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Delito de Opinião

Cultura em Maputo, Política aqui

jpt, 31.07.24

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1. Um amigo, camarada de anos a fio em Moçambique, e que comunga o meu interesse pelo país e pelo que faz o nosso Estado nas relações bilaterais, e em particular nas questões culturais, avisa-me desta notícia: a nomeação de um novo adido cultural para a embaixada de Maputo, José Amaral Lopes, antigo secretário de Estado da Cultura e antigo presidente do Conselho de Administração do D. Maria II, deputado, entre várias outras posições de destaque. Dado o seu perfil "alto" é surpreendente a sua indicação para este posto, até modesto. Mas para todos que se interessam por estas matérias - a mescla entre "acção cultural externa" e "cooperação" - uma nomeação de alguém com este peso biográfico tem um significado: denota um grande e assisado interesse governamental no desenvolvimento destas relações culturais, decerto articulado com alguma capacidade para reforçar os  meios, materiais e humanos, dedicados a essas interacções. Fica-se assim - e mesmo que sem "pedir a Lua" - na expectativa de um período de grande desenvolvimento nas conjugações culturais entre ambos os países. Possamos nós fruir disso!

 

2. Paralelamente - mas sendo, de facto, uma irrelevância - a notícia desta nomeação tem um factor denotativo da mesquinhez intelectual dos mecanismos partidários, em particular os do PS. Amaral Lopes exerce actualmente as funções de presidente de junta de freguesia, eleito pelo PSD. Abandonará o posto para assumir estas novas funções.

O dirigente lisboeta do PS, David Amado, critica-o por ter abandonado a freguesia, dela fugido. Deixando assim até implícito um elogio ao actual presidente, dado que considera gravosa a sua substituição. Mas é a demonstração da total impudicícia desse dirigente socialista. Pois há poucos meses, nesta mesma sua concelhia partidária, um também presidente de junta de freguesia, o socialista Costa, abdicou das suas funções, indo (sem currículo que o justificasse) liderar um mecanismo televisivo de produção de opinião pública. Amado então nada contestou. Entretanto, aqui nos Olivais a socialista presidente de Junta, Rute Lima, aquando reeleita logo se foi a trabalhar para a nova Câmara PS de Loures, e vem por cá "exercendo" funções em regime "parcial". E Amado ficou mudo.

E já agora, até porque o postal é sobre "cultura"  e nisso "bibliotecas" - a do Camões em Maputo é muito relevante na cidade - convém relembrar que a biblioteca da Junta de Freguesia dos Olivais, a antiga Bedeteca, sita no Palácio do Contador-Mor (sempre associado aos Olivaes de "Os Maias") está fechada há mais de três anos. Devido a umas obras não estruturais, que se diz terem sido cabimentadas 2 vezes (!!!), e que se vieram arrastando por incúria da junta - estando agora aparentemente culminadas sem que a biblioteca reabra. Diz-se no bairro, e quem sabe, que esteve prevista a reabertura para o início deste Verão, transitando depois para Outubro. Mas que deverá acontecer apenas cerca do Ano Novo - para agitar as águas em ano de eleições autárquicas. Sobre tudo isto - e tanto mais - não fala o tal David Amado. Nem as hostes socialistas.

A Rússia e África

jpt, 10.05.24

Putin espera "maior coordenação" com Moçambique no Conselho de Segurança da  ONU - SIC Notícias

Desde os meus tempos de petiz que foi evidente a minha inabilidade para as artes plásticas. A falta de talento terá também convocado a amargurada desmotivação. E tudo descambou, a ponto de no 8º ano ter chegado ao ponto - inusitado - de reprovar na disciplina de "Educação  Visual", notícia recebida pelos meus pais com notório desencanto. E devido a esse meu défice sempre me ficou vedada a opção de rematar debates com o sacrossanto posfácio "percebeste, ou queres que te faça um desenho?", tantas vezes necessário, principalmente quando se trata de explicar o óbvio, este para alguns tão difícil de apreender.

Sinto-o, recordo-o, agora, quando vários amigos - prenhes de verrina, até sádica (como já aqui lamentei) - me cutucam com a notícia de que a Iniciativa Liberal convocou o ministro dos Negócios Estrangeiros para que se apresente na Assembleia da República, explicando o que vai fazer face às negociações aproximadoras entre a Rússia e países africanos membros da CPLP. Enviam-me a notícia com comentários e invectivas, tipo "olha os teus amigos da IL", e imagino-lhes os sorrisos sarcásticos enquanto teclam. Sabem eles, e por isso me gozam, que louvei - enfaticamente - a intervenção parlamentar que há meses a IL fez relativamente às problemáticas eleições autárquicas em Moçambique (em 26.10.23 e em 30.10.23). Tal como, e já agora recordo-o porque  vem a propósito, muito louvei a intervenção no Parlamento Europeu que o agora ministro Paulo Rangel fez, relativamente aos conflitos no norte de Moçambique (18.9.20 e 3.10.20). 

Acontece que também sabem eles, esses meus amigos - e até eu o sei, caramba - que é pertinente uma intervenção parlamentar (em cenário nacional ou internacional), sonora, apelando à conjugação de esforços para obstar a situações de facto gravosas em contextos alheios, servindo isso para reforçar nossas iniciativas nacionais e tentando induzir posições alheias. E que é completamente diferente - impertinente, entenda-se - uma intervenção parlamentar, sonora (e querendo-se até tonitruante), convocando acções para afrontar as legítimas relações bilaterais e multilaterais de Estados soberanos, nossos aliados. (E permito-me recordar que sobre esta questão escrevi "A CPLP e a Ucrânia" em 4.3.22). 

Ou seja, face à crescente interacção entre a ditadura russa e os nossos aliados PALOP (países africanos de língua oficial portuguesa) é desejável que a diplomacia portuguesa acompanhe o processo, tente contrabalançar um pouco a situação. Na surdina que lhe é virtuosa essência. Mas é descabido, pois até contraproducente, que isso sirva para a agit-prop cá no burgo.

Mas mais ainda: são consabidas as fortes relações, económicas e políticas, entre a Rússia e o nosso aliado PALOP (país americano de língua oficial portuguesa), traduzidas num relativo apoio do Brasil à investida de Moscovo na Ucrânia, tanto durante a presidência de Bolsonaro como na de Lula da Silva. Vai a IL chamar o MNE Rangel ao parlamento para que este avance o que irá fazer diante dessa situação? Não, como é óbvio.

Enfim, o que mostra isto? Que se pode tirar a criança do Império, mas não se tira o Império da criança. É certo, pode-se ser optimista, ansiar que a criança cresça, amadureça, se ilumine. E é por isso, por essa minha vontade episódica de optimismo (antropológico), que faço este pedido: dado o meu acima referido défice gráfico será que alguém dotado o suficiente poderá desenhar uma ilustração deste óbvio e enviá-la à sede da IL? A ver se amadurecem?

