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Delito de Opinião

“Uma cortina para derrubar um muro”

Cristina Torrão, 27.08.24

Orquestras Mulheres.jpg

Imagem Instagram

As mulheres ainda são a minoria nas orquestras sinfónicas. Graças, porém, às audições às cegas, o seu número tem vindo a aumentar.

No Instagram da Fundação Francisco Manuel dos Santos, encontra-se o link para um artigo de Pedro Boléo, publicado originalmente na Revista XXI nº 8, sob o tema da Igualdade e com o título usado por mim neste postal (por isso, as aspas). Ou seja: ainda hoje, na nossa sociedade ocidental, tolerante e civilizada, só as audições às cegas garantem que o júri não se deixe influenciar, por exemplo, pela cor da pele ou pelo género da pessoa candidata. Pelos vistos, aos homens, adianta serem brancos; às mulheres, nem isso. Mas também não queremos ser privilegiadas pela cor da nossa pele.

As audições às cegas começaram a ser usadas pela primeira vez pela Boston Symphony Orchestra em 1952, mas só a partir dos anos 70 a prática se estendeu a outras orquestras (…) A ideia seria aumentar a justiça das escolhas, garantindo (ou pelo menos favorecendo) condições de igualdade à partida. Mas Pedro Boléo questiona-se (e muito bem): porque não estariam essas condições garantidas à partida?

Já se estava em 1970, quando o maestro Zubin Mehta, que dirigia na época a Los Angeles Philharmonic, era ainda capaz de dizer ao The New York Times, com todas as letras: «Não acho que as mulheres devam tocar numa orquestra. Elas tornam-se homens. E os homens tratam-nas como iguais. Até mudam as calças à frente delas. É terrível!»

Nestas palavras, temos discriminação aberta, temos essa frase inominável “elas tornam-se homens” e temos considerar escandaloso o facto de os homens as tratarem como iguais, usando o pormenor da mudança de calças. Trata-se de um método muito usado por machistas, o chamado sexismo subtil. Não sou naturalmente apologista do gesto, como garante de igualdade. Mas aquilo que é entendido como uma maneira de proteger as mulheres, vai muito além do paternalismo. Para o maestro referido, a única solução seria evitar mulheres nas orquestras, quando, na verdade, as orquestras é que devem garantir as condições necessárias para assegurar a sua admissão! E os músicos que mudam as calças à frente delas são igualmente contra a inclusão de mulheres instrumentistas nas suas orquestras, usando uma forma assaz grosseira de protesto: “ai elas também querem pertencer? Então que aguentem!” Machismo puro e duro.

Ainda hoje, mesmo entre os músicos que aceitam mulheres como colegas de orquestra, há certos preconceitos, como considerar haver instrumentos tradicionalmente femininos (a harpa), ou masculinos (a trompa). Malcolm Gladwell, no livro Blink, em que analisa e tenta desconstruir as enganosas «impressões à primeira vista», dá o exemplo de uma instrumentista, mulher e de pequena estatura, que «nunca poderia ser uma grande tocadora de trompa porque não teria força nem capacidade pulmonar”». Ora esta mulher, Julie Landsman, é hoje trompista solista e líder do naipe da Metropolitan Opera de Nova Iorque.

O preconceito esconde-se, disfarça-se de normalidade, e até as próprias mulheres podem reproduzi-lo, como qualquer dominado pode reproduzir a ideologia que mantém a sua dominação, naturalizando-o e essencializando-o («é mesmo assim, as mulheres são isto, os homens aquilo»)

O caso mais chocante, de como os preconceitos estão ainda bem vivos na nossa Europa civilizada, é o da Filarmónica de Viena, apesar dos protestos consecutivos de várias instituições de defesa dos Direitos Humanos e da igualdade de género. A direcção e os membros desta orquestra defendem abertamente posições racistas e sexistas. Uma vez venceu, numa audição às cegas, um candidato japonês, recusado de seguida pelo facto de a sua cara não corresponder, segundo o director da orquestra, ao perfil da Pizzicato-Polka do concerto de Ano Novo.

A Filarmónica de Viena só integrou mulheres pela primeira vez em 1997, e tinha em 2013, apenas seis. A fim de justificar esta disparidade, as declarações dos seus dirigentes incluem ainda argumentos como «a diferença biológica», «dos lábios», «dos pulmões», «a possibilidade de relacionamentos amorosos no seio da orquestra».

