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Delito de Opinião

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 01.09.11

1 de Setembro

 

Não há maneira de se sair deste fado. Uma rápida leitura dos jornais e revistas nacionais que se foram acumulando revela o que já antes era evidente. Este país, com esta tropa, vai continuar na casa da partida. Será que até agora ainda ninguém viu que andam a encanar a perna à rã? Estava tudo estudado, as contas todas feitas, as equipas prontas a funcionar. No fim, a única coisa que eles garantem, para além da morte no dia e na hora marcada, é a asfixia fiscal. Ah!, e já me esquecia, a criação de grupos de trabalho. Agora, só para o futebol são mais três. O ministro Relvas de cada vez que participa numa reunião sai de lá com um grupo de trabalho. Ou vários. Um génio, portanto.

 

Será que se devem fazer anúncios de aumento de tributação no estrangeiro? E de reformas que se supõem sérias em reuniões partidárias para formação de imberbes? Deve ser a isso que eles chamam “sentido de Estado”.

 

Depois da entrevista que Vítor Gaspar deu há alguma semanas a Judite de Sousa, fiquei com a sensação de que o ministro tinha jeito para ardina. Na ocasião contive-me. Fiz bem porque há por aí muito  animal feroz sedento de mostrar trabalho aos chefes, de comentar nos blogues e de cascar nos socialistas. Não vale a pena dar-lhes trela. Ontem, sem qualquer esforço, tive a confirmação. Antigamente, no tempo em que havia jornais e vespertinos, havia um ardina na Avenida de Roma que para os vender apregoava em voz alta aos passantes as notícias que supostamente vinham no interior. Não raras vezes eu comprava o jornal, a Capital dos bons velhos tempos ou a República, e depois quando encontrava a notícia não vinha lá nada do que o sujeito anunciara. Ou quando vinha não havia mais nada a acrescentar ao que fora apregoado. Um desconsolo. O ministro das Finanças vai pelo mesmo caminho. Fez-me também recordar uma velha história contada pelo meu padrinho. O meu padrinho exerceu medicina e numa altura da sua vida palmilhou o vale do Limpopo. De quando em vez tinha de pedir ajuda ao enfermeiro que o acompanhava para lhe traduzir os dialectos de alguns pacientes que não falavam português. Um dia, estando o paciente a arengar uma lengalenga qualquer há longos minutos, o meu padrinho interrompeu-o e perguntou ao enfermeiro tradutor de que se queixava o paciente. A resposta foi desconcertante: “Sinhô Dotôr, até agora o homem não disse nada, só está a falar”. Gaspar sofre do mesmo problema. Fala fala e não diz nada. Enrola na areia e nada. Com a agravante de que não necessitando nós de intérprete mais facilmente nos apercebemos do vazio. Anunciou mais 10,8 milhões de cortes na despesa – e já vai na terceira conferência de imprensa – mas lá concretizar o onde, quando e como dos cortes que anuncia é que nada. Para já é só sacar, coisa que como todos se recordam era exclusivo dos antecessores. O silêncio de Catroga e de Leite Campos não podem deixar de fazer pensar. Quanto ao Presidente da República, no seu serafismo, parece-se cada vez mais com um zombie de fato e gravata. Taxar heranças, Senhor Presidente? Nos dias de hoje? Não me diga que ainda está com algum peso na consciência por causa daqueles dinheiros das poupanças no BPN que o seu gestor de conta reinvestiu sem o senhor saber aonde.

 

A verdade é que, a falar, Vítor Gaspar esteve bem melhor a comentar a situação em que estão as contas da Madeira. Vou aguardar pela resposta do soba. Porém, tudo isto, em especial, o silêncio de Passos Coelho e a forma como se quis contornar o que Bruxelas disse em relação à Madeira, não deixa de ser lamentável. Vergonhoso. Se já se sabia desse desvio nas contas públicas do arquipélago, esse sim colossal atendendo à dimensão da Madeira, e se tal desvio já havia sido contabilizado pelo primeiro-ministro e a sua equipa, por que razão quando Passos Coelho e Vítor Gaspar anunciaram o desvio que encontraram nas contas públicas de 1,8 ou 2 mil milhões de Euros não disseram logo que cerca de 500 milhões eram responsabilidade da Madeira e de Alberto João Jardim? Uma vez mais foi a omissão que imperou, o silêncio, o disfarce, a farpazinha do ministro Relvas, em vez da clareza e da tão apregoada transparência. Se um falava demais e dizia o que não tinha correspondência na realidade, o outro começa a demonstrar diariamente que não passa de um refinado artolas.

 

Dizem-me que Miguel Relvas convidou Mário Crespo para ir, de novo, como correspondente para os Estados Unidos. Não sei se alguém me poderá confirmá-lo. E também se esse tipo de convites, ou abordagens, deve ser feito pelo ministro ou pelos responsáveis da empresa que “pretende” contratá-lo. Ou se, tal como na função pública, esses cargos deverão ser preenchidos por concurso. Será que ainda alguém se lembra do caso daquela senhora Rosa qualquer coisa que foi para Madrid e por lá continua? Enfim, depois dos relevantes serviços que o pensador Crespo prestou à pátria – dos abusos, dizia o Eça – é natural que o ministro se lembre dele e lhe queira pagar o desvelo, a isenção de que sempre deu provas. Com o ministro Relvas tudo é possível. Se em Macau não conseguiram pôr os porcos a voar, agora é a oportunidade do ministro criar um grupo de trabalho para analisar a hipótese de se lhes dar asas. Aos porcos, evidentemente. Ressalva que faço, expressamente, não vá o apresentador julgar-se ainda mais importante do que acredita ser e pensar que é com ele.

 

António José Seguro perguntou quem vai pagar o buraco orçamental da Madeira. Então o líder do PS não sabe? O senhor primeiro-ministro, que se prepara para ir a Funchal apelar ao voto, deveria desde já anunciar que essa dívida será paga por todos os residentes na Região Autónoma. Se houvesse justiça isso é que seria equilibrado, já que foram eles, os eleitores locais, quem ao longo de mais de três décadas andou a mamar da poncha. E gastando menos para virem a Lisboa ver um jogo do Benfica do que eu indo do Algarve a Lisboa. Aqui pagávamos nós, como sempre, lá, desta vez, pagavam eles.

 

Fiquei admirado com o número. Nove milhões por dia a caminho dos paraísos fiscais e das contas offshore não deve ser coisa grave se não o Governo teria feito alguma coisa. Deve ser simples ignorância, mas continuo sem perceber por que razão, já que o que importa é aumentar a receita sem olhar a meios, não se introduz uma taxa sobre as transferências de capitais para contas offshore e não se agrava substancialmente o IMI e o IMT sobre os bens imóveis e as transacções imobiliárias em que o detentor ou beneficiário seja uma sociedade offshore. Ou sobre os móveis – carros, barcos e aviões – titulados por sociedades offshore. Mas há alguma justiça fiscal num país em que eu, um teso que não recebe um chavo do Estado e se limita a pagar, suporte 600 euros de IMI e um daqueles fulanos de Vale do Lobo ou da Quinta do Lago pague o mesmo, ande de Ferrari e nem conta bancária ou cartão de Multibanco possuam?

 

O que se está a passar, e o que já se passou, com as secretas, a rejeição do PSD e do CDS em ouvirem quem sabe das histórias de fio a pavio por causa dos inquéritos em curso, não serve de justificação. Há trampa a mais no ar. O cheiro é fétido. O mais certo é que tudo dê em nada e a única conclusão que se possa tirar seja a de que há por aí muita gente que não presta. À direita e à esquerda, dentro e fora das empresas, dos gabinetes e dos serviços do Estado. E então na Maçonaria o melhor é nem pensar. Quem diria? O Pessoa se fosse vivo não tinha escrito o que escreveu. Ele era homem para castrá-los. Ele sabia que normalmente os estafermos safam-se. Às vezes, raro, sobra alguma coisa para os filhos que não tiveram nada que ver com o caso. Nunca para os da puta. Para os dos outros sempre.     

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 24.07.11

23 de Julho

 

É a altura de comunicar a este conselho, em absoluta e total confidencialidade, com perdão da redundância, que os serviços de espionagem que se encontram sob as minhas ordens, ou melhor, que dependem do ministério a meu cargo, não excluem a hipótese de que o sucedido tenha as suas verdadeiras raízes no exterior, que isto que estamos vendo seja só a ponta do icebergue de uma gigantesca conjura internacional de desestabilização, provavelmente de inspiração anarquista, a qual, por motivos que ainda ignoramos, teria escolhido o nosso país como primeira cobaia” – José Saramago, Ensaio sobre a Lucidez

 

Nada assume tantas formas quanto o ser humano. Só o Criador conhecerá as razões porque há coincidências tão estranhas na vida que melhor poderiam ser chamadas como intermitências da morte. Como o livro. Na mesma altura que um homem é eliminado numa prisão norte-americana pela violência que gerou contra inocentes abatidos à queima-roupa, ao jeito de vendetta, em razão da carnificina do 11 de Setembro e apenas por serem de aspecto ou possuírem nome árabe, um outro homem preparava-se para perpetrar mais um brutal atentado contra outros igualmente inocentes, gente indefesa, jovens, numa outra latitude, mas muitos deles também de origem ou nome árabe. O que aproxima esses actos é o mesmo que nos transforma em bestas. A violência. O extremismo, a cegueira ideológica, é a máscara que permite chegar ao fim o que devia morrer à nascença.

 

Enquanto escutava a voz melodiosa de Sofia Escobar, numa húmida noite de Verão, via desfilar as imagens das últimas vinte e quatro horas. O contraste não podia ser maior. Quantos dos que ali estavam pensariam no mesmo?

 

Os últimos tempos têm revelado a existência de sociedades livres e democráticas onde a violência coexiste com a mais absoluta quietude. Acreditar que numa democracia a existência de leis, tribunais e polícias, num quadro de instituições funcionando regularmente, permitiria considerar a violência controlada, nunca passou de uma utopia. Para que serve uma democracia se o funcionamento regular das suas instituições não consegue garantir a segurança dos indefesos ou o controlo da violência? Uma democracia que se mostra incapaz de garantir a vida é uma democracia que claudica na sua tarefa primordial. E apesar disso a liberdade continua a ser um meio de controlo da violência.

 

Ainda só passaram trinta dias. Durante estes trinta dias, com excepção das crises de já se falava antes, e de futilidades, só se falou dos dois membros do Governo mais próximos do primeiro-ministro, de privatizações, agentes secretos e lojas maçónicas. Por causa disso vem aí novo inquérito.

 

A explicação dada foi pouco perceptível. Fiquei sem saber se esse inquérito visará a actividade conhecida dos “serviços secretos” ou a actividade conhecida de alguns homens que trabalharam para os “serviços secretos”. Também há a hipótese de visar a obtenção de informações sobre a circulação de “agentes secretos” entre a República e empresas privadas. Ou a qualidade da informação disponibilizada por esses “serviços secretos” a terceiros. Ou, quem sabe, as condições de trabalho e de formação oferecidas pelo “mercado” a ex-deputados e a “agentes secretos” nos intervalos das “operações secretas”, tendo em vista a revisão da legislação laboral.

 

Em todo o caso, antes que alguém venha dizer que há uma diferença entre conhecimento formal e informal, oxalá que o primeiro-ministro possa pedir ao instrutor do inquérito a respectiva “agilização”. Depois do que aconteceu há uns anos com a divulgação de uma lista de espiões e de em Belém se ter descoberto um “espião” do seu antecessor, que ia à Madeira tomar notas das conversas alheias sob o olhar desconfiado do Presidente da República, os nossos “serviços secretos” ficaram com a notação suspensa. Seria trágico se numa altura destas as agências de notação baixassem o rating de alguns colaboradores do primeiro-ministro para a categoria de “lixo”. José Saramago já cá não está.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 08.07.11

8 de Julho

 

Esta semana a morte veio ter connosco. Como se tudo e toda a desgraça tivesse de ser completada com essa imagem do esqueleto encapuzado que vagueia pela noite de gadanha em riste. Maria Filomena Mónica lançou mais um livro na excelente colecção de ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Mas essa foi a forma mais benigna que ela assumiu.

 

Ver os que partem na flor da idade, mesmo quando não os conhecemos, pelas razões mais estúpidas, ou os que a doença foi minando numa altura em que ainda teríamos tudo a esperar deles, rouba o espaço da racionalidade transmitindo-nos uma sensação de desamparo e de injustiça que nos pode levar a tudo questionar. Ainda quando a fé se coloca de uma forma tão pura quanto aquela que Maria José Nogueira Pinto nos legou na hora da partida. A aceitação da morte, por mais preparado que se esteja, continua a ser uma confrontação com a nossa pequenez, com a efemeridade da matéria. E para os que ficam nunca há preparação suficiente. Se ela chega aos vinte, aos trinta ou aos cinquenta, quando se tem toda uma vida pela frente, que diferença é que isso faz?

 

Hoje também partiu o João Marcelo. Lembro-me dele, percorrendo os corredores da Faculdade de Direito, ou subindo a meu lado as escadarias da Aula Magna para entregarmos ao reitor, nós e mais umas centenas de estudantes que nos seguiam, um tabuleiro com uma das miseráveis refeições que a Cantina Velha naquele tempo nos proporcionava, durante um célebre levantamento de rancho, no início dos anos Oitenta, que mereceu honras no Correio da Manhã. De outras vezes, via-o de capa preta, distribuindo folhetos de apoio à sua lista de raízes anarquistas ou de protesto pelas atitudes de Soares Martinez. Durante muito tempo foi a sua besta negra lá dentro. Dele e do Prof. Oliveira Ascensão. Com o André Bandeira marcaram uma época em Direito. Pela irreverência e coragem com que enfrentavam o “sistema”, sempre desalinhados, mas nem por isso menos temidos. Sei que se distinguiu na advocacia, que se integrou, e que continuou a intervir politicamente.  Sempre do mesmo modo, directo, frontal, por vezes raiando a loucura. Até hoje. Aos cinquenta e um ainda devia ser proibido morrer. Como também aos quarenta e três. E logo de septicemia na sequência de um enfarte. A morte devia ser vedada aos que acreditam, a quem tem convicções e se bate por elas, sempre e em quaisquer circunstâncias. A morte é sempre um empecilho num projecto.

