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Dedicatória: para a minha mãe
Epígrafe: Puttin’on the Ritz
Have you seen the well-to-do
Up and down Park Avenue
On that famous thoroughfare
With their noses in the air
High hats and narrow collars
White spats and lots of dollars
Spending every dime
For a wonderful time
Now, if you're blue
And you don't know where to go to
Why don't you go where fashion sits
Puttin' on the Ritz
Different types who wear a daycoat
Pants with stripes and cutaway coat
Perfect fits
Puttin' on the Ritz
Dressed up like a million dollar trooper
Trying hard to look like Gary Cooper
Super-duper
Come, let's mix where Rockefellers
Walk with sticks or "umberellas"
In their mitts
Puttin' on the Ritz
Sempre pintei ao som do fado. Não por causa da música, mas pelos poemas, palavras que se casam com um sabedoria até aí desconhecida. Prefiro os homens no fado; gosto de tentar igualar a fraqueza da minha voz com a voz deles. Os homens que cantam o fado em Portugal encenam-se menos que as mulheres, preservam uma certa ingenuidade. As mulheres seguem as pisadas de Amália Rodrigues e, afinal, é por ela que aqui estou. Quarto 113 do Ritz de Lisboa.
Subi do deserto melancólico e quase vazio do interior alentejano para imitar a grande diva. Pareceu-me a coisa acertada. Vi aquele documentário sobre ela, uma coisa bem feita, ela já de cabelo aloirado, com rugas, as mãos dançando acompanhadas pelas unhas pintadas de vermelho... é impossível de pintar a dança. A dança, seja ela qual for, é secreta e íntima, não se reproduz. Vi, ao longo da vida, muitas fotografias de bailarinos. Não mostram a dança. Ficamos presos na ideia do corpo, dos músculos, daquele corpo igual ao nosso que pode ir mais. Da delicadeza de movimentos. Ir mais longe. Fazer o impossível. Nunca pintei a dança. Pinto mulheres e homens, pinto a terra e a desolação. Os críticos chamam-me original. Suponho que seja um elogio, ou que deva ser encarado como um elogio. Original num século XXI tão estafado de imagens e ideias é qualquer coisa, todavia não me comove. Não consigo encher-me de mim. Amália, agitando as mãos, diz, no tal documentário, que nunca foi feliz, apesar de tudo o que Deus lhe deu. A mim, Deus deu-me a minha mãe, ela que trabalhou e trabalha para nos obrigar a fazer o nosso caminho.
Trabalha, Maria, trabalha que vais lá chegar. Cada um tem o seu caminho, terás de construir o teu.
Quando lhe disse que queria seguir Artes, a minha mãe nem pestanejou, arrastou todas as suas posses até Lisboa. Eu tinha quinze anos. Fiquei num quarto para os lados de Campo de Ourique, casa de uma senhora viúva, americana, uma designer de jóias chamada Nora. Aprendi a amar o fado com Nora e descobri Lisboa pelas mãos de uma estrangeira. Talvez por isso ela quisesse ir aos sítios onde os lisboetas não vão. Eu seguia-a aos fins de semana. Conheço todos os miradouros da cidade. Sei histórias de santos e de mártires que ninguém ensina na escola. Uma tarde, seguimos até junto à Pascoal de Melo para espreitar a fachada mais estreita da Europa na rua Aquiles Monteverde, número 16. Ficámos ali apenas a ver por uns momentos. Sentámo-nos depois no jardim e Nora reparou nos miúdos e nas brincadeiras. Foi um bom dia.
Durante a semana estava na escola. Desenhava, moldava, experimentava. Não estava numa fase de rebelião, como tantos colegas meus. Não pintei o cabelo de roxo, não me interessava a moda dos góticos ou dos outros. As minhas mãos eram o reflexo exacto do que fazia. Todas as noites as limpava – e continuo com esse ritual diário - com cuidado; todos os vestígios de tinta que se imprimem no meu corpo desaparecem por umas horas e depois voltam a instalar-se. A pinta sempre foi a minha moda.
