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Delito de Opinião

Do meu baú (2)

Pedro Correia, 29.06.20

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As crises, à partida, são péssimas. Mas em jornalismo são óptimas: ficam sempre bem em qualquer manchete. Sobretudo quando surgem com a vaga avassaladora da que foi desencadeada pelo colapso do centenário Lehman Brothers, o quarto maior banco de investimento dos EUA. Uma queda que provocou um abalo à escala planetária, bem revelador da fragilidade dos circuitos económicos do mundo contemporâneo.

No dia seguinte, 16 de Setembro de 2008, a manchete do DN dizia quase tudo em apenas cinco palavras: «A pior crise desde 1929». Foi preciso aguardar oito décadas - e haver uma guerra mundial de permeio - para ocorrer uma derrocada financeira comparável à da tristemente célebre queda da Bolsa novaiorquina que mergulhou os EUA numa década de depressão. 

Consequências para o nosso país? Não havia problema, apressou-se a garantir a nossa suprema autoridade financeira, então gerida pelo inefável Vítor Constâncio: «Em Portugal, a exposição ao Lehman não é significativa, segundo o Banco de Portugal», lia-se na última frase do texto que acompanhava esta manchete.

Lá dentro, na página 7, outra declaração igualmente tranquilizadora: «Estamos a avaliar, mas a nossa exposição ao Lehman Brothers é absolutamente módica, muito pouco expressiva.» De um tal Ricardo Salgado, presidente do Banco Espírito Santo, esse admirável modelo de sagacidade e lisura.

Do meu baú (1)

Pedro Correia, 28.06.20

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Se há manchetes que me fazem sorrir é esta. «Túnel debaxo do Tejo entre Beato e Montijo», titulava o Diário de Notícias a 2 de Agosto de 2007. Prevendo já a chamada "terceira travessia" em Lisboa do maior rio português, com base no estudo de avaliação do empreendimento encomendado pela Confederação da Indústria Portuguesa. Segundo esta notícia - publicada vai fazer 13 anos - a travessia, «através de túnel ou ponte», iria situar-se no eixo Beato/Montijo, «em alternativa à [suposta] travessia entre Chelas e Barreiro, permitindo oferecer melhores acessos, sobretudo ferroviários, a um futuro aeroporto naquele local». O estudo resultou da encomenda a um «consultor internacional» cuja entidade não era revelada. 

O primeiro-ministro, à época, era José Sócrates. Que também figurava nesta capa do jornal, em notícia com menor destaque, sob o título «Curso de Sócrates livre de ilegalidades»: a Procuradoria-Geral da República acabara de arquivar um inquérito à licenciatura do chefe do Governo, concluindo que «não houve tratamento de favor». 

Em suas importantes saúdes

Pedro Correia, 25.05.20

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«O primeiro-ministro está na toalha com a mulher aqui na praia da Princesa, na Costa da Caparica. Decidiu vir apanhar banhos de sol, tal como o Presidente Marcelo fez hoje de manhã e ontem à hora de almoço, e dirigiu-se aqui à margem sul do Tejo, na praia da Princesa, na Costa da Caparica, para aproveitar a manhã de praia até porque o tempo convida a que as pessoas venham. Também numa forma de dar o exemplo aos portugueses. Isto depois de o Governo ter autorizado os portugueses a irem à praia e também a mergulhar, mesmo que a época balnear só comece no próximo dia 6 de Junho.»

Reportagem da TVI, ontem, à hora do almoço

 

«O Presidente da República voltou aqui, à baía de Cascais, por volta do meio-dia e meia. Ele veio de máscara, sozinho, à semelhança do que tinha feito ontem. Marcelo Rebelo de Sousa colocou-se no areal, deixou as suas coisas e dirigiu-se para a linha de água com a toalha e sempre com a máscara posta. O Presidente referiu que é importante que as pessoas estão a manter o distanciamento social na praia. Marcelo Rebelo de Sousa só tirou a máscara no momento imediatamente antes de entrar na água, depois aproveitou para nadar.»