 

Foi o culminar de mais um dia, de uma semana em que a morte também passou por aqui, ou a sua ameaça, sob a forma de uma miserável notação de uma agência, ensombrando o nosso futuro. Remetendo-nos à  condição desprezível de lixo. Ser  lixo é uma outra forma de morrer. De cair. Como o pacote de plástico na canção de Chico Buarque, quando desafia as leis da gravidade. Depois as coisas voltam à normalidade. Como sempre. O ciclo recomeça. E tudo volta a ser matéria. E vida. Mesmo a morte. E isso também pode ser reconfortante nalguns momentos. Como é este o caso.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 04.07.11

3 de Julho

 

A escrita, o acto de escrever, é um risco. No papel ou no espaço virtual, o risco transporta-se de um dia para o outro, de um mês para outro, de uma vida para outra vida. O risco é o registo, a marca de um tempo, que mesmo quando se risca permanece indelével; como uma pele que não se pode substituir e que só desaparecerá no dia em que o corpo onde ela assenta se tornar em pó.

 

Percebo que alguém a quem cortam uma parte do vencimento esteja disposto a engolir alguns sapos e aturar aqueles que antes violentamente criticou para poder recuperar o poder que lhe permitirá comprar mais alguns livros e discos. Ou esperar que no futuro alguns mais lhe sejam oferecidos. Trata-se de um exercício difícil mas não impossível, tudo dependendo da viscosidade do verme. Nunca compreenderei aqueles que sendo insultados se predispõem a comprar o silêncio do que insulta e a conviver com ambos.

 

Os políticos deviam começar a ser cotados em bolsa. Porque um hipócrita com poder causa mais danos à sociedade e à democracia do que um corrupto. Um corrupto despreza-se. Elimina-se. Um hipócrita serve de modelo e permite a reprodução da espécie.

 

Já se sabia que atribuição de condecorações não passava, na maior parte dos casos, de uma forma do poder recompensar os subservientes. Um agradecimento aos eunucos que lhe servem, e aos seus, de capacho. Depois do que esta noite ouvi sobre a eventual e oportuna fusão de universidades públicas, percebi melhor a forma como alguns prosperam. As épocas de crise são iguais a qualquer outra: a via uterina continua a ser a maior garantia de sucesso de certos investimentos.

 

Entre os que começam a aparecer para cobrar o preço do sucesso, há quem o faça recatadamente. E quem avise logo ao que vem. Numa perspectiva de transparência, eu prefiro os segundos. Como o líder regional da Madeira. Com o Governo empossado, anunciou que está na hora de cobrar. Em euros. E não são os eventuais direitos de autor do livro de Ribeiro Cardoso. Espero que o novo ministro das Finanças possa dar a Alberto João Jardim os merecidos “troikos”. 

 

A predisposição do Governo de não fazer férias e de, imagine-se, apadrinhar o encurtamento das parlamentares, pode ter efeitos ainda mais nocivos no humor dos portugueses. O Verão tem contribuído para uma melhoria, breve, da auto-estima dos indígenas, constituindo um momento de renovação do léxico político. Este ano vai ser diferente. Temo que o encurtamento da estação por razões económicas possa afectar ainda mais a nossa saúde colectiva. Preocupa-me a hipótese de haver “rentrée” sem férias, sem uma “silly season” à altura da crise. Depois do número do ano passado em Quarteira, da nomeação de Cecília Meireles para a secretaria de Estado do Turismo, e dos sobas algarvios terem ficado apeados - o que se reflecte no seu silêncio -, duvido que o líder regional do PSD, mesmo tendo cara para repetir o número, encontre convivas à altura. O fumo que se vê no céu já não é dos foguetes que anunciam a festa.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 30.06.11

30 de Junho

 

O calor não desmotiva. A crise, sim.

 

A leitura de um livro pode aproximar-nos do seu autor, embora haja autores em relação aos quais, por mais que tentemos, nunca nos conseguimos aproximar. São aqueles autores cujos livros é que lhes moldam o carácter. Aqueles cuja personalidade nunca adquiriria dimensão fora da sua própria obra porque eles são a obra, o tempo, o físico e o virtual que passa pelas suas palavras. As páginas que escreveram, os versos que deixaram, não são extensões da sua personalidade. Esta é que é uma ampliação daquelas e que nos ajuda a melhor compreendê-las, às palavras que teceram, aos pensamentos que por um milagre de apropriação colectiva se tornam de todos e de cada um de nós. Borges é um desses casos. As entrevistas que deixou são tão importantes para percebermos a alma que vive nas suas páginas como a tinta que nelas repousa.

 

Gonçalo M. Tavares venceu mais um prémio. Os prémios, um prémio, têm o valor que lhes queiramos atribuir. Significam a projecção sem a qual muitos não chegarão à obra. Mas é a entrevista, em especial aquela em que o autor partilha com o leitor a voz, o tom, os tiques, as pausas, as inflexões do discurso, por vezes o ritmo da respiração, que torna a obra mais próxima.

 

Num programa que merecia honras de televisão, a TSF, graças a Carlos Vaz Marques, tem levado até muita gente a extensão de muitas páginas, dando-lhes voz e profundidade. A excepcional entrevista que Gonçalo M. Tavares lhe deu permitiu-me perceber um pouco melhor gente que passou a fazer parte da minha vida como Lenz Buchmann ou o senhor Bloom. É possível reconhecer um autor pela forma como escreve, pelos temas que aborda, pela utilização que faz, ou não faz, do leitor. Um grande autor é aquele que só se revela na clareza do que escreve e que faz de uma escrita simples na aparência um mundo que todos podemos percorrer e com o qual é possível identificarmo-nos sem que para isso tenhamos de ser seduzidos.

 

Há intervenções parlamentares que deviam ser interrompidas pelo expedito corte do pio. Bastava desligar o sistema de som. Essa deveria ser uma prerrogativa da senhora presidente. Sem aviso prévio. Depois, é claro que não podiam deixá-los retomar a lengalenga. E se tal acontecesse os discursantes seriam multados. Quase todos estiveram bem. Quase, digo eu, porque aquilo que saiu da bancada do PSD, logo para primeiro dia, foi inacreditável. Ninguém espera que dos partidos que suportam o Governo venham as críticas ao programa apresentado ou as perguntas incómodas. Mas começar uma legislatura elogiando o chefe, antes mesmo deste ter realizado alguma coisa, gabando-lhe “a coragem” e “a rapidez”, num tom que de tão encomiástico começa logo a parecer suspeito, não deve ter sido agradável de ouvir para o primeiro-ministro. Ser o líder parlamentar a cair em tal ridículo infunde receio quanto ao que se seguirá. Na anterior legislatura viu-se no que deu a unanimidade e o elogio fácil. A intervenção desta tarde do líder parlamentar do PSD merecia ter sido feita no parlamento madeirense. Passos Coelho não a merecia. Há rasgos que tresandam a subserviência e soam a insulto. Para quem os recebe; mais para quem os ouve. E não é uma questão de “sensibilidade social”.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 24.06.11

24 de Junho

 

Nem as actividades nem os sucessos são apreciados por toda a parte segundo o mesmo critério. No seio da mesma sociedade não existe apenas um só tipo de homem exemplar” – Raymond Aron, Memórias

 

O pensamento que estimula é aquele que muitos anos ou séculos depois permanece actual, aberto à discussão, que mantém a susceptibilidade para perturbar, que questiona as nossas aparentes verdades e instila a dúvida nos faz crescer. Não sei até que ponto Aron terá razão. Sou incapaz de concluir, como ele, que não existe apenas um tipo de homem exemplar. Para mim, a exemplaridade é una, unívoca, não admite tonalidades. Ou se é ou não se é. Poderá é haver várias maneiras de encará-la.

 

Hoje reli o artigo que Pedro Lomba escreveu para o Público sobre a formação de magistrados no CEJ. Concordo com muito do que ele ali escreveu, porque há questões que nos transcendem e em relação às quais as diferenças ideológicas não relevam. De qualquer modo, em termos éticos, dentro do seio de uma mesma sociedade, a formação do espírito de autodefesa e de corporação não é só o resultado de uma aprendizagem deficiente ou que se escora em teses viciadas. Isso ainda é uma consequência do desregramento ético, da subversão do espírito e da sensibilidade em relação ao que é verdadeiramente importante e capaz de determinar o futuro. Individual e colectivo.

 

Aqui há dias dias sucedeu com uma notícia do Público que passou despercebida. Repetiu-se na edição desta manhã do Correio da Manhã. O título da primeira página explica a falta de razoabilidade do novo Acordo Ortográfico em relação a algumas questões práticas. A eliminação do acento agudo na terceira pessoa do singular do verbo “parar” torna-a igual à preposição. Mas se no Público o acento foi eliminado de vez, o Correio da Manhã voltou a acentuá-la. E só assim faz sentido: “Falta de dinheiro pára 237 carros da PSP” não é nem nunca será o mesmo que “Falta dinheiro para 237 carros da PSP”. Por muito que custe aos defensores do acordo e a todos os que não distinguem um grave de um agudo. E na manchete de um jornal ainda faz mais diferença.

 

O Bloco de Esquerda continua a dar que falar. Foi Fernanda Câncio no DN. Ela fala em “harakiri”. Eu em 23 de Janeiro pp. sentenciei a morte do partido (“O BE como alternativa acabou hoje”) e riram-se. Reafirmei-o em 15 de Fevereiro, ao referir-me a Francisco Louçã quando escrevi que “um líder temido e respeitado que se transforma tão rapidamente em bicha-de-rabear devia ter a lucidez de se ver ao espelho. E rir-se. Ou ir-se. Qualquer uma das decisões seria sinal de sensatez”. Os acontecimentos dos últimos dias, para desgosto de alguns leitores deste blogue, só o vieram confirmar. O BE extinguir-se-á sozinho no processo autofágico que encetou.

 

Francisco Assis fala em “ruptura com o passado” e já diz que “a pior coisa que o PS tem é que está muito dominado por pequenos e minúsculos interesses políticos”. São estas coisas que me perturbam. Bastaram duas semanas e ele já descobre no PS aquilo que nunca vislumbrou nem sequer remotamente em seis anos. Gostaria de o ter ouvido dizer isso quando a situação se começou a degradar, há quatro anos atrás, quando começaram a “dar corda” a esses pequenos e minúsculos interesses que se apoderaram das estruturas do partido e que desde o dia 5 de Junho correm em massas compactas de um lado para o outro do estábulo, balindo sem parar, por não saberem por onde entrará o lobo que uiva. A forma como esta gente já se posicionou e está pronta a esquecer a herança que ajudaram a deixar é tenebrosa.

 

António Barreto não perde tempo e esta manhã já passava pelos microfones e pelos jornais alertando para os perigos que aí vêm quando a nova clientela substituir a velha. Esse será um momento decisivo para Passos Coelho mostrar a diferença, antes dos “Marcos Antónios” começarem a distribuir os biscoitos pela tribo. Poderá ser mais um sinal, como foi o das viagens em económica. Um bom sinal. Não o confundo com populismo nem com demagogia porque entendo, como sempre disse e escrevi, que há sinais que têm de vir de cima. E esse é importante para que aqueles que perderam o abono de família percebam que estamos todos no mesmo barco. Também espero que seja para durar e que não aconteça o que se passou em Macau, no tempo de Rocha Vieira, quando a poupança pública virou pelintrice. E depois esbanjamento oculto com os nepotes. Não será agora o caso, mas antes que alguém se lembre de mandar comprar bilhetes de executiva para depois trocá-los pelos de económica para receber a diferença em dinheiro, pedindo depois às secretárias que telefonem para as agências solicitando “ofertas” de “upgrades”, que é uma outra forma de corrupção, o melhor mesmo é Passos Coelho deixar estas coisas claras desde o início. E de preferência por escrito, sem deixar, contudo, de salvaguardar que nos voos para fora da Europa ou nas visitas oficiais o primeiro-ministro e a sua comitiva não viajarão em turística. Aí é a representação de todos que é posta em causa e há ridículos evitáveis.

 

A noção de ridículo é algo que a meu ver se me afigura desconhecida para os lados dos CTT. Desde que se começou a falar em privatização e desataram a mudar logótipos, a comprar e a vender imóveis, livros, canetas, telemóveis, bilhetes para espectáculos e até cromos da bola, despedindo pessoal para logo a seguir contratarem os mesmos a termo certo, enquanto nomeavam amigalhaços sem qualificações e transformavam uma empresa respeitável e respeitada numa sucursal das trapalhadas onde estão metidas as clientelas partidárias, com inevitáveis consequências no aumento dos preços e na degradação da qualidade do serviço prestado, era previsível que acontecessem situações como a que os jornais relataram. É a nomeação de gente deste calibre e de episódios como o que sucedeu com Mata da Costa que Passos Coelho terá de evitar se quiser conquistar o respeito dos portugueses. A confiança já obteve. Agora é preciso que não faça como outros e não abuse dela.

