O ano de dois mil e vinte e um começou como acabou o seu antecessor.
Um pouco por todo o mundo, com mais ou menos restrições, muita ou pouca irresponsabilidade, e os inevitáveis aproveitamentos políticos, a pandemia do covid-19 continua, como que a dizer-nos que o Ano Lunar do Rato só terminará em meados de Fevereiro e até lá ainda muito mais poderá acontecer.
Se olharmos para trás verificaremos que a pandemia, que aqui em Macau entrou oficialmente em 23/01/2020, quando o Chefe do Executivo decidiu, em boa hora, cancelar a habitual parada, foi apenas mais um, o mais nefasto, entre todos os acontecimentos que marcaram o ano que findou.
Se a chegada da ansiada vacina, a conclusão do acordo entre a União Europeia e o Reino Unido, ou entre aquela e a China, ou o resultado das eleições nos EUA ainda nos podiam transmitir alguma esperança quanto ao futuro, os acontecimentos desta semana voltaram a chamar-nos a atenção para os tempos difíceis que aí vêm.
Os números do covid-19 voltaram a disparar em todo o mundo. No Japão, na Coreia, em Portugal, no Reino Unido, na Alemanha, e até na China, onde havia sido pomposamente decretada a vitória do Partido Comunista sobre o vírus e mais de nove milhões já terão sido vacinados, voltaram a surgir casos locais em diversas regiões.
A fiabilidade dos números conhecidos é duvidosa, como também o foi a dos anteriores, pois dir-se-ia que os infectados que vão sendo descobertos nunca transmitiram o vírus a ninguém até esse momento. São descobertos e pronto. Não há progressão nos números. De qualquer modo, o simples facto de se saber da existência de novos casos e do agravamento da situação é um péssimo sinal para todos. O vírus é pouco patriótico, não distingue entre patriotas e estrangeiros, e não se comove com o permanente reforço da pulsão totalitária do regime.
De igual modo, o que aconteceu no Capitólio, e que se vinha antevendo antes mesmo das eleições de 3 de Novembro pp., demonstra o grau de loucura que se apoderou do inquilino da Casa Branca e até onde pode ir a cegueira narcísica de um presidente que tem sido um exemplo acabado dos dramáticos resultados a que pode conduzir a falta de educação, a ignorância e uma deficiente formação da personalidade quando confrontadas com o exercício do poder político. Nada de que em Portugal ou no resto da Europa não houvesse já exemplo nas últimas décadas, assim se vendo como os efeitos desses défices se comportam tanto à esquerda como à direita, apresentando resultados idênticos.
Não menos grave, mas bem mais preocupante pelas consequências de que se pode revestir para os residentes e para as relações entre a China e o resto do mundo, em especial com a União Europeia, os EUA, os parceiros e aliados políticos destes e alguns países asiáticos como o Japão e a Coreia do Sul, foram os acontecimentos da semana que passou em Hong Kong.
Na linha do que já vinha de trás, desde a imposição da entrada em vigor da nova Lei de Segurança Interna, e à revelia da Lei Básica de Hong Kong e da autonomia internacionalmente consagrada da Região, do adiamento das eleições legislativas ao afastamento de opositores políticos e à intimidação de jornalistas, foi tudo invariavelmente justificado com a pandemia e a defesa da integridade e segurança do Estado.
Acontecimentos menores face à dimensão da acção policial do passado Dia de Reis quando mais de cinco dezenas de pessoas, entre ex-deputados e activistas políticos, putativos candidatos às eleições, advogados e simples cidadãos cuja única actividade cívica conhecida seria a protecção de minorias étnicas e deficientes, foi detida com fundamento na violação da referida Lei de Segurança Nacional, naquele que foi o mais preocupante de todos os sinais transmitidos à população.
Ao contrário do que pensa o primeiro-ministro português, as relações económicas com a China são indissociáveis do que se está a passar em Hong Kong, e também em Macau, pese embora a displicência e o “interesseirismo”, e também ignorância, com que para os lados do Palácio das Necessidades se está a acompanhar e avaliar a situação.