(Post-scriptum: nas próximas eleições europeias votarei na IL).

De quem viu muito sem se cansar da vida

Pedro Correia, 01.12.23

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Terça-feira, 28 de Novembro, no auditório 2 da Fundação Gulbenkian

 

Fui apanhado de surpresa quando Francisco Seixas da Costa mencionou o meu nome - na excelente companhia do Francisco José Viegas - no auditório 2 da Fundação Gulbenkian, terça-feira passada, ao fim de um dia muito chuvoso em Lisboa. 

A intempérie não desmobilizou os amigos e admiradores do nosso antigo embaixador em Paris e Brasília, agora livre dos deveres da profissão que exerceu durante décadas e que o levou do melhor (o atribulado mas bem sucedido processo que conduziu à independência de Timor-Leste e a etapa final da nossa integração no sistema monetário europeu) ao pior (a invasão do Iraque, sem mandato internacional nem evidências que a suportassem no terreno, decidida pelo poder político da altura, ao qual as nossas legações diplomáticas estavam vinculadas). 

Seixas da Costa fez alusão sumária a tudo isto na mensagem que nos deixou nesta concorrida sessão onde revi amigos e conhecidos, entre os mais de 300 que lá estávamos. Naquele estilo que lhe conhecemos das intervenções televisivas e lhe ficou da carreira diplomática: sabe ser acutilante sem perder a elegância. Estilo que me lembra, ao nível da escrita, a prosa de Graham Greene, de que tanto gosto.

Jaime Nogueira Pinto, um dos apresentadores da obra, tentou convencê-lo durante anos a escrever um romance. Será menos difícil do que parece, como o próprio Jaime demonstrou ao publicar Novembro - para mim, como já lhe disse, um dos dez melhores romances portugueses deste século XXI. Mas o embaixador é categórico: não nasceu para romancista. É mais um cronista, como sublinhou o Ferreira Fernandes, que também tive o gosto de reencontrar. E ele sabe do que fala, pois é um dos nossos melhores cronistas. Disciplina nobre da literatura, digam as sumidades académicas o que disserem.

 

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À minha modesta escala, terei dado também algum contributo para que Antes que me Esqueça (D. Quixote, 685 páginas) visse a luz do dia. Insisti com Seixas da Costa, em conversa e por escrito, para que transformasse o seu registo memorialístico de blogue em livro. No fundo, o romance da sua vida - designadamente a vida profissional, que tantas vezes vimos retratada na ficção mas da qual na realidade acabamos por saber tão pouco. 

É o que mais me fascina nesta obra, que agora releio pois recolhe textos originalmente publicados no blogue Duas ou Três Coisas. Releitura com idêntico prazer ao da primeira visita. Pelo tema inesgotável - são aqui recordados saborosíssimos episódios ligados à carreira diplomática e aos diversos palcos internacionais que o autor foi percorrendo, sem renegar as raízes transmontanas. Ser embaixador é um pouco isto, como também foi sublinhado na Gulbenkian: súmula de histórias fascinantes. Cada uma, bem desenvolvida, daria conto ou novela.

Mas, confesso, prefiro este formato. Não há necessidade de seguir linha cronológica: podemos abrir Antes que me Esqueça e deixar-nos prender por qualquer texto em qualquer página. Excelente título, devo sublinhar - um dos melhores que tenho encontrado. Poderia ter subtítulo de matriz queirosiana: "Cenas da Vida Diplomática".

Com a prosa de sempre: límpida, escorreita, sem uma palavra a mais. De quem viu muito sem nunca se cansar da vida e exerce com notório agrado o dom da narrativa. Transmitindo ao leitor este dom, que tantos supõem ter mas está ao alcance de poucos. Seixas da Costa merece parabéns: é um destes eleitos. 

Brilhante estratego, fraco profeta

Henry Alfred Kissinger (1923-2023)

Pedro Correia, 30.11.23

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Teve uma vida cheia - e lúcida e activa até ao fim. Morreu ontem, tranquilamente, na sua casa do Connecticut. Já centenário, há quatro meses fez uma última visita a Pequim, onde foi recebido por Xi Jinping, que o enalteceu como amigo perpétuo da China.

Catedrático emérito da Universidade de Columbia, talvez o maior especialista em política internacional nos escalões dirigentes norte-americanos da última metade do século XX, Henry Alfred Kissinger, nascido em Maio de 1923 na Alemanha e radicado na América desde 1938, levou uma perspectiva europeia ao Departamento de Estado. Antecipando o que mais tarde, na viragem do milénio, sucederia com Madeleine Albright durante a administração Clinton.

Como conselheiro especial do presidente Richard Nixon, de quem se tornou braço direito para a política internacional, com prolongamento para a administração Ford, subiu tão alto quanto lhe era possível em Washington. Foi o primeiro judeu a desempenhar as funções de secretário de Estado - terceiro posto na hierarquia do Executivo. Faltou-lhe apenas ter sido candidato à presidência, o que lhe estava constitucionalmente vedado por não ter nascido com a nacionalidade norte-americana.

 

Este europeu transposto para o Novo Mundo era herdeiro directo dos "realistas" que retalharam o mapa mundi ao longo de um século -- da Convenção de Viena, em 1815, à cimeira de Versalhes, em 1919. Com duas convicções básicas: nenhum país tem aliados permanentes, só interesses permanentes; e não haverá vencedores em guerras na era atómica. Assim promoveu o degelo nas relações entre Washington e a China comunista primeiro e com a União Soviética logo a seguir. As duas mais espectaculares acções norte-americanas das últimas décadas na política externa.

Legou-nos detalhadas memórias em três volumes e várias obras ensaísticas dissecadas nos circuitos universitários e nas chancelarias internacionais, além de conquistarem leitores fiéis entre os cidadãos comuns. Diplomacia, por exemplo, é um trabalho académico de grande fôlego, confirmando o autor num patamar de erudição muito superior ao da média entre a elite política no seu país adoptivo.

 

A originalidade de Kissinger, nos salões e gabinetes de Washington, radicou-se na sua visão da política externa americana inspirada nos cem anos anteriores dos meandros da diplomacia europeia. Também influenciado, naturalmente, por circunstâncias da sua biografia pessoal: ter nascido numa família hebraica entre as duas guerras mundiais e conhecer a experiência totalitária não em abstracto mas no concreto. O regresso à Alemanha devastada pela guerra, enquanto cumpria o serviço militar já como cidadão norte-americano e exerceu funções de tradutor nas forças armadas, levou-o a perceber como são débeis os pilares daquilo a que chamamos civilização e como se havia tornado irrisória a influência europeia nos destinos mundiais.

A sua tão propalada realpolitik limitou-se, no fundo, a seguir os trilhos abertos por Ialta, na cimeira que dividiu o globo em esferas de influência. O planeta multipolar dos nossos dias, com emergentes potências de âmbito regional, baralhou toda a lógica anterior, que a geração de Kissinger preferia, pois a política de blocos, ideologicamente antagónicos mas perfeitamente identificáveis, assegurou meio século de relativa paz em diversas regiões do globo.