Reportagem da TVI, ontem, à hora do almoço

 

«Pelo segundo dia consecutivo, o Presidente da República veio até aqui, à praia da Conceição, em Cascais, a praia onde habitualmente costuma dar aqueles mergulhos ao fim de semana, e este fim de semana de calor em Portugal não foi excepção. Para o Presidente da República, é preciso também retomar um pouco esta normalidade, agora com redobrados cuidados. E assim fez também Marcelo Rebelo de Sousa: depois de ter estado alguns minutos a dar as suas braçadas no mar, ele saiu e imediatamente, no momento em que saiu, pôs a máscara.»

Reportagem da SIC, ontem, à hora do almoço

 

«Suas Majestades e Altezas passam sem novidade em suas importantes saúdes.»

Diário de Notícias, na primeira edição (29 de Dezembro de 1864)

As coisas mudam

Pedro Correia, 30.10.19

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1

Revi-me há dias nesta imagem de arquivo no Jornal da Noite da SIC. Estava sentado na bancada de imprensa da Assembleia da República com os meus colegas Nuno Simas e Paula Sá - os três em representação do Diário de Notícias. No primeiro dia da legislatura 1999/2002, há 20 anos exactos.

À nossa frente, dois deputados caloiros: Francisco Louçã e Luís Fazenda. Acabavam de ser eleitos e recusaram sentar-se numa segunda ou terceira fila, como figuras adjacentes da bancada parlamentar comunista. O PCP não queria dar palco político e mediático àquele jovem partido que prometia crescer à custa de fatias cada vez mais dilatadas do seu eleitorado.

Louçã e Fazenda teimaram em permanecer de pé, recusando os postos secundários que lhes haviam sido destinados por consenso dos imobilistas que dominavam no Parlamento - mesmo os da autoproclamada esquerda, tão avessos como os outros à mudança. E fizeram muito bem. Viriam a ter os lugares que reivindicavam: um na primeira fila, o outro atrás dele. Em lugar nobre do hemiciclo e perto dos focos mediáticos. Não podiam, aliás, estar mais perto: a bancada da imprensa é logo ali.

 

2

Revejo com certa nostalgia esta foto do meu tempo de repórter parlamentar, onde surge Lino de Carvalho, qualificado deputado comunista, tão prematuramente desaparecido. Parece que foi anteontem e já nos transporta ao século passado. Estreantes no hemiciclo, Louçã e Fazenda vestiam a rigor, ambos com fatinho de deputado: a única nota de rebeldia, que na altura gerou imenso clamor, foi a ausência da gravata - prenunciando o que o Syriza, na Grécia, fez 16 anos mais tarde e o deputado da Iniciativa Liberal faz hoje em São Bento, duas décadas volvidas.

Basta esta imagem fixada no tempo para se perceber como os padrões de vestuário mudaram entre as vetustas paredes do Palácio de São Bento. Falta pouco para vermos deputados de chinelos. Alguns equipam-se mais a rigor quando vão para a esplanada do que quando chegam ao Parlamento. Embora exijam - estou certo disso - code dress num posto clínico, numa esquadra, num tribunal ou até num daqueles restaurantes caros e péssimos que costumam frequentar.

O modo como nos vestimos diz muito do nosso respeito pela casa que visitamos - respeito suplementar tratando-se de uma instituição angular da democracia portuguesa. No caso dos jornalistas, acresce que - como um dia disse a um colega mais jovem, quando o vi em São Bento de sandálias e calções - não estamos ali em representação própria, mas do órgão de informação em que trabalhamos. Razão acrescida para salvaguardar a imagem desse título jornalístico: naquele momento, naquele local, ele é personificado em nós.

Fala-se muito na degradação dos trabalhos parlamentares, evidenciada pela fraca qualidade média dos deputados. Essa degradação começa nos padrões de vestuário. Anda tudo ligado, como dizia o outro.

 

3

Esta imagem reconduz-me também a um episódio da vida jornalística que demonstra como a inércia é uma força muito poderosa nas redacções dos jornais. Quem assumia então responsabilidades na secção política do DN entendeu distribuir equipas de trabalho para cobrir a campanha eleitoral de 1999 em obediência ao cânone tradicional: PS, PSD, CDS e PCP.

