordar a ciência. Não dá para este tópico? Vejamos abaixo.

 

«Welcome. And congratulations. I am delighted that you could make it. Getting here wasn't easy, I know. In fact, I suspect it was a little tougher than you realize.

To begin with, for you to be here now trillions of drifting atoms had somehow to assemble in an intricate and intriguingly obliging manner to create you. It's an arrangement so specialized and particular that it has never been tried before and will only exist this once. For the next many years (we hope) these tiny particles will uncomplainingly engage in all the billions of deft, cooperative efforts necessary to keep you intact and let you experience the supremely agreeable but generally underappreciated state known as existence.

Why atoms take this trouble is a bit of a puzzle. Being you is not a gratifying experience at the atomic level. For all their devoted attention, your atoms don't actually care about you - indeed, don't even know that you are there. They don't even know that they are there. They are mindless particles, after all, and not even themselves alive. (It is a slightly arresting notion that if you were to pick yourself apart with tweezers, one atom at a time, you would produce a mound of fine atomic dust, none of which had ever been alive but all of which had once been you.) Yet somehow for the period of your existence they will answer to a single overarching impulse: to keep you you.»

 

É este o início do mais delicioso de livro de divulgação de ciência (não usei o habitual "divulgação científica" de propósito) que alguma vez li: A Short History of Nearly Everything, por Bill Bryson. O início é excelente porque começa de imediato por nos introduzir ao sentido do irreal em que a ciência se move para descrever a realidade. O livro está cheio de excelentes citações de cientistas e uma delas é perfeita para complementar estes parágrafos iniciais: a de B.S. Haldane «The universe is not only queerer than we suppose; it is queerer than we can suppose».

 

O livro é em si mesmo algo menos improvável que a nossa própria existência. Bill Bryson é um jornalista por profissão, um escritor por escolha e não tinha qualquer vocação para as ciências e era completamente ignorante sobre as mesmas. Tem no entanto uma característica irremediavelmente científica: é incessantemente curioso e não pára de fazer perguntas quando essa curiosidade aparece.

 

Foi assim que escreveu este livro. Questionou livros, jornais, revistas. Questionou cientistas e historiadores da ciência. Questionou outros jornalistas e pastores. Questionou toda a gente e todos os meios que conseguiu para conseguir compilar a sua pequena história de quase tudo. E depois questionou quem pôde sobre a sua exactidão, o que resultou num trabalho com incrivelmente poucos erros, os quais foi corrigindo a cada nova edição. O resultado foi um trabalho que recebeu diversos prémios e é elogiado por cientistas de todas as áreas e que resultou no convite para editar Seeing Further, a história da Royal Society.

 

A atracção do livro é a escrita, acessível a qualquer pessoa e com suficientes dados para se perceberem os conceitos mais complicados. A notação matemática mais complicada é evitada tanto quanto possível em favor de termos como "triliões", "milhões de milhões" e outros ou, ainda com mais sucesso, de comparações visuais, como quando, para ilustrar a quantidade de galáxias existentes, as equivale a ervilhas congeladas e explica que poderiam encher o grande auditório. Além de procurar dados correctos, representativos e não chatos, Bryson tem ainda o cuidado de polvilhar o livro com pequenas anedotas e episódios que não só entretêm mas servem para humanizar os cientistas.

 

O livro é bastante completo nos seus objectivos e passa pela física da (cosmologia à sub-atómica), pela química, pela biologia (microbiologia, zoologia e até botânica), pela ecologia e bio-diversidade, tem uns passos divertidos pela geologia e geografia, anda pela metereologia, climatologia e paleontologia e acaba na antropologia (até social). Se há aspecto que escapa um pouco é o próprio estudo da ciência em si. Pouco ou nenhum espaço é dedicado ao método científico a não ser de passagem e no contexto de outros temas. É uma falha que se nota, mas pouco, tal é o deleite que a escrita em si deixa.

 

Quando termina, Bryson despede-se com as suas lições

 

«If this book has a lesson, it is that we are awfully lucky to be here—and by “we” I mean every living thing. To attain any kind of life in this universe of ours appears to be quite an achievement. As humans we are doubly lucky, of course: We enjoy not only the privilege of existence but also the singular ability to appreciate it and even, in a multitude of ways, to make it better. It is a talent we have only barely begun to grasp.


We have arrived at this position of eminence in a stunningly short time. Behaviorally modern human beings—that is, people who can speak and make art and organize complex activities—have existed for only about 0.0001 percent of Earth’s history. But surviving for even that little while has required a nearly endless string of good fortune.


We really are at the beginning of it all. The trick, of course, is to make sure we never find the end. And that, almost certainly, will require a good deal more than lucky breaks.»

 

Este post não tenta oferecer o fim de um livro também usado para o princípio, de acordo com o espírito da série. É no entanto difícil evitar o fechar de círculo que Bryson tenta, terminando fazendo eco das suas palavras iniciais. Também isso reflecte um princípio científico: QED.

Do princípio ao fim (19)

Ana Lima, 11.10.16

É uma terra sombria. Não tem mais do que uma fábrica de algodão, casas de duas assoalhadas onde vivem os operários, alguns pessegueiros, a igreja com duas janelas de vitral e uma rua principal, feia, com apenas cem jardas de comprido. Aos sábados, os rendeiros das quintas em redor vão até lá para um dia de conversa e compras. Nos outros dias, está vazia e triste, como todos os lugares perdidos e distantes do mundo. O apeadeiro de comboio mais próximo é em Society City e as carreiras de camionetas Greyhound e White passam na estrada de Fork Falls, a três milhas de distância. Os invernos são curtos e ásperos, os verões resplandecentes e de um calor atroz.

A Balada do café triste, The Ballad of the sad café,

Carson MCCullers,  1951,

edição da Relógio D'Água, tradução de José M. Guardado Moreira

 

Eu nunca fui à América, forma de designar um país que tomou para si o nome de todo um continente.

Conheço-o, no entanto, dos filmes e dos livros, como conhecemos, através deles, tantos lugares onde nunca estivemos ou viremos a estar.

E de entre os autores americanos que li alguns são responsáveis pelas primeiras imagens que me vêm à cabeça, se fecho os olhos e penso nele. Não são as metrópoles ou os locais cosmopolitas que surgem em primeiro lugar, mas as grandes extensões vazias e as cidades pequenas demais para elas.

John Steinbeck, com As Vinhas da Ira, lido na adolescência, é um dos responsáveis.