Consumado xadrezista, Kissinger valorizava na política externa as linhas de continuidade estratégica em função das quais as alianças entre nações assumiam uma geometria variável ditada por conveniências tácticas. A aproximação simultânea de Washington a Moscovo e Pequim, sob o seu comando, aconteceu como via de exploração das divergências entre russos e chineses que à época fracturavam o mundo socialista e acabaram por disputar as boas graças dos EUA.

Neste aspecto foi hábil sucessor dos mestres da diplomacia oitocentista na Europa, desde logo Metternich, e opositor da visão messiânica dos Estados Unidos na promoção das boas práticas democráticas à escala planetária.

 

Culto, cosmopolita, viajado, com solidez intelectual e uma perspectiva abrangente do mundo, Kissinger adquiriu fácil relevância no contexto norte-americano, ou seja numa diplomacia globalmente sofrível - para não dizer medíocre. No tempo em que desempenhou funções de relevo em Washington, só 17 senadores tinham passaporte, o que revela muito sobre a classe dirigente dos Estados Unidos.

Há que lembrar, de qualquer modo, que se revelou fraco profeta em relação a Portugal, ao vaticinar em 1975 que o nosso país sucumbiria a uma "ditadura comunista" capaz de funcionar como "vacina" para o conjunto da Europa. E não esqueço o aval, directo ou indirecto, que deu aos generais indonésios para invadirem Timor.

Era uma figura compreensível no contexto da Guerra Fria - e sobretudo à luz desse contexto merece ser valorizada. Pelo menos sabia apontar qualquer país no mapa, teste em que provavelmente muitos dos seus antecessores e alguns dos seus sucessores falhavam.

Centenário

Pedro Correia, 27.05.23

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«As dificuldades são também um desafio. Não têm de ser sempre um obstáculo.»

Henry Kissinger, The Economist (Maio de 1923)

 

Viveu muito, leu muito, viajou muito, conheceu muito.

Ensinou muito - e continua a fazê-lo, com plena lucidez intelectual, neste dia em que celebra cem anos.

Henry Albert Kissinger, nascido a 27 de Maio de 1923 na Baviera, fugido com os pais do regime nazi, refugiado em Nova Iorque aos 15 anos. Em 1943, naturalizou-se cidadão americano. Serviu no exército dos Estados Unidos durante a II Guerra Mundial. Escapou à morte, mas o sistema totalitário tocou-o de perto: 13 dos seus parentes sucumbiram no Holocausto.

Admirado, invejado e detestado em partes iguais, pontificou nas administrações Nixon e Ford entre 1969 e 1977. Primeiro como conselheiro da Segurança Interna, depois como secretário de Estado - terceiro posto na hierarquia governamental. No auge do caso Watergate, chegou a ser ele a segurar no leme. Enquanto rasgava horizontes na política externa norte-americana: liderou o degelo diplomático com a República Popular da China ao avistar-se com Mao Tsé-tung, levou Washington a substituir os soviéticos como força dominante no Médio Oriente ao assumir-se como interlocutor entre israelitas e árabes, negociou a limitação de armas estratégicas com Moscovo em plena Guerra Fria. 

 

Doutorou-se com uma tese sobre Metternich (1773-1859), príncipe da diplomacia no império austríaco, expoente máximo da doutrina realista contra os idealistas, responsáveis por tantos conflitos bélicos.

Nos anos 50 e 60 foi um dos mais famosos professores em Harvard, onde leccionou Ciência Política antes de rumar aos palcos mundiais como comandante norte-americano para os assuntos externos. Com várias sombras entre muitas luzes, incluindo o apoio activo às ditaduras de Pinochet no Chile e de Suharto na Indonésia (dando cobertura à invasão de Timor em 1975) e a sua falhada visão de um Portugal mergulhado no comunismo em 1975, útil como «vacina para a Europa». Ao contrário do que previa, os comunistas foram derrotados aqui. Enquanto ganhavam terreno em África e no Sueste Asiático: o Nobel da Paz que recebeu em 1973 pelos acordos de Paris anteriores à retirada norte-americana do Vietname ainda suscita polémica.

Facto inegável: foi um dos mais brilhantes intelectuais que trabalharam nos últimos 60 anos na Casa Branca. Após abandonar funções públicas, tornou-se consultor de monarcas, presidentes e primeiros-ministros. Já nonagenário, continuou a percorrer o mundo: só a pandemia, em 2020, o reteve na sua casa rural no Connecticut. Mas ainda frequenta regularmente o seu escritório, no 33.º andar de um edifício art déco em Manhattan. E continua a publicar livros. Tem dois muito recentes. Um sobre inteligência artificial (tema que o fascina e preocupa), outro sobre seis políticos que conheceu pessoalmente: Konrad Adenauer, Charles de Gaulle, Richard Nixon, Anwar Sadat, Lee Kuan Yew e Margaret Thatcher (Liderança, já com edição portuguesa da Dom Quixote).

Do antigo Presidente francês, cita com frequência uma frase emblemática sobre comando político: «Assumir riscos constantes numa perpétua luta interior.»

 

Em recente entrevista ao Sunday Times, pronunciou-se sobre a invasão russa da Ucrânia. Elogiando Zelenski: «Não há dúvida de que cumpriu uma missão histórica.» E criticando Vladimir Putin: «Chefia um país em declínio e perdeu o sentido das proporções nesta crise.»

Judeu, aos 9 anos o pequeno Heinz (só viria a chamar-se Henry na América) viu Hitler ascender ao poder no seu país natal, onde em menino adorava jogar futebol. Nem o exílio forçado nem o incêndio da Europa que testemunhou ao vivo diminuíram o proverbial optimismo que muitos lhe reconhecem. Mas vai advertindo contra os sinais de crescente desagregação da ordem mundial que imperou nas últimas três décadas: «A segunda Guerra Fria será ainda mais perigosa do que a primeira.»

Um aviso que deve ser levado a sério. Vem de quem sabe mais e viu muito mais do que qualquer de nós.

Chagas Freitas

jpt, 05.08.22

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Leio nas "redes sociais", enviam-me por WhatsApp, anda na imprensa, múltiplos resmungos e sarcasmos porque o escritor Chagas Freitas foi recomendado para uma selecção de leituras europeias pelo pessoal da REPER. Nunca li, recuso-me a contestar - até porque amigos me desafiam a isso - alguém que nunca li (lembro-me dos "jovens turcos" liberalóides que sobre Saramago escreviam, orgulhosos de serem imbecis, "não li e não gosto").
 
Até porque a questão, se é que esta existe, é bem diferente. E ninguém a põe, claro. E até é simples: até que ponto é curial que o pessoal técnico-diplomático possa usar as suas funções estatais para recomendar agentes culturais portugueses segundo os critérios dos seus gostos? Seja Saramago seja Chagas Freitas. Mas discutir isso é muito mais complicado do que a auto-encenação da erudição própria, avessa ao que o cânone não reconhece.
 