 

A canícula traz consigo a inércia. Os corpos torna-se mais pesados, incham, têm dificuldade em se mover. Esperemos que as coisas se mantenham assim por mais algum tempo. Há inadiáveis para cumprir. E o que terá de ser esclarecido poderá ficar para mais tarde. Esclarecer o peso das maçonarias neste Governo não é uma urgência. O País e os seus compromissos estão primeiro. Cada coisa a seu tempo.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 21.06.11

21 de Junho

 

Quem rega com amor não morre.

Conhece o início

E os fins do tempo.

 

Quem rega com amor não morre.

Adianta-se à terra

e serve.” – Ruy Cinatti, Princípio e Fundamento

 

Saber cortar com o passado, fazer rupturas com tudo aquilo que deve ser rompido, que não pode nem deve continuar a ser procrastinado, penso ser neste momento o desejo de qualquer português e cidadão honesto. Todos sabemos que a situação é má, que a hora é grave, que o tempo não espera. E não deverá ser por mera desconfiança ideológica que se deverá duvidar do empenho dos homens.

 

O Presidente da República fez um discurso incisivo. Cru. Fez um bom discurso. Talvez se tenha querido demarcar, sublinhar o seu papel perante o recém empossado primeiro-ministro. Se foi essa a intenção fê-lo bem. As palavras não soaram a falso, exigindo apenas a concretização a que só os actos e o tempo poderão dar resposta. Só não percebo por que raio o PR continua a misturar as coisas que só ele entende (“cooperação activa”) com a linguagem que qualquer português domina (“compromissos alargados a outras forças políticas”, “diálogo e concertação com os agentes económicos”, “responsabilidade de empregadores e trabalhadores”). Pareceu-me oportuna a referência de que há cada vez menos tolerância dos cidadãos em relação a quem governa (e ainda bem), que se impõe justiça na repartição dos sacrifícios, maior energia no combate à corrupção e um travão à promiscuidade entre interesses públicos e privados, impondo-se premiar a competência e o mérito e colocar um ponto final ao rotativismo de clientelas. E as notas de que Passos Coelho dispõe da força de um resultado eleitoral inequívoco, à existência de uma maioria no Parlamento e ao apoio antecipado do PR, são importantes neste momento. Para que amanhã, se necessário, possam ser recordadas.

 

Registei das palavras calmas do novo primeiro-ministro a indicação de que “chegou ao fim um certo tipo de governação e de entendimento entre o Estado e a sociedade”. Se se quer fazer o País avançar é mesmo por aí que se tem de caminhar. Os sinais, como os discursos, podem antecipar acções concretas. Ou não passarem de desejos. Para já dou ao discurso de posse deste primeiro-ministro o mesmo crédito que  dei ao do anterior. Em 2005. Que o de 2009 foi a antecipação do fim e não me mereceu atenção. Uma governação ajuizada – nem me atrevo a dizer boa – levará ao alargamento da base de apoio do Governo, à melhoria dos indicadores e da auto-estima dos portugueses e a um sopro de confiança no regime e nas suas instituições. Se tal acontecer, para lá do vastíssimo campo das diferenças ideológicas, serei o primeiro a assinalar o facto.

 

Lá em casa ficaram a conhecer a gravata do Adolfo. Pela televisão. Fiquei satisfeito por vê-lo  falar com à-vontade e a indispensável sobriedade de quem se sabendo competente não pode perder as referências por passar a fazer parte daquela casa. Deposito nele, enquanto colega, companheiro de blogue, pessoa que encarna um espírito jovem, bem formado, irreverente e descomprometido, e agora deputado, a mesma esperança que deposito na prestação parlamentar da Isabel Moreira e de tantos outros. É com eles, e por pessoas como eles, à direita e à esquerda, que terão de passar as mudanças políticas em Portugal e muito em particular no Parlamento.

 

Saber da indicação da Assunção Esteves como candidata do PSD e depois da sua eleição como Presidente da Assembleia da República com uma ampla maioria é uma boa notícia. As suas qualidades, independência de espírito e mérito académico, profissional e intelectual, são indiscutíveis. O facto de ser mulher talvez evite algumas ordinarices e despropositadas brejeirices que ultimamente se ouviram naquele lugar e confira equilíbrio, autoridade e mais moderação ao maltratado discurso parlamentar. Incompreensíveis, porém, continuam a ser as razões por que Passos Coelho e a direcção do PSD entendiam que Fernando Nobre estava no mesmo patamar da Assunção para poder desempenhar tal cargo. Estimular a cidadania e chamar independentes para funções de responsabilidade não é critério que se possa sobrepor ao da competência. Sabe-se que nem todos os voluntarismos são benéficos. O triste episódio Fernando Nobre, que não começou agora mas no dia em que lhe sugeriram candidatar-se a Presidente da República, não deverá ser esquecido. Também a atitude de Passos Coelho e tudo o que esta revelou de insensatez e imprudência, agravada pelo segundo “chumbo” a Nobre, perfeitamente escusado e numa altura em que era cristalino que a candidatura não vingaria, ficará por todos registado. Espero que com algum proveito. Para que erros desse jaez não se repitam.     

 

A esperança é aquela parte de nós que sobrevive ao caos. A metade que respira quando a outra parte falece. A luz que nos invade quando a noite soçobra. A esperança é também uma coisa de tímidos que se escondem por detrás da coragem. O XIX Governo Constitucional tomou posse já o Sol ia alto. Tomou posse sem direito a Primavera. No dia em que o Verão se apresentou. Talvez por isso é que a luz de hoje seja mais branca, mais quente, mais profunda e mais esperançosa. A água voltou a correr.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 15.06.11

15 de Junho

 

 

Aunque sepa los caminos

yo nunca llegaré a Córdoba” – Federico García Lorca, Canción del Jinete

 

Si pudiera yo vivir

De nuevo esta vida

Sin sufrir por amarte

Preferiria morir” – Yasmin Levy

 

É curiosa a forma como evoluem ao longo dos anos os nossos interesses de viagem. Aquilo que nos impeliu um dia a partir raramente se repete. Ainda quando regressamos ao mesmo lugar onde antes tivemos a sorte de um dia, por umas horas, por um momento, ser felizes.

 

Percorro a Calle Judíos, entre as paredes brancas que reflectem o azul intenso do céu que as protege, e na esquina com Averroes, pouco antes da sinagoga, dou com a Casa de Sefarad. Nesta altura do ano não há muita gente e é possível percorrer tranquila e pachorrentamente os becos da Judiaria.

 

Escuto ao fundo um trecho que me é vagamente familiar. A sonoridade de alguns instrumentos transporta-nos para um mundo de onde por vezes temos a sensação de nunca termos saído. O som das flautas, da guitarra mourisca e do alaúde confunde-se com uma referência que leio a Carolina de Michäelis a propósito de uma canção que faz parte da herança musical sefardita e que terá por ela sido referida pela primeira vez ao analisar a sua popularidade na época de Gil Vicente. A forma como durante tantos séculos as culturas cristã, árabe e judaica se cruzaram, conviveram e mesclaram na Península é uma fonte inesgotável de descobertas. E de prazer. Um autor, Salvador-Danieli, em 1863, verificou a inexistência de diferenças “significativas” entre as melodias de Afonso X e as mais antigas composições musicais da tradição andaluza, referindo ser essa uma consequência da “surpreendente analogia” entre as escalas musicais árabes e andaluzas e as do canto gregoriano. Que seria de nós sem a herança do Al-Andalus?

 

Em Portugal foi 10 de Junho, tempo de praia, de "pontes", de condecorações e recriminações várias. Apercebo-me de que há quem queira ajustar contas com o passado recente, com o que foi julgado em 5 de Junho. Talvez o melhor mesmo seja começar por julgar o Otelo, que afinal nunca quis meter os fascistas no Campo Pequeno. E depois também o general que apadrinhou o PRD, e o Guterres que se foi embora e permitiu que o Barroso viesse para depois entregar o desgoverno ao Santana Lopes que permitiu a José Sócrates chegar ao poder. Se formos por esse caminho, com sorte, acabaremos a julgar o D. Sebastião. Se os condecoram a título póstumo, sem que o morto seja ouvido sobre a distinção, talvez também devam poder julgá-los nos mesmos termos.

 

O “El Dia de Córdoba” é um jornal de fácil leitura, simples e honesto, sem grandes pretensões para além da querer manter informados, e formados, os seus leitores. Nele tem uma coluna um senhor chamado Juan Cano Bueso. É o presidente do Conselho Consultivo da Andaluzia, catedrático de direito constitucional, advogado e político. Não posso deixar de pensar nele depois de saber da “chapelada” ocorrida com os votos das nossas legislativas no Brasil. Ainda há dias, Juan Cano Bueso escreveu um interessantíssimo artigo sobre os perigos da ciberdemocracia, texto que descubro agora estar também acessível na Internet (se fosse no Público não seria possível ter-lhe acesso). As dúvidas sobre a ciberdemocracia continuam a ser muitas. E, como se vê pelo que ele escreve, actuais. Facilitar a participação não pode tornar-se na ausência de participação. Para mim, que gosto de cinema e me preocupo com os valores da democracia e da participação, a ciberdemocracia estará para a democracia como o filme que se vê em casa, no sofá, está para uma boa sala de cinema. A dimensão, o encontro, o ritual, podem ser modernizados, “ciberaprofundados”, mas têm de continuar a fazer parte da essência das regras. Há uns anos não pensava assim, mas perante a contínua erosão da participação considero que também aí não se pode facilitar demasiado. A preguiça não pode passar a fazer parte dos hábitos da democracia. Não deverá ser premiada. Como escreve Cano Bueso, não se pode correr o risco da ciberdemocracia se tornar na tumba da democracia representativa. Já bastam os políticos e os comentadores que diariamente a enterram.

 

Saber crescer política e democraticamente é um exercício como caminhar pelas ruelas de Córdoba. Tão depressa nos perdemos como logo a seguir nos reencontramos. E retomamos o caminho que se faz caminhando. Todos os dias. Respirar tanto céu enquanto te sinto caminhar a meu lado é uma felicidade. Ou tão-só uma forma de liberdade. Um acto de amor.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 07.06.11

7 de Junho

 

Perceber o que aconteceu no dia 5 de Junho não tem qualquer dificuldade. Digerir só o terá para quem se esqueceu do que aconteceu nas legislativas de 2009 e nas últimas autárquicas.

 

Durante meses foi a gritaria. Berrava-se em S. Bento, na rua e nas televisões, gesticulava-se muito,  atropelava-se o discurso do vizinho na primeira oportunidade. Houve bandeiras, confusão, insultos, dichotes, acusações, baixeza discursiva, ânimos exaltados e até detenções. De repente, tirando uma ou outra greve que já se anuncia no horizonte estival, ficou tudo calmo. Até um veto do Presidente da República destinado a pôr termo a mais uma "borrada" dos senhores deputados passou quase despercebido. Quem inventou esta coisa da democracia deve ter pensado que as eleições são fundamentais para aliviar as tensões. Escolher é também uma forma de amenizar os conflitos. No nosso íntimo também é assim que as coisas se passam. À dificuldade da escolha sucede-se a opção irreversível. Depois de assinalada a cruz e entrado o voto na urna está o assunto arrumado. O dia seguinte é como que um regresso à realidade. Acabou-se, está arrumado. Agora é voltar ao trabalho e enfrentar os combates de todos os dias até que dentro de quatro anos, se entretanto a tensão não subir demasiado e não for necessário antecipar eleições para que ela possa ser descarregada, voltaremos à confusão. Até nisto, como forma de aliviar as tensões e de nos trazer de novo até nós, a democracia é um sistema quase perfeito.

 

Ainda não há Governo. E vai demorar algum tempo, o que, porém, não é impeditivo de já ter sido anunciada a primeira medida pelo futuro primeiro-ministro. Num país que tem sido superavitário de comissões, paradoxalmente, a primeira medida anunciada é a criação de uma comissão – “autoridade orçamental independente” – com personalidades nacionais e estrangeiras. Para nos fiscalizar. Continuamos a ser originais. E desconfiados. A nossa sombra também precisa de ser fiscalizada. Nem a ela se permite cumprir a sua função e poder estar em sossego.

 

Uma das coisas boas do pós-eleições, para todos aqueles que se interessam e gostam da coisa pública, é a esperança que faz renascer no íntimo de cada um. Esperança em que o futuro primeiro-ministro, mesmo que não seja da mesma cor do esperançoso, consiga fazer alguma coisa pelo País, por nós, pelos que nos rodeiam. Esperança, entre os derrotados, que o futuro volte a ser mais risonho nos anos vindouros. Esperança, entre os vencedores, que os eleitores no final da legislatura lhes renovem a confiança e, se possível, a reforcem. O dia das eleições é assim uma espécie de 31 de Dezembro. O dia seguinte é o 1 de Janeiro. Uns ressacam, outros recompõem-se. Todos regressam a si prontos para construírem novos sonhos, novas ilusões, até que novo acto eleitoral se perfile no horizonte.

