Diário irregular
1 de Setembro
Não há maneira de se sair deste fado. Uma rápida leitura dos jornais e revistas nacionais que se foram acumulando revela o que já antes era evidente. Este país, com esta tropa, vai continuar na casa da partida. Será que até agora ainda ninguém viu que andam a encanar a perna à rã? Estava tudo estudado, as contas todas feitas, as equipas prontas a funcionar. No fim, a única coisa que eles garantem, para além da morte no dia e na hora marcada, é a asfixia fiscal. Ah!, e já me esquecia, a criação de grupos de trabalho. Agora, só para o futebol são mais três. O ministro Relvas de cada vez que participa numa reunião sai de lá com um grupo de trabalho. Ou vários. Um génio, portanto.
Será que se devem fazer anúncios de aumento de tributação no estrangeiro? E de reformas que se supõem sérias em reuniões partidárias para formação de imberbes? Deve ser a isso que eles chamam “sentido de Estado”.
Depois da entrevista que Vítor Gaspar deu há alguma semanas a Judite de Sousa, fiquei com a sensação de que o ministro tinha jeito para ardina. Na ocasião contive-me. Fiz bem porque há por aí muito animal feroz sedento de mostrar trabalho aos chefes, de comentar nos blogues e de cascar nos socialistas. Não vale a pena dar-lhes trela. Ontem, sem qualquer esforço, tive a confirmação. Antigamente, no tempo em que havia jornais e vespertinos, havia um ardina na Avenida de Roma que para os vender apregoava em voz alta aos passantes as notícias que supostamente vinham no interior. Não raras vezes eu comprava o jornal, a Capital dos bons velhos tempos ou a República, e depois quando encontrava a notícia não vinha lá nada do que o sujeito anunciara. Ou quando vinha não havia mais nada a acrescentar ao que fora apregoado. Um desconsolo. O ministro das Finanças vai pelo mesmo caminho. Fez-me também recordar uma velha história contada pelo meu padrinho. O meu padrinho exerceu medicina e numa altura da sua vida palmilhou o vale do Limpopo. De quando em vez tinha de pedir ajuda ao enfermeiro que o acompanhava para lhe traduzir os dialectos de alguns pacientes que não falavam português. Um dia, estando o paciente a arengar uma lengalenga qualquer há longos minutos, o meu padrinho interrompeu-o e perguntou ao enfermeiro tradutor de que se queixava o paciente. A resposta foi desconcertante: “Sinhô Dotôr, até agora o homem não disse nada, só está a falar”. Gaspar sofre do mesmo problema. Fala fala e não diz nada. Enrola na areia e nada. Com a agravante de que não necessitando nós de intérprete mais facilmente nos apercebemos do vazio. Anunciou mais 10,8 milhões de cortes na despesa – e já vai na terceira conferência de imprensa – mas lá concretizar o onde, quando e como dos cortes que anuncia é que nada. Para já é só sacar, coisa que como todos se recordam era exclusivo dos antecessores. O silêncio de Catroga e de Leite Campos não podem deixar de fazer pensar. Quanto ao Presidente da República, no seu serafismo, parece-se cada vez mais com um zombie de fato e gravata. Taxar heranças, Senhor Presidente? Nos dias de hoje? Não me diga que ainda está com algum peso na consciência por causa daqueles dinheiros das poupanças no BPN que o seu gestor de conta reinvestiu sem o senhor saber aonde.
A verdade é que, a falar, Vítor Gaspar esteve bem melhor a comentar a situação em que estão as contas da Madeira. Vou aguardar pela resposta do soba. Porém, tudo isto, em especial, o silêncio de Passos Coelho e a forma como se quis contornar o que Bruxelas disse em relação à Madeira, não deixa de ser lamentável. Vergonhoso. Se já se sabia desse desvio nas contas públicas do arquipélago, esse sim colossal atendendo à dimensão da Madeira, e se tal desvio já havia sido contabilizado pelo primeiro-ministro e a sua equipa, por que razão quando Passos Coelho e Vítor Gaspar anunciaram o desvio que encontraram nas contas públicas de 1,8 ou 2 mil milhões de Euros não disseram logo que cerca de 500 milhões eram responsabilidade da Madeira e de Alberto João Jardim? Uma vez mais foi a omissão que imperou, o silêncio, o disfarce, a farpazinha do ministro Relvas, em vez da clareza e da tão apregoada transparência. Se um falava demais e dizia o que não tinha correspondência na realidade, o outro começa a demonstrar diariamente que não passa de um refinado artolas.