Carson MCCullers, lida mais tarde, é outra. Este A Balada do café triste, é um livro de personagens. São elas, mais que a história, que são a sua força. Mas antes de as conhecermos tomamos contacto com a terra e percebemos que ela pode ter um papel importante na forma como aquelas se comportam. Uma escrita cinematográfica, no sentido em que facilmente a transformamos em imagens.

O primeiro parágrafo deste conto, que sugere todo o seu tom, coloca-nos imediatamente naquele lugar. É como se voássemos por cima das ruas. Podemos até sentir o frio e o calor, a imediata solidão, uma certa claustrofobia sentida num espaço longe de tudo, a forma como o tempo parece custar a passar. 

E tudo isto em frases claras e certeiras pontuadas por alguns adjectivos que nos dão a ideia do ambiente que ali se vive.

A partir dessa descrição da terra acercamo-nos da casa e do café que ali existia para depois nos irmos aproximando das personagens, num movimento cada vez mais para o interior até que quase conseguimos compreendê-las, mesmo que aparentemente estejam tão longe de nós, nas margens de uma sociedade que as afasta.

Apesar de estarmos, no tempo e no espaço, a uma longa distância da realidade retratada, Carson MCCullers consegue fazer com que os habitantes e visitantes daquela terra não nos sejam indiferentes e quando fechamos o livro percebemos que afinal também nós já estivemos naquele lugar perdido e distante do mundo. Provavelmente sentados à mesa do café.

 

Do princípio ao fim (18)

Teresa Ribeiro, 10.10.16

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As palavras que se alinham logo no primeiro parágrafo são para se comer: "Lolita, luz da minha vida, fogo da minha virilidade. Meu pecado, minha alma. Lo-li-ta: a ponta da língua faz uma viagem de três passos pelo céu da boca abaixo e, no terceiro, bate nos dentes. Lo. Li. Ta." - esta sensualidade no começo de uma obra cujo tema é consensualmente considerado deplorável recebe-se como uma provocação. Creio que é sobretudo a curiosidade mais pelo que sentimos, do que pelo enredo que nos leva a progredir no texto a partir destas primeiras palavras. O tom é envolvente, confessional. Trata-se da autobiografia do narrador, Jean Jacques Humbert, um homem maduro, elegante, letrado e pedófilo assumido.

Nada na leitura deste romance é simples. Ao talento descritivo, capaz de nos transmitir com beleza as mais obscuras paisagens, Nabokov associa uma narrativa baseada no testemunho de uma personagem complexa, que tem a capacidade de se decompor em réu e juiz, actor e espectador, narrador e leitor.

Jean Jacques Humbert é, como ele próprio se chama, Humbert Humbert, uma figura que não raramente nos fala a um tempo na primeira e terceira pessoa: "... o soturno Humbert comprimiu a boca contra a sua pálpebra palpitante. Ela riu-se e saiu do quarto roçando por mim. O meu coração parecia estar em toda a parte ao mesmo tempo" (pág 51).

Dual mas ao mesmo tempo lúcido, Humbert disseca até ao âmago a sua perversão, como "quem vira a consciência do avesso e lhe arranca o forro íntimo" (pág 81). Antes que o leitor o classifique adianta-se, consciente da sua abjecção: "Não tenho ilusões. Os meus juízes considerarão tudo isto uma mascarada de um louco, com um gosto indecente pelo fruit vert. Au fond, ça m'est bien égal." (pág 46)

Ao assumir tão frontalmente esta ausência de expectativas Humbert, ou Nabokov através de Humbert, esvazia o papel do leitor. Perante a sua indiferença o que nos resta se não tomar conhecimento de um caso perdido, simplesmente conhecer, como um banal voyeur, as catacumbas da sexualidade de um pervertido? É neste desconforto que progredimos no romance, forçados não a empatizar - isso nunca é sequer tentado - mas a perceber os matizes da moral de um pedófilo. Nada nos é vedado. Da clássica desculpabilização: "O que me enlouquece é a dupla natureza desta ninfita - de todas as ninfitas talvez -, esta mistura na minha Lolita de uma terna infantilidade sonhadora e uma espécie de misteriosa vulgaridade", à impiedosa consciência da perversão: "... a horrível conclusão a que quero chegar (...) é a seguinte: tornara-se gradualmente evidente à minha convencional Lolita, durante a nossa singular e bestial coabitação que até a mais miserável das vidas familiares era melhor do que a paródia de incesto que, no fim de contas, era o melhor que podia oferecer à desamparada criança".

Trata-se de uma experiência, dado o tema em questão, fortíssima. Lo-li-ta. Sente-se de facto o sabor amargo da mais popular obra de Nabokov, lançada em 1955 para escândalo do mundo inteiro, no palato.

Uma vez lida, jamais a esqueceremos.

Do Princípio ao Fim (17)

Bandeira, 09.10.16

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Se era para escrever sobre James Joyce, eu antes queria ter aludido ao início de The Dead, a última história em Dubliners: “Lily, the caretaker’s daughter, was literally run off her feet”. Olhe esse “literalmente” – Acha que Joyce teria sido capaz de o escrever por engano? Sherlock Holmes diria que o erro (my dear Watson) estava em tomar o erro por erro, porque não havia erro de todo. A haver um, seria o de considerar que toda aquela gente da sociedade de Dublin que corria para a festa e cujos casacões a criadita tão descalçadamente amontoava nos braços estavam vivos, na mais bela acepção da palavra; não o estava sequer a criadita, apesar de não ser gente da sociedade de Dublin. Eu iria por aí adiante, até ao ponto em que Gretta conta ao atónito Gabriel, seu marido, a história do rapaz de Galway que aos dezassete anos morrera de amor por ela. Eu podia ter escrito sobre isso e ter-me-ia sentido justificado porque a minha própria mãe, menina ainda, em inocência levou um rapaz como o de Galway a um fim semelhante. E depois contar-lhe-ia a si, agora que nem Gretta nem Gabriel – ou a minha mãe e o meu pai – nos podem ouvir, como o jovem pretendente deixou à minha mãe uma nota com uma única e ingrata palavra: “Ingrata”. E nos céus de Lisboa, como nos de Dublin, nevaria e a neve seria as almas de todos os mortos do mundo.