A minha mãe telefonava pelas sete da tarde. Fazíamos o relato completo das actividades. Ouvia-lhe o riso miudinho, a dizer que sim, que era engraçado, que tinha razão sobre qualquer questão banal, a contar a última asneira do Zé da Chica e outras familiaridades. Todos os meses, eu mandava para casa uma carta com desenhos de Lisboa, de Nora, do Jardim da Parada, da vista do Tejo perto da escola. Até hoje, a minha mãe guarda esses envelopes.
Depois entrei no Conservatório. Ganhei uma bolsa de estudo. Mantive-me com Nora que, por essa altura, já começava a dar sinais de instabilidade. Os papéis inverteram-se. Comecei a colocar post it amarelos pela casa a identificar as coisas:
fogão, desligar
limpar a ferida
tirar a roupa do estendal
Fazer a cama
Abrir o correio
Coisas assim. Nora seguia-me. Baralhava as coisas, datas e acontecimentos. Guardava, contudo, memórias extraordinárias da América e eu fui tomando notas à minha maneira: desenhava para ela.
Era assim?
Não, não, a rua tinha mais pessoas e ali havia uma loja de antiguidades. Preciosa. Era quase um segredo. Era preciso tocar num botão para entrarmos. Nunca comprei nada, claro, não havia dinheiro para isso, mas adorava ir ver.
Que idade tinha, Nora?
Uns dezassete? Sim, talvez.
E desenhava jóias com essa idade?
Sim, mas isso foi tudo antes do Bill e do casamento.
Era muito nova.
Nunca somos demasiado novos, Maria. Não estamos é atentos como deveríamos estar. Demoramos a cá chegar.
Depois encostava-se ao cadeirão de orelhas e ficava a ouvir Carlos do Carmo, Pedro Moutinho, Marco Rodrigues, Camané, António Zambujo. Por vezes, na cozinha cantarolava o “Fado do Estudante”, imitando o Vasco Santana, e dizia que era em minha honra. Ríamos do sotaque dela, da pose, da almofada que enfiava debaixo da camisola para se fazer barriguda como o Vasquinho amaldiçoado pela “da franja”.
Quando é cantado e a rigor
Bem afinado e com fulgor
É belo o Fado, ninguém há quem lhe resista
É a canção mais popular, toda a emoção faz-nos vibrar
Eis a razão de ser Doutor e ser Fadista
Ríamos com tanta facilidade que não chegámos a entender que estávamos a viver os melhores momentos de todos. Aprendi tanto com ela, mas isso já disse, não é? Repetir as coisas é uma forma de viver, também isso aprendi com a Nora e, decerto, com a minha mãe, sempre a dizer as mesmas coisas.
Tem cuidado contigo. Não te canses. Faz o teu melhor, não precisas de ser a melhor e nunca faças aos outros o que não queres que te façam a ti.
A minha mãe. Nora. A minha orientadora de tese, Inês, uma mulher que dobrava a pedra e o ferro com astúcia e violência, contra o mundo conformado, contra os preconceitos. Só existem mulheres fortes na minha vida, mulheres que tanto admiro, e que agora, quem sabe?, vou desiludir. Mas ainda cedo. O quarto tem a luz de fim de dia de Lisboa. Ando descalça e os pés pisam a alcatifa mole quase amorosamente. Cheguei ontem. Fui à minha mãe, como se diz, fiquei por lá uns dias e regressei. A casa de Nora já não existe, claro; ela está nos Estados Unidos há uns anos.
Deve ter sido uma coisa assim: a filha telefonou uma vez e achou que Nora estava confusa; telefonou mais vezes e meteu-se num avião. Num americano anasalado, repetidamente invocando o Senhor num “Ó my God”, a filha rica levou a mãe para casa. Nora estava com princípio de Alzeihmer. Eu sabia e não sabia. Fiquei órfã de Nora e das suas histórias. Nesse ano, desenhei tudo o que consegui lembrar-me da vida daquele mulher pequena que me acolheu. Aluguei um quarto e enfiei o que tinha debaixo da cama alta de ferro preto. Não era uma cama como esta, nada disso. Era uma cama que rangia com vida própria.
