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Delito de Opinião

A lei da rolha na Casa da Democracia

Pedro Correia, 25.05.23

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Na Assembleia da República, nota-se mais que nunca o rolo compressor da maioria absoluta. Transformando o parlamento numa caixa de ressonância do PS. Só ontem, os socialistas chumbaram seis pedidos de audição apresentados por vários grupos parlamentares na comissão de inquérito à TAP. Com este veto rosa, a mando de António Costa, não irão ali depor o director nacional da PSP, o ministro da Administração Interna, o secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, o director do SIS e a secretária-geral do SIRP (Sistema de Informações da República Portuguesa). Além do próprio chefe do Governo, que tinha a prerrogativa de esclarecer por escrito várias questões essenciais como estas, que continuam sem obter resposta:

- Qual foi o membro do Governo que decidiu accionar o SIS (Serviço de Informações de Segurança) para contactar um cidadão, quadro qualificado de um ministério da República Portuguesa, altas horas da noite, fazendo lembrar tempos de má memória?

- Que documentação estratégica relevante para o Estado português havia no computador portátil do ex-adjunto do ministro das Infraestruturas?

- A recuperação de computadores portáteis na via pública insere-se no âmbito das competências legais do SIS?

- É verdade que foi o secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, António Mendonça Mendes, a autorizar ou mesmo a incentivar o ainda ministro João Galamba a accionar o SIS para a recuperação do referido computador?

- Por que motivo este secretário de Estado, mencionado expressamente por Galamba, ainda não proferiu qualquer declaração sobre tão relevante tema, como se tivesse feito voto perpétuo de silêncio?

- Terá Galamba mentido também ao mencionar Mendonça Mendes?

 

Estranho conceito de democracia, este do PS. Impõe a lógica aritmética em São Bento com o mesmo despudor que sempre criticou durante a maioria absoluta de Cavaco Silva, nas décadas de 80 e de 90.

Mas os tempos agora são outros, pouco propícios a qualquer tipo de omertà. A eficácia deste rolo compressor vai ser testada nos tempos mais próximos. Entretanto, custa-me ver deputados socialistas que estimo e respeito, como Pedro Delgado Alves, Jorge Seguro Sanches, Alexandra Leitão e Sérgio Sousa Pinto, de algum modo associados à imposição da lei da rolha na Casa da Democracia.

Ainda sobre a arbitrariedade do tipo disfarçado de árbitro

Paulo Sousa, 28.04.23

Depois da revelação e apagamento do vídeo sobre o qual já aqui escrevi, Augusto Santos Silva (ASS), Presidente da Assembleia da República em funções, acusou o toque e já anda à procura de alguém para crucificar. Tentou explicar-se dizendo que “o aconteceu foi uma violação gravíssima de direitos e liberdades individuais e desrespeito da AR com outros órgãos de soberania.”

Nas horas de aperto tem de haver sempre um culpado, pode ser o motorista ou senhor que envia emails. Os responsáveis nunca têm qualquer responsabilidade. Esses estão lá para receber os louros e as bajulações.

Este é um método da escola soviética, que se baseia no princípio de que o estado, ou o partido, nunca falha. Se alguma coisa corre mal, manda-se executar o traidor e nesse meio tempo a viúva já chegou à Sibéria. É um método que, temos de reconhecer, permite seguir em frente mesmo após às piores partidas urdidas pela realidade. E bem sabemos como a realidade pode ultrapassar a ficção.

ASS já ordenou a abertura de um processo de averiguações. As gravações e a respectiva divulgação de conversas feitas sem o conhecimento de um político são ilegais e, dirá ASS, profundamente ilegítimas. O aproveitamento político que se possa fazer desse tipo de registos é igualmente ilegítimo e revelador de uma absoluta falta de integridade política.

Hoje, o Miguel Pinheiro na Rádio Observador lembrou um episódio em que Vítor Gaspar foi filmado, sem que disso tivesse conhecimento, enquanto conversava informalmente, com o Ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schubel.

Perante tal devassa da privacidade, o PS mostrou-se também profundamente indignado e recusou-se a comentar imagens captadas sem o conhecimento dos envolvidos.

Será mesmo que foi assim?

A arbitrariedade do tipo disfarçado de árbitro

Paulo Sousa, 27.04.23

Em jeito de rescaldo da agitada cerimónia do 25 de Abril, o canal do Parlamento transmitiu diversas imagens sobre o decorrer das mesmas. Numa delas ouvimos o Presidente da Assembleia da República a falar num círculo de outras figuras do regime, onde se inclui o Presidente Marcelo.

