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Delito de Opinião

Um desastre chamado tolerância zero

Sérgio de Almeida Correia, 06.03.22

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Depois de há três semanas, numa carta aberta para o Executivo de Hong Kong, os médicos terem avisado que o sistema estava à beira do colapso, na passada quinta-feira foram registados mais de 56 mil casos de infectados da COVID-19 num só dia.

Elizabeth Cheung descrevia no South China Morning Post cenas horríveis nos hospitais, com falta de oxigénio, más condições de higiene, camas insuficientes e profissionais de saúde a queixarem-se da sua incapacidade para prestarem os cuidados devidos a muitos doentes. Enfim, um caos.

Há mais de quatro dias que o número de mortos diários ultrapassa a centena. Hong Kong atingiu a mais alta taxa de mortalidade mundial, na maior parte dos casos na população mais idosa e não vacinada.

E, no entanto, há dois anos que cessaram as ligações marítimas de e para Hong Kong, as fronteiras estão desde então, salvo raras excepções, fechadas ou com restrições severas à entrada de estrangeiros, muitas companhias aéreas deixaram de voar, há rígidas quarentenas para os residentes que chegam. As queixas multiplicam-se.

Há quem pergunte por que razão se falhou de forma tão crassa, de tal forma que foi pedido apoio às autoridades do outro lado da fronteira para fazer face à situação.

A CNN estabeleceu a comparação com outros países ou regiões que seguiram a mesma política numa fase inicial, mas que entretanto já reabriram, abandonando a tolerância zero. A resposta parece estar nas baixas taxas de vacinação, mas também na ineficácia das vacinas chinesas, que levou as próprias autoridades a recomendarem que a terceira dose fosse do tipo mRNA (BioNtech), e na incapacidade da Região em preparar-se atempadamente para o que aí vinha.

Carrie Lam, a Chefe do Executivo, comparou a situação com a de uma guerra, que neste caso só acontece por incapacidade das autoridades, advogando que se contornem as leis existentes e atirando para trás das costas o rule of law.

Em resposta, houve quem lhe dissesse que Hong Kong não é Kiev, e lhe recordasse que em 1942 Lord Atkins disse que durante as guerras as leis não são silenciosas, falam a mesma linguagem em tempo de paz e o direito internacional humanitário não se suspende.

Mas o que as autoridades de Hong Kong não dizem, e não têm maneira de justificar, é por que razão este desastre ocorre quando se tem todo o apoio de Pequim. Nem para que se querem contornar as leis, dois anos depois de começar a pandemia, numa altura em que a cidade já é governada exclusivamente por "patriotas", em que deixou de existir oposição interna, em que os líderes do movimento pró-democracia foram silenciados, estão exilados ou cumprem pena de prisão.

E tudo depois de ser aprovada uma lei draconiana de segurança interna, da liberdade de imprensa ser cerceada, de se fecharem jornais e se prenderem jornalistas, advogados e activistas, e do sistema eleitoral ter sido alterado para se garantir que a democracia "à ocidental" não funcionaria.

Líbano, o paraíso perdido

João Pedro Pimenta, 11.08.20

As coisas mudam mesmo num espaço de semanas. No início do ano, à boleia de um convite a uns amigos para que iam dar uma conferência na universidade jesuíta local, planeava ir ao Líbano em Junho, se possível, apesar da contestação social e das muitas manifestações que lá havia. Entretanto, meteu-se o covid pelo meio, a separar o Mundo e a impedir viagens e a ideia ficou anulada, mas quem sabe, talvez noutra oportunidade...

Há dias, Beirute, a "Paris do Levante", ficou parcialmente em escombros, a fazer lembrar a guerra civil dos anos 80, mas aqui bastaram uns segundos para a destruição, com dezenas de mortos (já vão em mais de 160) e milhares de feridos. Os hospitais ficaram danificados e sem luz. O porto, principal entrada do comércio naquele país descendente dos fenícios, está arrasado, ainda com cadáveres por baixo dos destroços, e as reservas de cereal, destinadas à esmagadora maioria dos libaneses e armazenadas naquele silo mesmo ao lado da explosão, foram ao ar. Já não bastava o covid -  que lá até nem tinha sido muito intenso, até agora -  a contestação social e a tradicional divisão entre grupos político-religiosos e agora isto. E os protestos voltaram, ainda mais acirrados, levando à inevitável queda do governo. Não vai ser fácil constituir um novo executivo, tendo em conta as dificuldades extremas para consertar o país, se é que tem conserto, acrescidas da confusa divisão de poderes, mais religiosa que política, que obriga a que a presidência do país, a chefia do governo e a presidência do parlamento caiba, respectivamente, a um cristão maronita, um muçulmano sunita e um xiita.