(Será de ler este artigo de José Riço Direitinho - pois nele constam duas coisas necessárias: como evitar estas coisas. E, ainda mais importante, pontapeia o insuportável "Principezinho", unanimemente aclamado e com o qual Chagas Freitas foi comparado).

Ao trabalho

Sérgio de Almeida Correia, 27.04.22

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O novo Embaixador de Portugal entregou ontem a sua Lettre de créance ao Imperador do Japão. É o início de um novo ciclo da diplomacia portuguesa em terras longínquas e num período conturbado das relações internacionais.

O formalismo a que esse acto está sujeito ficou bem patente na breve mas excelente e ilustrativa reportagem conduzida pelo Filipe Santos Costa (CNN Portugal).

Daqui, ao novo representante diplomático e à sua equipa desejamos as maiores fortunas. Que o trabalho seja profícuo e as relações entre os dois países continuem a progredir, fortalecendo-se os laços de amizade e boa cooperação.

Ao Vítor Sereno, cujo trabalho em Macau e no Senegal foi a vários títulos notável, quer pela dedicação à função, quer pela atenção constante a tudo e a todos, inclusive aos emmerdeurs de várias linhagens, aqui ficam os meus votos para que continue a cumprir e a fazer aquilo que de melhor sabe e para que está fadado. Para bem de todos nós.

Assim não, senhor ministro

Sérgio de Almeida Correia, 12.01.22

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O problema de uma pessoa assumir vários papéis, e querer tocar diferentes instrumentos ao mesmo tempo, é que normalmente dá mau resultado. Tal só não acontece se o executante for de excepção e não tiver um discurso para dentro e outro para fora.

Vem isto a propósito de na passada segunda-feira, 10 de Dezembro, numa acção de pré-campanha levada a cabo pelo Partido Socialista,  Augusto Santos Silva, que é o cabeça de lista do PS pelo Círculo Eleitoral de Fora da Europa, ter participado numa conversa, que contou com vários interlocutores de Macau, intitulada “Ouvir as Comunidades”, a qual foi transmitida em directo e está disponível em diferido numa rede social.

Independentemente do maior ou menor interesse do que por ali se disse, entre assuntos importantes e trivialidades de sacristia, durante umas longas duas horas, houve uma coisa que não passou em claro. E que não podia ter sido dita.

A dado passo da conversa, o candidato, esquecendo-se que é também ministro dos Negócios Estrangeiros, deu conta da mudança do Cônsul-Geral em Macau, ainda no corrente ano, fazendo questão de esclarecer ser seu compromisso, no futuro, "nomear alguém que corresponda a todas as dimensões da actividade consular, que não é apenas de passar papéis, mas que compreende também a dimensão económica, empresarial, relação com as associações, a dimensão do apoio à escola portuguesa". Acrescentou, ainda, que "todas estas dimensões são muito importantes para o cônsul português em Macau e a nomeação que farei terá de ter em conta a avaliação em todas estas dimensões". 

Se ao ministro, isto é, ao candidato, já não ficava bem com tão pouca diplomacia e elegância anunciar numa acção partidária a saída do representante diplomático português em Macau, pior ficou a pintura com aquilo que disse, pois que ao fazê-lo esqueceu-se de que fora ele quem nomeou o actual titular. 

Se tais critérios não foram antes tidos em consideração, deviam-no ter sido. Se mudou o critério escusava de dizê-lo desse modo. Muito menos quando o visado continua em funções. Lamento ter de sublinhá-lo.

Confesso que não percebo, depois de tudo o que tem acontecido em Macau de há vários anos a esta parte, e não obstante a desatenção e desvalorização do MNE, e de quase todos os responsáveis políticos portugueses e do PS, aos sinais que foram sendo transmitidos para Lisboa, designadamente quanto ao cumprimento da Declaração Conjunta e da Lei Básica (que só após muita insistência e numa situação extrema vieram a ser referidos), qual o interesse na menorização da nossa representação consular e do seu titular. 

Para o bem e para o mal, Paulo Cunha Alves é um diplomata de carreira com o posto de Embaixador e o mais alto representante de Portugal em Macau. E sendo um profissional, o diplomata não poderia ter dado outra resposta do que aquela que deu quando ouvido por um matutino local sobre o assunto.

Se no passado critiquei a inacção, ignorância e incompetência de alguns face aos assuntos de Macau, independentemente da respectiva cor política e sempre que estavam em causa os interesses de Portugal e dos residentes, impõe-se agora, ciente de que nisto tenho a compreensão e o apoio de muitos dos que aqui vivem, que seja publicamente manifestada a minha solidariedade ao Cônsul-Geral de Portugal em Macau.

Estiveram mal o ministro e o candidato. Esteve bem o representante consular.

Em campanha, ou pré-campanha, nem tudo pode ser dito. E há coisas que não se dizem de todo quando se é ministro de um Governo da República. Mesmo quando se é também candidato. Um homem não é só a sua circunstância.

José Cutileiro - In Memoriam

João Pedro Pimenta, 18.05.20
Entre outras qualidades havia duas que apreciava particularmente em José Cutileiro: tinha, tal como eu tenho, um tipo de escrita com frases longas e adjectivadas (embora lamentasse não usar muitas vezes o artigo definido) e escrevia os magníficos obituários do Expresso, o espaço In Memoriam, amiúde de figuras excêntricas de que nunca antes tinha ouvido falar, ou de que não saberia à altura que tinham morrido se não os tivesse lido. O último saiu precisamente ontem, com destaque para Iris Love e Little Richard, o criador da célebre Tutti Frutti.
Cutileiro era formado em antropologia e destacou-se como diplomata (sem ser de carreira), exercendo cargos de relevo na Comissão de Paz para a Jugoslávia, uma missão quase impossível, onde nfelizmente as suas ideias para a Bósnia não vingaram, e como secretário-geral da UEO. Para além dos cargos oficias, mantinha colunas nos jornais e na rádio, como a supracitada ou o Visão Global, da Antena 1, e claro, as da personagem A.B. Kotter (que influenciaria outros cronistas-fantasma no futuro, alguns ainda em actividade), recolhidas na colectânea Bilhetes de Colares.
É muito estranho pensar que nos deixou o autor dessa necrologia de elite, embora já me tivesse ocorrido quem os faria quando ele por sua vez partisse. Esperemos que o espaço não fique em branco para além da próxima semana. E também quem fará o epitáfio jornalístico do próprio Cutileiro. Seja quem for, não será a mesma coisa.
Expresso | José Cutileiro, o embaixador que testemunhou a mudança ...

A ler

Sérgio de Almeida Correia, 15.05.20

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Are we witnessing the end of the Golden Age of Chinese Diplomacy? 

