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Delito de Opinião

Diário semifictício de insignificâncias (37)

José António Abreu, 07.02.18

Vou à estação dos CTT da Galiza (parece que vai encerrar) buscar uma encomenda. Espero cerca de três minutos (um período tão razoável que só pode constituir o motivo de encerramento) e depois sou atendido por um senhor cordato, mas lento. Muito, muito lento. Examina o talão deixado na minha caixa do correio de um lado e do outro, verifica cuidadosamente a data e a hora em que é suposto a encomenda já estar disponível, pergunta-me, em voz baixa e ritmo pausado, se sou o próprio (sou), pede-me o cartão de cidadão (que já coloquei sobre o balcão), não compara as assinaturas mas demora uma eternidade a transcrever o número, levanta-se (devagar), arruma (devagar) umas quantas cartas dentro de um tabuleiro, e segue (devagar) com ele para o interior da estação, onde fica durante quase tanto tempo como o que eu esperei até ser atendido. Regressa finalmente (devagar), com a minha encomenda nas mãos.

Houve um instante, ainda antes de ele se levantar da cadeira, em que estive prestes a irritar-me (sabe-se lá se não o acusaria de constituir o motivo de fecho da estação). Felizmente, apercebi-me a tempo do nome afixado na etiqueta que trazia ao peito. «José Plácido». Como ficar irritado com alguém que se limita a fazer jus ao nome?

 

(Agora que escrevinho isto, apercebo-me de que também se pode ver a coisa por outro ângulo: às vezes a irritação dissipa-se por motivos muito estranhos.)

Diário semifictício de insignificâncias (36)

José António Abreu, 31.01.18

Nas últimas semanas tem sido um fartote de gripes à minha volta. Fui apanhado por uma (acho estranho que se diga que nós é que as apanhamos), mas bastante ligeira, o que me deixou satisfeito (gosto quando a minha resiliência me surpreende pela positiva). Agora dizem que o pior já passou. Até ao próximo Inverno, certamente, porque os vírus estão cada vez mais evoluídos e os humanos cada vez mais susceptíveis. Basta constatar a facilidade com que se ofendem. 

Quando alguém espirra perto de mim, digo «Santinho». Toda a gente no Porto diz «Viva». Ou «Biba», dependendo da zona onde cresceu. Noutros pontos do país dizem «Saúde». Gosto mais de «Santinho», apesar da conotação com doenças outrora mortais. É mais incongruente. Como os próprios espirros.

E a propósito. Sem surpresa, os meus olhos preferidos pertencem a uma mulher. De um momento para o outro, o meu cérebro nem consegue pensar nuns olhos masculinos dignos de registo. Os do Paul Newman, talvez, que hoje em dia já devem ter perdido grande parte do encanto. Naturalmente, o meu sorriso favorito também é de uma mulher. Há dezenas deles em dezenas delas, para ser sincero. Sorrisos que fazem com que me apaixone durante dez segundos, dez minutos, dez dias. Com vozes, é mais difícil. Tenho - e ouço - mais música cantada por mulheres do que por homens, o que há-de significar alguma coisa, mas certas vozes femininas são instrumentos de tortura que deviam estar cobertos pelas convenções aplicáveis. Os meus risos preferidos voltam a pertencer a mulheres - e ao Ricky Gervais. Contudo, se pensasse no assunto, teria que classificar como meu favorito o espirro de um homem. L., lá do emprego. Tem mais ou menos a minha idade e um espirro by the book. Composto, sereno, sonicamente irrepreensível. A exacta tradução de um balão de banda desenhada: «Atchim!» Tão diferente do meu, espalhafatoso e anárquico.

Mas não penso nisso, claro. Ninguém pensa.

Diário semifictício de insignificâncias (35)

José António Abreu, 27.01.18

Uma das poucas coisas que dão satisfação à minha mãe é agora já poder morrer. Até há poucas semanas, se morresse não poderia ser sepultada na campa dos pais. Uma das três irmãs (todas mais novas) antecipara-se. Todavia, agora já passou o número de anos suficiente para que o enterro naquela campa volte a ser possível. Foi a melhor notícia que ela teve nos últimos tempos.