Eis como os nosso planos mais lúdicos podem mudar de forma completamente inesperada. Há meses estudava a geografia de Beirute, os pontos mais interessantes de Tiro, Sídon, Biblos ou Tripóli, e os caminhos para os vales dos cedros e para Balbeek mais os seus templos superlativos. Agora só se vêm ruínas, destruição, motins e epidemias. Como se as pragas bíblicas tivessem atingido aquela faixa de terra tão perto da Galileia. Provavelmente os meus planos de conhecer aquele lindíssimo país, que podia ser um paraíso e é momentaneamente um inferno, vão ficar adiados por muito mais tempo. Que até lá se reerga, como depois das guerras internas.

Esperança entre pedras fumegantes

João Pedro Pimenta, 16.04.19

Vi e ouvi o mais belo coro de que tenho memória na Catedral de Notre Dame, há já demasiados anos. Quando se calou, houve um breve silêncio até alguns visitantes orientais desatarem a aplaudir, perante algum espanto e divertimento dos que assistiam à missa.


Com as imagens do último dia vieram-me outras recordações à memória, como a do Emmanuel, o grande sino  da Catedral, que vejo agora ser da época de Luís XIV, e que apenas levemente tocado já soava respeitosamente alto. Ver a "Igreja mãe de França", que resistiu miraculosamente a guerras mundiais e revoluções, deixa-nos num desespero impotente. Quando é que será novamente possível ouvir o seu coro divino?

 

Mas logo as primeiras imagens do interior de Notre Dame faziam adivinhar que nem tudo está perdido. O fogo não consumiu todo o interior, mas o centro da nave, por baixo do coruchéu que ruiu, está severamente danificado. Salvaram-se algumas das relíquias mais preciosas e até marcantes, como a suposta coroa de espinhos e o manto de S. Luís, mas o destino de boa parte é ainda incerto. Em todo o caso, o altar-mor resistiu. A cruz que o encima, essa, está lá. Como sempre.

 

O desastre afectou severamente a catedral, mas não a vergou. Parece até ter criado uma certa união e um novo espírito de esperança aos franceses. E Paris já passou por outras provações. Em 1871, depois de um cerco de meses, de ter perdido a guerra com a Prússia, de ver o seu próprio Imperador prisioneiro dos germânicos e da república ser proclamada, a Comuna pôr a cidade do Sena a ferro e fogo, destruindo numerosos edifícios antes de ser violentamente esmagada. A França estava de rastos. Pois em dez anos pagou todas as imensas indemnizações de guerra, reconstruiu os edifícios destruídos (à excepção do Palácio das Tuilleries, do qual ficaram os jardins, por razões políticas) e ainda organizou a exposição Mundial de 1878, como prova da sua vitalidade. Notre Dame de Paris voltará a ser a Igreja Mãe dos franceses.

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Não se aproveita nada

Sérgio de Almeida Correia, 23.10.15

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"[É] meu dever, no âmbito das minhas competências constitucionais, tudo fazer para impedir que sejam transmitidos sinais errados às instituições financeiras, aos investidores e aos mercados"

 

A posição do Presidente da República (PR) de indigitar Passos Coelho para formar um executivo é compreensível. Difícil seria conceber que optasse pela outra solução que lhe foi soprada de nem sequer convidar Passos Coelho e remeter desde logo para António Costa a responsabilidade de apresentar um Governo para a legislatura.

E tem razão quando diz que é da tradição portuguesa que seja convidado a formar Governo o líder do partido ou força política vencedora das eleições. Sobre isto também já aqui manifestei a minha posição.

Mas posto isto, o espectáculo deprimente que o PR encenou ao longo dos últimos dias, embora tenha começado ainda antes das eleições, de que a ausência no Cinco de Outubro fazia parte, a posição agora manifestada, a forma que utilizou para fazê-lo e, em especial, os argumentos a que recorreu para inviabilizar qualquer outra solução que não fosse a por ele desejada e justificar a sua irrelevância política perante o país é do domínio do surreal político.

Ao longo dos seus mandatos Cavaco Silva foi coerente na forma como sempre se esforçou por se mostrar aos olhos dos portugueses como uma personagem politicamente inimputável, o que foi fazendo com o esmero e a diligência naturais de quem sempre demonstrou ter o espírito e a visão de um funcionário, e não o arrojo intelectual e político que seria de esperar de um académico desempoeirado e de vistas largas que foi ministro das Finanças, primeiro-ministro e líder de uma dos partidos estruturantes do regime e do nosso sistema político.

Embora demonstre ser para ele fundamental cumprir com todos os formalismos constitucionais, Cavaco Silva é incapaz nas múltiplas leituras - e pelos vistos insuficientes - que faz do texto constitucional de dele extrair as respectivas consequências e deixa-se trair pelos seus complexos, pela sua visão economicista da vida, da política e dos valores, para se apresentar aos portugueses como se fosse a peça obediente de uma engrenagem primária ao serviço das instituições financeiras, dos investidores e dos mercados.