"Chinese diplomacy is dying, in full public view. It is starting to no longer focus on external audiences, cultivating friends and opening doors, and is instead becoming an appendix of China’s propaganda apparatus, focusing on domestic audiences." 

Um texto muito interessante vindo de um analista fora do mainstream habitual.

Sim, falar falamos

Sérgio de Almeida Correia, 14.05.19
TASS33281723.jpg(créditos: Anton Novoderzhkin / TASS)

 

In illo tempore, em Moçambique, um médico foi chamado a arbitrar um conflito que, creio, opunha um curandeiro a um régulo num lugarejo remoto. Não falando o dialecto local o clínico recorreu a quem o acompanhava para a tradução. Passados uns bons minutos, durante os quais os intervenientes iam, pensava ele, terçando argumentos enquanto faziam vénias e trocavam sorrisos e gargalhadas, o árbitro interrompeu para perguntar o que já tinham dito. "Até agora nada, doutor, têm estado só a falar", respondeu o tradutor ad hoc.

Vem isto a propósito porque ao chegar a casa liguei a televisão e dei de caras com a conferência de imprensa de Mike Pompeo e Sergei Lavrov, em Sochi.

Pelo que ouvi, praticamente todos os assuntos importantes e que interessam à comunidade internacional foram passados em revista. Venezuela, Síria, Irão, Ucrânia, eleições presidenciais nos EUA, "democracia" na Líbia. Calculo que o ataque de drones na Arábia Saudita também tenha sido ventilado.

Estranhei, apesar de tudo, que não tivessem falado das incidências dos jogos da "Liga Nos", nem do "VAR". Mas o tempo não dá para tudo nos canais internacionais. E lá fora não se podem dar ao luxo de ter um exército de "paineleiros", de todas as formas e feitios, com os penteados, as gravatas e os sotaques mais mirabolantes, durante horas, dias, anos a fio, em múltiplos canais de televisão, falando em futebolês criativo, faça chuva ou faça sol,  gritando e gesticulando, oferecendo-se reciprocamente mimos, não raro desafiando-se para duelos "lá fora", como se fossem Jaime Nogueira Pinto e Ruben de Carvalho a discutirem a crise dos mísseis cubanos. Têm sempre pano para mangas. E audiência, o que é ainda mais espantoso.

De qualquer modo, deu para perceber do encontro em Sochi que a atmosfera foi muito "amigável", de grande respeito mútuo e admiração. Nas palavras do MNE russo foi uma "conversa franca e útil". 

Confesso que não vejo grande diferença entre o que aconteceu no Vale do Limpopo com o conflito que opunha o curandeiro ao régulo e o que, ultimamente, Trump e Xi Jinping dizem de cada vez que se reúnem. "We have a good dialogue with China", diz o estado-unidense. Quando não corre bem não passa de um "we had a little squabble with China". Acontece o mesmo nos encontros com o celerado Kim, da Coreia do Norte, com excepção da parte da conferência de imprensa. Porque há sempre um que amua antes da sobremesa. 

A situação não foi hoje muito diferente no diálogo de Pompeo com Lavrov. Para todos os efeitos, conversa franca e útil, claro.

Os impasses, como as crises, os refugiados, o perigo nuclear, o terrorismo, a catástrofe ambiental, o drama da fome, as epidemias, a miséria moral, a estupidez humana e a ignorância é que são hoje permanentes. E cada vez mais universais.

Ruanda

jpt, 08.04.19

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25 anos sobre o cume da eficácia genocida, no Ruanda. Para se compreender o acontecido - e muito mais relevante do que as súmulas de jornais - deixo aqui um texto (20 páginas) do meu amigo (e colega), e ex-co-bloguista, Fernando Florêncio, professor em Coimbra. O qual, logo após a hecatombe, esteve dois anos no país (1994-1996) a chefiar uma missão internacional. Homem discreto, pois muito mais teve para contar, mas reteve-o, decerto que por demais doloroso para ser passado à escrita. Mas narrava-o nos nossos almoços e jantares, quando nos cruzávamos em Lisboa. E bem lembro o que avançava sobre a emergente guerra no então Zaire, muito efeito da crise ruandesa, coisas que o poder político-diplomático luso, sempre tão lânguido, não tinha interesse em ouvir (e chega este tipo de diplomata a embaixador e ministro ..., gente impávida na sua extrema mediocridade). Tão discreto que googlo agora sobre se algum órgão de comunicação social o contactou mas nada, preferirão os habituais tudólogos, profissionais de painéis.

Do acontecido lembro o "frisson" com que se recebiam as notícias, estava então na missão eleitoral na África do Sul. Era imensa a festiva expectativa com a chegada ao poder de Mandela (nesse mesmo Abril de 94). Mas também o receio que a situação descambasse num conflito, na confluência de revanchismos. O Ruanda era um horror mas também um pesadelo, a aterrorizar o futuro.

Para a actualidade retiro duas coisas: a peçonha de haver investigadores portugueses pagos pelo Estado, e estabelecidos em instituições públicas, que publicam textos (no "referencial" Público) afimando que "só há racismo dos brancos, os negros quanto muito poderão ter preconceitos". A sujeição prostituta de alguns "cientistas" sociais à agenda do BE serve para tudo.

E recordo também tempos de meados de 2000s, quando tive alguns alunos ruandeses, normalmente cursando a licenciatura de ensino de francês. Refugiados, vindos do campo de Bobole (ainda não tinha havido a concentração em Nampula). Homens já crescidos, no dealbar dos 30s. E recordo da minha disciplina, de nunca lhes perguntar - em particular a um, mais habitual visita do meu gabinete, interessado em temáticas mais socioantropológicas - qual a respectiva origem. Não querendo assim entreabrir a porta do Horror. Não querendo saber o passado desses seus agentes ... E é importante lembrar isso neste tempo de burguesotes sacralizando "refugiados". Pois a realidade não cabe toda na rua da Rosa, 1985.

A diplomacia do "vai-se andando"

Alexandre Guerra, 02.04.18

Portugal é o país do “vai-se andando”, do “assim-assim”. Pergunta-se a alguém como está e lá vem a invariável resposta: “Vai-se andando” ou “assim-assim”. O português, por natureza, não assume um estado de espírito polarizado, nem que está bem, nem que está mal. Prefere o conforto da zona intermédia, para não ter que gerir expectativas elevadas se estiver tudo bem, evitando, assim, as desilusões, e para não ter que assumir os malefícios se estiver tudo mal, fugindo, deste modo, às depressões. Não se veja nisto um defeito ou uma crítica, até porque esta posição contempla uma certa sabedoria e uma dose de realismo e moderação, ou seja, uma aceitação daquilo que é. Os portugueses, ou os "indígenas", como diria Vasco Pulido Valente, viveram sempre num certo estádio de alheamento de outras realidades, mas a verdade é que parecem ter-se dado bem com isso, escapando às grandes tragédias da História.