O teor e o modo da conversa de Santos Silva fez-me lembrar um daqueles espertalhões da escola, do café ou do emprego, que se gaba de um qualquer feito perante alguém que se pressupõe lhe ser adverso.

Não é descabido que sua função de PAR possa ser comparável à de um árbitro. Este caso mostra a sua vontade de entrar nas jogadas para favorecer uma das equipas. Entende-se que está satisfeito pelo seu desempenho. Comporta-se como quem relata, e repete o relato, da forma como acha ter sido o melhor jogador em campo. E foi tanta a sua parcialidade na partida que acabaram de jogar, que, conta ele satisfeito, um jogador da sua equipa favorita chegou ao ponto de o tentar acalmar: “Deixe estar, deixe estar.” E no balneário ecoam as risadas.

Num ambiente aberto, a conversa poderia servir para tentar avaliar a reacção dos demais e daí tentar entender o que é que realmente acharam sobre o seu desempenho, mas isso só seria possível num espaço onde críticas livres e francas fossem possíveis. Ali, essa lógica não existe. O seguidismo e a risada por imitação são a regra. Para o bem e para o mal, somos animais gregários.

No vídeo é possível ainda ver a leviandade com que distribui carimbos de “falta de integridade política” que, entretanto, quer corrigir para “falta de maturidade política”, a todos os que não são da sua equipa. Acredito que esse detalhe irá ser o filão que ele próprio e a imprensa irão explorar, o que disse ou não disse ou queria dizer. Cada uma das facções em que o PS vai dividindo o país, irá acreditar na versão que lhe for mais apelativa.

Numa tentativa de eliminar da memória dos que assistiram às imagens, já mandaram eliminar as imagens do canal do Parlamento. Certamente que os partidários do árbitro, que se gaba de ser parcial, irão dizer que uma conversa informal não deve transmitida, mas isso só sublinha o incómodo que, mesmo negando, sentem pela divulgação do ocorrido.

Os donos do regime estão rodeados de figurantes que imitam os cãezinhos que decoravam as chapeleiras dos automóveis dos anos setenta, que pachorramente acenavam a cabeça na direcção que a inércia lhe indicasse. Estão decadentes, velhos de espírito e comportam-se como caciques.

Mais do que um árbitro parcial, o que vi nestas imagens foram dois tipos (a conversa do PR também é enjoativa) que se comportam como quem confunde a pessoa que é, com a função que desempenha. Cada um deles, à sua maneira, sente que pertence à restrita elite que domina o estádio. Para além das homilias declamadas no seu púlpito, mostram-nos como é perene a natureza humana, como é inebriante a vaidade e, sem darem por isso, mostram-nos como é bela a democracia, que não retira humanidade aos seus actores, mas permite que, quando enjoados, os eleitores possam correr com os que acham ser o centro do universo.

Reflexão do dia

Pedro Correia, 21.04.23

«Há uma crise geral das democracias, não é um problema especificamente português. Há uma crise dos sistemas de representação democrática. A verdade é que a democracia é um regime que vive quase permanentemente em crise e temos de saber lidar com isso. E, provavelmente, não estaremos a saber lidar com isso.

E porque é que vive praticamente em crise? Porque é o único tipo de regime que assenta na indeterminação, na incerteza, na ideia de que o poder é um lugar vazio e que é momentaneamente ocupado por aqueles que adquirem legitimidade para o fazer. Os outros regimes são baseados em certezas, em dogmas absolutos. E com isso têm o efeito de limitar, de restringir, senão mesmo de anular, a liberdade individual.»

 

Francisco Assis, em entrevista ao Público

É assim que nós estamos

Paulo Sousa, 06.03.23

A Saúde:

Mesmo depois de recorrer à táctica socialista de regar os problemas com dinheiro, o SNS já entrou em SOS. Inicialmente foi a passagem para as 35 horas semanais, com a garantia que não iria custar mais dinheiro, nem que o serviço iria piorar. Pelo caminho foi a teima ideológica que levou a acabar com os contratos em PPP relativos a hospitais que funcionavam bem. As queixas de quem deles necessita são evidentes. Mesmo depois de pagar os seus impostos que sustentam os serviços públicos, os portugueses (que podem), mais do nunca, decidem pagar adicionalmente seguros privados de saúde. Os que não podem, sujeitam-se às intermináveis listas de espera. A única certeza que temos é que a actual situação levará a uma efectiva redução da esperança média de vida, que é outra forma de dizer que o país irá perder vidas, que poderiam ser poupadas.