Recorde-se que quando se apresentou como candidato presidencial, e em ordem a afastar os outros candidatos, Cavaco Silva procurou sempre afirmar-se como um referencial de estabilidade, como um fiel e um garante da confiança dos mercados, o único que estaria em condições de proporcionar condições de governabilidade a Portugal e confiança aos portugueses. Os últimos quatro anos mostraram quão longe estava da realidade.

O discurso que ontem fez aos portugueses para anunciar uma escolha que era mais do que previsível, poderia ter sido um discurso normal de Estado, dando conta das suas diligências, dos factos e da sua decisão. Uma coisa limpa e transparente. Sem mais. Ao invés, tal como em outras ocasiões fizera, só formalmente é que o PR cumpriu. O seu discurso revela a reserva mental com que sempre actuou - para quê a encenação de pedir ao primeiro-ministro cessante e vencedor das eleições que fizesse diligências; para quê perder tempo a ouvir o PS, o BE e o PCP, se já tinha a decisão tomada? -, dando a entender que jamais confiaria numa solução maioritária à esquerda simplesmente porque desconfiava dela desde o início em razão do histórico do BE e do PCP.

Do ponto de vista da legitimidade política, e não obstante a sua reduzida representatividade, o BE e o PCP têm-na tanta como os outros partidos. As posições políticas que defendem não são um crime, mesmo no contexto europeu que é tão querido de Cavaco Silva, e não actuam à margem da lei ou recorrendo a expedientes manhosos para se manterem dentro da legalidade. Não sendo comunista - aliás não gosto deles nem do que o PCP representa - nem tão pouco simpatizante do BE, não posso todavia aceitar a forma como destratou esses dois partidos, como também não aceitaria que um "Presidente de esquerda" tratasse da mesma forma os "fascistas e reaccionários" do CDS/PP só pelo facto de historicamente terem votado contra a Constituição da República em 1976.

Cavaco Silva desconfia de tudo e de todos, tem medo da sua sombra, sente-se perseguido por fantasmas que transformam os seus sonhos em pesadelos e não sabe o que é a divergência em democracia porque o seu pensamento tem dificuldade em acomodar-se a cenários divergentes, não sabe pensar fora da caixa.

E desconheço em que parte da Constituição se apoia Cavaco Silva para dizer que o PR tem nas suas competências constitucionais tudo fazer para impedir que sejam transmitidos "sinais errados às instituições financeiras, aos investidores e aos mercados". Que sinais errados? Ao dizer o que disse, o Presidente da República mostrou que afinal nunca esteve ao serviço de Portugal, dos portugueses e dos princípios e valores ínsitos na Constituição que jurou cumprir e fazer cumprir.

Prisioneiro dos seus complexos, da sua amargura por a democracia não corresponder ao que gostaria que fosse, Cavaco Silva esqueceu-se que foi ele o último bastião do azedume, da radicalização do discurso político e do extremar de posições. O europeísmo que agora defende deve ser o mesmo que lhe permite confiar na palavra, receber, apoiar e apertar a mão a Obiang, o ditador da Guiné-Equatorial, cujas promessas feitas para aderir à CPLP continuam por cumprir. Incapaz de sair de si, de se apartar dos seus lábios sibilinos, de se colocar num patamar onde a sua figura institucional não se deixasse enredar pelos seus complexos e que merecesse dos portugueses o respeito que lhe é devido pelas funções que exerce, Cavaco Silva termina o mandato deixando o país entregue a si próprio, virando costas à situação política e remetendo para os deputados da nova Assembleia da República a responsabilidade de encontrarem as soluções de governabilidade que ele próprio se encarregou de escaqueirar e inviabilizar com as posições que foi tomando ao longo do mandato. A imagem que deixa é a de uma total inimputabilidade política. Pode ser que Portugal venha a ter um primeiro-ministro que politicamente entre pela "porta dos fundos", já que constitucionalmente estará sempre respaldado, mas se for o caso ele cruzar-se-á na sua hora de saída com o que entrar. Dessa não se livrará.

Com o discurso de ontem, e não foi pela solução apresentada aos portugueses, que devia desde sempre, e não apenas desde 4 de Outubro pp., ter sido uma evidência para ele, sem necessidade de considerandos adicionais e avisos pré e pós-eleitorais disparatados, Cavaco Silva estampou-se de vez. Desintegrou-se, descavacou-se por completo.

Um episódio que resume dois mandatos

Sérgio de Almeida Correia, 11.03.15

O Prof. Reis Novais relatou no Prós e Contras um episódio a propósito da forma como o Presidente da República tentou convenientemente apropriar-se de um parecer pedido por Mário Soares aos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira que é mais um exemplo, a juntar a tantos outros, da falta de estatura do actual titular do cargo. Os historiadores do regime vão ter um trabalho dos diabos para polirem o desempenho político do Prof. Cavaco Silva. Mudar de opinião não é coisa que se confunda com conveniências pessoais, oportunismo político e falta de coerência intelectual (para não dizer outra coisa).