 

Vendo bem as coisas, Portugal é assim há quase 900 anos, “vai andando” ao longo da História, gerindo os seus interesses, sem assumir posições dolorosas ou dramáticas, sem escolher campos ou causas. Quando se estuda a história político-diplomática portuguesa compreende-se a razão pela qual o nosso país foi conseguindo navegar nos conturbados tempos da História sem perder a sua independência e nacionalidade, conseguindo feitos admiráveis para um Estado desprovido do poder das armas. Um desses feitos passa precisamente pela capacidade que Portugal tem de levar os seus interesses por diante ou de resistir a ameaças de grandes potências quando foi confrontado com elas. Soube reagir a momentos de crise e resistir contra o inimigo dentro das suas fronteiras.

 

É um dos Estados-nação mais antigos do mundo, lançou a globalização, chegou a dividir o mundo em dois, construiu impérios, obteve riqueza, propagou uma língua global, criou laços emocionais com os povos colonizados como mais nenhuma antiga potência criou. Esteve sempre presente nos grandes concertos europeus e mesmo quando não alinhou claramente junto dos aliados na IIGM, conseguiu sair dessa guerra como um dos “vencedores”. Embora seja membro fundador da NATO, é visto como um país pacífico e um dos mais seguros do mundo. Apesar de participar em inúmeras missões militares contra o terrorismo, está fora do radar do fundamentalismo islâmico. Está totalmente integrado nos principais fóruns do sistema internacional e, às vezes, muitos esquecem que, segundo o Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, Portugal está entre a elite dos 50 países mais desenvolvidos do mundo.

 

Nos últimos anos, conseguiu feitos absolutamente notáveis ao nível da sua diplomacia, projectando uma imagem externa muito para lá daquilo que é o seu efectivo poder. Promoveu cimeiras históricas, forjou tratados internacionais e até elegeu líderes internacionais. Portugal, neste seu pequeno canto, posiciona-se hoje novamente no topo do mundo. A poderosa Espanha vai olhando para Portugal com alguma inveja da nossa diplomacia. E tudo isto para dizer o quê? Simplesmente, para dizer que em matéria de política externa, a nossa diplomacia merece todo o crédito.

 

É verdade que Portugal não esteve no grupo da frente na resposta dada à Rússia na sequência do envenenamento de um espião duplo e da sua filha em território britânico. À primeira vista, pode ser considerada uma traição à aliança histórica com a Inglaterra, mas, a verdade, é que a diplomacia contém muito mais do que aquilo que é aparentemente público. Desconhece-se se houve conversas prévias entre Lisboa e Londres, desconhece-se qual o enquadramento para Portugal ter agido da forma que agiu. Mas mais importante, e apesar das suspeitas, ainda não foi revelada uma prova concreta que envolva directamente o Kremlin neste acto. Se houvesse, era muito provável que Londres a revelasse aos seus aliados. O que se sabe é que, num segundo momento, as Necessidades optaram por chamar o embaixador português a Lisboa para “consultas”. É um “instrumento” ao serviço da diplomacia e que tem o seu significado. Noutros tempos, aliás, esse era um gesto que podia ser visto como um prenúncio de declaração de guerra.

 

Muitos dirão que Portugal agiu tarde e que já tinha pouca margem para não fazer nada, mas o tempo dirá se a decisão de Lisboa foi acertada ou não. O que também já se percebeu, a julgar por algumas notícias, é o cinismo de algumas chancelarias, em que ao mesmo tempo que expulsam diplomatas cimentam as relações comerciais com Moscovo. Portugal, mais uma vez, optou por um registo “ponderado”, evitando assumir posições polarizadas. Foi alvo de críticas, mas convém não esquecer que ao longo da sua História, não se tem dado nada mal com essa estratégia.

O que dirá Freitas agora?

Pedro Correia, 29.03.18

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1

Na sequência do inaceitável acto homicida que visou o cidadão russo Serguei Skripal e a sua filha Iulia, por intervenção de agentes infiltrados da Rússia em território britânico, o Governo do Reino Unido expulsou 23 diplomatas de Moscovo e solicitou a solidariedade activa dos seus aliados. Nada mais compreensível.

Nos últimos dias, 28 países - incluindo 19 Estados membros da União Europeia - anunciaram também a expulsão de quadros diplomáticos russos: um gesto de firmeza política que ultrapassa largamente o plano simbólico. Pelo menos 125 diplomatas receberam já ordem para fazerem as malas.

Entre as raras capitais da UE que permaneceram à margem deste processo inclui-se Lisboa. "Governo prefere diálogo à expulsão: diplomatas russos a salvo em Portugal", na síntese certeira de um título jornalístico. Isto apesar de o Executivo liderado por António Costa "acreditar que a concertação no quadro da UE é o instrumento mais eficaz para responder à gravidade da situação presente", como jesuiticamente observou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva. O tal que gosta de "malhar", mas é "na direita". Esquecendo que Putin é o maior apoiante financeiro e logístico da mais repulsiva extrema-direita europeia.

 

2

O nosso Governo, lamentavelmente, ignorou neste processo os compromissos inscritos na aliança histórica que mantemos desde 1373 com o Reino Unido - aliás a mais antiga relação diplomática ininterrupta da história.

Pior: a diplomacia portuguesa parece cruzar os braços perante reiteradas e comprovadas violações de direitos humanos cometidas pelo Estado russo - que inclui ataques cibernéticos com a colaboração de sofisticada pirataria informática, a intromissão em processos eleitorais estrangeiros, o assassínio e detenção ilegal de opositores, o silenciamento de jornalistas e as agressões militares contra a soberania de Estados vizinhos, nomeadamente com a anexação da Crimeia, pertencente à Ucrânia, e a criação dos bandustões russos da Abcásia e da Ossétia do Sul, tornados enclaves em território soberano da Geórgia.

Como se isto já não bastasse, os agentes de Putin liquidam compatriotas incómodos em solo estrangeiro, recorrendo a uma substância tóxica proibida por convenções que o próprio Estado russo subscreveu.

Entre os nossos amigos e aliados da UE e a cleptocracia russa, com a sua corte de oligarcas corruptos, ficamos equidistantes. Algo que não acontecia desde os tempos pós-revolucionários, quando uns tantos lunáticos andaram por aí a enaltecer a putativa integração de Portugal no lote dos países pertencentes ao Terceiro Mundo.

 

3

Afinal o prometido "novo impulso para a convergência com a Europa" que o Executivo PS prometeu em Novembro de 2015 no seu programa era apenas uma flor de retórica. Na óptica de Santos Silva, que há três meses celebrava como "vitória para Portugal" a eleição de Mário Centeno para a presidência do Eurogrupo, a solidariedade europeia será uma via de sentido único.

Por mim, fiquei esclarecido. Aguardo apenas com alguma curiosidade o pronunciamento de Diogo Freitas do Amaral, que era vice-primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros do Executivo da Aliança Democrática, que em 1980 decidiu expulsar quatro diplomatas russos, no quadro dos duros protestos ocidentais contra a invasão soviética do Afeganistão ocorrida meses antes e que incluiu apelos do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro ao boicote português dos Jogos Olímpicos de Moscovo, onde a participação nacional esteve reduzida ao mínimo.