Em Portugal, pelos vistos, a prática das audições às cegas ainda não é geral. Pedro Boléo diz-nos existirem orquestras que realizam audições às cegas, dando-nos o exemplo da Orquestra Gulbenkian que aliás pratica estas audições nas duas primeiras fases do concurso (das três que realiza) para integrar um naipe orquestral.

Há quem diga que as feministas já não são necessárias. Parece-me, porém, ser ainda necessário haver quem denuncie estas situações, para que sejam lembradas, discutidas, se mantenham presentes. Pouco importa se essas pessoas sejam, ou não, apelidadas de feministas.

Termino com as igualmente palavras finais de Pedro Boléo:

O senso comum reproduz ainda o sexismo dominante. Em português dizemos vulgarmente «sou músico». No entanto, quase não se usa “música” para uma mulher instrumentista, talvez por causa da confusão com outro substantivo, a música. Talvez seja apenas por isso. Mas podia até ser considerado belo e poético, em vez de ser visto como algo de baixo ou degradante, dizer: «Sim, sou música.»

A (in)utilidade do protesto pacífico

João Campos, 02.06.20

A propósito do texto desta tarde da Maria Dulce Fernandes. Muito poderia ser dito sobre descrever-se motins violentos como terrorismo, mas deixarei de lado essa divagação. Do texto ficou-me sobretudo uma das últimas frases; julgo que não terá sido exactamente isto que a Maria Dulce queria dizer, mas acabou por ser isto que disse:

Não é possível apagar um crime hediondo praticando milhares de outros que tais, igualmente injustificáveis e desprezíveis. 

Não é, de facto. Mas motins violentos e homicídio - George Floyd não foi vítima de outra coisa - não são igualmente injustificáveis e desprezíveis. Nunca serão. 

Protestos pacíficos são muito bonitos e dão fotos catitas para as redes sociais, mas o mundo não muda com toda a gente a dar as mãos e a cantar a Imagine. Protestos pacíficos são, na verdade, uma forma muito eficaz de aparentar movimento sem sair do mesmo sítio, de mostrar apoio a uma causa sem grande convicção e, sobretudo, sem grande compromisso. Sem grande sacrifício. Marcha-se um bocadinho, sorri-se para as câmaras, proferem-se palavras de ordem estridentes e vazias, manifestam-se as melhores intenções do mundo - e, no final, vai cada manifestante à sua vidinha, e o mundo continua a rodar no mesmo sentido. Quem estava bem, continua bem; quem estava assim-assim continuará assim-assim; e quem estava mal, continuará mal.

Toda a gente sabe, afinal, que lugar está cheio de boas intenções.

(Por cá orgulhamo-nos de ter feito uma revolução sem derramar sangue. Esquecemo-nos - fingimos esquecer-nos, não dá muito jeito - é dos quase cinquenta anos de ditadura que aguentámos enquanto povo, mansamente, encolhendo os ombros, incapazes de partir a loiça. Bem vistas as coisas, não foi grande coisa a nossa revolta contra a tirania; salvo raríssimas excepções, limitámo-nos a esperar que o regime caísse de podre. Como teria de cair, inevitavelmente. Calhou terem sido quase cinco décadas; podiam ter sido seis ou sete.)

Mas divago. Colin Kaepernick protestou pacificamente contra a discriminação racial e a brutalidade policial nos EUA. Serviu de muito.

As imagens de violência que chegam das cidades norte-americanas são chocantes, de facto, e a sua fúria esconderá imensas injustiças e inúmeros aproveitamentos de uma indignação mais do que legítima. Mas de todas as imagens que vi até agora dos motins e da destruição causada impressiona sequer uma fracção do que choca o vídeo da morte de George Floyd, esmagado pelo joelho de um polícia e pela indiferença de outros dois ou três. Não houve ali a mais remota tentativa de "proteger e servir", como não houve qualquer esforço de praticar algo que se aproximasse de qualquer ideal de Justiça, por mais imperfeito que esse ideal pudesse ser. Houve, sim, um homicídio. Mais um.

Talvez os protextos violentos não mudem nada, mas desta vez ninguém poderá dizer que não ouviu.