Não sei se me sinta satisfeito por ela (com ela), se deprimido. Frequentemente, eu apanhava-me a pensar que o raio do prazo era o principal motivo para ela se manter viva. Agora, resto eu, que estou quase sempre longe, e, em menor grau, o meu pai, que hoje em dia a preocupa e exaspera em igual medida.

Ainda por cima, sobra-lhe uma irmã. É certo que se trata da mais nova de todas, e que parece andar de boa saúde, mas não deixa de constituir um risco apreciável: a minha mãe não o admite, mas aquilo que neste momento mais a assusta é poder ver-se novamente ultrapassada na corrida à campa dos pais.

Diário semifictício de insignificâncias (34)

José António Abreu, 18.12.17

Aguardo sozinho no passeio a mudança do semáforo quando uma miúda (loura, sete ou oito anos) me grita da janela de trás de um carro que passa: «Adeus!»

Com atraso, devolvo-lhe o cumprimento. Fico a sorrir, mas depois começo a perguntar-me por que razão gritara ela «adeus». Por que não «Olá», «Bibó Porto» ou «És velho»? Será um presságio?

Tenho imenso cuidado a atravessar a rua e em todo o trajecto até casa. Mas durante o jantar quase me engasgo. Se amanhã não acordar, fica tudo explicado.

Diário semifictício de insignificâncias (32)

José António Abreu, 06.12.17

Fecho o Kindle. Acho que suspiro (mas talvez não, que seria má literatura). Isto de ler livros electrónicos  - cada vez mais, graças ao maravilhoso Acordo Ortográfico -, e de a Amazon fazer promoções a dois e três dólares por livro, leva-me a experimentar autores que tenho quase a certeza de não ir apreciar. O prazer da confirmação é nulo ou, pelo menos, está longe de compensar outra sensação, antiga e insidiosa: a maior vergonha nem é todos os livros que não li e devia ter lido, mas os que li no lugar deles.

Possuo uma desculpa, todavia, quase tão antiga mas bastante menos espontânea: são estas derivas (dos clássicos para o mainstream, do mainstream para os nichos, dos nichos para o experimentalismo) que, na literatura, no cinema, na música, na arte, na gastronomia, até no vestuário, tornam cada pessoa única. Se todos lêssemos, ouvíssemos e víssemos o mesmo, ainda que esse mesmo fosse o melhor em cada campo, que piada teria o mundo?

Evidentemente, não resulta. Continuo a sentir-me um idiota. Muito pouco singular e, graças aos esforços para acreditar na desculpa, até um nadinha ridículo.

Diário semifictício de insignificâncias (31)

José António Abreu, 02.12.17

Concerto de Rebecca Martin com a Orquestra de Jazz de Matosinhos na Casa da Música. A ocupação da sala Suggia (demasiado volumosa para jazz) não chega a metade. Após os primeiros dois temas, pede-se aos espectadores sentados nas últimas filas para avançarem. Muitos fazem-no. O ambiente torna-se mais intimista e o concerto acaba por resultar bastante bem. Martin é simpática e a orquestra competente nas adaptações das canções dela. Na orquestra, há dezasseis homens e uma mulher (trombonista). Não pela primeira vez, pergunto-me por que razão, ainda hoje, tão poucas mulheres integram grupos de jazz. Na música clássica, na música tradicional, no pop/rock, são hoje inúmeras. No jazz, assim de repente, tirando cantoras, não consigo pensar em mais de meia dúzia (OK, também não é a minha especialidade).

Mas claro que a Orquestra de Jazz de Matosinhos tem um problema mais grave. De tal modo grave que poderá mesmo impedi-la de ser considerada uma verdadeira orquestra de jazz. Todos os dezassete músicos - a mulher e os dezasseis homens - são brancos.

Diário semifictício de insignificâncias (30)

José António Abreu, 09.08.17

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Na A1, entre as portagens de Grijó e a saída de Santa Maria da Feira, dois pombos atravessam-se-me à frente do carro. Quase não travo (julgo também não ser boa ideia travar a fundo em auto-estrada). Ocorrem dois impactos mas não percebo bem em que zona (admito que possa ter fechado os olhos durante uma fracção de segundo). Instintivamente, olho para o retrovisor, à espera de ver os pombos rodopiar no ar. Nada. O carro que vinha umas dezenas de metros atrás de mim continua lá, quiçá um pouco mais distante (o condutor terá travado mais do que eu). Na parte superior do pára-brisas há uma mancha, mas nenhum dano visível. Prossigo. Depois de sair da auto-estrada paro e vou analisar os estragos. Na parte da frente do capot há sangue, no emblema vestígios de penas. O rebordo do capot tem um vinco (merda). Já o pára-brisas encontra-se intacto e o tejadilho, acima dele, parece também apenas sujo. Pergunto-me se terei atingido ambos os pombos (pelo menos evitar-se-ia a tristeza de um ter que viver sem o outro) ou se as marcas na zona superior do carro decorrerão de um segundo impacto com o mesmo.