Quando perguntei, numa reunião, quem iria acompanhar o BE, obtive uma resposta burocrática: «É irrelevante. Seguimos pela Lusa.» Contestei, argumentando que o recém-surgido Bloco iria ser a novidade daquelas legislativas. E lá voltou o contraponto burocrático: «Nem pensar. É um epifenómeno, mero folclore eleitoral.»

Insisti. Como o Parlamento estava fechado, ofereci-me como voluntário para cobrir as acções de campanha do BE. E lá andei na rua, acompanhando a ainda incipiente caravana bloquista, cada vez mais convicto de que a razão estava do meu lado. Como se viu. O novo partido não se limitou a eleger um solitário representante, como noutros tempos sucedeu com a UDP ou o efémero Partido da Solidariedade Nacional de que já ninguém se lembra, mas dois deputados - requisito mínimo para constituir grupo parlamentar. E aquela legislatura revelou-se crucial para o seu crescimento.

Foi, aliás, uma legislatura histórica desde o primeiro dia - a que decorreu sob o signo 115-115, quando o número de deputados apoiantes do Governo se equivalia ao dos representantes da oposição todos somados, o que acabou por ditar o seu fim prematuro.

 

4

Lembro este episódio e concluo que nestes últimos 20 anos, nas redacções jornalísticas, só se mudou para pior. Desde logo pela flagrante falta de meios em comparação com os que existiam em 1999.

Voltaram a imperar as rotinas burocráticas, voltou a evidenciar-se a falta de rasgo na cobertura de campanhas eleitorais, voltou a apostar-se só no que já se conhecia. Quase nenhum meio informativo acompanhou em pormenor as acções de campanha das três forças políticas emergentes das legislativas de 6 de Outubro: Chega, Iniciativa Liberal e Livre. Imagino que alguns repórteres terão ouvido, nas respectivas redacções, os mesmos argumentos que eu ouvi há duas décadas das chefias de turno: são epifenómenos, não chegarão a lugar algum.

E no entanto as coisas mudam. Basta por vezes vermos uma foto antiga para percebermos isto.

Truques não privados - Mau serviço SAPO e DN

João André, 05.09.18

A nova Regulação Geral de Protecção de Dados (tradução pessoal) tem vindo a obrigar os diversos sites a pedir aos visitantes para aceitar ou gerir a política de uso de cookies. Na maioria dos casos, os sites optam por tratar os cookies de publicidade programática em bloco, com a opção de os tratar de forma individual. Isto é, os visitantes podem optar por aceitar ou rejeitar todos os cookies deste tipo ou então ir de empresa em empresa e permitir ou rejeitar o uso destes cookies. Para mais, a situação padrão mais comuns é ter estes cookies desactivados, sendo possível simplesmente reactivá-los com um clique do rato no botão oferecido para isso.

 

Não é o que fazem alguns sites portugueses. O SAPO (onde este blogue está alojado) e o Diário de Notícias (provavelmente outros também) preferem eliminar a opção de aceitar ou rejeitar em bloco os cookies de terceiros e, além disso, a opção padrão é tê-los activos. Dado que a lista, completamente exaustiva, não só é longa como obriga a muito tempo para ser vista de forma individual, o resultado é que os visitantes acabam por optar por manter estes cookies (ver a imagem abaixo).

 

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Isto é simplesmente uma vergonha e gozar com a nova lei. É a situção em que os administradores decidiram colocar o máximo de entraves para obrigar as pessoas a aceitar os cookies e a prescindir da sua privacidade. Podemos concrodar ou não com a lei e as formas de a implementar, mas a atitude do SAPO, do DN e outros é simplesmente uma falta de respeito.