 

Se quisesse falar de pretendentes podia também ter dissertado sobre Ulysses, o pau-de-sebo da literatura e um livro a que podemos chamar livro sem risco de hipérbole porque, usando o critério do avô de João Ubaldo Ribeiro (perdoe se erro em um ou outro detalhe, ou mesmo no texto todo, estou sem tempo e cito de memória), não merece tal designação um volume que não se tenha em pé sozinho. Existirá em toda a literatura final mais excitante do que esse em que Molly Bloom dá o “sim” e que ditou a interdição da obra no então desenvolvidíssimo mundo falante de inglês? Se existe, por favor envie-me um exemplar em envelope inviolável e numa língua que eu seja capaz de ler.

 

Porque perdi a minha mãe há três meses e ganhei um neto há três dias, todavia, forçoso era que falasse sobre o princípio e o fim de Finnegans Wake, que Joyce escreveu, melhor, ditou já velhinho e praticamente cego. Ele dizia não perceber o problema da suposta ilegibilidade da obra: quem não a compreendesse lendo, que o fizesse em voz alta e de súbito tudo, e tudo é a vida na mais bela acepção da palavra, faria sentido. Não por acaso um físico, um homem bom e curioso, baptizou certa partícula elementar com o nome “Quark”, nome até então tão enigmático quanto a tal partícula e que emerge em igualmente enigmática frase do livro. Eu já lhe tinha dito que perdi a minha mãe há três meses e que ganhei um neto há três dias? O tempo que mediou estes dois extraordinários acontecimentos, vivi-o como um Finnegans Wake, um amontoado de partículas elementares que, lidas em voz alta – vividas – parece fazerem sentido. A última frase de Finnegans Wake, “A way a lone a last a loved a long the”, é também a primeira, e prossegue na primeira, que é também a última: “riverrun, past Eve and Adam’s, from swerve of shore to bend of bay, brings us by a commodius vicus of recirculation back to Howth Castle and Environs”. E de súbito tudo faz sentido, outra vez, e outra vez, e outra vez. “Seja”, dirá o sorumbático leitor, “mas leu mesmo todo o Finnegans Wake?”. É claro que não. Pensa que sou o quê, louco?

Do princípio ao fim (16)

José António Abreu, 08.10.16

Houve uma época, ali pelo início da década de 1990, em que Ian McEwan era o meu escritor contemporâneo favorito. Depois as coisas alteraram-se um pouco (achei Amesterdão inconsequente e Expiação demasiado proustiano - ou talvez seja mais correcto classificá-lo como demasiado jamesiano - para o seu próprio bem) mas não pude deixar de o incluir entre as hipóteses para esta série. E então apercebi-me de que talvez pudesse fazer uma espécie de Do Princípio ao Fim dentro da obra dele, utilizando alguns temas nela recorrentes. É provável que corra mal mas até isso poderá ser adequado.

 

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Não matei o meu pai, mas às vezes sinto que contribuí para isso.

O Jardim de Cimento (1978). Edição Gradiva (1989). Tradução de Cristina Ferreira de Almeida.

(Na versão original: I did not kill my father, but I sometimes felt I had helped him on his way.)

 

O Jardim de Cimento (primeiro romance de McEwan, depois de dois volumes de contos) relata a história de quatro irmãos que ficam sozinhos em casa após a morte dos pais. O pai propunha-se cimentar o jardim porque, na sequência de um ataque cardíaco, já não conseguia tratar dele e, ainda por cima, era forçado a ouvir constantemente piadas sobre o seu estado de degradação, a maioria provenientes de Jack, o filho de 15 anos, que narra a história. Para além de resolver o problema estético, argumenta o pai, o piso de cimento permitirá reduzir a entrada de lixo na casa. Morre, de segundo ataque cardíaco, enquanto mistura o cimento. Ao mesmo tempo e em vez de estar a ajudá-lo, Jack masturba-se no quarto, pensando na irmã mais velha. É este acto, juntamente com as piadas que fazia sobre o jardim, que levam Jack a considerar ter contribuído para a morte do pai. A situação complica-se quando, algum tempo depois, falece também a mãe, há muito doente. Sem saber como agir, temendo ser separados, os irmãos decidem manter segredo e enterrá-la na cave, tapando-a com o cimento. Nas semanas seguintes, sobrevivendo à custa da pensão que ela recebia, criam um ambiente e uma lógica próprios, nos quais as pulsões sexuais desempenham um papel crucial. O 'lixo' pode afinal não vir de fora.

Muitas pessoas detestam O Jardim de Cimento (leiam-se os comentários negativos na Amazon norte-americana, por exemplo). Entende-se porquê. O humor é negro e o ambiente malsão. Mas, na sua brevidade, o livro expõe gloriosamente a confusão adolescente acerca da definição de regras morais (particularmente de índole sexual) e da procura de um lugar no mundo, bem como o papel fundamental dos pais nesses processos. Entregues a si próprios, aqueles quatro irmãos definem regras próprias, em grande medida distorções das existentes fora de casa. (Há quem considere O Jardim de Cimento uma espécie de O Senhor das Moscas em ambiente familiar e altamente sexual.) A própria relação entre Jack e Julie (a irmã mais velha) não passa afinal da encenação instintiva dos jogos habituais entre adultos, aqui remetida ao ambiente mais restrito possível - o de um grupo de irmãos. Ao permanecerem na casa (e apesar de intrusões do mundo exterior, e de ocasionais excursões ao mundo exterior), eles conseguem manter algum controlo sobre as suas vidas. Estão juntos e em relativa segurança, ainda que as ameaças se acumulem e as hormonas se manifestem. No fundo, para pessoas que já nasceram, a casa dos pais é o local mais parecido que existe com o ventre materno.

 

(O bom senso aconselharia agora que eu aproveitasse a frase anterior para saltar directamente para o último livro de McEwan - ser-me-á impossível conseguir melhor ligação - mas não resisto a fazer algumas paragens suplementares.)

 

Depois de O Jardim de Cimento, McEwan publicou Estranha Sedução (1981). Por várias razões, o título original é melhor: The Comfort of Strangers. De visita a Veneza, um casal é atraído pelo lado misterioso e cosmopolita de outro casal. Estamos perante adultos mas, como no livro anterior, o impulso para criar um núcleo que faça sentido permanece. E os jogos macabros, agora num nível mais perigoso, mais adulto, também.