Acabei a escola e uns coleccionadores estimados no meio competitivo das artes compraram as peças que exibi no fim de curso. Fiquei, pareceu-me então, rica. Mandei dinheiro à minha mãe que, diligente, voltou a colocar a mesma quantia na minha conta bancária.
Ó mãe, mas isso era preciso?
É dinheiro do teu trabalho, Maria. Nem penses. Eu estou bem.
Aluguei uma casa e deixei a cama que rangia. Para não correr riscos, coloquei o colchão no chão e, com um certo desprezo, decidi que não precisava de móveis. Ainda que me lembro da cara da minha mãe quando me visitou a primeira vez.
Então, mas tu vives assim? Sem cama, sem cortinados, sem tapetes...
Não preciso nada disso, basta-me o estirador e boa luz, mãe.
Se tu dizes.
Não me lembro de uma zanga entre as duas. A minha mãe deixa as coisas fluírem, tem essa sabedoria, mesmo agora que já não é nova. Demonstra um certo orgulho no meu percurso, faz recortes de jornais desde que comecei a expor e, quando fui a Madrid pela primeira vez, decidi levá-la: ela com tanto medo de multidões, ela sem perceber o que os espanhóis diziam; parecia um papel de parede, uma mulher na meia idade a sorrir por causa da filha. Nunca senti tanta ternura por ela como nesse momento. Portugal era um dos países tema de um certame importante. O escritor alentejano, José Luís Peixoto, um homem bonito ornamentado de tatuagens e piercings, numa noite de jantar e alguma formalidade, disse, maravilhosamente, o poema “Cinco à Mesa”. A minha mãe abandonou a sala a chorar.
Foi a única vez que a vi chorar.
Agora, a imagem dela à soleira da porta — eu a entrar no carro com sacos de bolo pobre feito com aguardente e mel, com pão fresco e queijo — está presa a tudo. Não sei o que faço aqui, mãe. Podia ter ido para casa. Mas não, está lá o Miguel e, por isso, não posso, seria como ir à guerra. O Ritz era um sonho antigo.
Quando for rica vou dormir para o Ritz.
Disse-o muitas vezes, em tom de brincadeira, sem pensar no que dizia. Imaginava o Ritz como ele é, cheio de histórias e solene, com alcatifa mole no chão dos quartos e camas feitas de forma impecável. Imaginava o Ritz com música de fundo.
Amália dizia que tudo lhe aconteceu por acaso, que foi Deus, mas que também foi a Sorte, já que possuía a coragem para reinventar o fado, de cantar rancheras e outras coisas, de aceder aos poetas e músicos, de representar nos filmes por mera intuição. Ela a quem nunca ensinaram nada. Eu não posso dizer o mesmo. Talvez tenha uma espécie de talento que me leva ao carvão ou ao óleo; sim, posso ter isso, todavia sou um elo de esforços, pessoas que fizeram caminho uma vida inteira para eu cá chegar. Não tenho um tumor na cabeça nem noutro sítio, tenho-o no coração. Amália fugiu para Nova Iorque para se matar. Era o medo da traição do corpo, desse diagnóstico infeliz. Enfiou-se num hotel, não sei qual, e deduzo que tenha bebido e visto televisão, até que foi salva por Fred Astaire. É ela quem o afirma. Começou a percorrer as lojas todas atrás dos filmes de Fred Astaire. Ficava o dia inteiro sentada a vê-lo dançar. Dançar com Judy Garland, com Audrey Hepburn, com Cid Charisse, com Gene Kelly, com Ginger Rogers, com Bing Crosby.