"Novo" DN

Alexandre Guerra, 01.07.18

Por mais voltas que Ferreira Fernandes dê ao texto, e por melhor prosa que utilize para embrulhar este "novo" DN semanal, a verdade é que pouco mais é do que uma versão grande formato do agora defunto Diário. A mesma abordagem editorial, os colunistas desinteressantes de sempre e os suplementos andam próximo do sofrível (um deles chega mesmo a ser quase um catálogo de compras). Nada de novo, portanto, nas temáticas e na forma de abordá-las. Quando seria expectável que se apresentasse um produto de reflexão, que fosse ao encontro das novas tendências, àquilo que fervilha na sociedade, no fundo, que fosse o reflexo dos tempos e das suas correntes de pensamento e culturais, temos um jornal inócuo, que se arrasta na agonia. Para quem já viveu essa situação dentro de um jornal, sabe que nunca há volta a dar. É apenas uma questão de tempo até as rotativas pararem.  

 

Há umas semanas, alguém dizia que, no âmbito deste novo projecto, estaria a ser preparada uma espécie de New Yorker como suplemento, algo que seria muito bem vindo e que, naturalmente, seria uma iniciativa arrojada no panorama miserável da imprensa em Portugal e que poderia ter um nicho de mercado interessante. Na altura, essa ideia pareceu ao autor destas linhas demasiado ambiciosa, sobretudo se tivermos em consideração que, para tal, seria preciso que os donos dos grupos de comunicação social no nosso país se regessem por um novo paradigma, que é o de olhar para estas transformações dos jornais, não por necessidade financeira e, como tal, guiados pelo desinvestimento, mas, antes, como um upgrade na forma de fazer jornalismo, que, obviamente, pressupõe investimento e visão. Foi aliás o que fizeram jornais como o New York Times, El País, Washington Post, FT ou The Guardian, antecipando as mudanças tencológicas e comunicacionais, e introduzindo mais valias na forma de fazer jornalismo. E só assim, com conteúdos e formatos de qualidade, as pessoas estarão dispostas a pagar por notícias. Com cosméticas do refugo impresso e online (não basta dizer que é "premium", tem mesmo que o ser) já não se vai lá, e este aviso não é só para o DN, dirige-se também a outros jornais, impressos e digitais.

 

Quanto ao "novo" DN, espera-se que consiga fazer a sua revolução no digital, já que no papel, dificilmente conseguirá chegar às 25 mil vendas, como é seu objectivo. Seguramente, não com este produto e por mais alusões estilísticas que Ferreira Fernandes faça às suas memórias e aos tempos áureos do jornalismo. Porque não é isso que o trará de volta.

Os jornais também se abatem.

Luís Menezes Leitão, 27.05.18
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Chega agora a notícia de que o Diário de Notícias vai passar a semanário (importam-se de repetir?) mantendo apenas uma edição digital. Não é nada que me espante. Já assisti à sucessiva queda de jornais de referência, como a República, O Século, o Diário de Lisboa, o Diário Popular e até mesmo a títulos que marcaram uma época, como O Independente. O caso do Diário de Notícias era, porém, especial pois era um jornal com uma aceitação generalizada e uma enorme audiência. Lembro-me perfeitamente de ter sido o jornal que chegou a nossa casa a noticiar em primeira mão o 25 de Abril, tendo mesmo contactado o General Spínola, que não tinha achado oportuno dizer nada. O Diário de Notícias estava sempre na linha da frente das notícias, tendo sido o único jornal da manhã que noticiou a acção militar.

 

O Diário de Notícias era, porém, muito permeável ao poder político e os militares quiseram logo avançar para o seu controlo, sob a liderança de José Saramago, que não hesitou em demitir os principais jornalistas e transformar o jornal num pasquim de apoio a Vasco Gonçalves. Mas o Diário de Notícias rapidamente recuperaria desses tristes tempos, para agrado dos seus leitores. Nessa época o Diário de Notícias era um jornal enorme, tendo que ser dobrado e estendido no chão para o podermos ler. Mas nunca o deixávamos de fazer, seguindo avidamente as notícias que diariamente surgiam, sendo que a sua credibilidade o tornava um jornal de referência.