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A seguir veio A Criança no Tempo (1987). O início tem pouco de memorável (qualquer coisa acerca do trânsito) mas a premissa é a inversão quase perfeita da que gerara O Jardim de Cimento. Um pai perde a filha no supermercado e tem de lidar com as consequências do desaparecimento. O seu casamento desmorona-se, as suas relações profissionais são testadas e a sua própria história é necessariamente reavaliada na sequência de toda a introspecção que ele não consegue deixar de levar a cabo. Ao contrário das crianças de O Jardim de Cimento, ele tem de lidar com o exterior. É um adulto, afinal. E, por sê-lo, deveria conseguir relativizar, colocar os eventos sob perspectiva. Mas, bem vistas as coisas, ninguém alguma vez deixa de ser uma criança – em especial perante acontecimentos que fazem nascer questões de culpa e de justiça. Por outro lado, ninguém alguma vez deixa de se avaliar com os olhos, plenos de expectativa, da criança que foi – o que só pode gerar desapontamento. Em O Jardim de Cimento, sem adultos, sem guias nem passado, as crianças construíam um mundo – deformado, com regras e pulsões malsãs, é certo, mas um mundo ainda assim;  sem a criança, os adultos de A Criança no Tempo são incapazes de manter um mundo já criado. Tudo se altera. Tudo é questionado, incluindo a sua própria capacidade enquanto adultos.

 

N'O Inocente (1990), os jogos dos adultos abrangem a espionagem. Trata-se de um dos poucos livros de McEwan sem crianças mas a personagem principal substitui-as. Virgem, crédulo, transportado para um ambiente estranho (a Berlim do pós-guerra), rodeado por pessoas que parecem muito mais à vontade e saber muito mais do que ele (a experiência permite aos adultos fingir melhor), Leonard Marnham é uma versão crescida do Jack de O Jardim de Cimento.

 

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Desde que perdi os meus num acidente de viação, quando tinha oito anos, passei a trazer debaixo de olho os pais das outras pessoas.

Cães Pretos (1992). Edição Gradiva (1993). Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues.

 

Mais uma vez, a história é sobre orfandade, em sentido real e figurado. O narrador olha para os pais dos outros (perdoe-me Romana Petri o roubo do título de um dos seus livros) porque perdeu os seus. E vai olhar especialmente de perto para os pais da mulher. Ele procurou um sentido na política (marxista convicto, acreditou num mundo melhor, num mundo perfeito, criado pelos humanos mas sem os ‘defeitos’ humanos). A partir de certa altura, ela voltou-se para a religião (o campo por excelência do ideal). Num caso como no outro, o desejo é o de sempre: conferir um sentido à vida, construir um casulo de pessoas, lugares e conceitos que garantam sentido e protecção. Porém, como seria de esperar, os filhos ressentiram-se das obsessões dos pais: Liguei-me pelo casamento a uma família dividida, na qual os filhos, tendo em conta os interesses da sua própria preservação, tinham, até certo ponto, voltado as costas aos pais (p. 23). Os dois temas cruciais em McEwan: como os actos das crianças (ou dos adultos) influenciam os adultos (ou as crianças); a busca, por uns e por outros, de um ambiente de segurança. E, em corolário, como adultos e crianças são afinal duas faces da mesma moeda.

Poderia seguir daqui para a mentira da miúda em Expiação (2001), que nasce de uma visão incompleta (e altamente ficcional) do mundo e da lógica dos adultos, e gera terríveis consequências; para o colapso do dia meticulosamente planeado pelo neurocirurgião de Sábado (2005), que culmina com a invasão da sua residência e a ameaça à sua filha grávida; para a tentativa falhada de construir uma intimidade envolvendo o plano sexual (algo que, no fim de contas, separa as crianças dos adultos) em Na Praia de Chesil (2007); ou ainda para a juíza sem filhos, prestes a ver colapsar o casamento de mais de 30 anos e tendo que decidir da vida ou morte de um rapaz de 17 em The Children Act (A Balada de Adam Henry, 2014). Contudo, isto já vai longo e eu não pretendo escrever uma tese. Avancemos portanto - e finalmente - para o início do último livro de McEwan, publicado há menos de um mês.

 

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E para aqui estou eu, de pernas para o ar dentro de uma mulher. Com os meus braços pacientemente cruzados, à espera, à espera e a perguntar-me dentro de quem estou, para que estou aqui. Fecho os olhos com nostalgia quando me recordo de como em tempos vogava dentro do meu translúcido saco físico, a flutuar como num sonho, na bolha dos meus pensamentos, pelo meu oceano pessoal em cambalhotas em câmara lenta, colidindo docemente com os limites transparentes da minha clausura, a membrana reveladora que, embora as abafasse, vibrava com as confidências dos conspiradores num vil empreendimento. Isso foi durante a minha juventude despreocupada.

Numa Casca de Noz (2016). Edição Gradiva (2016). Tradução de Ana Falcão Bastos.

(O título original - Nutshell - é novamente preferível, por incluir a ideia de súmula.)

 

Poderia ser um truque barato e ineficaz, mas resulta. Numa revisitação de Hamlet (em 2016 assinalam-se os 500 anos da morte de Shakespeare), acompanhamos os solilóquios de um feto dentro do ventre materno, suscitados por aquilo que ouve e pelas imagens que vai construindo de um mundo que nunca viu.  A mãe tem uma relação com o cunhado e, com ele, planeia matar o pai. O nascituro preocupa-se. Ainda no útero mas já ameaçado por actos de adultos – e, em particular, da mãe – , relembra com nostalgia tempos nos quais ainda não tinha consciência do que se passava (isto é, tempos em que, na famosa equação ser ou não ser, ainda estava do lado do não ser). Caso a mãe e o amante concretizem o plano, sairá do útero - o casulo de segurança por excelência - para um mundo que já lhe foi retirado (o pai estará morto, a mãe provavelmente presa). Ainda por cima, é impotente; nada pode fazer acerca do assunto. Excepto uma coisa: nascer. Simultaneamente uma vitória e uma rendição.

Do princípio ao fim (15)

Inês Pedrosa, 07.10.16

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"Eulália começou a morrer na terça-feira. Esquecida do último almoço de domingo, quando a família se reunira em torno da longa mesa especialmente armada para receber filhos e netos. À cabeceira, Madruga presidia os festejos e os hábitos implantados na casa desde a sua chegada à América. Olhava então os presentes com certo tédio, deles cobrando sangue e apreço pelas travessas com a comida adornada."