Consigo imaginá-la com facilidade e essa imaginação leva-me ao desenho. Tenho Lisboa aos meus pés, literalmente, e desenho os passos elegantes de Fred Astaire a cantar “Puttin’ On the Ritz”. Parece-me justo. Já disse que não é possível desenhar a dança? A dança tem uma teimosia, digamos, que não se captura. Trouxe comigo um dos meus filmes preferidos, “Blues Skies” ou “Romance Inacabado” em boa tradução portuguesa. Tenciono vê-lo no computador daqui a pouco. Enquanto isso, penso. Penso e desenho e oiço a Amália na minha cabeça, a “Gaivota”, o “Grito”, a “Estranha Forma de Vida”. Sei os poemas de cor. Sei-os por causa de Nora, ela que os dizia num português emprestado, sibilante e arrastado. Por esta altura, deve estar num lar e não sei se me reconheceria. Por vezes, ligo a Helen, a filha: ela começa logo a dizer coisas de forma estridente e pouco ou nada diz da mãe.
She’s fine, dear. It’s so nice of you to care, but there’s nothing one can do.
Irrita-me a falta de tristeza de Helen. Talvez eu a tenho pelas duas. Não sei. Consigo ser injusta quando não estou bem. Quando sou assolada por estes pensamentos. Amália foi para Nova Iorque para se matar. Queria que o tumor desaparecesse sem dramatismo. Estava decidida a isso. Não contava, porém, com o poder hipnotizante de Fred Astaire. Um homem magro, com pouca voz, para quem todos os grandes compositores americanos escreveram.
Now, if you're blue
And you don't know where to go to
Why don't you go where fashion sits
Puttin' on the Ritz
Different types who wear a daycoat
Pants with stripes and cutaway coat
Perfect fits
Puttin' on the Ritz
Deixo o bloco em cima da secretária, junto à jarra com flores, corro as cortinas e deixo-me ficar na cama a fazer de estrela do mar. O corpo tenso, os braços abertos e as pernas abertos. Tenho quase quarenta anos agora. O Miguel está à espera de explicações. É um homem que aprecia a troca de palavras, pode até ser violento, mas sobre isso não falarei. Não sei se consigo voltar para casa. A minha mãe, sempre na soleira da porta, a gritar para dentro do carro em andamento:
O teu quarto está sempre pronto, querida. Volta.
Não tenho forças, mãe. Já não sei o caminho das coisas certas. Não consigo falar do Miguel, é apenas um homem na minha vida. Não me dá paz, nem luz, não se confunde nas minhas tintas. Julga-me e condena-me. Diz coisas absurdas. Odeia o cheiro da água raz, dos pincéis, das telas. Se me soubesse aqui, bem quente no Ritz, escondida do mundo, rir-se-ia com desdém. Tem um absoluto desprezo pelo luxo. Azar o dele.
Vou ficar aqui dentro deste quarto, como num aquário, e tentar dormir. Invocarei a senhora dona Amália, pedir-lhe-ei que me assalte os sonhos e apareça a dançar com Fred Astaire aqui mesmo. Terei um vestido negro e colocarei umas pérolas para os acompanhar na dança majestosa, alcançarei uma graça que nunca possuí. Serei uma personagem do Ritz. Vou entrar num filme dentro do meu sonho. Depois disso, talvez, possa voltar para casa. Mandarei ao Miguel um desenho a servir de fim de conversa e peço aos anjos para se colocarem na direcção do campo, do Alentejo mais calado e profundo. Pode ser que aí seja, por fim, feliz. Ou, como na canção de Amália, sem secar as minhas lágrimas, vá adormecer cantando baixinho
Cheia de penas me deito
E com mais penas me levanto
Já me ficou no meu peito
O jeito de te querer tanto
Nota: Amália Rodrigues morreu a 6 de Outubro de 1999. A expressão "puttin’ on the Ritz," significa “vestir de forma sofisticada” e teve como inspiração o Ritz Hotel em Nova Iorque. Fred Astaire cantou e dançou esta música de Irving Berlin, escrita em 1929, no filme “Romance Inacabado” de 1946.