 

A Educação:

O governo do eduquês, que acabou com as provas no final de cada ciclo escolar, de forma a impedir comparações internacionais, que apostou no ridículo que foi defender que o confinamento pela Covid levou um aumento das aprendizagens dos alunos (caso único no mundo), lida agora com as paragens provocadas pelas sucessivas greves de milhares de professores. Certamente que, há pouco mais do um ano, muitos destes professores terão votado PS, mas este é o tempo do desapontamento. Os sindicatos já sugeriram aos pais dos alunos que os devem deixar em casa, e tal como na saúde, os portugueses (que podem) tentam colocar os seus filhos no ensino privado.

 

A Justiça:

Mesmo depois de muitos alertas sobre os problemas que viriam a ocorrer se não se adequasse a legislação nacional sobre os metadados ao normativo europeu, o governo achou que nada era preciso ser feito. O resultado está à vista.

Enquanto isso, decorre o processo do caso Marquês. Os mais de trinta recursos apresentados por José Sócrates (tendo ganho apenas dois) mostram como o nosso sistema jurídico é diferente para ricos e para pobres. Como se esta impotência perante a litigância de má-fé não chegasse, estranhas alterações legislativas ajudam a que tudo se arraste para além do horizonte temporal das prescrições. É cada vez mais provável que José Sócrates não chegue sequer a ser julgado.

 

A Habitação:

Após três pacotes destinados a resolver o problema da habitação, apresentados com um intervalo de dois anos, que parece ser o tempo de médio de amadurecimento de uma asneira, o governo apresentou agora um powerpoint que ameaça os proprietários com arrendamentos compulsivos. Sem nada de concreto para mostar do que pretende fazer e sabendo que, o que agora acena, dificlmente passará no Tribunal Constitucional, o que António Costa pretende mesmo com este anuncio bombástico é desviar os holofotes do estado da Saúde, do Ensino e da Justiça. No início também caí na esparrela.

 

A Clique

Tal como sempre aconteceu em regimes que permitem que sejam sempre os mesmos a mandar, a sensação de impunidade corrói as (para alguns) frágeis barreiras da decência. O caso aqui trazido há dias pelo nosso colega JPT, é aberrante, gera revolta e não deixa de ser exemplificativo do estado de espírito de demasiada gente, que quando confrontada com o óbvio, desata a disparar acusações de fascista em todas as direcções.

 

Há coisas que, por mais avisadas que estejam, quando finalmente acontecem, deixam o mundo surpreendido. E é assim que nós estamos.

Em câmara lenta. Por enquanto.

Paulo Sousa, 15.02.23

Este texto foi feito a partir de uma newsletter do Jornal Expresso e assinada por David Dinis.

De acordo com os dados recolhidos num inquérito feito em Portugal, para o European Social Survey conclui-se que o funcionamento do regime democrático está muito abaixo do que os portugueses ambicionam.

Não há margem para dúvidas sobre a dimensão dessa desilusão: das 11 dimensões avaliadas, só em duas os portugueses sentem que o funcionamento da democracia portuguesa se aproxima da importância que atribuem a essa dimensão.

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Os portugueses acham que, sim, “as eleições são livres e justas” (com nota de 8,1 numa escala até 10), assim como acreditam que “a comunicação social tem liberdade para criticar o governo” (afirmação que é validada com nota 7,1, na mesma escala). São duas notas altas em duas condições vistas como essenciais para o regular funcionamento do regime.

Porém, nas restantes 9 dimensões do funcionamento da democracia, a discrepância entre a importância que os portugueses atribuem a um factor e a avaliação que fazem do seu funcionamento no nosso país é enorme. E, pior, em sete casos a avaliação é mesmo negativa.

Assim, de acordo com o estudo, os portugueses chumbam liminarmente um princípio central para o funcionamento da justiça (dão apenas 3 valores à afirmação de que “os tribunais tratam todas as pessoas da mesma maneira); assim como chumbam os dois pilares da democracia social, seja quando se pergunta se “o governo protege todos os cidadãos da pobreza” (3,3 valores) ou se “o governo toma medidas para reduzir as diferenças nos níveis de rendimento” (3,6).

Os portugueses não acreditam também que os governos sejam “castigados nas eleições quando fazem mau trabalho” (nota 3,7); assim como dão nota negativa aos dois pilares da democracia popular (3,1 valores apenas para a afirmação “as ideias das pessoas comuns têm mais força do que as ideias da elite política” e 4,6 valores para a afirmação de que “a vontade das pessoas não pode ser travada”. A última negativa vai para a democracia directa: nota 4,4 para quando se afirma que “os cidadãos têm a última palavra nos assuntos políticos mais importantes votando directamente sobre eles em referendos”.