Dizem-me que Miguel Relvas convidou Mário Crespo para ir, de novo, como correspondente para os Estados Unidos. Não sei se alguém me poderá confirmá-lo. E também se esse tipo de convites, ou abordagens, deve ser feito pelo ministro ou pelos responsáveis da empresa que “pretende” contratá-lo. Ou se, tal como na função pública, esses cargos deverão ser preenchidos por concurso. Será que ainda alguém se lembra do caso daquela senhora Rosa qualquer coisa que foi para Madrid e por lá continua? Enfim, depois dos relevantes serviços que o pensador Crespo prestou à pátria – dos abusos, dizia o Eça – é natural que o ministro se lembre dele e lhe queira pagar o desvelo, a isenção de que sempre deu provas. Com o ministro Relvas tudo é possível. Se em Macau não conseguiram pôr os porcos a voar, agora é a oportunidade do ministro criar um grupo de trabalho para analisar a hipótese de se lhes dar asas. Aos porcos, evidentemente. Ressalva que faço, expressamente, não vá o apresentador julgar-se ainda mais importante do que acredita ser e pensar que é com ele.
António José Seguro perguntou quem vai pagar o buraco orçamental da Madeira. Então o líder do PS não sabe? O senhor primeiro-ministro, que se prepara para ir a Funchal apelar ao voto, deveria desde já anunciar que essa dívida será paga por todos os residentes na Região Autónoma. Se houvesse justiça isso é que seria equilibrado, já que foram eles, os eleitores locais, quem ao longo de mais de três décadas andou a mamar da poncha. E gastando menos para virem a Lisboa ver um jogo do Benfica do que eu indo do Algarve a Lisboa. Aqui pagávamos nós, como sempre, lá, desta vez, pagavam eles.
Fiquei admirado com o número. Nove milhões por dia a caminho dos paraísos fiscais e das contas offshore não deve ser coisa grave se não o Governo teria feito alguma coisa. Deve ser simples ignorância, mas continuo sem perceber por que razão, já que o que importa é aumentar a receita sem olhar a meios, não se introduz uma taxa sobre as transferências de capitais para contas offshore e não se agrava substancialmente o IMI e o IMT sobre os bens imóveis e as transacções imobiliárias em que o detentor ou beneficiário seja uma sociedade offshore. Ou sobre os móveis – carros, barcos e aviões – titulados por sociedades offshore. Mas há alguma justiça fiscal num país em que eu, um teso que não recebe um chavo do Estado e se limita a pagar, suporte 600 euros de IMI e um daqueles fulanos de Vale do Lobo ou da Quinta do Lago pague o mesmo, ande de Ferrari e nem conta bancária ou cartão de Multibanco possuam?
O que se está a passar, e o que já se passou, com as secretas, a rejeição do PSD e do CDS em ouvirem quem sabe das histórias de fio a pavio por causa dos inquéritos em curso, não serve de justificação. Há trampa a mais no ar. O cheiro é fétido. O mais certo é que tudo dê em nada e a única conclusão que se possa tirar seja a de que há por aí muita gente que não presta. À direita e à esquerda, dentro e fora das empresas, dos gabinetes e dos serviços do Estado. E então na Maçonaria o melhor é nem pensar. Quem diria? O Pessoa se fosse vivo não tinha escrito o que escreveu. Ele era homem para castrá-los. Ele sabia que normalmente os estafermos safam-se. Às vezes, raro, sobra alguma coisa para os filhos que não tiveram nada que ver com o caso. Nunca para os da puta. Para os dos outros sempre.