Este conto faz parte da colecção Divas, que sai no Diário de Notícias, todas as sextas-feiras. Além de uma ficção, o leitor ganha um texto de Rui Vieira Nery e um CD sobre a Diva em questão: já tivemos a Callas, a Amália, a Ella Fitzgerald.
Começou na sexta-feira da semana passada a colecção Divas no Diário de Notícias. Além de um disco, de um texto do Rui Vieira Nery, escrevo uma ficção. Foi uma aventura muito divertida e agradeço a produção à Bela e o Monstro, sempre imparáveis. Aqui vos deixo o conto sobre a Callas, esta semana já saiu o volume sobre a Ella Fitzgerald.
Eu não sou a minha voz
Dizem que desfaleci.
Gosto do verbo: desfalecer.
Parece que a traição do corpo não é apenas na voz ou na cabeça. A traição come-me por inteiro. Bellini entenderia. Estou certa de que teria a sua compreensão. Quando Norma estreou não foi o sucesso que ele sonhara, é o que diz a história. E o segundo acto... matar os filhos é sempre difícil. Na minha cabeça ainda me oiço cantar
(NORMA)
Dormono entrambi,
Non vedran la mano
Che li percuote.
Non pentirti, o core;
Viver non ponno. Qui supplizio,
E in Roma obbrobrio avrian,
Peggior supplizio assai;
Schiavi d'una matrigna.
Ah! No! Giammai!
(Sorge risoluta.)
Muoiano, sì.
Non posso avvicinarmi.
Un gel mi prende
E in fronte mi si solleva il crin.
I figli uccido!
Teneri figli.
Essi, pur dianzi delizia mia,
Essi nel cui sorriso
Il perdono del ciel mirar credei
Ed io li svenerò?
Di che son rei?
(risoluta)
Di Pollione son figli
Ecco il delitto.
Essi per me son morti!
Muoian per lui.
E non sia pena che la sua somigli.
Feriam.
Não sei explicar o que levou a este desmaio. O pano que cai e o meu corpo nas tábuas do palco. Inerte. Inconsciente.
Sei - ah, sim, sei bem - que amanhã as primeiras páginas dos jornais terão o meu nome e não dirão que sou “sublime”, “extraordinária”. Não. Os jornais escreverão (neste preciso momento, um crítico qualquer deverá estar a martelar numa máquina de escrever, a escrever palavras que são tiros certeiros), com a dureza de sempre, quase como se os jornalistas fossem a Tebaldi, num exercício de inveja e competição: a Callas chegou ao fim. Como se soubessem o que é estar no fim...
As fotografias que publicam, as minhas fotografias, mostram uma mulher que não reconheço. Nada mais normal, diria a minha mãe se fosse viva. Nunca entendeu a razão que leva as pessoas a chorar. “Choram a ouvir-te cantar. Mas porquê?” Sempre o senti como um elogio máximo, uma forma de comoção única que só eu conseguia provocar nos outros. Explicar à minha mãe? Não. Recolhida em Deus e eu na música, ambas separadas por exigências divinas mais perto de uma qualquer loucura que os outros não têm.
Agora estou dentro do silêncio do quarto. Sei que todos andam pela casa, andam como fantasma, de sala em sala, vigilantes, à espera. Crêem no meu sono – nessa possibilidade - que eu apenas finjo. E fingir é fácil. A ópera é um dos melhores palcos de fingimento. Dor e desespero. Amor e alegria. Vida e morte. Tudo se canta ali em cima, em frente ao fosso da orquestra, espreitando a plateia, ignorando o maestro por sabermos que somos aquela personagem. Gioconda? Violetta? Norma? Amina? Qualquer uma, pouco importa.
A música começa e eu já sei que o corpo me dói, que o coração encolheu, mas tenho de me esticar, a voz precisa de ir, ainda precisa de ir. Tenho de ser aquela que é maior que as outras. Podia ter abdicado de tudo? Sim. Por amor. Ninguém entendeu. Talvez não o tenha explicado devidamente. Esperei pelo divórcio dele, esperei horas sem bondade. E depois, com o meu rosto, nas suas mãos, pouco importava o lugar de actriz, o papel decorado, a música estudada. O bater do coração era uma partitura distinta. Sim, podem dizer que é piroso. Não me importo.