Olho para o carro imundo e não consigo evitar pensar em todas as outras vezes que pombos o sujaram. Pelo menos desta vez não se ficaram a rir. Ainda assim, não fossem elas maiores e mais pesadas - logo, capazes de provocar mais estragos -, teria preferido acertar em gaivotas, minhas inimigas figadais.

Nunca atropelara pombos. Insectos, mato milhares todos os anos com impunidade total (nem o PAN parece ligar). Há quase vinte anos matei um cão que, numa estrada secundária, saiu a correr de um pinhal (era um rafeiro com ar simpático e na altura fiquei com um nó no estômago, mas quando vi a conta da reparação roguei-lhe meia dúzia de pragas). Pombos, nunca acontecera. Suponho que, nestes tempos politicamente correctos, será inadequado pintar dois risquinhos verticais na lateral do carro, junto ao retrovisor. (Nunca o faria.)

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Ainda não lavei as manchas. Desagrada-me ver lá o sangue, mas parece-me ter uma faceta positiva. Nas ruas da cidade, ao verem-me chegar, os peões ficam muito mais cuidadosos.

Diário semifictício de insignificâncias (29)

José António Abreu, 13.07.17

Encontro o meu velho Sony Ericsson no fundo de uma gaveta. Pego nele, revolvo-o nas mãos. É do final da época em que os fabricantes procuravam tornar os telemóveis do tamanho de cartões de crédito. Dos tempos em que os telemóveis ainda não eram computadores e, mesmo sendo já capazes de tirar fotografias, ninguém os confundia com máquinas fotográficas.

Procuro ligá-lo, sem sucesso. No mínimo, tem a bateria descarregada. Devia deitá-lo fora. Só ocupa espaço - embora pouco (muito pouco).

Lembro-me do prazer que tive ao comprá-lo. Um objecto tão pequeno e fino, impante na sua miniaturização, nas capacidades de ler ficheiros MP3 e de tirar fotos com 2 megapixeis de resolução. Uma espécie de chihuahua particulamente dotado e orgulhoso de o ser. Claro, o orgulho era meu - como o dos chihuahuas também é frequentemente mais dos donos. Três anos depois, acabou relegado para o fundo de uma gaveta.

Ansia-se por objectos. Brinquedos electrónicos no caso dos homens, roupa e sapatos no caso das mulheres. Extrai-se deles o prazer que nem sempre se consegue obter por outra via - pela leitura, pela música, pelo cinema, pela arte, pelo contacto com outros humanos. Consideram-se fundamentais durante uns tempos, depois atiram-se para o lixo. Os caixotes do lixo são depósitos de sonhos cuja validade expirou. Ainda que - como é habitual nos sonhos - possam vir a ser reciclados.

Interrompo as digressões mentais e digo-me novamente que devia deitá-lo fora. Contudo, volto a enfiá-lo na gaveta. Ocupa tão pouco espaço.

Diário semifictício de insignificâncias (27)

José António Abreu, 05.07.17

Escrevo «abraços e beijinhos» (o mail é para pessoas de ambos os sexos e «cumprimentos» seria demasiado impessoal), mas depois fico a matutar que não tem muita lógica. Beijinhos entre homens são menos comuns e mais íntimos do que abraços. Já um homem beijar uma mulher na face pode ser algo impessoal, mas abraçá-la exige um grau mínimo de intimidade.

Talvez fosse mais lógico escrever «Abraços e/ou beijinhos», deixando ao receptor da mensagem a liberdade da escolha, que poderia ser realizada em função do apreço que lhe merece o despachante. Infelizmente, permaneceriam ainda de fora aqueles elementos do grupo em relação aos quais o que apetece mesmo é enviar um insulto. Ou talvez não: «abraços e/ou beijinhos» funciona igualmente enquanto expressão de um voto (como «felicidades» ou «boa sorte») e o receptor nunca saberá onde se deseja que ele ou ela pouse os lábios.