Resultado de imagem para Diário de Notícias Fernando LIma

Esses tempos passaram e o jornal foi-se reduzindo, não apenas em formato, mas também em referência e credibilidade. Nos últimos tempos transformou-se num jornal especialista em fazer fretes ao partido socialista, tendo ficado célebre aquela primeira página a negro, em que revelou correspondência particular relativa a fontes de outro jornal. Desde então nunca mais comprei o Diário de Notícias, pois não tenho paciência para adquirir um jornal que se transformou numa sombra do que era. Agora pelos vistos vão dar cabo dele de vez. As instituições não são eternas e a história é implacável. Mas é pena que o Diário de Notícias tenha sido destruído desta forma por quem devia ter cuidado de uma instituição centenária. Está visto que os jornais também se abatem.

Morde, Paulinho, morde

Rui Rocha, 06.05.17

- Bom dia, Doutor Proença.
- Bom dia. Com quem estou a falar?
- Sou o Paulo Baldaia, Doutor.
- ...
- O Director do DN...
- ...
- Sou o Paulo, Doutor. Do DN. O Paulinho...
- Ah, o Paulinho! Por que é que não disseste logo? Um dia destes tenho de gravar o teu número... Então diz lá, ó Paulinho...
- Era para ver se o senhor Doutor me deixava fazer uma noticiazinha de primeira página com a situação da candidatura do Rui Moreira e do PS no Porto...
- Tás maluco, ó Paulinho? Então mandei-te despedir o Alberto Gonçalves para agora... Vais lá chamar uma bronca dessas à primeira página...
- Não foi um despedimento, Doutor. Não era jornalista e...
- Paulinho!
- Desculpe, Doutor. Mas não ficará mal o DN ser o único a não dar destaque de primeira página ao assunto? Já quando foi dos sms do Centeno passámos uma vergonha tão grande...
- Pronto, ó Paulinho, fazemos assim: não vai para primeira página mas escreves tu um artigo a cascar no PS Porto para despistar.
- Combinado, Doutor. Mas então vou mesmo morder as canelas dos gajos.
- Morde, Paulinho, morde. Assim como assim já ninguém lê as merdas que escreves.

O pequenino lápis azul

Rui Rocha, 04.01.17

O espírito do nobelista vivia esgotadíssimo na Casa dos Bicos onde, como o próprio nome indica, a Pilar não lhe dava descanso. Decidiu, por isso, escapulir-se e refugiar-se nas profundezas mais recônditas do Convento de Mafra, junto mesmo às condutas do saneamento. Esperava, finalmente, encontrar um pouco de paz, ponto E encontrou-a. Encontrou-a, ponto e vírgula Encontrou-a até ao dia em que ouviu ao longe a voz aguda, estridente, de Pilar: "Joselito, iuuuuuuh! Sé qué estás aquí Joselito, iuuuuuh!". O nobelista, em pânico, agarrou-se aos próprios carrilhões, lançou-se no vazio e, esta é uma vantagem dos espíritos, não partiu as pernas ao aterrar porque, como é sabido, os espíritos não têm pernas. E, com essas mesmas pernas que sendo espírito não tinha, deu às de vila-diogo, ala que é cardume, enquanto ouvia ainda na estridência abafada do vento: "Joselito, iuuuuuh!". Os espíritos não têm pernas mas têm memória. E humanos que foram apesar de em essência já não serem, acabam sempre por procurar a natureza que melhor os define. O nobelista correu, portanto, esbaforido e sem pernas, para o DN. E desta vez não quis cá riscos que a estridência daquele "Joselito iuuuuh" ainda lhe fere aqui e agora o exacto sítio onde antes tinha os ouvidos. Nem prateleiras, nem arrecadações, nem condutas de saneamento. Rejuvenescido pelas memórias do DN, já cavalo à solta, longa crina esvoaçante, dentes afiados, com as veias a explodir como se as tivesse, puro-sangue, escolheu a vítima e entrou-lhe no corpo, ali exactamente onde devia estar e lhe faltava a coluna vertebral. O nobelista vive agora, espírito, no corpo de Paulo Baldaia. Faltam-lhe os carrilhões que tinha em Mafra, mas dispõe  de um pequenino lápis azul que o Menino Jesus deu ao Baldaia para ele brincar. Foi assim, ponto final