Tudo isto sucedeu, note-se, quando ainda nem éramos membros do espaço comunitário europeu.

O que dirá Freitas do Amaral agora?

Negócios Estrangeiros

Diogo Noivo, 28.03.18

Moscovo está apostada na desestabilização política da Europa. Interferiu no referendo que culminou com o Brexit, como interferiu também no supuesto referendo de 1 de Outubro na Catalunha (de acordo com a organização Securing Democracy, os perfis russos no Twitter aumentaram em 2000% a sua actividade a favor da independência catalã na véspera da alegada consulta popular). Nas presidenciais francesas os sinais de interferência foram menores, mas o flirt com a Frente Nacional de Marine Le Pen foi claro. Embora as consequências destas intromissões sejam difíceis de aferir, o propósito de criar brechas no espaço europeu é inegável.

São, contudo, factos com contornos difusos quando comparados com o sucedido na Crimeia, com a constante violação do espaço aéreo de países do Norte e Leste da Europa, com os ataques cibernéticos a países europeus, ou com a exploração de antagonismos políticos existentes no seio de países como a Áustria, o Chipre, a República Checa ou a Eslováquia. O envenenamento de Sergei Skripal, antigo espião russo a residir no Reino Unido, é apenas o último de uma longa e penosa lista de episódios condenáveis.

Perante a sucessão de casos, 23 países ocidentais decidiram levar a cabo a maior expulsão de diplomatas russos na História contemporânea. Após anos de interferência e de pressão, há uma frente democrática que se opõe ao acosso vindo da Federação Russa. Portugal pôs-se de fora. Informa o Palácio das Necessidades que prefere a “concertação” no quadro da União Europeia para “responder à gravidade da situação presente” – nesta matéria, parece que a concertação não é uma “feira de gado”.

A prudência é sempre boa conselheira. No entanto, importa ter presente três aspectos. Primeiro, o silêncio da Europa não deu bons resultados – as intromissões russas tornaram-se cada vez mais agressivas e danosas para a salubridade democrática na Europa. Segundo, Portugal deve estar atento porque, depois de ter sido um dos últimos países a aderir à Cooperação Estruturada de Defesa, convém que não existam dúvidas sobre o nosso compromisso com a estabilidade e a segurança europeias. Terceiro e muito importante, o Governo não deve confundir os interesses nacionais, que no plano externo assentam em grande medida na União Europeia e na Aliança Atlântica, com os interesses paroquianos que estão na base da solução política que sustenta o Executivo de António Costa.

Portugal, Espanha e a Catalunha

Pedro Correia, 31.10.17

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1

Declarações unilaterais de independência, no quadro da União Europeia, são totalmente inaceitáveis. A democracia, que assenta em grandes pactos políticos e sociais, é indissociável do império da lei.

 

2

Não houve nenhum pacto tão alargado na secular história de Espanha como a Constituição de 1978, elaborada por todas as forças políticas e sufragada nesse mesmo ano em referendo (algo que não sucedeu com a nossa Constituição de 1976).

 

3

O maior acto de lesa-democracia, neste abortado processo de independência unilateral da putativa República Catalã, ocorreu precisamente com o incumprimento da Constituição. Ao violarem a lei fundamental – discutível, como todas as leis, mas é a que vigora – os nacionalistas catalães revelaram uma insensatez nada correspondente à dos escoceses, que foram a votos em Setembro de 2014 num referendo previamente articulado com Londres, cumprindo escrupulosamente os mecanismos legais do Reino Unido.

 

4

Os referendos só funcionam em sentido único: pode haver sucessivas consultas pré-independência mas não há nenhuma que torne a independência um facto reversível. Até por este motivo a Europa - cada vez mais interdependente - não deve brincar às independências, dando lastro aos nacionalismos. Sempre redutores, sempre identitários, sempre com traços xenófobos.

 

5

Tendo o nacionalismo populista agido contra a Constituição na Catalunha, alguns separatistas ainda esperavam que os partidos constitucionalistas apoiassem esta deriva anticonstitucional. O que demonstra até que ponto estão desligados da realidade.

 

6

A Catalunha será sempre o que os catalães decidirem. Mas não uma minoria de catalães a decidir por todos. Nem só os catalães "bacteriologicamente puros", que aliás são minoria na Catalunha. As famílias catalãs e castelhanas ou andaluzas, ou valencianas ou aragonesas, estão misturadas há séculos. E ainda bem.

 

7

A estabilidade em Espanha é do estrito interesse de Portugal. Trata-se da nossa única fronteira terrestre actual. É a quarta maior economia da zona euro e de longe o nosso maior parceiro económico. Uma tempestade em Espanha, seja de que natureza for, produz efeitos desastrosos em Portugal. Nada nos interessa uma Península atomizada e balcanizada, cheia de mini-estados regionais, insolventes, pseudo-independentes e ultranacionalistas, transformada num caldeirão permanente de conflitos.

 

8

Ao nível peninsular, temos toda a conveniência em manter um parceiro forte, estável e prestigiado. A última coisa que nos interessaria seria qualquer envolvimento nas guerras de Alecrim e Manjerona das autonomias espanholas. É do nosso estrito interesse estratégico circunscrever o diálogo com Espanha ao plano das relações entre as chancelarias de Lisboa e Madrid. Descer o patamar dessa relação, elegendo outros interlocutores, seria rebaixar-nos enquanto Estado. 

Bons europeus!

Luís Menezes Leitão, 14.07.16

É como devem ser qualificados os Ministros dos Negócios Estrangeiros da França e da Alemanha (sempre o eixo franco-alemão) depois destas declarações sobre o novo Ministro dos Negócios Estrangeiros Britânico. Chama-se a isto sentido de Estado, diplomacia e respeito pelos assuntos internos dos outros países. Só os anti-europeístas primários é que não vêem isto.

As memórias de Jorge Dezcallar

Diogo Noivo, 14.01.16

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Este post de Francisco Seixas da Costa recordou-me que também eu tenho o livro de memórias de Jorge Dezcallar vergonhosamente a ganhar pó. Veio de Madrid acompanhado pelo “História mínima de Catalunha”, de Jordi Canal, e pelo excepcional “Populismo”, de José Luis Villacañas (merecedor de todos os prémios de ensaio possíveis e imaginários).

Voltando às memórias, Jorge Dezcallar é um dos mais notáveis diplomatas espanhóis. Trabalhou com seis Presidentes de Governo e foi embaixador em vários países com elevada relevância para a política externa espanhola, como Marrocos e os Estados Unidos. Foi ainda o homem-forte das informações nos três anos em que esteve à frente do Centro Nacional de Inteligencia. Dezcallar não tem um entendimento político-administrativo da diplomacia. Para ele, a missão requer visão estratégica e uma cabal compreensão das dinâmicas de poder que movem o mundo. É, por isso, na minha modesta opinião, um dos mais interessantes analistas europeus de política internacional.