 

Pego nos jornais e registo dois bons textos e ambos à esquerda (a direita ainda não teve tempo para começar a reflectir tão preocupada que está com a formação do Governo S.A. e a distribuição dos dividendos eleitorais). Um de Rui Tavares, no Público de ontem. O outro de Alfredo Barroso no i. Quanto ao primeiro, a lição de que se a esquerda considerar que fez tudo bem não estará a ser séria. Em relação ao segundo a constatação, também há muito e há anos por mim referida, de que o aparelho partidário do PS está hoje ocupado por jovens burocratas, tecnocratas e oportunistas, sem convicções (também ignorantes)  e dispostos a servirem quem não ponha em causa os seus poderes, circunstância que constituirá o maior empecilho à renovação ideológica e política do PS. O artigo saiu hoje e os primeiros exemplos apressaram-se a chegar: António José Seguro ainda não se apresentou como candidato a coisa alguma e “secções socialistas em todo o país estão já a promover manifestos de apoio”. Esta gente não descansa. Nem aprende nada. Ainda a certidão de óbito não foi assinada e já se movimentam. Os mesmos que garantiram mais de 90% a Sócrates no último congresso e que são responsáveis pela agonia em que tudo acabou. É evidente que há urgência na escolha de um novo líder, mas quem tão mal tem feito ao partido e ao País, se tivesse um mínimo de humildade e decência deveria ficar quieto e esperar que os vocacionados para a liderança avançassem, livremente, depois de ponderarem se tinham condições para fazer melhor do que o que saiu, sem jogos de bastidores idiotas e interesseiros nem condicionamentos espúrios. Quem quer que seja que venha a liderar o PS terá de democratizar as regras se quiser efectivamente liderar ("un chef, c'est quelq'un qui a besoin des autres, l'un ne va pas sans l'autre", dizia o filósofo e escritor Paul Valery), mexer nos Estatutos, separar o trigo do joio acumulado. José Sócrates foi um líder elevado a essa condição em circunstâncias excepcionais, imposto pelo momento que se desenhou pelo núcleo duro do seu antecessor. O resultado dessa “imposição” foi julgado em 2009 e agora em 5 de Junho pp. Seria muito mau que as coisas se voltassem a processar da mesma forma, precipitadas e atabalhoadas, com a escolha de um novo líder. Quem quiser que tire conclusões.

 

As análises aos resultados estão praticamente todas feitas. Contudo, não posso deixar de pensar no que aconteceu no Algarve. A nível nacional, o PSD venceu em 246 dos 308 concelhos. Este número diz muito da forma como foi avaliado o trabalho de quem saiu. Mas em Faro, um distrito tradicionalmente à esquerda, o PS perdeu em todos os círculos eleitorais. Miguel Freitas, pela sua capacidade de trabalho, dedicação e esforço, não merecia este resultado. Só que se ele, por um lado, espelha o descontentamento por uma política em relação à região que foi traçada em Lisboa e que teve reflexos no dia-a-dia dos seus cidadãos e, por outro, é sinal da irrelevância para os eleitores locais do cabeça-de-lista escolhido pelo Largo do Rato, importa não esquecer que tal resultado também castiga a forma como o PS/Algarve se deixou enredar – falar em subalternização seria excessivo – na teia de apoio ao líder nacional, sem ver que por detrás do unanimismo se estava a hipotecar um futuro que a todos diz respeito. É, por isso mesmo, curioso ouvir o que alguns, que andaram sempre ao “colo” com José Sócrates e a sua entourage e foram dizendo ámen a tudo, mostrando-se míopes para verem o que se estava a desenhar, vêm agora dizer. Depois do descalabro é fácil anunciar que de  futuro “tem que haver mais proximidade às pessoas, capacidade de olhar olhos nos olhos o eleitorado”. Se tivessem ouvido o que eu disse no último Congresso do PS/Algarve escusavam agora de ter de estar a lamentar-se.

 

Um campanha sem cartazes e com pouco lixo é uma benção. E a prova de que os eleitores não dependem do aparato para escolher. Seria bom que de futuro fossem todas assim. Poupavam os partidos, poupava o erário e ganhava o ambiente.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 01.06.11

1 de Junho

 

Teimoso”, remordia o coronel à socapa. “Há seis anos que fazemos fogo desta posição e vem este tipo agora com partes.”

“Conta com a segurança do material, é o que é.”

“Há-de valer-lhe de muito a segurança, com um ângulo de queda destes.” – José Cardoso Pires, O Hóspede de Job

 

Estava a relê-lo quando me lembrei de uma notícia de ontem no Público, do Nuno Pacheco, a propósito do novo Acordo Ortográfico. Escreveu o jornalista que ninguém o discute, que não vai a votos e que, mais curioso, nenhum dos partidos concorrentes às eleições recorreu àquele para escrever os seus programas eleitorais. Quando há dias falava em hipocrisia e na dimensão que a coisa está a tomar não pensava só no que os fulanos dizem. Nestas alturas, que são aquelas que importava discutir, ver as razões e os argumentos, como também no caso do outro acordo, no do FMI, é que se vê como tudo isto está distante da realidade, do país, das pessoas. Agora é que é oportuno falar de tramóia, de moscambilha, de urdidura. Quando a vaidade se alia à esperteza ignorante, à teimosia e à falta de competência, a malha só pode ser de estalo.

 

Baptista-Bastos faz no DN uma síntese magnífica dos cavalheiros. Daquilo que importa reter. Em relação a um deles não era preciso dizer nada. Ao fim de seis anos de Governo já todos os portugueses o conhecem sem que haja necessidade de lhe desvendar mais algum segredo. Sem querer tornou-se transparente. E também incómodo. Cada um que o julgue por si. Já quanto ao outro, Passos Coelho, faz todo o sentido sublinhar que “é um homem perigoso pelo que afirma e, sobretudo, pelo que involuntariamente dissimula”. Basta pensar no que aconteceu com a conversa a sós e com o telefonema que acabou em reunião. É esta vertente, assim como o seu percurso político e profissional, que o não distingue em nada do outro, e, em especial, o olhar daquela matilha que o rodeia e que está ansiosa por “agilizar” processos - que é uma outra forma de contornar as regras e arranjar uns tachos -, que assusta. Entregar os hospitais aos gestores que amanhã irão dizer aos radiologistas quais as películas que deverão adquirir, e a que empresas, da mesma maneira que a escola pública se transformará no vazadouro do lixo das privadas que todos iremos pagar, para que outros que não teriam lugar numa escola pública de excelência pudessem tirar um curso superior, depois de uma vida passada nos corredores do Parlamento, nem será o pior. De uma maneira ou de outra, com os resultados que se conhecem, já temos tido disso e o currículo de muitos candidatos espelha essa realidade. Pior é o que será, o que, como ele escreve, “pode muito bem suportar um tirano a posar de democrata”.

 

Qualquer pessoa minimamente interessada e de boa índole percebeu há muito tempo, demasiado, que o barco estava a perder contentores pelas amuradas, tanto de estibordo como de bombordo. Houve quem o dissesse, ou que o escrevesse, no tempo e no lugar devidos. Sem que para isso tivesse de ser comprometido, politicamente faccioso ou arrivista. E não foi só nos últimos seis ou nove anos.

 

O outro, o dos refugiados, não quis nada com ele. Melhor, correu com ele. Ele ofendeu-se porque não lhe deram a desejada tença. Não lhe reconheciam o valor e "emprateleiraram-no". Despediu-se do PS e apoiou o Barroso. Acabou inscrito no PSD e dedicou-se, diz ele, à docência. Em maledicência doutorou-se. Deram-lhe ouvidos, abrigo, “enturmaram-no”. Ou melhor, deram-lhe estatuto, que era o que buscava. Agora apelida os antigos companheiros, os que antes lhe arranjavam trabalho, com o mimo de “alarves”. É certo que não consegue deixar de ter dificuldades com a ortografia, mas isso são minudências para um “senhor doutor” como ele. No meu íntimo, quando o leio, convenci-me de que ele já trabalha para o próximo Acordo. Mas enquanto este não chegar, e não lhe derem o pelouro das revisões, vai-se pavoneando e “dando conferências”. A ver se chega a ministro, digo eu. Enfim, com a procura de lugares, se tivermos sorte e rezarmos, é capaz de chegar primeiro a grão-mestre. Oxalá que consiga.  

 

Se os portugueses forem tão previdentes nas legislativas como foram nas presidenciais, ainda antes do Verão vamos ver mais vezes o regressado “menino-guerreiro”. Alea jacta est.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 30.05.11

30 de Maio

 

“- Portanto, Gláucon, precisaremos também na nossa cidade de um chefe capaz de regular esta associação, se quisermos salvar a nossa constituição.

- Por certo que precisaremos, e muito.”

Platão, A República (Diálogos - I)

  

O país começou a semana de trabalho, para os que trabalham, com os comboios parados. O transtorno que tudo isto causa é coisa de loucos. Centenas de comboios suprimidos, milhares que não conseguem chegar a horas aos locais de trabalho. Quem tem mota ou carro e dinheiro para o combustível nunca fica apeado. Só o pobre que mora nos subúrbios é que está dependurado da CP. Uns são irresponsáveis, outros primam pelo disparate. Numa altura em que as únicas profissões com saída são as de comentador televisivo e de sindicalista, falar de produtividade e defesa dos postos de trabalho numa altura de crise como esta deve ser uma coisa esotérica para os sindicalistas da CP. O meu avô Miguel, que fez pelos ferroviários portugueses o que muitos deles nem imaginam, lá no sítio onde está deve olhar para os tipos e perguntar para si se eles não percebem que o sindicalismo está a regredir. Não por falta de causas mas em razão do atavismo e surda ignorância dos seus dirigentes.

 

Tudo o que passa pelas Finanças parece mesmo que deixou de funcionar. Dos faxes aos computadores está tudo a precisar de uma vassourada. Das grandes. Uma jovem que quer ser empresária queixa-se de que anda há vários dias a tentar aceder ao site do Ministério para declarar o início de actividade e que enquanto não puder fazê-lo não poderá trabalhar. Estava desempregada e como não é de ficar à espera do subsídio pôs mãos-à-obra. Como não obtinha resposta da máquina, nem mesmo às horas em que os serviços estão encerrados, foi a uma repartição entregar o formulário, pensando que um humano lhe resolveria o problema. Qual quê. Não lhe aceitaram o formulário. Ficaram todos a olhar para os monitores dos computadores. E conversando horas a fio. A cena repetiu-se durante vários dias. Mandaram-na embora e disseram para ir tentando. O sistema estava em baixo.. Está o sistema, estão eles e estamos todos nós.

 

A chegada de Manuela Ferreira Leite e Mário Soares à campanha eleitoral começa a mostrar que o mar está encapelado. É difícil navegar nas águas do eleitorado do centro. Mas enquanto um apela ao voto para que não caia o resto que dificilmente se vai aguentando em pé, há quem expluda em ressaibo. Já nem se trata de apelar ao voto no candidato menos mau. É, isso sim, apelar à rejeição de quem não se gosta. Também nos dois os traços do carácter são indisfarçáveis por mais anos que passem.      

 

Marcelo Rebelo de Sousa devia saber que o tipo de intervenção que ontem fez na TVI é uma coisa muito feia para uma pessoa do seu nível académico e intelectual. Em plena campanha eleitoral,  falando na maior parte dos casos para gente pouco informada e facilmente manipulável, é triste, muito triste, que use um espaço que se quer sério para um apelo consciente – e ele que me perdoe, eu diria mesmo a raiar o desonesto - ao voto num dos partidos concorrentes.

 

O Bastonário da minha corporação ficou enxofrado com a prisão preventiva dos petizes que conduziram aquela selvajaria que as televisões ainda mais irresponsavelmente não se furtaram a repetir durante dias e dias seguidos para que todos se pudessem deliciar com os bárbaros de cada vez que pegavam no tema. Não compreendo a sua reacção embora compreenda a sua posição de princípio quanto à prisão preventiva. Lamento desiludir os que pensam como ele, a começar por ele próprio, mas o estado a que essa gente se habituou a descer não conhece, nem merece, outra linguagem, sob pena de um destes dias acordarmos todos na selva governados pelos petizes. Se o caminho a seguir com os grafittis, com a corrupção, com tudo o que desfeia a nossa sociedade fosse o mesmo, certamente que não estaríamos como estamos, acampados e à espera que nos fiscalizem.

 

Agora a discussão é em torno das alterações ao memorando assinado em Lisboa com os senhores do FMI, do BCE e da UE. Estes cretinos não têm mais nada que fazer senão criar casos. Casos e mais casos. José Sócrates não tinha necessidade de ter feito o que fez. Passos Coelho não consegue disfarçar o seu lado calimero de cada vez que abre a boca. A esperteza do primeiro-ministro era dispensável. Se é verdade que os dois documentos que estavam em causa teriam de ser compatibilizados, era escusado fazê-lo dessa forma. Perderam os dois. Um porque voltou a fazer como não devia – não custava nada ter reafirmado aos demais partidos que os documentos teriam de ser articulados em Bruxelas e tê-lo dito de maneira a que todos os portugueses percebessem, sem subterfúgios. O outro porque se fez de tonto – ou será mesmo? – e levou como resposta que os documentos estavam há vários dias na Internet acessíveis a quem quisesse lê-los. No final foi Paulo Portas, o tal que lidera um partido de direita que já está à esquerda do PSD, quem mais uma vez, como sempre, saiu a ganhar. A esperteza ignorante de uns são os votos certos dos outros. E o seu Euromilhões.

 

A hipocrisia tomou conta da campanha. A coisa assume uma dimensão medonha.  

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 26.05.11

26 de Maio

 

Desconheço o que pensará o Prof. Catroga do facto do Dr. Passos Coelho ter trazido para a ribalta da campanha o tema, que eu pensava enterrado por uns tempos, da interrupção voluntária da gravidez. Em todo o caso, até sou capaz de compreender o ponto de vista do líder do PSD. Numa situação de emergência nacional, como é a que vivemos, a interrupção voluntária da gravidez deverá ser um tema caro ao FMI e aos nossos parceiros europeus. Naturalmente que o candidato faz depender uma mexida na lei de um novo referendo. Coisa baratucha, como se sabe, pois que para quem já deve tantos milhões, mais milhão menos milhão na preparação de um referendo sobre o tema não deverá fazer qualquer diferença. Diz o cavalheiro que será necessário fazer primeiro uma reavaliação. E só depois mexer na lei. Isso é normal. Só que ao mesmo tempo esclareceu que o PSD não tomará qualquer iniciativa nessa matéria. Então, pergunto, para que veio falar no assunto e avançar com novas ideias que ele próprio diz não figurarem no programa eleitoral do seu partido? Reavalia, dá a conhecer ao País a reavaliação e depois fica à espera do referendo? Ou aguarda que a alteração caia do céu? Não percebi a explicação, mas de caminho, certamente, far-se-á o referendo. O problema é que, diz ele, isso depende de uma coisa: “se houvessem vários cidadãos que quisessem…”. Ele diz bem, “se houvessem”, porque de outro modo ele nem sequer chegará a primeiro-ministro.