Aventuras no Diário de Notícias

Patrícia Reis, 15.06.13

Começou na sexta-feira da semana passada a colecção Divas no Diário de Notícias. Além de um disco, de um texto do Rui Vieira Nery, escrevo uma ficção. Foi uma aventura muito divertida e agradeço a produção à Bela e o Monstro, sempre imparáveis. Aqui vos deixo o conto sobre a Callas, esta semana já saiu o volume sobre a Ella Fitzgerald.

 

Eu não sou a minha voz

Dizem que desfaleci.

Gosto do verbo: desfalecer.

Parece que a traição do corpo não é apenas na voz ou na cabeça. A traição come-me por inteiro. Bellini entenderia. Estou certa de que teria a sua compreensão. Quando Norma estreou não foi o sucesso que ele sonhara, é o que diz a história. E o segundo acto... matar os filhos é sempre difícil. Na minha cabeça ainda me oiço cantar

 

(NORMA)
Dormono entrambi,
Non vedran la mano
Che li percuote.
Non pentirti, o core;
Viver non ponno. Qui supplizio,
E in Roma obbrobrio avrian,
Peggior supplizio assai;
Schiavi d'una matrigna.
Ah! No! Giammai!

(Sorge risoluta.)

Muoiano, sì.
Non posso avvicinarmi.
Un gel mi prende
E in fronte mi si solleva il crin.
I figli uccido!
Teneri figli.
Essi, pur dianzi delizia mia,
Essi nel cui sorriso
Il perdono del ciel mirar credei
Ed io li svenerò?
Di che son rei?
(risoluta)
Di Pollione son figli
Ecco il delitto.
Essi per me son morti!
Muoian per lui.
E non sia pena che la sua somigli.
Feriam.

 

Não sei explicar o que levou a este desmaio. O pano que cai e o meu corpo nas tábuas do palco. Inerte. Inconsciente.

Sei - ah, sim, sei bem - que amanhã as primeiras páginas dos jornais terão o meu nome e não dirão que sou “sublime”, “extraordinária”. Não. Os jornais escreverão (neste preciso momento, um crítico qualquer deverá estar a martelar numa máquina de escrever, a escrever palavras que são tiros certeiros), com a dureza de sempre, quase como se os jornalistas fossem a Tebaldi, num exercício de inveja e competição: a Callas chegou ao fim. Como se soubessem o que é estar no fim...

As fotografias que publicam, as minhas fotografias, mostram uma mulher que não reconheço. Nada mais normal, diria a minha mãe se fosse viva. Nunca entendeu a razão que leva as pessoas a chorar. “Choram a ouvir-te cantar. Mas porquê?” Sempre o senti como um elogio máximo, uma forma de comoção única que só eu conseguia provocar nos outros. Explicar à minha mãe? Não. Recolhida em Deus e eu na música, ambas separadas por exigências divinas mais perto de uma qualquer loucura que os outros não têm.

Agora estou dentro do silêncio do quarto. Sei que todos andam pela casa, andam como fantasma, de sala em sala, vigilantes, à espera. Crêem no meu sono – nessa possibilidade -  que eu apenas finjo. E fingir é fácil. A ópera é um dos melhores palcos de fingimento. Dor e desespero. Amor e alegria. Vida e morte. Tudo se canta ali em cima, em frente ao fosso da orquestra, espreitando a plateia, ignorando o maestro por sabermos que somos aquela personagem. Gioconda? Violetta? Norma? Amina?  Qualquer uma, pouco importa.

A música começa e eu já sei que o corpo me dói, que o coração encolheu, mas tenho de me esticar, a voz precisa de ir, ainda precisa de ir. Tenho de ser aquela que é maior que as outras. Podia ter abdicado de tudo? Sim. Por amor. Ninguém entendeu. Talvez não o tenha explicado devidamente. Esperei pelo divórcio dele, esperei horas sem bondade. E depois, com o meu rosto, nas suas mãos, pouco importava o lugar de actriz, o papel decorado, a música estudada. O bater do coração era uma partitura distinta. Sim, podem dizer que é piroso. Não me importo.