Sobre este tema, e fazendo a ligação a um outro caso muito recente que, apesar de chocante e sintomático, felizmente não acabou com ninguém morto, recomendo as palavras de Trevor Noah.

 

 

Em favor de quotas

João André, 27.02.20

Este penso rápido do Pedro lembra-me um problema: numa sociedade igualitária, onde toda a gente tem as mesmas oportunidades e não há descriminação de nenhum tipo (não vou listar as diferentes possibilidades, são demasiadas), porque razão não temos uma sociedade menos dominada por homens brancos?

No título tenho a palavra "quotas". Durante muito tempo me perguntei se são boas ou más. Já fui contra, a favor, contra de novo, indecidido e agora sou francamente a favor (deixei passar provavelmente mais umas estações e apeadeiros nestas reflexões e este é um estado de espírito actual). Para falar em quotas tems que começar com uma pergunta: são os homens brancos mais capazes que mulheres e homens não-brancos? Deixo de lado as subdivisões de escandinavos, mediterrânicos, eslavos, etc e tal. Fiquemo-nos pela cor aproximada da pele.

Creio, espero que correctamente, que a esmagadora maioria das pessoas responderá com um sonoro NÃO! Então fica novamente a pergunta: porque não estão tais pessoas igualmente representadas em cargos superiores? Porque não têm o mesmo nível de educação (eu sei que mulheres até têm maior probabilidade de ter cursos superiores que os homens, mas iso apenas amplifica a minha questão)? Porque razão existe tal diferença salarial entre pessoas com a mesma educação e responsabilidades e experiência quando a única diferença é um cromossoma ou o tom de pele? E não falo apenas de Portugal, naturalmente, falo de todo o mundo.

A resposta é, para mim, óbvia: o racismo e machismo existem, estão vivos e muito bem de saúde. Não falo de racismo ou machismo pessoal, onde os indivíduos pensam que o outro é de facto inferior só por ser mais escuro ou ser mulher (embora o machismo seja muito mais aberto). Todos nós os teremos um pouco, mas isso será um resquício da nossa evolução, que favoreceria os nossos grupos (tribos), os quais durante a maior parte da nossa história eram constituídos por pessoas parecidas connosco. A suspeita de estrahos estará entranhada no nosso código genético, mas não é inultrapassável, longe disso. Penso que o racismo e machismo são essencialmente estruturais e legados de um passado onde eram claros, abertos, assumidos e até marcas de honra. Li esta semana que Churchill sugeriu o lema "Keep England White" em 1955, o que se não é suficiente para manchar a imagem do estadista, certamente dá uma nova perspectiva e um período tão recente. Isso só demonstra como séculos de história terão deixado uma sociedade tão entranhada de homens brancos que abrir as portas a outros se torna difícil.

Repito: não é uma questão de racismo ou machismo pessoal. Duvido que na maioria dos casos alguém que escolha um homem branco em deterimento de outro tipo de candidato no papel igualmente qualificado o faça por esses motivos. Será normalmente por questões de ter um perfil pessoal mais adequado, ou algo do género. Em inglês refere-se a isso como "better fit" e é aquilo que normalmente se chama de "similarity bias", ou seja, uma preferência por pessoas semelhantes a nós. Numa sociedade onde os homens brancos dominaram, isso significa que a preferência, mesmo que não intencional, será por outros homens brancos.

Para mim a solução passa por quotas, mas não nas direcções das empresas ou nos cargos mais altos seja de onde for. Tem que ser em todos os níveis em carreiras de todos os tipos, públicas ou privadas. Só assim se elimina essa tendência de escolher alguém semelhante ou, pelo menos, se colocam outras pessoas para a equilibrar o suficiente. Funcionaria? Não sei, mas é a melhor solução que imagino, já que a igualdade de oportunidades já falhou completamente. Haveria muitas outras medidas a tomar, mas apenas falo desta.

Há um benefício adicional: assumindo que a percentagem de pessoas com talento será idêntica independentemente de cor ou sexo, isso significa que num mundo onde os homens brancos são favorecidos, haverá muitos profissionais que estão subvalorizados. As empresas que praticarem alguma discriminação em desfavor de homens brancos poderão colher benefícios inesperados ao pescar num mar essencialmente livre de outros pescadores.