Diário semifictício de insignificâncias (26)

José António Abreu, 30.06.17

Confesso que fiquei a observar durante um par de minutos. Nem sequer é preciso entrar, basta permanecer junto à porta ou na zona de transição entre secções. Em tempos, o Gato Fedorento garantia que em Ermesinde era possível encontrar «gajas boas». Incapaz de confirmar ou de desmentir, sei, contudo, onde encontrar «gajas» em elevado grau de excitação: nos saldos da Zara.

Diário semifictício de insignificâncias (24)

José António Abreu, 24.04.17

Continuo um leitor compulsivo de t-shirts. Devia parar. Um dia destes arranjo problemas. É quase impossível ler as frases mais compridas das t-shirts femininas (chegam a parecer volumes do Guerra e Paz) sem dar ideia de estar a obervar as mamas das utilizadoras.

Voltei a pensar nisto por causa de uma rapariga com quem me cruzei no passeio. Vestia uma t-shirt preta com as palavras Can't touch this. Em mais um sinal de que nasci há demasiado tempo, primeiro lembrei-me de MC Hammer. Quase me pus a cantarolar o tema. Só depois ponderei se a rapariga usaria a t-shirt em modo de desafio ligeiramente parvo, confiante na capacidade de atracção dos seus atributos, se em jeito de pedido quase desesperado de atenção. A verdade é que, sem aquela t-shirt, eu jamais pensaria em tocar-lhe (desculpa, OK?). Ainda assim, espero que o motivo fosse excesso de confiança. Fora dos campos da ciência, da economia e da política, há ilusões benignas.

Diário semifictício de insignificâncias (23)

José António Abreu, 23.03.17

Assisto na televisão às reportagens sobre mais um atentado. Há corpos no chão, um herói improvável e inglório, a estupefacção do costume, não obstante a falta de novidade. Por entre cuidados de linguagem (a jornalista da CNN esforça-se por tentar saber se o que permite às autoridades falarem em terrorismo é a origem ou a religião do atacante sem usar termos como «árabe» ou «muçulmano»), reporta-se que o número de mortos e feridos é provisório. A informação permite manter aquela expectativa doentia em que se deseja simultaneamente o menor e o maior número possível. Pergunto-me o que diferenciará tragédias grandes de tragédias pequenas. O número de mortos? As circunstâncias? O nível de incongruência ou de crueldade? Mas talvez essa seja a forma errada de classificar as tragédias. Talvez seja mais exacto - e mais fácil - dividi-las em tragédias públicas e tragédias íntimas. As primeiras estão cheias das segundas, mas raramente lhes fazem jus: o espectáculo e a cacofonia (ainda que baseada nas melhores intenções) nunca o permitem.

Mudo para o Eurosport.

Diário semifictício de insignificâncias (21)

José António Abreu, 08.11.16

Os canais de séries estão a repetir episódios pela centésima vigésima oitava vez. Nos canais de notícias debate-se a polémica do momento - política ou futebolística, nem quero saber. Eu devia ir para a cama, mas não tenho vontade. Também não tenho vontade de ler, nem de ouvir música, nem de arrumar os livros e os filmes que se amontoam na mesa existente entre mim e o televisor, nem de fazer qualquer outra coisa de que me consiga agora lembrar - mas decididamente não tenho vontade de ir para a cama.

Em nenhum outro instante fica a inutilidade do ciclo da vida tão exposto como nos momentos de deitar e levantar. É, aliás, irónico: a maioria das pessoas detesta ir para a cama e depois detesta sair dela. É como se a vida fosse um trajecto no vazio, a velocidade constante, e cada momento de deitar e levantar exigisse vencer a inércia.

Um dia destes hei-de procurar confirmar na internet uma ideia antiga: a de que os portugueses se deitam mais tarde do que a maioria dos outros povos. Fazem-no tardíssimo, chateando os vizinhos não apenas com o ruído das vozes e da televisão, mas com pancadas repentinas e arrastares estranhos, parecendo ter decidido mudar os móveis de sítio às duas da manhã - noite após noite após noite. Desconfio que, para os portugueses, ir cedo para a cama (ou ir para a cama, tout court) equivale a desistir de esperar pelo instante em que a vida se alteraria indelevelmente para muito melhor e a reconhecer o falhanço de ter decorrido mais um dia em que ela permaneceu igual. Depois, claro, andam irritadiços e à base de café.