Assim arrancam as 705 páginas de A República dos Sonhos, romance de 1984 recentemente reeditado em Portugal pela Temas e Debates. Os romances inesquecíveis são longas conversas sobre política, lendas, memórias, sentimentos, mágoas e descobertas. A ficção de Nélida Piñon pertence a este caudal. Os seus romances são ensaios, experiências existenciais em que o passado se esclarece e o futuro se revela; os seus textos ensaísticos convocam memórias, descobertas e esse dom da surpresa próprio do ficcionista – a associação atrevida, a brincadeira com os círculos imprevisíveis do tempo, a elasticidade da escrita.

         A República dos Sonhos narra a saga de uma família de emigrantes galegos no Brasil, de um modo muito original, a partir dos três dias em que a matriarca decide morrer – a grande decisão da sua vida – e convoca filhos e netos para a despedida. A vida do patriarca e dos seus descendentes entretece-se com as vicissitudes do Brasil ao longo do século XX. Quando Getúlio Vargas chegou ao poder, em Novembro de 1930, pondo fim à chamada República Velha, o Brasil quis acreditar que poderia transformar-se numa República dos Sonhos.  A brutalidade da ditadura, com o seu cortejo de torturas e ignomínias, adiou esse sonho, mas nunca conseguiu matá-lo, talvez porque a omnipresença da morte exalte os impulsos da vida. Madruga, o emigrante bem sucedido, avisa o seu contraponto Venâncio, emigrante falhado, mas nunca desistente: “ Não se pode conviver intensamente com dois países mortíferos como o Brasil e Espanha. Você terá de abrandar um deles dentro da alma. De outro jeito, eles terminam por matá-lo.” (p. 173). O paralelo permanente entre a Espanha e o Brasil, “países vorazes e movediços”  é a pedra de toque deste romance. Nélida, como Breta – a neta escritora de Madruga, que partilha com ele e com a autora o relato da história – assume-se como uma voz claramente brasileira e americana, mas arqueóloga das suas raízes galegas e europeias. Essa ligação a dois territórios tão distantes permite-lhe o entendimento profundo que advém da conjugação entre intimidade e estranheza, estar dentro e fora do tempo, num lugar, não de omnisciência, mas de límpida ciência do particular. O retrato minucioso do tempo da ditadura militar, e do modo como ele se reflecte nos comportamentos e destinos individuais, é particularmente rico e pormenorizado. Os ditadores não caem do céu – nem os Madrugas desbravadores, sobreviventes à fome e avessos à resignação.

8341277330326G.jpgNélida Piñon tem um talento particular para cruzar o pessoal e o político. As múltiplas personagens deste romance, com o seu lastro e as suas vozes singulares, dão-nos a conhecer as forças e fraquezas do Brasil e também da Galiza, reconciliando-nos com o oceano do tempo ao qual, enquanto mortais, estamos sujeitos. Nós morremos – mas a República dos Sonhos não. Nélida Piñon consegue ser simultaneamente estilista da língua, historiadora, psicóloga, socióloga, filósofa, pintora. “É preciso buscar a linguagem certa. Pobre do escritor que se equivoque nessa escolha. Sobretudo há que se escrever na língua principal que o país está produzindo naquele momento. Se Montaigne tivesse escrito em latim, ninguém o recordaria agora.” ( p. 669). A aliança com uma língua representa um compromisso com a memória dos povos que a utilizam. Romancista que não domine todas as áreas das artes e ciências do humano, não é nada. Há menos romancistas do que se pensa, neste tempo de especialização e fragmentação aguda.

         Breta permanece sempre menina porque é escritora. Isso permite-lhe confiar na palavra e ousar as ilusões e desilusões que são a matéria fundamental da escrita e do conhecimento. A arte cria uma película de candura que nos protege da vida e nos ensina a não desistir dela. Diz o avô Madruga à neta escritora: “Essa graça que temos de narrar se deve ao facto de sermos celtas, Breta. É a nossa maior herança. Mas, também, o que sobra de um povo sem o seu imaginário? Deve ser por isso que o primeiro ato das ditaduras é proibir a imaginação. Nada asfixia mais do que sermos privados de inventar.” ( p. 79).  Na imaginação radica a liberdade. Hannah Arendt explicou como o totalitarismo esmaga o indivíduo, retirando-lhe qualquer espaço de acção, anulando-o na massa. O romance é um dispositivo de combate anti-totalitário – e A República dos Sonhos é um vigoroso e clarividente exemplo disso. Eulália, a mulher apagada que se ilumina quando decide morrer, explica-nos em que consiste o ofício de sonhar: “O sonho é uma distinção, Madruga. É como saber construir com perfeição uma gaiola ou um barco, fazendo-os parecer um palácio mourisco”. Saibamos merecer este palácio.

Do princípio ao fim (13)

Patrícia Reis, 05.10.16

“Viu a Selva da sua vida e viu a Fera a espreitar; então, enquanto olhava, viu-a, como numa agitação do ar, erguer-se, enorme e horrenda, para o salto que o iria aniquilar. A vista escureceu-lhe — estava próximo. E, voltando-se instintivamente, na sua alucinação, para a evitar, mergulhou de cara para baixo sobre a campa.”

A Fera na Selva, 1903

 