 

D. José Policarpo deve considerar as declarações do Dr. Passos Coelho sobre a interrupção voluntária da gravidez (que o Dr. Miguel Relvas há-de vir explicar mais tarde se ele não tiver percebido) de uma seriedade à prova de bala. Honestíssimas, diria eu.

 

Na Visão, um artigo do Prof. Freitas do Amaral chamou a minha atenção. Se ele fosse muçulmano e José Sócrates o líder de um país árabe eu diria que o jurisconsulto era militante da Al-Qaeda, tal a forma como se referiu a José Sócrates, lhe apontou os erros e se posicionou para vir a ser um interlocutor válido num próximo executivo liderado por Passos Coelho. Claro como a água. Admito sem qualquer dificuldade que quase tudo o que ele escreveu, quanto aos factos, é verdade. Porém, a única verdade que verdadeiramente interessa extrair do que ele escreveu é a de que José Sócrates não soube escolher aqueles de quem se rodeou – dentro e fora do partido –, e agora paga por isso. Não se pode agradar a todos. É dos livros e da vida. Um destes dias ouviremos o que Basílio Horta tem para dizer e que por enquanto, prudentemente, silencia.

 

O nosso também canta”, escreve o Expresso a propósito de Jerónimo de Sousa ter trauteado uma melodia de Lopes Graça, em Santa Maria da Feira. Também porque Passos Coelho, o outro rouxinol, ainda quando está rouco, não tem feito outra coisa senão cantar. Isto está tudo do avesso. Os “Homens da Luta”, em vez de estarem a fazer campanha, andam pela Eurovisão. O presidente do PSD, que devia estar na Eurovisão ou num estúdio qualquer a gravar  o “às duas por três quem sabe onde isto irá parar?” antes de dizer bem bom e pedir o café da manhã, anda em campanha e quer ser primeiro-ministro.   

 

O Dr. Marques Mendes, que quando a televisão faz o favor de o trazer até lá casa é mais conhecido pelo ternurento nome de “topo gigio” devido à forma como se agiganta à medida que o discurso avança, veio ontem dizer que “não há terceira via”. E eu que o diga. Da última vez que atravessei a ponte, a 25 de Abril, senti a falta de uma quarta e até de uma quinta via. As outras pontes têm vias que cheguem. Na de Abril escasseiam cada vez mais. E agora sem um Almerindo nas estradas (foi contratado pela concorrência) é que vai ser o bom e bonito. Já faltou mais para regressarmos à terra batida.

 

O Presidente da República deve andar sem saber o que fazer à vida. O PSD quer uma maioria absoluta. Confessou-o há dias. Não quis fazer uma coligação pré-eleitoral porque estava convencido de que ao fim de seis anos de governo socialista bastaria a Passos Coelho cantar  meia dúzia de larachas e tirar umas fotografias no sofá. Quando o seu líder começou a perceber que ficava pendurado e que o combustível estava a falhar para a descolagem, ainda que contando com os votos do CDS para formar uma maioria parlamentar, veio falar em maioria absoluta e sacou da artilharia. Isto é, trouxe “a tralha” para a estrada. Do bebé da incubadora aos dos ovos Kinder, só dei pela falta de Henrique Chaves. Seguro é que o PSD não aceitará governar com o PS, que, por seu turno, admite governar com quem lhe der a mão. Ou o braço. O Bloco e a CDU, como sempre, andam cheios de feijões nos bolsos e não obtêm financiamento para cenários reais, pelo que preferem não ir a jogo. Do outro lado, Paulo Portas ameaça chegar aos 20%. E não estava rouco quando o fez. Concedendo às sondagens, por agora, o CDS/PP andará entre os 13% e os 14%. Nada o impede de chegar aos 20% ou mais se Passos Coelho, depois da proposta do novo referendo à interrupção voluntária da gravidez, prosseguir agora com a ideia de propor um referendo para a liberalização das drogas leves, caminho que poderá tornar Portugal “num dos países mais lucrativos”da União Europeia. Passos Coelho deve ansiar ver o défice e o FMI com outros olhos, mais alaranjados, e esse poderia ser um bom ponto de partida. De caminho talvez se poupasse ao incómodo de ter de formar governo e de enfrentar as sempre sóbrias críticas do Dr. Alberto João Jardim.

 

O espectáculo não durará sempre.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 15.05.11

15 de Maio de 2011

 

Encostado então à janela, como se fosse um padre, fez sobre todos aqueles pontos humanos que marchavam o sinal da cruz e nesse momento pensou, lembrando um pai a falar dos filhos: Deus vos proteja, que logo corrigiu para um: Deus nos proteja!, que o incluía não na mesquinhez individual dos de lá de baixo mas na fraqueza, apesar de tudo, da espécie. Nesse momento a consciência de que iria morrer da mesma maneira que todos aqueles que via da janela tornou-se insuportável; alguém cometera um erro espantoso, que marcara de irracionalidade toda a sua vida.” – Gonçalo M. Tavares, Aprender a rezar na Era da Técnica

 

Tenho com a televisão uma relação de respeito e de desconfiança. Sempre tive. A televisão foi para o país atrasado do salazarismo uma conquista quase tão importante como fora o papel de Gutenberg para difusão do livro e dos jornais. A televisão serviu para prolongar o prazo de validade do regime deposto em 25 de Abril de 1974, contribuindo para um aumento da propaganda, mas ao mesmo tempo ajudou à consciencialização de uma parte importante da sociedade, quer nos meios urbanos quer nos rurais, para a existência de um outros país, de um outro mundo e de novas dimensões do saber e do conhecimento. As conversas em família de Marcelo Caetano ou as reportagens propagandísticas da guerra colonial foram, entre outros, o preço que foi preciso pagar pela possibilidade de se ter o Fialho e o Solnado, de se ver imagens do Maio de 68, de Martin Luther King ou da chegada do homem à Lua. A televisão, mesmo a preto e branco, era factor de união, também para a discussão, em casa e no café, numa altura em que o mundo do cabo, da Internet, dos telemóveis e dos “ipad” e “ipod” ainda não tinha tomado conta das nossas vidas. A televisão contribuía para a formação de consciências. E depois da revolução foi um instrumento essencial para a institucionalização do regime, para a sua consolidação, para o aprofundamento da democracia e alcance de uma maior e melhor consciência de nós próprios. Fosse como factor de aproximação da diáspora ou janela de um mundo desconhecido, a televisão desempenhou um papel social e culturalmente útil, sem deixar de ser uma poderosa arma de entretenimento. Dos concursos com cariz cultural, onde se fazia apelo à cultura geral e à capacidade de improvisação, que agarravam famílias inteiras ao ecrã, até aos jogos de futebol, em doses moderadas, e às corridas de automóveis, havia de tudo um pouco. Depois vieram outros tempos, chegaram os canais do Dr. Balsemão e da Igreja, que acabaram a concorrer na banda dos filmes eróticos e semi-pornográficos, até aparecer o cabo, os canais (e canis) pagos. Enfim, até ao que temos hoje.

 

Não sou, nem quero ser, já que essa não é a minha vocação nem tenho a sua bagagem, um Mário Castrim ou um Cintra Torres. Porém, penso que há coisas que são de tal modo evidentes que ao cidadão comum não lhe poderá jamais ser atribuído o pecado da presunção.

 

Eu tive um dia calmo, junto ao mar. Nadando, lendo e gozando os primeiros calores da Primavera, antecipando a chegada, sempre ansiada, do Verão. Por maior que seja a crise não há quem não goste da luz de Maio. Eu gosto. E desejo a chegada das noites quentes de Junho e de Julho por onde entra a brisa que prolonga os meus dias e os meus livros, atrasando a chegada da aurora. A última coisa em que eu hoje pensaria seria em televisão. Mas bastou um par de minutos para alterar a minha rotina, dar cabo do meu ripanço e quebrar a quietude da jornada.

 

Tanto quanto já percebi, seja para fazer a vontade a Francisco Pinto Balsemão, aos senhores da TVI ou a outros, umas das decisões que aí vem tem a ver com a privatização da RTP. Pelo que ouvi esse até já será um dado adquirido para um membro do Governo que está de saída. Não tenho nada contra. A concorrência, a existência de regras transparentes, o equilíbrio entre a oferta e a procura são necessários à existência de uma televisão que esteja ao serviço da comunidade.

 

Só que depois de esta noite ter ouvido o Prof. Marcelo, apercebi-me da forma como a perversão das regras de concorrência, a obscenidade, pode levar à destruição de qualquer discussão séria sobre televisão. De um momento para o outro dei comigo a fazer zapping entre a RTP1, a SIC e a TVI, para ver se percebia qual dos programas que estava no ar conseguiria formar o número mais elevado de mentecaptos. Qual deles contribuiria mais rapidamente para o aumento do número de criaturas com um Q.I. próximo da idiotia.

 

Com efeito, enquanto na RTP andava o cantor Roberto Leal aos saltos e a recitar salmos, ao mesmo tempo que uma sujeita tomava banho de biquíni numa espécie de balneário comum onde outros lavavam os dentes, e um infeliz qualquer ia para o duche de garrafa de vinho e fato de banho de mulher, grasnando inanidades ininteligíveis pelo meio, e na SIC uns desafortunados da vida, a quem uma desgraçada obesidade se encarregou de transformar em vedetas de televisão, a TVI, para a qual alguém admirado com a minha ignorância televisiva me alertara, mostrava uns fulanos e umas fulanas, ditos “famosos”, enfiados no meio de tribos da Namíbia, da Etiópia e de Vanuatu, a aprenderem a defecar e a limparem-se com uma pedra e com restos de cocos, a beberem leite de vaca acabada de ordenhar em condições higiénicas deploráveis e a discutirem se um dos “artistas” era homem, mulher ou um extraterrestre com pila e unhas pintadas.

 

Se o objectivo da privatização da RTP é uma decisão consensual entre os partidos do arco do poder, como forma de diminuir o nosso crónico défice público e de dar resposta à vontade dos nossos credores, então também gostava de poder perguntar aos candidatos desses partidos, em especial àqueles que aspiram desempenhar funções de primeiro-ministro, o que pensam sobre os programas que os três principais canais de televisão passam ao domingo à noite. Saber em que medida, no entender daqueles, a existência de tais “programas” contribui para o entretenimento, a formação ou o divertimento dos portugueses. Bem sei que o nome de uma instituição como a Cruz Vermelha, outrora inspiradora dos mais nobres sentimentos, aparece misturado com aquela bosta dos “Perdidos na Tribo”, mas pergunto se isso justifica a existência do programa? Que raio de critérios, que estranhos desígnios, justificam a existência de programas como aqueles que esses três canais passam ao domingo à noite?

 

Se eu mandasse, e não seria por preconceito, que não tenho nem nunca tive, mas por razões de sanidade, nenhum deles estaria no ar num canal generalista. Presumo que nenhum dos líderes dos principais partidos se predisponha a responder às questões colocadas ou que isso possa ser para as suas cabecinhas motivo de preocupação, posto que até agora também não lhes ouvi a mais pequena palavra sobre isso. Mais, duvido que algum dos partidos, dos que têm um programa de Governo ou algo que a tal se possa assemelhar recheado de vacuidades, se preocupe com estes aspectos, aparentemente laterais, da nossa vida pública. Seria, contudo, fundamental que alguém com um mínimo de bom senso e de autoridade, coisa que Passos Coelho, Sócrates ou qualquer um dos outros objectivamente terá dificuldade em demonstrar possuir, pudesse perder dois minutos para dizer aos (ir)responsáveis por tão pungentes programas que nada daquilo presta; que não há fim, dinheiro ou acção caritativa que justifique tanto excremento televisivo no ar e nos horários mais nobres. E se a privatização da RTP for para continuarmos a ter tanta ou ainda mais moscas nos ecrãs generalistas, então o melhor mesmo é fecharem de vez a empresa e abrirem hospitais. Psiquiátricos, de preferência. Depois poderão entregar a sua gestão a Júlia Pinheiro, ao tal Goucha dos saltinhos ou a Paulo Futre - em dois dias sucessivos convidado de Herman José e de um programa desportivo na RTPN. Ou até ao Dr. Fernando Nobre. Quem me garante que não residirá aí a chave para os problemas da nossa economia, para as sentenças incompreensíveis, para os atrasos na justiça, a falência do estado social ou o colapso do regime?

 

Este País está a precisar de um levantamento. Ou de um golpe de estado.

 

Esta classe política e empresarial, tão bem representada pelo Presidente da República ou pelos tipos das seitas que aspiram mandar a partir de 5 de Junho, merecia levar um pontapé bem assente nos fundilhos e ser condenada a ver os “Perdidos na Tribo”, e as respectivas aproximações, nas Selvagens, com uma bandeira e o hino nacional sempre a tocar em potentes altifalantes, até que se finassem. E seria pouco. Em última instância, são esses tipos os responsáveis pelo estado a que a televisão chegou. Porque em Portugal a televisão é o País. E o País é a televisão. Eles não sabem, nem querem saber. Por isso seria bom, muito bom mesmo, que alguém lhes dissesse.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 12.05.11

 

12 de Maio de 2011

 

"Quando levanto os olhos para o céu

levo comigo o que recordo da História.

os pulhas e os santos, transporto-os comigo na memória" – Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia

 

Partir nem sempre é fácil. Regressar é muitas vezes doloroso.