E não me apetece cantar.

Não sei nada de Onassis. Não sei de mim ou da minha voz. Citam-me nos jornais, dizem que tenho um feitio difícil e que a voz, a minha voz, se perdeu por ter andado em iates e festas. Já não estou nas festas de Onassis. Está apaixonado por outra, uma mulher que foi de um presidente, uma mulher com nome francês, uma mulher que não terá, acredito, um temperamento mediterrânico.

A força de se ser pelo confronto? Está em mim. Juntou-se ao meu sangue Não como antigamente. Ele não se apaixonou por mim. O seu imenso amor, aquele que o levava a comprar jóias de um brilho assustador, não era meu. A paixão daquele homem estava apenas concentrada na minha voz. Eu cantava e ele enviava flores, flores frescas, vermelhas de desejo. E as flores eram tão inebriantes quanto o vinho que bebíamos noite dentro. Esta voz que é uma maldição. E ele pedia:

Canta, canta. Canta para mim. Só para mim.

E eu cantava e depois deixei de cantar e ele não gostou dessa falha, da decisão que não lhe foi comunicada. Não me queria apenas para si, afinal. O espanto do palco, da plateia a aplaudir em pé, num fulgor de entusiasmo que não tem medida, enchia-lhe o peito de um orgulho que era apenas exibicionismo.

Esta mulher é minha. Tenho-a. É só minha.

Quis ser só sua. Não entendi e ele tão-pouco. Talvez por isso, por ser homem e pequeno no pensamento, era impossível compreender que eu apenas queria uma casa de seda, um casulo perfeito, para um amor que seria nosso e apenas nosso. A minha voz estaria sempre a mais, por não ser minha. Onassis não percebeu. E eu não expliquei. Jacqueline não lhe cantará. Sorrirá com elegância e terá sido isso, o poder desse sorriso que um dia foi do outro, de um homem morto com um tiro inesperado. Ela refaz a sua vida com Onassis e na América não compreendem. Se conhecessem os encantos de Onassis, o espanto seria menor. Ele casa com a fama dela, a roupa dela, os colares dela, a imagem dela.

E eu? Eu continuo aqui. Canto. Posso fazer o que quiser da voz ou não fazer nada? Já se tornou famosa a frase: a minha voz não é como um elevador. Já foi. Houve momentos.... Hoje é apenas uma ínfima parte do que eu sou. Do que fui. A voz não sou eu e, se o disser alto, ninguém acredita.

Fabriquei a Callas. Queria ser a diva – sou a diva – e quando quis deixar de o ser, traíram-me. Abandonada por ter deixado de cantar, por querer amar em vez de cantar. Não posso compreender, mas há muito tempo que deixei de me interrogar sobre as coisas. Nem todos os porquês têm correspondência, nem todos possuem fatalmente um porque.

O médico daria tudo para que eu não fizesse perguntas. Mostra-se preocupado. Quer que eu coma umas coisas, que não beba, que descanse. Sobretudo isso: descansar. Não faz ideia da impossibilidade prática do exercício. Quando se é como eu é como ser múltipla, não há descanso. Cansei-me dos vários médicos e eles cansam-se de mim. Talvez Vittorio vá ficando por devoção. Já não sou a sua doente, sou a sua “casta diva”, a sua criatura frágil. A maquilhagem estragada com lágrimas não o impressiona e eu sei que posso ser - e sou - feia, tão feia como todos os fantasmas das trevas. Os meus ataques de fúria deixam-no calmo. Parece apreciar a minha fúria. De uma forma estranha espera que eu rebente para depois me consolar. Como se eu fosse uma criança birrenta e, quem sabe?, talvez eu seja mesmo isso. O talento não traz felicidade. Vittorio diz que as mulheres com mau feitio duram mais tempo, a vida preserva-se na raiva. Acredito nele uns dias, noutros faço por criar outra realidade.