Caríssimo Senhor Henry James
 
Escrevo-lhe ao chegar da tarde do primeiro dia de Outono. O sol mostrou-se em Lisboa com alguma timidez, mas apesar disso, rejubilámos. A casa está em silêncio e é oportuno deixar-lhe estas linhas agora antes que os afazeres diários me atropelem e perca esta possibilidade.
Tenho o seu livro na minha mesa de cabeceira há mais de vinte anos. Não sei quantos exemplares já ofereci, na verdade poucos, não conheço muitas pessoas com vontade de chegar a esta elevação. Chamo-lhe elevação porque, de certa forma, a “Fera”, como carinhosamente é conhecida aqui em casa, só ataca alguns e, quando o faz, é de forma quase letal. Fica connosco. Podia ter na mesa de cabeceira outros – e tenho – porém o seu livro, este livro, é diferente. Serve-me como memória e espelha um exemplo. Todos os dias o encaro com desânimo ou entusiasmo. Depende do que me acontece.
Quererá saber porquê. Sei que gosta de uma boa história e que é um ouvinte treinado para as miudezas do mundo, essas que, porventura, utilizou para a ficção e para a dramaturgia. Esqueçamos a dramaturgia? Certo, o fracasso nunca é de louvar. Posso garantir-lhe que o desapontamento que sofreu nos palcos de Londres e arredores, no seu tempo, não são verdades de hoje. Os seus livros tornaram-se filmes, as suas peças encenam-se amiúde. Quer saber se o mesmo se passa com Oscar Wilde? Vejo que o trauma permanece. Oscar Wilde, como quase todas as figuras capazes de fugir ao padrão da época, era irresistível ao grande público. Para si não o seria. Compreendo. Deixemos isso, então. Voltemos à “Fera” e à razão que me leva a escrever-lhe.
Convivi estes anos todos com o seu John Marcher e a sua amiga, a senhora May Bartram. Por vezes, acontece-me regressar à história deste desencontro e aprendo sempre alguma coisa. Marcher serve-me de modelo: um homem que viveu a vida pela metade, convicto de que estava destinado a algo maior, incapaz de amar e reconhecer esse amor. “A solução teria sido amá-la; então, e só então, ele teria vivido”, conclui quase no fim da “Fera”. A pequena lombada que vislumbro da minha cama recorda-me que tenho de estar atenta às coisas do mundo, à “expressão dos afectos” à minha volta, aos que se aproximam e ficam. Se calha a sofrer do síndrome de Marcher, como lhe chamo, penalizo-me de forma brutal. É fácil ser-se egocêntrico, viver na permanente admiração do nosso umbigo. Perdoe-me, não será uma expressão do seu tempo. Seja como for, vejo a “Fera” e tento redimir-me. Em vez de me encolher na minha convicção de justiça e grandeza, procuro desfazer-me e estar disponível. Não como May Bartram, repare, porque o excesso de amor não me convêm. Ou melhor, não convêm a este século XXI. Nunca senti qualquer espécie de piedade por May Bartram, sempre a considerei altruísta e magnânima nos seus sentimentos, contudo demasiado contida para o meu gosto. Se fosse eu, teria gritado o meu amor por Marcher, teria sofrido mais e a amizade terminaria, estou certa. Quando li a sua história pela primeira vez, Senhor James, chorei e continuo a chorar.  
É-me incompreensível a ideia de paixão e a sua conjugação com a frieza e a distância: como é que podem conviver no mesmo tempo e espaço? Como é que gestos delicados e despojamento não são entendidos como entrega total? O amor está em desuso. As relações entre as pessoas não são, em nada, similares às do seu tempo. Há uma liberdade que nos é agradável e uma quebra de regras de cavalheirismo que, decerto, teria dificuldade em aprovar. Pouco importa, porque a sua “Fera” quando ataca um leitor dos dias de hoje permanece com a mesma força de sempre. Espero que isso lhe traga algum contentamento.
Passei a entender John e May de outra forma depois de ler “Autor, autor” de David Lodge, um inglês, como o senhor. Sim, peço desculpa, o senhor pediu a nacionalidade depois da Primeira Guerra Mundial como forma de solidariedade para com os Aliados. Ao mesmo tempo, acredito que ser norte-americano não estivesse de acordo com a sua natureza. Não sei porque lhe escrevo isto, se me engano, peço desculpa. O livro de Lodge é-lhe dedicado. O senhor, tão discreto e sedento da sua privacidade, não gostaria da biografia ficcionada que este escritor imaginou, partindo apenas do pouco que se sabe. O livro começa com duas epígrafes, uma delas sua, retirada do livro “Middle Years” e reza assim: “Trabalhamos no escuro – fazemos o que podemos – damos o que temos. A nossa dúvida é a nossa paixão e a nossa paixão é o nosso trabalho. O resto é a loucura da arte”. Fui à procura deste livro e, como aconteceu com os restantes, devorei-o palavra por palavra. É um texto que podia, de certa forma, ter sido escrito ontem. Leio qualquer obra assinada por si como se tivesse sido escrito para mim, lamento a ousadia. Ao mesmo tempo, percebi que a sua devoção à Literatura e o seu temor pelas questões financeiras - sempre difíceis, sempre actuais - o afastou de uma vida em pleno.
 Com o livro de David Lodge aprendi muito e comecei a vê-lo, a si, caro James, como outra personagem, se quiser mais próximo de John Marcher. Não fiquei desapontada, não se preocupe. Apenas entendi melhor a sua forma de estar. O alheamento face às coisas da vida, as coisas comuns. Descobri May Bartram em Constance Fenimore Woolson. Não se ofenda. Não o culpabilizo pela morte de Constance, mas julgo que só a sua amizade o poderia ter levado a escrever a “Fera”. É um símbolo, uma metáfora da sua relação com Constance, não é? Escusa de responder. Não sou a primeira a especular sobre a vossa amizade, não serei a última.
Ao contrário do que antevia, o senhor é estudado e lido à exaustão. O que não sucedeu então, vive-se agora.  

Jorge Luís Borges, um escritor que não teve ocasião de ler, compilou uma colecção de literatura fantástica e dedicou um volume inteiro à sua obra. Chamou-lhe, como um dos seus contos, “Os Amigos dos Amigos”. No prefácio desse volume, Borges considera-o, caro James, tão grande quanto Kafka, Kipling ou Tolstoi. Diria que, no mínimo, há um conforto neste sucesso póstumo porque a forma única de observação da sociedade, os enredos que congeminou e toda a sua arte, a sua paixão, deixam eco na história da Literatura.
Na minha primeira viagem a Veneza procurei a casa que Constance alugou, os cafés que frequentaram, visitei a Academia e os Ticianos. Pensei muito em si. Sei o quanto gostava de Itália. Compreendo agora como fugiu a uma viagem para não se confrontar com a sua amiga. Tenho procurado as obras dela, especialmente “Anne” de 1880, mas sem qualquer sucesso. Talvez não tenha pesquisado com o afinco devido. Confesso-lhe a minha imensa curiosidade. Não o acuso de inveja, já que ela teve algum êxito e vendas significativas numa época em que o senhor sofreu diferentes golpes terríveis. Não lhe escrevo para defender Constance. Contudo, depois de entender a relação que mantiveram ao longo dos anos, o facto de nenhum dos dois ter casado, e do senhor ter queimado a correspondência que trocou com ela, obrigando-a ao mesmo gesto, acredito que a “Fera” possa ter outro significado. Quer isto dizer que o senhor foi incapaz de amar? A paixão que o tomou foi a da Literatura e por ela abdicou de tudo o mais. Estou certa? Mais uma vez, não precisa de me responder.