É tarde. Eu devia mesmo ir para a cama.

Diário semifictício de insignificâncias (20)

José António Abreu, 24.10.16

  

Time's fun when you're having flies.

Velho adágio batraquiano.

 

Na escola secundária recusei dissecar uma rã. Quando a professora de Biologia fez o anúncio, protestei com tamanha veemência que ela admitiu que eu não necessitaria de participar - e depois acabou por desistir da ideia. Os meus colegas com tendências mais sanguinárias ficaram desiludidos mas eu encarei o desagrado deles com a impassividade dos batráquios - depois de pular para longe.

No domingo, em mais uma volta no Jardim Botânico do Porto, constatei que os sapos e as rãs já estão quase todos fora de vista, à espera do tempo frio. O Outono conferia ao jardim uma melancolia que me agrada mas, ainda assim, tenho de reconhecer: pelo menos até encontrar o espírito de Sophia de Mello Breyner (é muito mais provável que deambule por aquelas veredas, que conheceu em jovem, do que entre as paredes frias do Panteão), os batráquios são o que mais aprecio no local. (Também me é fácil identificar o que menos aprecio: o ruído do trânsito na VCI, mesmo ao lado). Gosto mais dos batráquios do que dos cactos, das tílias e do liquidâmbar centenário, o que não deixa de ser um bocadinho irónico porque, como o nome deixa entender, ali a ideia é destacar as plantas. Azar. Eu prefiro os sapos e as rãs que, com a tranquilidade de alentejanos particularmente zen, habitam os laguinhos cobertos por nenúfares.

A expressão dos sapos e das rãs é uma ode à calma e à paz de espírito. Observo a expressão facial (terão face?) de um sapo e, não obstante a existência de piadas como «o que irrita um sapo? Não encontrar uma mosca na sopa», sou incapaz de o imaginar caindo em histrionismos. Isto faz do Cocas dos Marretas uma incongruência pelo menos tão grande como ele ser do mesmo tamanho da porca com a qual mantém uma relação amorosa, mas encaixa perfeitamente nas rãs cépticas e irónicas de Aristófanes. Paul McCartney também lhes entendeu a maneira de ser em We All Stand Together (bóme, bóme), o velho êxito para crianças que dominou o Top Mais durante semanas a fio há um quarto de século. (Quantos anos viverão sapos e rãs? Tenho que pesquisar, depois de acabar este texto.) Ainda por cima, os sapos e as rãs comem moscas e eu detesto moscas. Até acredito que sejam gostosas (todas aquelas estruturas - cartilagens ou lá o que são - devem fazê-las saber a carapauzinhos fritos engolidos inteiros) mas, ainda assim, não as suporto. A avaliar pela beatífica fisionomia dos sapos, porém, devem ter propriedades extremamente calmantes. Um dia destes, quando me encontrar irritado, hei-de experimentar mastigar uma, em vez de beber um chá de camomila, comer um maracujá ou fechar os olhos, respirar fundo e pensar na Romy Schneider em La Piscine (sim, entrei na idade em que esse tipo de visões já é relaxante). Claro que também há pessoas que comem batráquios - les cons - mas prefiro não pensar nisso. E felizmente há muitas outras que, como eu, os apreciam por razões estéticas e filosóficas. Um exemplo: que outro motivo levaria alguém a chamar «Sapo» a um portal de internet? (A rapidez na captura? Bah, isso terá sido uma desculpa arranjada à pressa para disfarçar o que poderia parecer uma tara.) Um segundo exemplo: alguém abriria uma Frog Store apenas por ânsia de lucro?

(Raios partam. Quando comecei a escrever isto, tinha - ou, pelo menos, acho que tinha - uma forma inteligente para lhe colocar um ponto final. Entretanto pus-me a divagar e agora já não me lembro de qual era o plano. Vou tirar a tal dúvida. Pode ser que entretanto me regresse a inspiração ou seja lá o que for que me dá quando me ponho a escrever estas coisas.)