Já morri no palco a cantar tantas vezes. A fazer de tuberculosa, a fazer de amante traída, a fazer o que pedem para fazer: ser outra, dar voz a outra. Tullio Serafin compreenderia? Dizem que foi o meu mentor. Não desminto. Há coisas sobre as quais não vale a pena falar. Onassis ensinou-me isso? Não, todos os libretos me ensinaram que criar um mito é escolher a verdade que se quer contar. Assim faço. Por isso, não tenho voz e não sou a minha voz e não sendo, deixo de existir. Sei que não faz sentido. Nos dias que correm poucas coisas fazem sentido. Peguei na ansiedade e tomo o que posso, os comprimidos nem os sinto, escorregam com facilidade se acompanhados de vinho. Tomo quando quero e nas quantidades que me servem, aquelas que eu sei que posso aguentar, e depois transfiguro-me. 

Nasci nos anos trinta, podia não ter tido a sorte de aprender, de ir para o Conservatório em Atenas. Podia ter sido somente uma rapariga do campo, com o destino marcado pelo peso da velhice antes dos trinta anos, filhos a puxar as saias sob o sol que queima. Podia ter sido qualquer coisa. Mas a voz venceu. Vivi a guerra, sei coisas que outros não sabem. Levei emoção aos sítios onde ma pediram. Cheguei a cantar árias que desconhecia, salva pelo ponto, escondido do público, e sempre obtive as ovações que me enchiam a alma e o camarim com flores e cartões. O poder de se ter algo que os demais não possuem. Eu sei que fico na História. A Tebaldi? Duvido. Aprendi a detestá-la. Aprendi que era melhor para a minha carreira e, no fim, o que eu vejo, agora, nesta cama onde estou a dormir um sono que não existe? Vejo que estão desiludidos comigo. A minha voz perde-se e ninguém me perdoa. Perco a voz, perco a identidade.

Quando morrer voltarei ao azul que me viu crescer, quero as minhas cinzas no Mar Egeu, regressar aos deuses e a tudo aquilo que podia ter sido. Não quero viver muito tempo. O tempo assusta-me e não sei fazer mais do que exigir de mim a possibilidade de encarnar uma personagem e dar-lhe voz. Há quem me diga, amigos próximos, que deveria dar aulas, que deveria retirar-me, que deveria... Todos sabem mais do que eu e, apesar disso, desconhecem o essencial.

A minha vida começou depois de um casamento de dez anos, quando me senti mulher plena nos braços de Onassis, aí no momento em que a vida começou de verdade, e desde que me deixou só me resta este pobre definhar.

Eu sei o que dirão os jornais amanhã. O declínio da Callas. A sua morte anunciada. O escândalo de estar o presidente da república com convidados ilustres e a diva ter perdido os sentidos, a cortina, apressada, a esconder o corpo tombado. Terão a percepção do que significa ter de agradar a todos? A culpa é minha, será sempre minha. Não descobri a lei de me tornar o que queria. Fui-me moldando para ser a Callas e morrerei assim, de coração partido, sem a voz que deu o meu nome ao mundo. E, como as mulheres nas óperas de tantos compositores diferentes, morrerei sozinha. Se a minha fé o permitisse encontraria Onassis numa nuvem longe do céu. Mas já deve ter feito um contrato com Deus. Nem olhará para mim. Como tantas vezes lhe pedi

Olha para mim, olha para mim.

 

Não queria que me visse como a Callas, queria dar-lhe a mulher debaixo da pele da cantora. Ele queria, como todos os outros, ouvir-me.

Posso ter ficado uma mulher amarga, já sei.

A voz é uma patroa exigente e não é controlada por mim. Continuo aqui, a fingir que o sono me dá o descanso merecido. Lá ao fundo, muito ao longe, ainda oiço as nossas gargalhadas, os dois no barco, pele contra pele, olhos nos olhos. Se me concentrar mais um pouco, consigo ouvir o silêncio que fazíamos juntos. E, assim, talvez consiga dormir.