Aguça a minha curiosidade o facto de saber que se encarregou a tempo de fazer desaparecer provas e pistas sobre a sua vida, a sua intimidade. Receava o quê? O escrutínio público e a devassa que tanto afectaram o seu contemporâneo e suposto rival, Oscar Wilde? Duvido. Estou convicta de que a sua personalidade assentava numa ideia de representação ou, se preferir, de efabulação da realidade, sem se confundir com as suas personagens, resguardando-se numa imagem discreta, elegante, sem ser sinuosa. Faz-me lembrar uma lição de outros tempos em que era pequenina: disse-me, então, o meu tio-avô, seu devoto, que nunca temos a percepção do que somos porque só nos vemos ao espelho. Só os outros é que nos vêem como somos, vêem as nossas acções, os nossos gestos, percebem a nossa linguagem corporal antes de nós. São os nossos olhos. A esta luz, pergunto-me se o senhor não quereria o sucesso literário, o reconhecimento público, o respectivo encaixe financeiro e ainda, e sempre, uma imagem de algum mistério. Ficaram famosas as suas queimadas, milhares de documentos que hoje fariam com que a sua história fosse possível de percorrer. Estamos no fio de arame, sem rede, no domínio da especulação, até certo ponto. É pena, garanto-lhe.
Não se preocupou com a efemeridade da sua obra e - deixe-me dizer-lhe - fez mal. Restam-nos os vinte romances que escreveu, cento e doze contos, doze peças de teatro e, ainda, alguns artigos de crítica literária. É pouco, terá de concordar.  Por outro lado, a sua aposta alta na Literatura rendeu. Antes de morrer, sem condições de tal cerimónia, foi-lhe entregue a Medalha de Ordem de Mérito de Sua Majestade. Estou certa de que se a lucidez permitisse, o gesto seria uma espécie de conclusão e conquista final. O senhor, caro James, não passou impune neste mundo. Quem sabe se passará nesse onde agora está. Como me disse uma vez Agustina Bessa-Luís, uma escritora portuguesa que acredita ser mais conhecida do que lida, daqui lhe mando um aceno de cabeça e lhe agradeço a gentileza de ter escrito para mim. Egoisticamente é o que me ocorre. Espero que não me leve a mal.
Cumprimentos.

Do princípio ao fim (12)

José António Abreu, 04.10.16

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Na maior parte das vezes, um bom final é também um início, ainda que de algo desconhecido. Mesmo quando apresentam a morte da personagem principal – ou até uma catástrofe global, ao jeito de muita ficção científica da década de 1950 -, poucos finais serão dignos de ficar na memória se da personagem não subsistir um rasto e da história uma expectativa para o futuro.

Don DeLillo terminou o seu mais longo romance – Submundo – com uma única palavra: «Paz». Um desejo, mas também uma pausa após um caleidoscópio de mil páginas acerca de uns Estados Unidos sob a ameaça nuclear. Cormac McCarthy é mais negro. Em A Estrada, de 2006, a ameaça (qualquer que fosse; McCarthy não especifica e também não é preciso) concretizou-se. Acompanhamos um adulto e uma criança, pai e filho, através de um mundo de cinzas, regressado à barbárie. Por causa do filho, o pai tenta adiar a morte. Mas as únicas personagens de McCarthy que a morte nunca parece atingir são as que personificam o mal (ou talvez seja mais exacto escrever a ausência de valores éticos, ou ainda as forças primodiais - e amorais - que ligam os humanos aos seus antepassados selvagens e aos restantes seres vivos). Personagens como o juiz Holden de Meridiano de Sangue e o assassino Anton Chigurh de Este País não é para Velhos. Em A Estrada, e não obstante os actos de crueldade que vai praticando, o pai é demasiado humano para sobreviver. O filho humaniza-o. Morre, pois. E é somente após a morte do adulto - ameaçador com a sua arma de fogo e o seu desespero - que, para surpresa e alívio do leitor, um grupo de pessoas se aproxima e toma conta do miúdo. Abre-se uma fresta de esperança. A humanidade ainda tem uma hipótese, num futuro que nunca será igual ao passado. Será outra coisa, outra realidade a extrair dos mistérios da vida, que em muito ultrapassam o ser humano - como o último parágrafo deixa evidente:

 

Outrora existiam trutas nos regatos das montanhas. Víamo-las paradas na corrente cor de âmbar, com a fímbria branca das barbatanas a ondular mansamente na água veloz. Cheiravam a musgo quando as segurávamos na mão. Luzidias e musculosas e a contorcerem-se. No dorso tinham desenhos vermiformes que eram mapas do mundo no seu devir. Mapas e labirintos. De uma coisa que não podia ser recriada. Cuja harmonia não podia ser reposta. Nos fundos vales onde as trutas viviam, todas as coisas eram mais antigas do que o homem e nelas ressoava um mistério.

Da edição da Relógio D’Água (2007), com tradução de Paulo Faria.

 

Na versão original:

Once there were brook trout in the streams in the mountains. You could see them standing in the amber current where the white edges of their fins wimpled softly in the flow. They smelled of moss in your hand. Polished and muscular and torsional. On their backs were vermiculate patterns that were maps of the world in its becoming. Maps and mazes. Of a thing which could not be put back. Not be made right again. In the deep glens where they lived all things were older than man and they hummed of mystery.

Do princípio ao fim (11)

Pedro Correia, 03.10.16

«Assim, na América, quando o sol se põe e me sento no velho molhe desmoronado do rio a contemplar os céus infindáveis por cima de New Jersey e tenho a percepção de toda aquela terra bruta que rola num único bojo enorme e incrível até à Costa Oeste, e toda aquela estrada a avançar, todas as pessoas que sonham na sua imensidão, e sei que a esta hora, no Iowa, as crianças devem estar a chorar na terra em que deixam as crianças chorar, e esta noite as estrelas serão visíveis, e não sabem que Deus é o Urso Pooh? a estrela vespertina deve estar a curvar-se e a irradiar a sua pálida claridade cintilante sobre a pradaria, o que acontece mesmo antes do cair da noite completa que abençoa a terra, escurece todos os rios, dá a forma de concha aos cumes e envolve a derradeira margem, e ninguém, ninguém sabe o que vai suceder seja a quem for, além dos trágicos farrapos do envelhecer, penso em Dean Moriarty, penso até no Velho Dean Moriarty, o pai que não chegámos a encontrar, penso em Dean Moriarty.»