O comunicado emitido pelo Gabinete da União Europeia em Hong Kong, sublinha que “as detenções penalizam actividade política que devia ser considerada totalmente legítima em que sistema político que respeite princípios democráticos básicos”, e constituem a última indicação de que “a Lei de Segurança Nacional está a ser usada pelas autoridades de Hong Kong e do interior para sufocar o pluralismo político, o exercício dos direitos humanos e as liberdades políticas protegidas pelo direito de Hong Kong e o direito internacional”.
Esta será, contudo, uma forma muito diplomática de dizer que se está a violar de forma grave o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em vigor em Hong Kong e Macau, e a fazer uma aplicação retroactiva da Lei de Segurança Interna, tratando como crimes situações que não o eram antes da entrada em vigor desse diploma.
Aquilo a que se assistiu não foi, até porque os tempos são outros, nenhuma reedição da Kristallnacht ou de um 11 de Setembro, nem sequer de coisa que se assemelhe. Nada de confusões. Foi, sim, uma actuação absolutamente ilegal sob a capa da legalidade, prepotente e abusiva dirigida contra o exercício de direitos cívicos e políticos legítimos, local e internacionalmente consagrados.
Não há nada de ilegal, nem de atentatório contra a segurança de nenhum Estado, salvo se for um Estado autoritário, em pretender-se participar em eleições democráticas e transparentes, de acordo com as leis vigentes, utilizando métodos democráticos e sem recurso à violência, visando vencê-las, obter a maioria dos lugares no órgão legislativo e assim, por essa via, mudar as políticas do Governo.
Nem se vê de onde possa vir a ilegalidade da escolha dos melhores candidatos, daqueles que estariam de acordo com os participantes mais aptos a representar os interesses dos eleitores, através do recurso a eleições primárias, num processo democrático de escolha, à semelhança do que acontece em qualquer democracia, levado a cabo à luz do dia, de forma absolutamente pacífica e respeitando as exigências do combate à pandemia.
Compreende-se que seja difícil a Portugal perceber o que se está a passar quando tem em Pequim um crânio da diplomacia que está convencido, e ainda por cima di-lo, que os “macaenses” são titulares de documentos que lhes permitem viajar livremente na China, o que o leva a distinguir macaenses de nacionais portugueses residentes em Macau da mesma forma que distingue chineses de portugueses. Como se os macaenses, na sua esmagadora maioria, não fossem cidadãos como os outros, e eles próprios não fossem cidadãos nacionais e não se identificassem como portugueses de Macau.
Há muitos que por estas bandas, sendo macaenses de origem e/ou estrangeiros residentes, e não só, não vivendo dos subsídios e das negociatas que alguns ainda vão conseguindo, nem por isso deixam de se preocupar.
O modo como de uma forma mais ou menos sub-reptícia se vão colocando entraves ao exercício de direitos consagrados, vendo no seu exercício actos de subversão, interpretando-se as leis nos termos que mais convenham ao poder político, mostra que a aproximação entre sistemas não se faz pela valorização do segundo sistema, com a consequente manutenção de garantias, mas antes pela via acelerada da aproximação aos modelos de controlo policial e burocrático típicos dos estados autocráticos.
Ignorar isto para se assegurar o bem-estar de meia-dúzia de bajuladores, em prejuízo de toda uma comunidade que aqui quer continuar a viver e a trabalhar sem que para isso tenha de ver cerceadas as suas liberdades, incluindo a de se deslocar sem mais entraves do que os necessários ao controlo da pandemia, além de ser estúpido é desconforme aos valores constitucionais e à história. Não à história passada, mas à recente.
Sem confiança, sem respeito pela palavra, entre meias-palavras, propaganda e promessas vagas, brindando, sorrindo e comprando e vendendo vistos ou empresas, pode-se seguramente continuar a procriar, mas não será possível assegurar um futuro com dignidade.
E sem dignidade, estendendo a mão à esmola de quem financia a escola e a exposição, a edição do livro correcto, ou nos leva em excursão, versejando loas, só por ilusão se viverá de costas direitas.
Menos ainda se estará protegido das intempéries, do frio e do vento cortante que chegam com a monção de Inverno. Nem em Portugal, nem em parte alguma.