"[É] meu dever, no âmbito das minhas competências constitucionais, tudo fazer para impedir que sejam transmitidos sinais errados às instituições financeiras, aos investidores e aos mercados"
A posição do Presidente da República (PR) de indigitar Passos Coelho para formar um executivo é compreensível. Difícil seria conceber que optasse pela outra solução que lhe foi soprada de nem sequer convidar Passos Coelho e remeter desde logo para António Costa a responsabilidade de apresentar um Governo para a legislatura.
E tem razão quando diz que é da tradição portuguesa que seja convidado a formar Governo o líder do partido ou força política vencedora das eleições. Sobre isto também já aqui manifestei a minha posição.
Mas posto isto, o espectáculo deprimente que o PR encenou ao longo dos últimos dias, embora tenha começado ainda antes das eleições, de que a ausência no Cinco de Outubro fazia parte, a posição agora manifestada, a forma que utilizou para fazê-lo e, em especial, os argumentos a que recorreu para inviabilizar qualquer outra solução que não fosse a por ele desejada e justificar a sua irrelevância política perante o país é do domínio do surreal político.
Ao longo dos seus mandatos Cavaco Silva foi coerente na forma como sempre se esforçou por se mostrar aos olhos dos portugueses como uma personagem politicamente inimputável, o que foi fazendo com o esmero e a diligência naturais de quem sempre demonstrou ter o espírito e a visão de um funcionário, e não o arrojo intelectual e político que seria de esperar de um académico desempoeirado e de vistas largas que foi ministro das Finanças, primeiro-ministro e líder de uma dos partidos estruturantes do regime e do nosso sistema político.
Embora demonstre ser para ele fundamental cumprir com todos os formalismos constitucionais, Cavaco Silva é incapaz nas múltiplas leituras - e pelos vistos insuficientes - que faz do texto constitucional de dele extrair as respectivas consequências e deixa-se trair pelos seus complexos, pela sua visão economicista da vida, da política e dos valores, para se apresentar aos portugueses como se fosse a peça obediente de uma engrenagem primária ao serviço das instituições financeiras, dos investidores e dos mercados.
Recorde-se que quando se apresentou como candidato presidencial, e em ordem a afastar os outros candidatos, Cavaco Silva procurou sempre afirmar-se como um referencial de estabilidade, como um fiel e um garante da confiança dos mercados, o único que estaria em condições de proporcionar condições de governabilidade a Portugal e confiança aos portugueses. Os últimos quatro anos mostraram quão longe estava da realidade.
O discurso que ontem fez aos portugueses para anunciar uma escolha que era mais do que previsível, poderia ter sido um discurso normal de Estado, dando conta das suas diligências, dos factos e da sua decisão. Uma coisa limpa e transparente. Sem mais. Ao invés, tal como em outras ocasiões fizera, só formalmente é que o PR cumpriu. O seu discurso revela a reserva mental com que sempre actuou - para quê a encenação de pedir ao primeiro-ministro cessante e vencedor das eleições que fizesse diligências; para quê perder tempo a ouvir o PS, o BE e o PCP, se já tinha a decisão tomada? -, dando a entender que jamais confiaria numa solução maioritária à esquerda simplesmente porque desconfiava dela desde o início em razão do histórico do BE e do PCP.
Do ponto de vista da legitimidade política, e não obstante a sua reduzida representatividade, o BE e o PCP têm-na tanta como os outros partidos. As posições políticas que defendem não são um crime, mesmo no contexto europeu que é tão querido de Cavaco Silva, e não actuam à margem da lei ou recorrendo a expedientes manhosos para se manterem dentro da legalidade. Não sendo comunista - aliás não gosto deles nem do que o PCP representa - nem tão pouco simpatizante do BE, não posso todavia aceitar a forma como destratou esses dois partidos, como também não aceitaria que um "Presidente de esquerda" tratasse da mesma forma os "fascistas e reaccionários" do CDS/PP só pelo facto de historicamente terem votado contra a Constituição da República em 1976.
Cavaco Silva desconfia de tudo e de todos, tem medo da sua sombra, sente-se perseguido por fantasmas que transformam os seus sonhos em pesadelos e não sabe o que é a divergência em democracia porque o seu pensamento tem dificuldade em acomodar-se a cenários divergentes, não sabe pensar fora da caixa.
E desconheço em que parte da Constituição se apoia Cavaco Silva para dizer que o PR tem nas suas competências constitucionais tudo fazer para impedir que sejam transmitidos "sinais errados às instituições financeiras, aos investidores e aos mercados". Que sinais errados? Ao dizer o que disse, o Presidente da República mostrou que afinal nunca esteve ao serviço de Portugal, dos portugueses e dos princípios e valores ínsitos na Constituição que jurou cumprir e fazer cumprir.
Prisioneiro dos seus complexos, da sua amargura por a democracia não corresponder ao que gostaria que fosse, Cavaco Silva esqueceu-se que foi ele o último bastião do azedume, da radicalização do discurso político e do extremar de posições. O europeísmo que agora defende deve ser o mesmo que lhe permite confiar na palavra, receber, apoiar e apertar a mão a Obiang, o ditador da Guiné-Equatorial, cujas promessas feitas para aderir à CPLP continuam por cumprir. Incapaz de sair de si, de se apartar dos seus lábios sibilinos, de se colocar num patamar onde a sua figura institucional não se deixasse enredar pelos seus complexos e que merecesse dos portugueses o respeito que lhe é devido pelas funções que exerce, Cavaco Silva termina o mandato deixando o país entregue a si próprio, virando costas à situação política e remetendo para os deputados da nova Assembleia da República a responsabilidade de encontrarem as soluções de governabilidade que ele próprio se encarregou de escaqueirar e inviabilizar com as posições que foi tomando ao longo do mandato. A imagem que deixa é a de uma total inimputabilidade política. Pode ser que Portugal venha a ter um primeiro-ministro que politicamente entre pela "porta dos fundos", já que constitucionalmente estará sempre respaldado, mas se for o caso ele cruzar-se-á na sua hora de saída com o que entrar. Dessa não se livrará.
Com o discurso de ontem, e não foi pela solução apresentada aos portugueses, que devia desde sempre, e não apenas desde 4 de Outubro pp., ter sido uma evidência para ele, sem necessidade de considerandos adicionais e avisos pré e pós-eleitorais disparatados, Cavaco Silva estampou-se de vez. Desintegrou-se, descavacou-se por completo.