 

Qualquer imagem, por muito bem gravada que esteja na nossa memória, tende a desvanecer-se com o correr dos dias. A nossa memória encarrega-se de fazer a selecção, ainda que muitas vezes não se perceba qual seja o critério. Há rostos da minha juventude, de mulheres que amei perdidamente, pensava eu, em relação às quais recordo momentos que eu julgava preciosos, mas cujos contornos eu hoje não consigo reconhecer. Em contrapartida, não me esqueço dos olhos e da cor da pele de uma mulher com quem apenas troquei um breve mas intenso sorriso no dia em que ela apanhou o elevador onde eu seguia. Há mais de duas décadas, num luxuoso hotel de Manila. Com as imagens que tenho do meu País acontece mais ou menos o mesmo. Meia dúzia de dias bastam para esquecer os rostos de quem nos governa, de quem aspira a governar-nos e de quem nunca nos governará. E não fiquei incomodado com isso.

 

Ao percorrer sozinho uma auto-estrada deserta, debaixo de um esmagador céu azul de Maio, cortado aqui e ali pelo voo de uma cegonha ou de um gaio, com os campos verdes e o sol tão alto, interrogo-me: porque terá de ser sempre tão doloroso viver num país tão belo?

 

O cenário é o mesmo. Continuam os “debates”, os “frente-a-frente”, isto é, a gritaria. A análise da gritaria é agora o passatempo de muitos. Dedicam-se a alinhavar frases, gestos e posturas. No fim decidem quem “ganhou o debate”. Um dia perceberão que ninguém ganhou nada.

 

De novo enfiado no meio dos papéis. Um irmão faz uma doação de metade de um imóvel à irmã. Esta, que também é mãe e já era titular da outra metade, faz, por sua vez, no mesmo acto, uma doação à filha da totalidade desse mesmo imóvel, o qual já fora doado aos filhos pelos pais, isto é, pelos avós da donatária que o recebeu da mãe. A mãe tem dupla nacionalidade e vive no estrangeiro. Casou por lá, em regime de separação de bens, com um cavalheiro que nunca veio a Portugal e nunca quis saber de nós. Mas nós queremos saber dele. A escritura foi outorgada e o notário disse à donatária que tinha de ir pagar o imposto de selo para poder requerer o registo em seu nome. Na repartição, depois de uma conferência entre o funcionário e o chefe e mais uma senhora que ia a passar, dizem-lhe que o tributo não pode ser pago ali porque nem ela nem a mãe têm residência em Portugal. É para declarar na repartição de finanças da área de residência do tio, único residente nacional, a 300km dali. Na repartição da área de residência do tio é recusada a recepção da participação para efeitos de liquidação. O sistema informático exige o número de contribuinte do pai da donatária e esta não o tem. O pai da donatária diz que não tem nada que ver com o caso, que o imóvel não era nem nunca foi dele, que quem fez a doação foi a mulher que o recebera dos sogros, que ele é casado em regime de separação de bens, que não pretende vir a Portugal e muito menos ter número de contribuinte. Nada feito. Sem o número de contribuinte de um tipo que se dedica à pesca  na Nova Caledónia os burocratas das Finanças não fazem nada. Se fosse separado judicialmente de pessoas e bens ainda teriam um campo para colocar a cruz. Assim, como não é o caso, nem sequer aceitam a participação do contribuinte para liquidação do imposto devido. E mandam-no embora. Por haver gente desta é que o Tribunal de Justiça da União Europeia acabou uma vez mais de envergonhar o Estado Português. Não lhes servirá de nada porque os “Humphreys” continuarão a mandar. Eles aqui chamam-se José, Pedro, Paulo, Francisco e até Jerónimo. Será possível que ninguém veja o absurdo?

 

Dizem que a vetustez, alguns cabelos brancos e alguma experiência dão um ar respeitável. O ar  podem dar. O bom senso é que não vem com isso. Nem com a idade. O cabeça-de-lista do PSD pelo círculo de Faro, numa das suas magistrais tiradas, comparava a ASAE à PIDE. O Prof.. Catroga comparou José Sócrates a Hitler. Pelo caminho fala de “pentelhos”, revela conversas privadas, confessa que a sua geração desde 1995 que  fez “muita porcaria” e diz que os novos dirigentes vão ter de passar por processos de certificação externa antes da escolha. Não sei se ele também andou escondido nos últimos 15 anos a fazer a “porcaria” de que fala, e que aparenta conhecer tão bem, enquanto o país soçobrava; nem em que consistirá essa certificação. De qualquer forma, estou convicto de que deverá ser melhor do que o que temos.

 

O nível exibido nos últimos dias pelos que vão concorrer às eleições é a prova da necessidade de um processo de certificação. Não poderia estar mais de acordo. O ideal seria alargar essa certificação aos dirigentes partidários, não excluindo os actuais, é claro, posto que têm sido estes quem até agora se encarregou dessa selecção e certificação que só deu em “porcaria” e nos põe a todos a discutir “pentelhos”. Pena que Catroga não se tivesse lembrado disto quando era ministro das Finanças, quer dizer, antes da sua geração começar a fazer a “porcaria” (o melhor mesmo é dizer “trampa”) que fez nos últimos quinze anos. Teríamos evitado que os incautos da sua geração andassem a comprar e a vender acções a Oliveira e Costa deixando o BPN de pantanas, fizessem anúncios para o BPP a troco de € 2.500, e que Dias Loureiro fosse elevado à categoria de conselheiro de Estado. E, talvez, quem sabe, agora não houvesse reformados cheios de gás a ganharem mais de € 9.000,00 por mês enquanto o resto do país definha para lhes pagar as reformas e já nem às espinhas do cherne consegue chegar. Quanto mais segui-lo. E, talvez, quem sabe, também não estivéssemos entregues a algumas seitas, que mais se assemelham a algumas máfias japonesas, que vão a votos no dia 5 de Junho, e que têm sido geridas por quem, enquanto andou na escola, se limitou a fazer o tirocínio dos cábulas para agora poder vir governar-nos. Ao Prof. Leite Campos já o mandaram dar pareceres para o Olimpo. O Prof. Catroga, a avaliar pela reforma que aufere, pelos convites para perorar 24h por dia em todos os canais televisivos e pelas pérolas que saem da sua boca, tantas e tão lúcidas, deve ser uma espécie de Passos Coelho da sua geração. Ministro já ele foi. E sem certificação externa. E eu que pensava que ele era um economista normal. Já tinha saudades desta gente. São uns pândegos.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 21.04.11

21 de Abril de 2011

 

O dia nasceu em estado pré-catatónico. O caso não é para menos. O jogo de ontem até um gentio arrasa. Uma equipa profissional de futebol devia ser um conjunto de pessoas treinadas, de desportistas bem preparados para a sua função. Um grupo de individualidades trabalhando para um objectivo comum. Os onze que ontem jogaram contra o Porto não foram uma equipa. Estiveram mais perto de ser um bando de moleques desorganizados, desajeitados, tristes e sem ponta de profissionalismo. Eles e o seu treinador. Este com mais culpa do que aqueles. Porque de um treinador que foi campeão nacional na época passada e que com a mesma equipa chega à 27ª jornada do campeonato a 19 pontos do principal rival, e que é eliminado, na sua própria casa, num jogo disputado a duas mãos, depois de ter ganho o primeiro por 2-0, só se pode dizer que não atingiu os mínimos. E então se se pensar que em 5 jogos com esse mesmo rival sofreu 13 golos e marcou 4, tendo perdido sucessivamente a Supertaça, o Campeonato Nacional e a Taça de Portugal, e que ainda teve a ligeireza de dizer que a equipa esteve bem e que por pouco não ganhou as duas últimas competições, ou anda a gozar com o clube ou é incompetente. Em qualquer caso, só lhe resta um caminho: ou vence a Liga Europa e a Taça da Liga, para salvar a época, ou pega na trouxa e vai tratar das madeixas.

  

Uma sondagem, conhecida ontem e divulgada esta manhã, está a irritar muita gente. E não é o facto de a amostra ser de apenas oito centenas de pessoas ou pouco mais que a irrita. Não deve ser agradável acordar de manhã e perceber, a pouco mais de um mês das eleições, que não será possível livrar-se do Eng. Sócrates. As ajudas de Cavaco Silva, do PEC 4, dos oradores no último congresso do PS e da dita “troika”, para já não contar com os tiros nos pés que o engenheiro continua a dar, não lhe servirão para nada. Vamos ficar como estamos. Mal. Esta é a nossa sina. A gente continua a desconfiar do percurso político e profissional de que o Dr. Passos Coelho tanto se orgulha. Mais ainda depois daquela cena de sonso de que não voltaria a reunir-se a sós com José Sócrates. Ter estado depois disso com “a miúda”, ao lusco-fusco, outra vez a sós, tê-lo escondido de todos durante tanto tempo e ainda querer disfarçar quando foi apanhado pela Judite, não foi de cavalheiro. Mesmo que tivesse lá ido com uma “gabardina” emprestada pelo Dr. Relvas e o quisesse proteger. Admira-me como é que ele não desce ainda mais depressa nas sondagens.

 

Quem não está com meias-palavras, nem precisa da “gabardina” do companheiro Relvas, é António Capucho. A carta que escreveu não é a de um homem despeitado. Longe disso. Capucho tem uma estatura intelectual e política a que Passos Coelho ou Miguel Relvas nem em sonhos chegarão. Porque não foram talhados para isso e porque o caminho trilhado fala por eles. E Capucho não precisa de ter um comportamento moluscóide para se afirmar politicamente, porque já o fez há muito tempo. Como também não necessita, depois de uma vida dedicada à coisa pública, de trocar princípios ou votos de consciência por sinecuras prazenteiras. Isso dá-lhe autoridade moral e política e confere dimensão à sua posição. Compreendo que os votos finais da carta possam soar a falso, mas vejo-os antes como uma pequena ironia. De Pacheco Pereira, como são ignorantes e só olham de transverso, dizem que é do contra. Não gostam dele. É “intelectual”. Que dirão agora de António Capucho? Ele que chegou ao Conselho de Estado pela mão de Cavaco Silva. Será que o vão acusar de estar a soldo de José Sócrates, como fizeram com Basílio Horta? Dessas rémoras que vivem agarradas às protuberâncias dos barões dos partidos é possível esperar tudo. Em especial a canalhice.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 19.04.11

19 de Abril de 2011

 

A forma como os acontecimentos se precipitam, melhor seria dizer atropelam, a caminho do cinco de Junho e das eleições, deixa uma margem tão estreita para a interpretação dos factos que me sinto roçar por um abominável tédio. A torrente informativa também não ajuda, e até a publicidade cansa. São intervalos para emissão de anúncios que duram tempos infinitos, cortando serviços informativos que insistem em prolongar-se horas a fio. São as reportagens repetidas ad nauseam às mais variadas horas e durante dias seguidos. É o estilo espampanante e gongórico da apresentação das notícias a que raros escapam. O novo pretexto é a presença dos técnicos das instituições financeiras internacionais que nos vêem perguntar pelos bens penhoráveis. O espectáculo que alguns dão à porta do Ministério das Finanças de microfone em riste é tudo menos normal. O défice hoje não é de informação. Boa, sofrível, medíocre, há para todos os gostos e estilos. Do apalermado ao enfatuado. E a oferta de tão generosa acaba por contribuir para afastar as pessoas da informação que interessa. Mais do que em qualquer outra actividade, é na informação que temos que mais se vê o défice de formação.

 

Num texto recente, Alberoni sublinhou que a deterioração dos valores humanos, o desprezo pelos valores tradicionais, trouxe consigo uma desvalorização do peso da palavra. Ele pensa em Itália. Pensemos em Portugal.

 

O modo como temos assistido à erosão da esperança traz em si, para pegar nessa ideia do sociólogo italiano, o desvirtuamento da palavra. E se bem virmos as coisas, a palavra é o início e o fim de tudo. É por ela, mesmo balbuciada, que uma criança se afirma junto dos seus progenitores. É por ela que se fazem revoluções, escrevem livros e semeiam discursos. É a palavra, escrita ou falada, que faz a diferença. Em casa, na escola, no trabalho, no lazer. E até na hora da morte é a palavra do moribundo que será recordada depois da sua partida. A sua força reside em atravessar todo o ciclo da vida. Porém, só é recordada a palavra que marca, a que enobrece, que nos valoriza e contribui para a nossa afirmação no mundo. Individual e colectiva. O mau uso que da palavra tem sido feito por parte dos nossos dirigentes deveria ter funcionado como um alerta para todos nós há mais de uma década. Hoje só nos resta voltar a formar, a reeducar o uso da palavra desde o berço e a dar-lhe uma dimensão que nos permita voltar a sonhar.

 

Registo com satisfação a iniciativa do Presidente da República de reunir os seus antecessores no 25 de Abril. Por uma vez o homem acertou. Espero que esse encontro tenha continuidade. Num ou noutro momento da nossa história recente cada um de nós se reviu num gesto ou numa palavra desses homens. Muitas vezes criticámos, amuámos ou nos revoltámos com o que disseram ou fizeram. No meu caso foi mais com o que não disseram, com o que não fizeram e com os exemplos que não deram e deviam ter dado. Por teimosia, algumas vezes, por incapacidade para ver na distância e egoísmo noutras ocasiões. Em especial por medo. José Gil já o tinha escrito. O medo tolheu-nos o futuro. E foram homens como eles, os que mais responsabilidades têm na actual situação, que pelo seus próprios medos e receios contribuíram para a desvalorização da palavra, para o aparecimento de homens – políticos, evidentemente – como Louçã, Sócrates ou Passos Coelho, para só falar nos mais próximos e que conseguiram como poucos desvalorizar a palavra, erradicar o sentido do discurso.

