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Delito de Opinião

Nevermore

Maria Dulce Fernandes, 16.10.22

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Chegaram em bandos. Eram às centenas, tantos que escureceram o sol como uma nuvem cinzenta, uma praga de gafanhotos sombrios devoradores de consciências. Podiam ser insectos, parasitas invertebrados, não fora as caras de anjo em maravilhosos corpos andróginos e assexuados. As asas, essas eram negras como noites sem luar, com o brilho e a dureza tão peculiares à antracite de azeviche e à crueldade necrófila duma ave de rapina.

Eram os arautos dos deuses, daqueles que foram e cuja essência se perdeu num passado sem futuro. Era a  cimeira dos outrora poderosos, louvados e adorados nas três américas, em todos os recantos misteriosos do berço da civilização, para lá daquela babilónia onde o Tigre e o Eufrates produziam demónios como se de ratos se tratasse. Foram os deuses que perseguiram Moisés, que protegeram Alexandre Magno, que guiaram as campanhas de César, que velejaram em barcos com cabeças de animais, manobrados por ferozes guerreiros, deuses que se acobardaram pela chegada dos espanhóis e fugiram, abrindo de par em par as portas ao extermínio de impérios... foram grandes num tempo próprio que se perdeu no próprio tempo. Agora esquecidos e renegados, pontuam em acontecimentos locais, onde cultos insanos e sangrentos os repescam em arcas poeirentas e prateleiras rancidas e os invocam para meia dúzia de acólitos fanáticos que espumam e se retorcem em ritos de hossana e raiva. Levam a miserável vida de quem perdeu o mundo e não tem lugar no porvir, mantendo as aparências de grandeza apenas pelo aparato dos mercenários celestes que lhes guardam a existência vazia.

Esses, nunca foram guerreiros de um só deus. Eram mercenários que abraçavam sempre a causa mais onerosa do momento. Afinal, eram pagos em almas que incrustavam nos punhos das espadas como de diamantes se tratassem, porque eram poder, delas lhes advinha a força, a jactância e a beleza.

E se eram belos. O olhar hipnotizava, arrepiava, arrancava gritos roucos, gemidos, convulsões de indescritível deleite. Estendi os braços e implorei que me tomassem a alma, que eu não queria ser mais nada senão escrava daquela atracção e dos arroubos do meu corpo. Foi num momento, um lampejo num olhar de safira num segundo efémero no tempo, e vi. Vi as larvas da maldade e do vício do sangue, vi  a crueldade e a alma desabitada, vi que, como os seus patronos, não passavam de fachada, belos, sensuais e desprovidos do escrúpulo duma consciência. Fugi. Andei, sem norte num tempo sem fim. Sentei-me naquele cume junto a Davos com o olhar perdido dos caídos e chorei, chorei por mim que caí na tentação do sublime e quis, ou não fora Lúcifer o mais belo dos anjos.

 

(Imagens Google)