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Há quem não goste. Eu, pelo contrário, gosto muito. Li-o na década de 90 (edição Relógio d' Água, com tradução de Armanda Rodrigues e Margarida Vale de Gato), tempo de múltiplas mudanças, e senti-me transportado em milhares de quilómetros de asfalto e alcatrão reflectidos naqueles frenéticos parágrafos de Jack Kerouac e da sua escrita automática. Produzida por um viajante que nunca teve carta de condução.

Digressão sem freio pela América profunda, jornada iniciática ao fim de tantas noites coroadas em nebulosas madrugadas, banho lustral de travessias e transgressões imitado até à náusea por batalhões de escritores sem talento, On the Road é um romance singular, que tem como personagens um bando de nómadas à deriva, peregrinos sem rota nem mapa, desenraizados numa era em convulsão, geração beat ao som das batidas do jazz, os primeiros jovens da idade atómica.

Apostado em escrever apenas sobre aquilo que vira com os seus olhos, Kerouac - que até aos seis anos só falou francês com os pais, imigrantes do Quebeque em Massachusetts - é o herdeiro do melhor realismo norte-americano: aquele que se faz à estrada e transforma a rudeza do quotidiano em material romanesco de excepcional alcance, despido de artifícios e literatice. Material que subsiste como reflexo de um tempo e um espaço irrepetíveis. 

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Lá vamos enquanto leitores Pela Estrada Fora, à boleia com Sal Paradise e Dean Moriarty, epígonos do autor e do poeta seu amigo Neal Cassady, parceiros de estúrdia e boémia naqueles anos pós-Hiroxima em que os sonhos pareciam condenados a sucumbir de morte prematura e o futuro se esgotava no primeiro sopro da manhã seguinte. Todo o romance decorre sob este signo da urgência, propiciado por um mundo acabado de sepultar e outro que tardava em emergir.

Prosa alternando rectas e curvas - tal como uma estrada rasgada sobre o mundo, tal como a estrada da vida de qualquer de nós. E que culmina num longo parágrafo crepuscular que é um dos melhores desfechos que conheço da novelística universal - melancólico e assombroso poema em prosa.

Ei-lo na versão original, que vale a pena ler uma vez e outra:

 

«So in America when the sun goes down and I sit on the old broken-down river pier watching the long, long skies over New Jersey and sense all that raw land that rolls in one unbelievable huge bulge over to the West Coast, and all that road going, all the people dreaming in the immensity of it, and in Iowa I know by now the children must be crying in the land where they let the children cry, and tonight the stars'll be out, and don't you know that God is Pooh Bear? the evening star must be drooping and shedding her sparkler dims on the prairie, which is just before the coming of complete night that blesses the earth, darkens all rivers, cups the peaks and folds the final shore in, and nobody, nobody knows what's going to happen to anybody besides the forlorn rags of growing old, I think of Dean Moriarty, I even think of Old Dean Moriarty the father we never found, I think of Dean Moriarty.»

Do Princípio ao Fim (10)

Francisca Prieto, 02.10.16

“No dia em que iam matá-lo, Santiago Nasar levantou-se às 5.30 da manhã para esperar o barco em que chegava o bispo.”

 

É assim que abre “Crónica de Uma Morte Anunciada” de Gabriel Garcia Márquez, o primeiro livro para adultos que li, por altura dos meus catorze anos.

Não havia margem para dúvidas. Quer o título do livro, quer o primeiro parágrafo da história, asseguravam a qualquer leitor, logo à partida, que desse lá por onde desse, Santiago Nasar haveria de entregar a alma ao criador, mais capítulo, menos capítulo.

Tratava-se de um crime de honra. Angela Vicario, uma rapariga de parcos recursos, depois de uma boda celebrada a preceito, tinha sido devolvida à família pelo marido assim que este percebeu que ela já não se encontrava intacta.

Obrigaram-na a confessar o nome do prevaricador que lhe havia maculado a honra – Santiago Nasar. E é assim que os seus irmãos gémeos, munidos de armas brancas, vão no encalço de Santiago para lhe limparem o sebo.

Só que os gémeos, sabendo o que tinham que fazer, simpatizavam com Santiago e não tinham vontade nenhuma de cumprir a missão, pelo que tentaram por todos os meios, que o confronto não se viesse a realizar.

E vamos assim avançando pelas páginas, intercalando tempos de narrativa, ora assistindo ao resultado do julgamento dos gémeos, ora acompanhando o percurso Santiago no dia da tragédia. Só que, por qualquer razão misteriosa e contra todas as evidências, convivemos até ao último parágrafo da história com a esperança de que o fatídico destino de Santiago Nasar não se venha a cumprir, mesmo quando damos por ele já de tripas de fora.

 

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Do princípio ao fim (9)

José Navarro de Andrade, 01.10.16

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Sabem muito bem os compositores que terminar uma peça é mais difícil do que começá-la. Se o início da música pode ocorrer ao cérebro, por via daquilo a que se chama inspiração, com uma inesperada sequência de acordes e uma interessante, mesmo que débil, linha melódica, já a conclusão tem que fazer sentido. Ora o sentido é transpiração, não é inspiração.
Há tantos romances que se perdem no fim, ou porque foram para lá do que deviam, ou porque deram uma guinada insensata, ou porque se acobardaram a fechar a narrativa, deixando-a falaciosamente em aberto. Outros há, porém, que colocam o apogeu no final, que é uma forma eficaz, e por vezes brilhante, de fugir ao som sepulcral da porta que fecha e a esse acto de suprema confiança no leitor que é o de entregar ao seu critério os dilemas que o romance foi construindo e resolvendo.
E porque ao leitor cabe prosseguir o que ficou escrito da maneira que entender, os melhores finais são aqueles que não deixam o livro por terminar e libertam o leitor dele.


Talvez haja poucos remates tão melancólicos como o de “The Long Goodbye” (1953) de Raymond Chandler (1888-1959):
“He turned and walked across the floor and out. I watched the door close. I listened to his steps going away down the imitation marble corridor. After a while they got faint, then they got silent. I kept on listening anyway. What for? Did I want him to stop suddenly and turn and come back and talk me out of the way I felt? Well, he didn't. That was the last I saw of him.
I never saw any of them again – except the cops. No way has yet been invented to say goodbye to them.”


Quem fica assim, fica só na companhia de quem o lê. E quando logo a seguir se fechar o livro resta-lhe a esperança, vaga e contingente, de que a sua memória deixe algum rasto durante algum tempo.