 

Freitas do Amaral parece querer recuperar a dimensão pedagógica do discurso. Ele que conhece tão bem o peso de uma palavra pronunciada com boa dicção no momento apropriado. Por isso, aquilo que ontem disse de Teixeira dos Santos e José Sócrates podê-lo-ia ter dito mais cedo. Antes de estarmos assim. O peso da sua palavra foi perdendo fulgor fora dos manuais universitários. E de quem tem o seu currículo e responsabilidades não se esperava que chegasse tarde. Ou que precisasse, neste momento, de dizer que não vai votar em José Sócrates, assim como quem quer afirmar distância em relação ao proscrito. Na semana que atravessamos esse é um gesto muito pouco cristão. 

 

Face à total irrelevância dos prosélitos que estão a ser incluídos nas listas de candidatos a deputados, discute-se o nome dos que perderam o TGV de 5 de Junho, dos que desaparecerão das fotografias, dos que aguardarão na sombra de uma dessas empresas que progride à custa da ineficiência do Estado ou do dinheiro dos contribuintes o regresso à ribalta.

 

Respigo, aqui e ali, uma ou outra tirada para mais tarde recordar. As ligadas a Fernando Nobre são as que marcam a estação. Aquela de comparar o que Nobre disse ao Expresso, na sua incontinência verbal, com o que Mário Soares fez durante todo um mandato no Parlamento Europeu é mais uma para o rol. Se não tivesse sido dito pelo Carlos Carreiras, pessoa que estimo, dir-se-ia que tivera origem num homem da bola. Ou com passado pela bola.

 

As figuras de estilo ligadas a esse mundo mágico de Madaíl, de Fernando Seara e das acompanhantes de Pinto da Costa estão a tomar conta do discurso político. À falta de um programa de Governo, de uma ideia para governar Portugal, ou até da mera formulação de sugestões para os senhores que nos visitam, o líder do PSD já pedeque o deixem governar”.

 

Uma estrela que o infortúnio condenou a um apagão precoce do firmamento da Luz pedia que o deixassem jogar à bola. Não me informei sobre as preferências clubistas de Passos Coelho. Mas acredito que a sua frase revela o Mantorras que há nele. Não sei se Deus, que quando toca a Portugal tem andado distraído, ainda fará do Sr. Relvas ministro de Portugal. Tudo é possível. Ou se preferirá mantê-lo como o Luís Filipe Vieira (sem bigode) do PSD. Em todo o caso, independentemente do que venha a acontecer, ou me engano muito ou ainda iremos ver o líder do PSD com uma carapinha. E vai ser antes de 5 de Junho.

 

Governar é uma espécie de futebol. E aquele golo marcado por Passos Coelho na lista de Lisboa, com uma assistência de Fernando Nobre, definiu um estilo. Hoje sabemos o que eles são capazes de fazer por um golo. É verdade que ainda os marcam com os pés. Mas se deixarem governar o novo Mantorras, ele ainda terá mais quatro anos para tentar marcá-los com a cabeça. E se a partir, mesmo que nos deixe a todos escaqueirados, chama-se a AMI.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 12.04.11

12 de Abril de 2011

 

Quando em Outubro passei por aqui ainda não havia tanta placa a publicitar a venda de unidades industriais e de lotes. A estrada neste ponto distingue-se pouco de uma outra qualquer na China, com centenas de trabalhadores pela berma, a pé e de bicicleta, a caminho dos seus postos de trabalho, logo pela manhã. Pensei para mim quando cruzei Porto Alto. Desde que aconteceu a viagem do Presidente chinês muita coisa mudou. Em Portugal. Para os chineses que aqui labutam discutir o PEC IV ou a vinda do FEEF é irrelevante. A única coisa que sabem é que a crise chegou a Porto Alto. E que a alternativa é regressar a Chongqing ou Fukien. Ou, então, procurar um qualquer outro local, algures no mundo, talvez em África, que lhes permita continuar a sonhar em pagar a dívida ao financiador e regressar um dia ao Império do meio.

 

Ouço no rádio do carro as declarações de Passos Coelho de ontem à noite. Não evitei pensar no que Robert Michels escreveu em Turim, na longínqua Primavera de 1910: “O certo é que o exercício do poder modifica traços essenciais do carácter daquele que o exerce. Alphonse Daudet, que é um excelente conhecedor de pessoas, diz com extrema propriedade: «Bien vite, s’il s’agit de l’affreuse politique, nos qualités tournent au pire; l’enthousiasme devient hypocrisie; l’éloquence, faconde et boniment ; le scepticisme léger, escroquerie : l’amour de ce qui brille, fureur du lucre et du luxe à tout prix ; la sociabilité, le besoin de plaire se font lâcheté, faiblesse et palinodie». Sem dúvida que nessas circunstâncias o factor da personalidade reclama todos os seus direitos. Diferentes personalidades individuais reagem de maneira diversa às mesmas circunstâncias. Tal como as raparigas atravessam certas situações eróticas insidiosas, que são mais ou menos idênticas, saindo delas umas com a mesma pureza, outras como semivirgens e outras ainda caídas na desgraça, segundo o grau de excitabilidade sensual que nelas exista e o tipo de educação moral que hajam recebido, também nos dirigentes partidários, perante as inúmeras situações tentadoras que a vida do partido proporciona, se manifestam de modo muito diferenciado as qualidades de liderança, enquanto qualidades adquiridas e não imanentes. (…) logo que a social-democracia italiana efectuou a sua viragem para uma política de aproximação ao governo, (…), começaram a levantar-se por toda a parte vozes queixando-se do nível cada vez mais baixo dos dirigentes e, em especial, da entrada de muitos novos elementos que apenas pretendiam usar o partido como escada de acesso para se porem às costas do bezerro de ouro da administração pública”.    

 

O líder do PSD, Passos Coelho, iniciou a sua conquista do poder cultivando uma certa aura bonapartista e fazendo da serenidade discursiva uma arma. Ao animal feroz e inflamado opunha-se então a palavra doce e avisada de um líder aparentemente jovem e sem vícios que iria desfazer um equívoco chamado Sócrates, cujas falhas de carácter teriam sido postas em destaque nos casos mal explicados em que o seu nome aparecia. A verdade tornou-se numa arma da eloquência “passista”. Que, no entanto, era capaz de jogar no mesmo campo do seu adversário. Ora recorrendo a figuras de proa, como Miguel Relvas ou Miguel Macedo, ora fazendo uso dos múltiplos peões de brega que compõem o proletariado da sua direcção e que se especializaram na protecção ao cavaleiro por mais inapto que seja.

 

Quando, em 12 de Março pp., Passos Coelho justificou a recusa do PEC IV eu acreditei nele. Eu e muitos mais portugueses. Estavam em causa questões de princípio, de lealdade institucional. O homem era um “malandro” que enganava os portugueses. O silêncio de José Sócrates contribuiu para essa convicção quando o líder do PSD afirmou que todos tinham sido surpreendidos. Passos Coelho afirmara que “a oposição, reunida na véspera a discutir uma moção de censura no parlamento, não soube de nada” e que ele próprio apenas por um telefonema do primeiro-ministro ficara a saber da existência do PEC IV e dos compromissos assumidos em Bruxelas. Não duvidei que estivesse a falar verdade. Não podia era adivinhar que a verdade omitisse um elemento tão essencial para a compreensão dos factos, isto é, da própria verdade, como o não ter dito que fora informado do PEC IV não “apenas pelo telefone”, mas também que tinha sido recebido, nesse mesmo dia, em S. Bento, pelo primeiro-ministro. E que este o colocara, enquanto líder do maior partido da oposição, presume-se, ao corrente do que se passara em Bruxelas.

 

A falta de respeito inicial pelo estatuto do líder da oposição era, afinal, a rejeição do facto consumado. Ambas as razões podem ser válidas. Só que a tónica foi colocada na primeira. A segunda completava a falta de respeito. Afinal, as “falhas de carácter”, que Marques Mendes - tão lesto - apontou a José Sócrates, em Abril de 2007, acabam por se revelar em toda a sua plenitude no actual líder do PSD. Michels não se enganou. Passos Coelho é o melhor exemplo da metamorfose do dirigente no processo de ascensão ao poder. Sócrates já é passado. Como aqui neste espaço escrevi, há apenas dois dias, a um coelho sucede uma lebre.

 

O que agora os portugueses podem perguntar a si próprios é o que esperar de um tipo como Passos Coelho, alguém que ainda não chegou ao poder e já actua desta forma. Dir-se-á que não é virgem e que até Cavaco Silva incorreu no mesmo erro da omissão de factos. Pois é verdade. Mas quem numa questão destas, quando ainda não detém o poder executivo do Estado e precisa de conquistar os votos dos eleitores, actua já desta forma tão ínvia, imaginem o que não estará disposto a fazer quando a sua clique, devidamente orquestrada pelos “Relvas”, os “Jardins”, os “Mendes” e os “Marcos”, se vir instalada em S. Bento, contando com a passividade do Presidente da República?

 

Quem está de parabéns é Marcelo Rebelo de Sousa. Em boa hora, com a sua notável argúcia, rejeitou prefaciar o livro encomiástico e autobiográfico de um homem que de invulgar só pode apresentar a confrangedora vulgaridade do seu percurso académico e profissional. E hoje a transparente mediocridade da sua actuação e pensamento político. O convite a Fernando Nobre para encabeçar a lista de deputados por Lisboa foi mais um sinal. De um cata-vento político que se deixou instrumentalizar da forma que todos viram depois de alguém o convencer que tinha talento para a política não se estranha tal atitude. De um líder que apregoa a sua seriedade como cartão-de-visita seria legítimo esperar outros métodos. Tão pouco tempo de liderança e aí está ele em todo o seu esplendor. Quarenta e oito horas bastaram. Não admira que haja quem com toda a bazófia se prepare já para “despachar” mais um líder do PSD. Em boa verdade, PPC depois do que não disse e tem andado a fazer que diz não merece outra coisa. O País dispensava a repetição da dose. Só que, infelizmente, será esse o cenário com que todos teremos cada vez mais que contar. Nós e o FMI/FEEF.

 

Enfim, como sublinhou um autor (Garcia Clancini, 1995), assistimos a uma curiosa reversão temporal. Ao mesmo tempo que vivemos uma revolução tecnológica acelerada e dirigida para o futuro, há uma regressão social que atira a actual noção de cidadania para os séculos XVIII e XIX. E isto é tão mais grave quanto a “geração à rasca” já se devia ter apercebido disso para não ser mais um instrumento dessa regressão cultivada pelos nossos dirigentes políticos. O Congresso do PS e as declarações de Passos Coelho bastam.

 

A actual “geração à rasca” ainda tem a casa dos pais para se abrigar. Os seus filhos e netos provavelmente não terão, porque a essa sucederá uma geração ainda mais à rasca, dominada pelas poses bonapartistas dos actuais dirigentes. Um bonapartismo só de pose. Não na essência. Porque se persistirmos nos actuais modelos de participação e liderança, acabaremos todos não por sermos como o corso, mas por sermos como eles: isto é, definitivamente sonsos, medíocres, mansos e sempre à rasca.

 

Oxalá que por essa altura eu já tenha sido poupado a um destino que tem tanto de medonho quanto de merdoso. 

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 11.04.11

10 de Abril de 2011

 

A sobrecarga do sistema político e dos seus actores por uma penosa administração das trivialidades põe de manifesto a carência dessa capacidade de estabelecer prioridades e discutir a partir de perspectivas amplas sobre o que há a esperar da política. Pois toda a gente sabe que essa sobrecarga culposa não é mais que uma estratégia de fuga à complexidade.” – Daniel Innerarity, A Transformação da Política

 

Volto ao meu espaço. Um espaço de interioridade partilhado publicamente. A voragem dos dias e da febre mediática não se compadece com o recolhimento da reflexão, com a secura da introspecção. Ademais necessária se queremos mantermo-nos sãos.

 

Setenta e duas horas depois dos primeiros discursos cumpre perguntar para que serve um congresso? O corrupio de “personalidades”, de “camaradas”, de “militantes” que se deslocou a Matosinhos converge num único ponto: a culpa da crise vem de fora e agravou-se com a atitude da oposição irresponsável que temos.

 

Um partido feito de meias-verdades, de chavões, de unanimismos e de aplausos nunca será capaz de olhar para si, de se confrontar com a realidade e de se modernizar. A um dinossáurio de proveta idade sucedem dinossáurios jovens e prematuramente ancilosados.

 

Lutar dentro dos partidos é hoje uma quimera. Tudo aquilo é deprimente. Começa no facto de se votarem moções de orientação política desfasadas no tempo, ultrapassadas pelos acontecimentos, quando o que seria aconselhável, depois do que sucedeu, seria suspender o conclave por quinze dias, iniciar um novo período de apresentação de propostas e de formalização de candidaturas. Mas nada disso interessa. Tudo o que seja discutir ideias para o futuro, estratégias de renovação e alargamento da participação é incómodo. O tecido social do partido é cada vez mais formado por caciques locais, delegados de informação médica que viraram autarcas, empresários da construção civil, analfabetos, guindados a administradores hospitalares e dirigentes locais pelos quais passa toda a estratégia, devidamente secundados pelas clientelas habituais. Ana Gomes vai continuar a pregar aos peixinhos. E Almeida Santos continuará a ser o farol do socratismo. Não tem, pois, com que se indignar quando vê os delegados ao congresso saudarem os convidados que ele apresenta com uma vaia. Esta gente que vaia os convidados foi eleita para lá estar. E antes foi formatada por aqueles que de congresso para congresso consideram que ele, Almeida Santos, é a pessoa mais indicada para dirigir os trabalhos. E que não acha mal que não se respeitem horários, que os dirigentes vão jantar e já não apareçam para a continuação dos trabalhos, que o secretário-geral vote depois da hora normal de fecho das urnas e que se remetam as vozes mais críticas para o momento em que a sala está vazia. Nada disso fará confusão aos delegados. A alguns, é claro, aos que enviam cartas para as embaixadas a oferecer os seus préstimos quando a hora aperta, e “conhecimentos”. Não, não me refiro aos académicos, que esses não os têm, mas sim aos outros, aos que movem montanhas em Lisboa e garantem sucatas e sinecuras no país esquecido das SCUT.

