Time's fun when you're having flies.
Velho adágio batraquiano.
Na escola secundária recusei dissecar uma rã. Quando a professora de Biologia fez o anúncio, protestei com tamanha veemência que ela admitiu que eu não necessitaria de participar - e depois acabou por desistir da ideia. Os meus colegas com tendências mais sanguinárias ficaram desiludidos mas eu encarei o desagrado deles com a impassividade dos batráquios - depois de pular para longe.
No domingo, em mais uma volta no Jardim Botânico do Porto, constatei que os sapos e as rãs já estão quase todos fora de vista, à espera do tempo frio. O Outono conferia ao jardim uma melancolia que me agrada mas, ainda assim, tenho de reconhecer: pelo menos até encontrar o espírito de Sophia de Mello Breyner (é muito mais provável que deambule por aquelas veredas, que conheceu em jovem, do que entre as paredes frias do Panteão), os batráquios são o que mais aprecio no local. (Também me é fácil identificar o que menos aprecio: o ruído do trânsito na VCI, mesmo ao lado). Gosto mais dos batráquios do que dos cactos, das tílias e do liquidâmbar centenário, o que não deixa de ser um bocadinho irónico porque, como o nome deixa entender, ali a ideia é destacar as plantas. Azar. Eu prefiro os sapos e as rãs que, com a tranquilidade de alentejanos particularmente zen, habitam os laguinhos cobertos por nenúfares.
A expressão dos sapos e das rãs é uma ode à calma e à paz de espírito. Observo a expressão facial (terão face?) de um sapo e, não obstante a existência de piadas como «o que irrita um sapo? Não encontrar uma mosca na sopa», sou incapaz de o imaginar caindo em histrionismos. Isto faz do Cocas dos Marretas uma incongruência pelo menos tão grande como ele ser do mesmo tamanho da porca com a qual mantém uma relação amorosa, mas encaixa perfeitamente nas rãs cépticas e irónicas de Aristófanes. Paul McCartney também lhes entendeu a maneira de ser em We All Stand Together (bóme, bóme), o velho êxito para crianças que dominou o Top Mais durante semanas a fio há um quarto de século. (Quantos anos viverão sapos e rãs? Tenho que pesquisar, depois de acabar este texto.) Ainda por cima, os sapos e as rãs comem moscas e eu detesto moscas. Até acredito que sejam gostosas (todas aquelas estruturas - cartilagens ou lá o que são - devem fazê-las saber a carapauzinhos fritos engolidos inteiros) mas, ainda assim, não as suporto. A avaliar pela beatífica fisionomia dos sapos, porém, devem ter propriedades extremamente calmantes. Um dia destes, quando me encontrar irritado, hei-de experimentar mastigar uma, em vez de beber um chá de camomila, comer um maracujá ou fechar os olhos, respirar fundo e pensar na Romy Schneider em La Piscine (sim, entrei na idade em que esse tipo de visões já é relaxante). Claro que também há pessoas que comem batráquios - les cons - mas prefiro não pensar nisso. E felizmente há muitas outras que, como eu, os apreciam por razões estéticas e filosóficas. Um exemplo: que outro motivo levaria alguém a chamar «Sapo» a um portal de internet? (A rapidez na captura? Bah, isso terá sido uma desculpa arranjada à pressa para disfarçar o que poderia parecer uma tara.) Um segundo exemplo: alguém abriria uma Frog Store apenas por ânsia de lucro?
(Raios partam. Quando comecei a escrever isto, tinha - ou, pelo menos, acho que tinha - uma forma inteligente para lhe colocar um ponto final. Entretanto pus-me a divagar e agora já não me lembro de qual era o plano. Vou tirar a tal dúvida. Pode ser que entretanto me regresse a inspiração ou seja lá o que for que me dá quando me ponho a escrever estas coisas.)
Ora bem. No site All about frogs ponto org (há um ponto org sobre sapos!) diz-se que varia bastante mas o normal é viverem entre quatro e quinze anos. Mesmo considerando variações entre espécies, estranho uma amplitude tão grande. Parece-me improvável que um sapo que tenha vivido apenas quatro anos possa ter esticado o pernil - e neles a expressão faz todo o sentido - de morte natural. Se os estudos foram realizados em laboratório (o ponto org admite que os dados são de batráquios em cativeiro), é provável que muitos sapos e rãs tenham cometido suicídio, alarmados com os relatos de dissecações em salas de aula. O máximo, informa também o ponto org, anda pelos quarenta anos. Será a versão Manoel de Oliveira. E, a propósito - os pensamentos seriam como as cerejas se eu apreciasse cerejas -, Oliveira até tinha uma aparência calma, inteligente, ponderada, batraquiana. Sendo que batraquiana não é o mesmo que balzaquiana, obviamente. Isto, Manoel de Oliveira não era, e os batráquios também não são. Assim de repente, classificá-los-ia antes como woolfianos (de Virginia - a pessoa, não o estado): reflexivos, contemplativos, atraindo apenas aqueles que são capazes de ultrapassar as primeiras impressões e perseverar até atingirem um prazer subtil mas intenso. Digamos que as rãs são como mulheres excessivamente magras, com óculos de massa e postura desajeitada (bibliotecárias típicas, portanto), cuja beleza e fogo interior passam despercebidos num simples relance. Digamos que os sapos são como homens com nariz ligeiramente torto, cabelo desgrenhado e óculos (os óculos dão sempre jeito para estas imagens), que depois mostram elevados níveis de sensibilidade (para homens) e abdominais surpreendentemente bem definidos. No fim de contas, é a história do príncipe dentro do sapo. O beijo terá nascido com a Disney, os irmãos Grimm passaram ao papel a versão em que o sapo se transforma em príncipe ao ser atirado contra uma parede pela princesa (o temperamento feminino...) mas o conto é bastante mais antigo do que a empresa do tio Walt ou os manos alemães e, especialmente quando adicionado ao Aristófanes, revela bem que desde há séculos vários povos têm conseguido detectar o encanto dos batráquios (os franceses, por seu turno... oumpff!).
Resta-me uma dúvida e, não tendo arranjado melhor alternativa, penso que vou fechar com ela: nascido há 61 anos, como é que o Cocas ainda está vivo?
Mais uma coisa, afinal: a Miss Piggy, essa sim, é um pouco balzaquiana.