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Ora bem. No site All about frogs ponto org (há um ponto org sobre sapos!) diz-se que varia bastante mas o normal é viverem entre quatro e quinze anos. Mesmo considerando variações entre espécies, estranho uma amplitude tão grande. Parece-me improvável que um sapo que tenha vivido apenas quatro anos possa ter esticado o pernil - e neles a expressão faz todo o sentido - de morte natural. Se os estudos foram realizados em laboratório (o ponto org admite que os dados são de batráquios em cativeiro), é provável que muitos sapos e rãs tenham cometido suicídio, alarmados com os relatos de dissecações em salas de aula. O máximo, informa também o ponto org, anda pelos quarenta anos. Será a versão Manoel de Oliveira. E, a propósito - os pensamentos seriam como as cerejas se eu apreciasse cerejas -, Oliveira até tinha uma aparência calma, inteligente, ponderada, batraquiana. Sendo que batraquiana não é o mesmo que balzaquiana, obviamente. Isto, Manoel de Oliveira não era, e os batráquios também não são. Assim de repente, classificá-los-ia antes como woolfianos (de Virginia - a pessoa, não o estado): reflexivos, contemplativos, atraindo apenas aqueles que são capazes de ultrapassar as primeiras impressões e perseverar até atingirem um prazer subtil mas intenso. Digamos que as rãs são como mulheres excessivamente magras, com óculos de massa e postura desajeitada (bibliotecárias típicas, portanto), cuja beleza e fogo interior passam despercebidos num simples relance. Digamos que os sapos são como homens com nariz ligeiramente torto, cabelo desgrenhado e óculos (os óculos dão sempre jeito para estas imagens), que depois mostram elevados níveis de sensibilidade (para homens) e abdominais surpreendentemente bem definidos. No fim de contas, é a história do príncipe dentro do sapo. O beijo terá nascido com a Disney, os irmãos Grimm passaram ao papel a versão em que o sapo se transforma em príncipe ao ser atirado contra uma parede pela princesa (o temperamento feminino...) mas o conto é bastante mais antigo do que a empresa do tio Walt ou os manos alemães e, especialmente quando adicionado ao Aristófanes, revela bem que desde há séculos vários povos têm conseguido detectar o encanto dos batráquios (os franceses, por seu turno... oumpff!).

Resta-me uma dúvida e, não tendo arranjado melhor alternativa, penso que vou fechar com ela: nascido há 61 anos, como é que o Cocas ainda está vivo?

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Mais uma coisa, afinal: a Miss Piggy, essa sim, é um pouco balzaquiana.

Diário semifictício de insignificâncias (19)

José António Abreu, 22.10.16

O homem foi no carro dele, eu segui-o no meu. Ainda dentro da povoação, um semáforo accionado pela velocidade passou a vermelho. Ele ignorou-o. Eu parei. Quando surgiu a luz verde, arranquei devagar. O homem esperava mais à frente. Era dos que aceleram nas rectas e travam demasiado nas curvas. Antes de chegarmos ao destino, ignorou mais dois semáforos. Despoletava a mudança mas não fazia caso. Eu parava. Ele encostava na recta seguinte.

Primeiro, fiquei irritado. Depois comecei a divertir-me. Perguntei-me se ele não teria consciência da acumulação de situações, perdendo a memória do sucedido num semáforo antes de atingir o seguinte (o que faria dele uma espécie de Dory, em À Procura de Nemo), ou se, depois do primeiro semáforo, achava agora que parar ou conduzir mais devagar representaria perder a face.  Podes armar-te em cumpridor das regras, pensaria, mas eu não vou mudar por tua causa.

Estacionámos lado a lado. Saímos dos carros e fingimos que nada acontecera.

Diário semifictício de insignificâncias (18)

José António Abreu, 18.10.16

«Há que tempos...»

«Um quarto de século.»

«O que tens feito, desde a universidade?»

Digo-lhe. Não me alargo em explicações. Tenho sempre relutância em analisar o meu percurso de vida. Na verdade, e ainda que não consiga evitar fazê-lo, recordar o passado perturba-me. Com raríssimas excepções, circunstanciais e temporárias, recordar o próprio passado é analisar uma traição.

«Temos que manter o contacto.»

«Sim, claro.»

Mas sei que é improvável. E sinto alívio quando nos separamos.