 

No estado em que os partidos estão só há uma certeza: atrás de um Sócrates virá outro, atrás de um coelho virá uma lebre. Norberto Bobbio sabia do que falava: “O custo a pagar pelo empenhamento de poucos é muitas vezes a indiferença de muitos. Ao activismo dos líderes históricos ou não históricos pode corresponder o conformismo das massas”. E o mesmo Bobbio citando Rousseau: “Assim que o serviço público deixa de ser a principal ocupação dos cidadãos e estes começam a preferir servir com a sua bolsa em vez de com a sua pessoa, o Estado encontra-se já próximo da ruína”.

 

Enfim, há quem pense que isto vai dar a volta, que temos oposição. Não temos. O PSD actual, o do senhor Passos Coelho, não passa da representação teatral de uma realidade vivida. Chain Perelman falou disso na sua dissociação das noções, na contraposição entre a realidade e a aparência. Querem melhor exemplo do que a escolha de Fernando Nobre para cabeça de lista por Lisboa? Não sei se Passos Coelho se aconselhou com Dias Ferreira, o ex-candidato a presidente do Sporting, mas quer-me parecer que Nobre vai ser o Paulo Futre de Passos Coelho. E se não houver um departamento para o chinês há-de haver um para o rei da poncha. Pela freguesia que Jardim teve no congresso do PSD/Madeira, é natural que dentro de dois meses não haja copos que cheguem para todos. Por agora o tom é “criminoso”. Imaginem como será no final de Maio, quando o calor apertar e se chegar à conclusão de que a poncha já não dará para todos. Nem os euros.

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 25.03.11

25 de Março de 2011

 

A verdade é que o país vivia uma crise generalizada. Para lá do impasse político, que aqui não cumpre desenvolver, o modelo de desenvolvimento económico (…) vinha revelando sinais de esgotamento, desembocando numa profunda crise económica e financeira que assolou o país (…). O modelo económico (…), confrontado com as limitações do seu próprio enunciado, debatia-se com as hesitações e as inércias da actividade económica de um país que, afinal, tardava em dar resposta aos desafios e às possibilidades da moderna expansão (…) e, em comparação com a situação internacional, entrara claramente em derrapagem”.

 

No trecho transcrito suprimi as passagens que o situavam temporalmente. Mas agora posso dizer-vos. Esse pequeno texto foi retirado da magnífica História da Primeira República Portuguesa coordenada por Fernando Rosas e Mª Fernanda Rollo. Refere-se ao período 1890/1891 e vem na sequência do Ultimatumapresentado pelo Governo inglês de Lord Salisbury. Hoje, em 2011, em pleno século XXI, a história repete-se. Só que desta vez o Ultimatum não veio de Londres. Veio do eixo Paris/Berlim e teve passagem por Bruxelas. Os sucessivos raspanetes de Angela Merkel, a Bundeskanzlerin do novo Reich europeu, de Junker ou Durão Barroso, não deixam margem para dúvidas. Portugal readquiriu o estatuto de menoridade internacional por via da crise política, económica e financeira em que esta corja (qualquer outro qualificativo seria demasiado brando nesta altura) que se apoderou da política interna nos colocou. Não há êxitos da diplomacia que o disfarcem.  

  

Verdade seja dita que ainda não estou em mim. Não, não foi por causa da apresentação do pedido de demissão de José Sócrates, da inenarrável sessão parlamentar e da forma como as resoluções foram votadas, dando guarida a um pedido do CDS/PP para separação dos diversos pontos; que revela a natureza hipócrita e aberrante a que chegaram as relações interpartidárias na nossa democracia. O que me aflige é não saber se a aurea mediocritas que tomou conta da nossa vida pública e que tem o seu expoente máximo nas pessoas que exercem os cargos de Presidente da República, primeiro-ministro e líder de oposição, alguma vez será passível de contornar. Só que em Horácio ela permitia uma vida descansada. Entre nós é a razão de um permanente sobressalto. E não é cívico.

 

Os membros do Governo, a começar por José Sócrates e Teixeira dos Santos, e os deputados, todos sem excepção, deviam ser obrigados a rever na íntegra, e pelo menos durante uma dúzia de vezes, o debate parlamentar da passada terça-feira. Vasco Pulido Valente viu-o como um debate de seitas concentradas no seu ódio ao próximo e decididas a não ouvirem ninguém. Pior do que aquilo que aconteceu no Parlamento só mesmo o comunicado do PSD que antecedeu a votação e as declarações em inglês de Passos Coelho, já em Bruxelas. Ao inglês técnico de José Sócrates sucede-se o de Passos Coelho. E não passamos disto. À confrangedora mediania sucede-se a mediocridade. 

 

António Barreto chamou-lhes rapazolas. Mas, que diabo, mesmo um rapazola tem a noção do ridículo, ainda quando se queira fazer passar por engraçado. A idiotia começa a ser tão grande e tão séria que ao ver um extracto da conferência de imprensa de Paulo Futre comecei a pensar se toda esta gente não combinou as coisas de maneira a enlouquecermos de uma vez. É que até os bêbados conseguem manter alguma compostura em todo o seu desalinho. Esta gente não.

 

A cereja no topo do bolo para tudo o que aconteceu durante estes dias não foi a suspensão da avaliação dos professores sem que haja um sistema alternativo, mais adequado e funcional para o mesmo efeito. Isso seria o menos. Foi ficar a saber que a Segurança Social anda a penhorar indiscriminadamente contas bancárias de gente que não lhes deve nada e por conta de pretensas dívidas de terceiros que remontam a 1995 e 1996. Uma ex-sócia de uma sociedade dissolvida em Agosto de 2007 viu ser-lhe penhorada uma conta pessoal, isto é, em nome próprio e sem pré-aviso, como se fosse uma conta da sociedade dissolvida. Com a agravante da conta ser da sua mãe e desta aí receber a sua modesta reforma. Pensei que só acontecia aos outros, aos que me vinham pedir auxílio nessas horas de aflição, até ser informado de que eu próprio iria ter uma conta minha penhorada. Eu que não sou sequer contribuinte da Segurança Social, que sou pobrezinho mas sempre tenho as minhas contas em dia. Eu que não devo nada a ninguém. Nem a bancos, nem ao Fisco, nem à minha inesquecível Caixa de Previdência. Apeteceu-me insultá-los. A todos sem excepção. Chamar-lhes os piores nomes que me vieram à cabeça. Acabei a escrever para as instituições e para o Provedor de Justiça. Que diabo, é essa a obrigação de um cidadão e de um advogado. Por si e por todos os que têm sido afectados com a prepotência dos mangas-de-alpaca.

 

E regressei eu a Portugal para isto. Depois de quase uma década fora de portas. Dizia eu para me justificar que há combates que devem ser travados na nossa própria terra. E não, comodamente, fora de portas. E que o dinheiro não é tudo. Já não sei o que diga. Esta gente passou-se de vez e eu não sei durante quanto tempo mais irei aturá-los. Oxalá que Deus me vá dando saúde, paciência e alguma lucidez para não fazer nenhuma asneira, e ir suportando estes ignaros bárbaros, estas cavalgaduras que nos rodeiam e que fizeram deste País uma estrumeira onde um Presidente distante e comprometido se esforça por manter o povo sereno. Qual povo?

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 19.03.11

19 de Março

 

Dia do Pai. Quantos pais terão pai? E quantos terão filhos? E quantos não terão? A nossa sociedade tem dias para todos; menos para os que não conseguiram ser pais. E também para os que quiseram ser filhos e nunca conseguiram sê-lo por não encontrarem pai ou não lhes terem dado oportunidade para isso.  

 

Pego na Ípsilon de ontem. Na capa vem uma mulher alourada de fato de treino vermelho e sapatilhas claras. Olho com mais atenção e vejo que é Catherine Deneuve, protagonista do mais recente filme de François Ozon (“Potiche”). Sempre tive horror à “cultura” do fato de treino. Porque há roupa para todas as ocasiões. Ninguém vai fazer jogging de fraque. Aquelas primeiras imagens da democratização do fato de treino, no pós-25 de Abril, marcaram-me para sempre. Eram famílias inteiras, ao sábado e ao domingo, passeando pela cidade, nos mercados, nas cervejarias, nos cinemas e nos cafés, mais tarde nos centros comerciais. Elas com ar desmazelado; eles barrigudos, de bigode, com o maço de SG, o isqueiro e os Ray Ban da Praça de Espanha. Alguns de sapatos. À frente deles os petizes de bola na mão. Todos de fato de treino. Famílias inteiras. Ao ver agora a diva na capa da Ípsilon, de fato treino, vieram-me à memória essas recordações. Só Deus sabe o quanto amei a Deneuve na minha adolescência. Também amei a Bisset, a Tuner, a Antonelli, a Kaprisky, a Fonda, a Muti, e mais umas quantas que até tenho vergonha de confessar. Mas estas eram mais do tipo “flirt”. Nunca foi como a Deneuve. Não há perdão. A Ípsilon devia ser multada. Uma simples imagem da Deneuve de fato de treino e está tudo estragado. Não se pode transformar impunemente uma deusa numa sopeira de fato de treino. Assim se destrói o sonho de uma vida.

 

Congresso do CDS, em Viseu. As eleições estão à porta. A ruptura com o PSD é, por agora, total. Nuno Melo fez um excelente discurso, mas no melhor pano cai a nódoa. Diz ele que “o País precisa do PS na oposição”. Foi pena Luís Nobre Guedes ter discursado depois dele. É que ele podia ter recordado a Nuno Melo que da última vez que o PS esteve na oposição o CDS e os seus compinchas do PSD deram cabo de dois Governos em três anos, menos do que o tempo de uma só legislatura, e que seis anos depois continua às voltas com os submarinos, com os sobreiros, com umas histórias por causa do seu próprio financiamento e com as chatices de Abel Pinheiro por causa de uns telefonemas. E ainda por cima, dada a rapidez com que o CDS saiu do Governo, ainda teve de aturar com um líder do PS escolhido à pressa para poder ir a votos, sendo certo que por causa disso temos hoje José Sócrates como primeiro-ministro. No lugar de Nuno Melo eu teria sido mais discreto, mais contido, e jamais me atreveria a pedir com aquela veemência o PS na oposição. E muito menos, como fizeram depois outros congressistas, a falar no estado da justiça, em clientelismo e nas nomeações para a CGD. À boa maneira estalinista, o CDS já apagou dos seus registos a “amiga” Celeste Cardona.

 

No final da manifestação da CGTP, a RTPN entrevista Jerónimo de Sousa. Começa-se a cantar o hino nacional. A entrevista continua. Ao lado dele um rapaz com o boné do Benfica na cabeça. Continuam a cantar o hino. A entrevista prossegue. Os chapéus não saem das cabeças. Há quem acompanhe o hino com punhos fechados. A entrevista avança. Acabam de cantar o hino. Batem palmas. A entrevista também chega ao fim. Antigamente os homens destapavam a cabeça quando se cantava o hino nacional. Lá fora, nos outros países por onde tenho passado, ainda é assim. Na Tunísia até me obrigaram a sair de dentro da piscina quando o hino começou a tocar no seu dia nacional. Em Portugal, o secretário-geral do PCP permite-se continuar uma entrevista no momento em que à sua volta se canta o hino nacional. Se fosse na ex-URSS ou em Cuba tinha ido dentro.

 

Leio no Expresso, numa interessante rubrica coordenada por Freitas do Amaral chamada “Países como Nós”, que o crescimento real do nosso PIB entre 2000 e 2009 foi de 5,3% e que o da República Checa foi de 33,6%. A CGTP, Mário Nogueira e Carvalho da Silva deviam ser capazes de explicar a diferença. Ganhando os checos muito menos do que nós a diferença na produtividade não deverá estar nos euros.

 

Um discursa como se tivesse chegado ontem ao poder. Pode falar verdade que ninguém acredita nele. O outro discursa como se nunca tivesse saído do poder. Pode não dizer uma verdade que todos os que o escutam acreditam nele. Talvez por essa razão é que o primeiro tenta conter o descalabro e o segundo se prepara, de novo, para crescer eleitoralmente.  

 

Não sei quem é que disse à Mãe que o António (não disse o nome próprio quando se referiu a ele; aliás nunca diz) “é capaz de vir a liderar o PS”. Nos seus oitenta e dois anos deve ter sido a primeira vez que a vi entusiasmada, apesar de disfarçar, com o que se passava num partido à esquerda do CDS/PP. Há pessoas para quem, depois do Santo António, por uma razão ou por outra, quando pensam no país só acreditam em milagres feitos pela família. Nunca hei-de perceber isto. Mas ela, como boa cristã e centrista, não se comove com as minhas perplexidades e já deve estar a pedir por ele. O Portas que não saiba. Deus podia perdoar-lhe, mas ao fim destes anos todos não acredito que o Portas lhe perdoasse. Há coisas que não se dizem. E muito menos se pensam. Quanto mais pedi-las ao Altíssimo.