Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Dissolução

José Meireles Graça, 10.11.23

Ouvi com metade do país o discurso presidencial em que se anunciava a dissolução da Assembleia, com a manutenção da plenitude de funções, a prazo, do Governo, e a marcação de eleições para 10 de Março.

Luís Meneses Leitão acha aqui “que há um desrespeito flagrante da Constituição por quem tinha o dever de a defender”. Com a autoridade que não tenho, acompanho-o porque os seus argumentos são de betão. O entendimento, porém, não será pacífico entre os constitucionalistas porque nesta variedade de juristas há muitos que entendem que a obediência à Constituição depende não do que lá está mas da interpretação que o Presidente faz do que está lá.

O mundo da política e do comentariado está num corrupio. O esmiuçar das razões de uns e outros, na televisão, acompanha bem com o sofá, cigarros e um copo, mas é possível ver o assunto de tantas formas, e dizer tantas coisas, que, não fossem os detalhes escabrosos das vidas e acções das personagens principais do drama, o espectador comum fugia para os programas de futebol ou séries.

De líquido há que das duas hipóteses possíveis, um Governo do PS com nova cabeça e elenco, ou eleições, Marcelo optou pela segunda. Fez bem. Mesmo que na nossa arquitectura constitucional o Governo responda politicamente perante a Assembleia, nesta exista uma maioria absoluta do PS, e formalmente quem ganhou aquela maioria tenha sido o partido e não o seu líder, o terramoto com epicentro no MP abalou seriamente o edifício governamental, agora implodido por lhe ter sido mortalmente ferida a legitimidade.

O discurso agradou porque não lhe tenho visto grandes críticas, excepto para dizer que a solução xis ou ípsilon teria sido preferível. Não me agradou a mim, todavia, porque abundou num desproporcionado panegírico a António Costa e numa resenha do seu passado e percurso, compreensível se a ocasião fosse a de lhe atribuir uma condecoração, mas que nas circunstâncias requer uma interpretação. Explico comentando alguns passos:

Quero, também, testemunhar o serviço à causa pública, durante décadas, em particular nos longos e exigentíssimos anos de saída do défice excessivo, saneamento da banca, pandemia e guerras na Ucrânia e no Médio Oriente, na chefia do Governo de Portugal.

A saída do défice excessivo não deixou de implicar crescimento da dívida pública nominal, nem redução do número de funcionários públicos (pelo contrário), nem muito menos extinção de serviços redundantes, nem qualquer reforma do Estado, nem diminuição do papel central deste como patrão, parceiro e fiscal manhoso e inepto no funcionamento da economia; e implicou a falsificação de orçamentos aprovados (isto é, a execução da despesa foi viciada por cativações com corte em investimentos que implicaram degradação das condições de funcionamento de serviços públicos essenciais). Isto e uma longa lista de outros nems.

Espero que o tempo, mais depressa do que devagar, permita esclarecer o sucedido…

Também espero. Porém, infelizmente, não sou o “mais alto magistrado da Nação”. Porque, se fosse, não esperava, exigia. Não é admissível a nenhuma luz que um Governo caia porque sobre o seu chefe foram oficialmente lançadas suspeitas, que todavia não foram, nem se sabe se serão, transformadas em acusações. Que vários colaboradores seus, de sua escolha, sejam objecto de procedimentos judiciais é uma coisa, da qual o eleitor e os partidos tomariam boa nota. Mas outra é o PM e com ele todo o Governo. Porque das duas uma: ou as suspeitas se traduzem numa acusação consistente, bastante antes das eleições de Março, ou se nada acontecer Costa, e com ele o PS, cantarão a várias vozes o justificado choradinho da vítima, enquanto a Oposição se ocupará a pastar em cima dos pormenores, obscenos uns, intoleráveis outros, ridículos e irrelevantes muitos, destilados a conta-gotas para a comunicação social, tudo compondo um quadro de debate reles. O que significará, na segunda hipótese, que a necessidade de eleições intempestivas, e o resultado delas, foi condicionado objectivamente pelo MP.

Achando que o PS há décadas que desconvém ao país, e abominando Costa e a sua entourage, seria de esperar da minha parte que partilhasse a grande satisfação de muitos correligionários. Mas não: não é missão, ainda que involuntária, da magistratura que superintende no processo penal, imiscuir-se na luta política; nem semelhante porta, se aberta, deixaria de ferir a separação dos poderes. E Marcelo apenas espera?!

personalizado no Primeiro-Ministro, com base na sua própria liderança, candidatura, campanha eleitoral, e esmagadora vitória.

Esmagadora? 41,37% dos votos (com 48,58% de abstenções) deve ser assim descrita fora de um comício do PS?

A aprovação do Orçamento permitirá ir ao encontro das expetativas de muitos Portugueses, e acompanhar a execução do PRR, que não pára, nem pode parar, com a passagem de Governo a Governo de gestão, ou mais tarde com a dissolução da Assembleia da República.

O PPR (que aliás não é o abre-te sésamo de nenhum progresso permanente, ainda que essa fé faça parte das crenças que Marcelo partilha) não carece da aprovação do Orçamento. E as “expectativas de muitos portugueses” poderiam aguentar algum tempo, sobretudo se o prazo marcado não fosse, como é, absurdamente longo para dar tempo ao PS de escolher tranquilamente o iluminado que o vai dirigir. Uma condescendência com e um prémio ao PS. Merece-o?

… superar um vazio inesperado, que surpreendeu e perturbou tantos Portugueses, afeiçoados, que se encontravam, aos oito anos de liderança governativa ininterrupta. Devolvendo assim a palavra ao Povo. Sem dramatizações nem temores.

Estavam os Portuguesas “afeiçoados”, senhor Presidente? Tenho então uma ideia, poupamos nas eleições: não vale a pena fazê-las se há assim tantos cujo sensível coração bate pelo PS. Somente me parece que semelhante afirmação ternurenta caberá no Congresso do PS, feita por algum militante mais exaltado. Num discurso presidencial – não.

Em suma, foi bom o discurso? Foi, como peça de oratória e esquecendo a fraude constitucional em que assenta. Mas nele perpassa um incompreensível apoio a Costa e ao PS, que só se pode entender como uma crítica implícita à crise desencadeada pelo MP. Perfeitamente legítima, aliás, mas que ganharia se não fosse jesuiticamente obscura. Tão obscura que a minha interpretação neste aspecto pode não ser a melhor, caso em que será apenas Marcelo a ser Marcelo.

Nas eleições votarei CDS, esteja ou não esteja em coligação e se, no intervalo de quatro meses, o eleitorado não esquecer a quinta enlameada, gerida por capatazes ineptos uns, e corruptos outros, em que o PS transformou o país, o próximo Governo eleito será encabeçado pelo PSD.

Uma reflexão melancólica, porém: A versão estatista do governo do país que, com diferenças de grau, senso e quadros, o PS e o PSD encabeçam, dá fatalmente como resultado, ao fim de tempo suficiente, a falsificação da sã concorrência e o capitalismo de compadrio. Isso o eleitorado ainda não percebeu, e por isso vai dizendo que eles são todos uma cambada de ladrões.  Mas não são todos, é claro, e serão menos se lestamente despedirmos quem sem vergonha nos envergonha.