E não me apetece cantar.
Não sei nada de Onassis. Não sei de mim ou da minha voz. Citam-me nos jornais, dizem que tenho um feitio difícil e que a voz, a minha voz, se perdeu por ter andado em iates e festas. Já não estou nas festas de Onassis. Está apaixonado por outra, uma mulher que foi de um presidente, uma mulher com nome francês, uma mulher que não terá, acredito, um temperamento mediterrânico.
A força de se ser pelo confronto? Está em mim. Juntou-se ao meu sangue Não como antigamente. Ele não se apaixonou por mim. O seu imenso amor, aquele que o levava a comprar jóias de um brilho assustador, não era meu. A paixão daquele homem estava apenas concentrada na minha voz. Eu cantava e ele enviava flores, flores frescas, vermelhas de desejo. E as flores eram tão inebriantes quanto o vinho que bebíamos noite dentro. Esta voz que é uma maldição. E ele pedia:
Canta, canta. Canta para mim. Só para mim.
E eu cantava e depois deixei de cantar e ele não gostou dessa falha, da decisão que não lhe foi comunicada. Não me queria apenas para si, afinal. O espanto do palco, da plateia a aplaudir em pé, num fulgor de entusiasmo que não tem medida, enchia-lhe o peito de um orgulho que era apenas exibicionismo.
Esta mulher é minha. Tenho-a. É só minha.
Quis ser só sua. Não entendi e ele tão-pouco. Talvez por isso, por ser homem e pequeno no pensamento, era impossível compreender que eu apenas queria uma casa de seda, um casulo perfeito, para um amor que seria nosso e apenas nosso. A minha voz estaria sempre a mais, por não ser minha. Onassis não percebeu. E eu não expliquei. Jacqueline não lhe cantará. Sorrirá com elegância e terá sido isso, o poder desse sorriso que um dia foi do outro, de um homem morto com um tiro inesperado. Ela refaz a sua vida com Onassis e na América não compreendem. Se conhecessem os encantos de Onassis, o espanto seria menor. Ele casa com a fama dela, a roupa dela, os colares dela, a imagem dela.
E eu? Eu continuo aqui. Canto. Posso fazer o que quiser da voz ou não fazer nada? Já se tornou famosa a frase: a minha voz não é como um elevador. Já foi. Houve momentos.... Hoje é apenas uma ínfima parte do que eu sou. Do que fui. A voz não sou eu e, se o disser alto, ninguém acredita.
Fabriquei a Callas. Queria ser a diva – sou a diva – e quando quis deixar de o ser, traíram-me. Abandonada por ter deixado de cantar, por querer amar em vez de cantar. Não posso compreender, mas há muito tempo que deixei de me interrogar sobre as coisas. Nem todos os porquês têm correspondência, nem todos possuem fatalmente um porque.
O médico daria tudo para que eu não fizesse perguntas. Mostra-se preocupado. Quer que eu coma umas coisas, que não beba, que descanse. Sobretudo isso: descansar. Não faz ideia da impossibilidade prática do exercício. Quando se é como eu é como ser múltipla, não há descanso. Cansei-me dos vários médicos e eles cansam-se de mim. Talvez Vittorio vá ficando por devoção. Já não sou a sua doente, sou a sua “casta diva”, a sua criatura frágil. A maquilhagem estragada com lágrimas não o impressiona e eu sei que posso ser - e sou - feia, tão feia como todos os fantasmas das trevas. Os meus ataques de fúria deixam-no calmo. Parece apreciar a minha fúria. De uma forma estranha espera que eu rebente para depois me consolar. Como se eu fosse uma criança birrenta e, quem sabe?, talvez eu seja mesmo isso. O talento não traz felicidade. Vittorio diz que as mulheres com mau feitio duram mais tempo, a vida preserva-se na raiva. Acredito nele uns dias, noutros faço por criar outra realidade.