Como bem adverte Seixas da Costa, este tipo de prosa resvala com frequência para exercícios ensimesmados de recordação. Se for o caso, ficarei decepcionado. Mas creio que o risco de que tal aconteça é reduzido. Quem escreve que “un diplomático que se divierte es menos peligroso que uno que trabaja” não será uma criatura pretensiosa.

Doutrinas de defesa europeias

João André, 11.12.14

Neste post do Luís, o nosso comentador habitual luckylucky levanta uma questão interessante: «A União começou desenvolvimento de mísseis nucleares de curto alcance [do tipo] que os Russos têm milhares?».

 

Esta é uma questão interessante porque, da forma como a leio, toca a famosa doutrina MAD (nunca um acrónimo foi melhor escolhido). Nela o conceito era o de dois estados em conflito (EUA e URSS) terem o poder de se destruir mutuamente, assim assegurando que nunca o fariam. Essencial para a doutrina eram dois aspectos: 1) a capacidade de saber que a morte vinha a caminho, i.e., que os mísseis tinham sido lançados pelo outro lado, o que permitiria lançar os próprios; 2) a certeza que o outro lado seria capaz de lançar os seus próprios mísseis.

 

Claro que existiam várias considerações morais subjacentes a este aspecto, sendo que uma delas era o conceito de destruir duas centenas de milhões de vidas com uma ordem (ou, no sentido mais figurado, com o premir de um botão). Outro aspecto mais delicado era a decisão de o fazer sabendo que isso não traria qualquer vantagem (atacando primeiro estar-se-ia a assegurar a própria destruição e em segundo o ataque nada traria além de uma vingança que ninguém saborearia). Em qualquer dos casos, muito poder estava nas maos dos chefes de estado de cada um dos países (mesmo que diluído por conceitos como a "regra dos dois homens" americana).

 

Transportando este conceito para a Europa é possível que tal doutrina de nada serve. Não há uma única pessoa que possa "premir o botão". Se não há uma pessoa que possa atender um telefone, a outra decisão - ou escolher quem a toma - é impossível. Além disso há países que neste momento e por princípio rejeitariam tal solução - a Alemanha é um deles. Há além disso outro problema: se os EUA são um país onde um presidente necessita de demonstrar ser capaz de ser um "duro", na Europa tal comportamento seria aceitável apenas em alguns países. Ou seja, num momento de decisão sobre um hipotético ataque, um líder externo saberia que a probabilidade de sofrer uma retaliação maciça seria baixa.

 

É por isso que a Europa necessita de ir jogando cartas diplomáticas no que diz respeito à sua defesa. Não pode depender de uns EUA que só defenderão os europeus na medida que isso sirva os seus interesses (que são poucos, neste momento) e não creio que alguma vez será capaz de jogar a cartada MAD contra ninguém (a UE desintegrar-se-ia antes de isso ser possível). Por muito que os falcões europeus o desejem, a Europa está consignada à diplomacia e às influências económicas. E até ao momento isso ainda não resultou em nenhuma irrelevância.

O murro de Obiang a Cavaco

Pedro Correia, 28.07.14

 

1. Prefiro manter a minha posição "idealista", como justamente lhe chama o Samuel de Paiva Pires, e não abdicar de princípios basilares, sem os quais toda a diplomacia equivale ao simples inclinar de cerviz perante os ditames de quem exibe mais músculo. Sou, portanto, incapaz de alinhar na tese de um ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, claro defensor da adesão da Guiné Equatorial à CPLP (que aliás já advogava quando ocupava o Palácio das Necessidades) e agora responsável por um banco que, por assinalável coincidência, reforçará o seu capital social com dinheiro daquele país.

Considero que a língua portuguesa, falada por 250 milhões de pessoas em quatro continentes, é suficientemente importante para servir de base a um projecto transnacional. Travestir a CPLP de "comunidade de interesses", em nome do pragmatismo mais rasteiro, é desvalorizar todo o potencial congregador da cultura, também no plano económico. E é sobretudo descaracterizar de forma irremediável a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Abri-la a um país onde não se fala português, apenas porque esse país é hoje um dos principais produtores de petróleo do continente africano,  é um precedente que nos levará, num futuro próximo, a franquear as portas da CPLP à Venezuela ou à Rússia ou à Arábia Saudita.

Pelos vistos, à luz dos novos critérios dominantes, andámos equivocados todos estes anos. A concepção de diplomacia agora em voga, de pura rendição ao diktakt do mais forte, dever-nos-ia ter levado a reconhecer a anexação de Timor-Leste pela poderosíssima Indonésia em vez de nos pormos quixotescamente a defender o povo-irmão que rezava e resistia em português enquanto sofria atrocidades às ordens dos generais de Jacarta. Neste caso -- espantosamente para todos quantos veneram a realpolitik -- David venceu Golias. E a CPLP encontrou aqui uma das suas mais nobres causas, que naquele dia 20 de Maio de 2002 demonstrou ao mundo que o idealismo também compensa.

 

2. Vermos Cavaco Silva e Passos Coelho sentados à mesa onde um dos maiores torcionários de África -- que nunca falou nem falará português -- foi ovacionado como estadista modelar juntou uma desnecessária nota de humilhação à injúria que representa para milhões de democratas lusófonos a entrada da Guiné Equatorial na CPLP. Em nome de interesses económicos, por ironia no país que ocupa o 166º posto mundial quanto a oportunidades de negócio.

Ainda por cima isto aconteceu numa cimeira em que os dois maiores advogados do ditador Teodoro Obiang -- a brasileira Dilma Rousseff e o angolano José Eduardo dos Santos -- nem se deram ao incómodo de comparecer em Díli, onde além da nação anfitriã Portugal foi o único país representado simultaneamente pelo Presidente da República e pelo primeiro-ministro. Conclusão: nem Cavaco nem Passos deviam lá ter estado. Se a única decisão que dali se esperava, como os factos comprovaram, era a entrada por aclamação na CPLP do primeiro país onde não há lusofalantes, bastaria que Portugal estivesse representado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros.

Com inexplicável relutância em reconhecer esta evidência, Cavaco e Passos insistiram em deslocar-se à capital timorense, onde a Guiné Equatorial entrou como estado-membro da CPLP antes de ter havido sequer um simulacro de votação nesse sentido. Fizeram assim de figurantes numa peça onde só a ausência os teria nobilitado.

Por menos que isto, li há quatro anos no Estado Sentido que Cavaco havia levado "um estaladão" do Presidente checo numa visita oficial à República Checa. Se Vaclav Klaus lhe deu um estalo em 2010, Obiang acaba de lhe dar um murro. O problema é que esse murro não se limitou a agredir desnecessariamente Portugal: foi também um golpe de misericórdia para a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.