Já morri no palco a cantar tantas vezes. A fazer de tuberculosa, a fazer de amante traída, a fazer o que pedem para fazer: ser outra, dar voz a outra. Tullio Serafin compreenderia? Dizem que foi o meu mentor. Não desminto. Há coisas sobre as quais não vale a pena falar. Onassis ensinou-me isso? Não, todos os libretos me ensinaram que criar um mito é escolher a verdade que se quer contar. Assim faço. Por isso, não tenho voz e não sou a minha voz e não sendo, deixo de existir. Sei que não faz sentido. Nos dias que correm poucas coisas fazem sentido. Peguei na ansiedade e tomo o que posso, os comprimidos nem os sinto, escorregam com facilidade se acompanhados de vinho. Tomo quando quero e nas quantidades que me servem, aquelas que eu sei que posso aguentar, e depois transfiguro-me.
Nasci nos anos trinta, podia não ter tido a sorte de aprender, de ir para o Conservatório em Atenas. Podia ter sido somente uma rapariga do campo, com o destino marcado pelo peso da velhice antes dos trinta anos, filhos a puxar as saias sob o sol que queima. Podia ter sido qualquer coisa. Mas a voz venceu. Vivi a guerra, sei coisas que outros não sabem. Levei emoção aos sítios onde ma pediram. Cheguei a cantar árias que desconhecia, salva pelo ponto, escondido do público, e sempre obtive as ovações que me enchiam a alma e o camarim com flores e cartões. O poder de se ter algo que os demais não possuem. Eu sei que fico na História. A Tebaldi? Duvido. Aprendi a detestá-la. Aprendi que era melhor para a minha carreira e, no fim, o que eu vejo, agora, nesta cama onde estou a dormir um sono que não existe? Vejo que estão desiludidos comigo. A minha voz perde-se e ninguém me perdoa. Perco a voz, perco a identidade.
Quando morrer voltarei ao azul que me viu crescer, quero as minhas cinzas no Mar Egeu, regressar aos deuses e a tudo aquilo que podia ter sido. Não quero viver muito tempo. O tempo assusta-me e não sei fazer mais do que exigir de mim a possibilidade de encarnar uma personagem e dar-lhe voz. Há quem me diga, amigos próximos, que deveria dar aulas, que deveria retirar-me, que deveria... Todos sabem mais do que eu e, apesar disso, desconhecem o essencial.
A minha vida começou depois de um casamento de dez anos, quando me senti mulher plena nos braços de Onassis, aí no momento em que a vida começou de verdade, e desde que me deixou só me resta este pobre definhar.
Eu sei o que dirão os jornais amanhã. O declínio da Callas. A sua morte anunciada. O escândalo de estar o presidente da república com convidados ilustres e a diva ter perdido os sentidos, a cortina, apressada, a esconder o corpo tombado. Terão a percepção do que significa ter de agradar a todos? A culpa é minha, será sempre minha. Não descobri a lei de me tornar o que queria. Fui-me moldando para ser a Callas e morrerei assim, de coração partido, sem a voz que deu o meu nome ao mundo. E, como as mulheres nas óperas de tantos compositores diferentes, morrerei sozinha. Se a minha fé o permitisse encontraria Onassis numa nuvem longe do céu. Mas já deve ter feito um contrato com Deus. Nem olhará para mim. Como tantas vezes lhe pedi
Olha para mim, olha para mim.
Não queria que me visse como a Callas, queria dar-lhe a mulher debaixo da pele da cantora. Ele queria, como todos os outros, ouvir-me.
Posso ter ficado uma mulher amarga, já sei.
A voz é uma patroa exigente e não é controlada por mim. Continuo aqui, a fingir que o sono me dá o descanso merecido. Lá ao fundo, muito ao longe, ainda oiço as nossas gargalhadas, os dois no barco, pele contra pele, olhos nos olhos. Se me concentrar mais um pouco, consigo ouvir o silêncio que fazíamos juntos. E, assim, talvez consiga dormir.