Se os indicadores de democracia popular e democracia directa não são os mais valorizados pelos inquiridos (7,9 para a primeira e 8,6 para a última), o mesmo não se pode dizer sobre os pilares da democracia social (sempre acima de 9 na escala de valores). Dito de outra forma: os portugueses acreditam que a protecção para a pobreza e as medidas para reduzir desigualdades estão entre as quatro mais importantes para o bom funcionamento da democracia, mas sentem que o Estado português falha nelas. De forma clara.

A meio da escala - em território ligeiramente positivo - estão, ainda, duas avaliações: uma sobre as “alternativas claras apresentadas pelos partidos políticos” (5,4 valores, ainda longe dos 8,9 que representam a importância do tema para os eleitores); e outro sobre a protecção “dos direitos da minorias”, que se fica pelos 5,1 valores, ainda mais abaixo dos 9 valores que medem a importância do tema.

O Expresso irá apresentar diversos artigos sobre cada um destes campos de análise, assim como sobre a sua evolução desde o estudo comparável realizado em 2012.

No texto de David Dinis é ainda referido o momento que eu descreveria como “Senhora professora a culpa é daquele menino” e que respeita ao alerta lançado há dias por Augusto Santos Silva, segundo o qual a extrema-direita está a ameaçar a democracia, tentando assim fazer esquecer que quem está no poder não é a extrema-direita. Pelo contrário, é exactamente o partido deste proto-candidato a PR que há várias décadas, e quase ininterruptamente, está no poder. Se ele quiser mesmo procurar os responsáveis pela realidade confirmada por este estudo, pode começar por fazer um exame de consciência.

Estou cada vez mais convencido que a única garantia de democraticidade do nosso regime é o facto de Portugal pertencer à União Europeia. Vivemos num regime em câmara lenta, que se arrasta sem convicção, motivado apenas pelo cumprimento das regras impostas por Bruxelas como forma de não interromper as transferências que alimentam a cascata de dependentes em que o país se tornou. Sem as transferências europeias, este regime em câmara lenta rapidamente se transformaria num regime em câmara ardente. E não se pode atirar a culpa a quem não está no poder.

Não passarão

Pedro Correia, 09.01.23

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Brasília, 8 de Janeiro de 2023

 

Falanges mobilizadas pelas redes ditas sociais - cada vez mais instrumentalizadas por poderes ocultos - replicaram, em Brasília, o que as suas homólogas fizeram há dois anos em Washington. Vandalizando as sedes dos três poderes - legislativo, executivo e judicial. Com o aplauso aberto ou encapotado de alguns intelectuais orgânicos, que sonham ver a "rua" derrubar as "elites". Mesmo que as tais "elites" sejam sufragadas pelo voto. Ou sobretudo quando isso acontece. Porque esta gente tem um ódio visceral aos mecanismos da democracia representatitva (que lhes serve quando os deles ganham) e ao Estado de Direito em geral.

Em Janeiro de 2021 na capital norte-americana, ontem em Brasília: acção mimética, obedecendo a um padrão comum. Com uma diferença, apesar de tudo. O "comandante-em-chefe" daquela tropa fandanga, incluindo gente com vocação homicida, não estava longe. Ao contrário do autor moral da baderna brasileira, agora gozando férias em Miami, a confortável distância dos seus capangas.

A estes e a outros - dos separatistas catalães aos "coletes amarelos" em França - há que responder, sem complexos, com a força moral do Estado de Direito. Sempre superior a qualquer "regime" alternativo que proponham fanáticos, extremistas e desvairados de todos os matizes.

Nós, portugueses, sabemos muito bem o que isso é. Também tivemos um cerco ao Palácio de São Bento, onde funcionava a Assembleia Constituinte. Lá dentro estavam 250 deputados eleitos por sufrágio universal. Entre eles Adelino Amaro da Costa, Diogo Freitas do Amaral, Vítor Sá Machado (CDS), Carlos Mota Pinto, Emídio Guerreiro, Helena Roseta, Francisco Pinto Balsemão, Marcelo Rebelo de Sousa, Mota Amaral (PSD), António Barreto, António Arnaut, Jaime Gama, José Medeiros Ferreira, Manuel Tito de Morais e Sophia de Mello Breyner Andresen (PS).

A turba sequestradora da extrema-esquerda, dizendo representar o "povo" contra os "políticos burgueses", vomitava o mesmo ódio à democracia liberal que escorre hoje da matilha bolsonarista

A estes agora, no Brasil, há que dizer sem tibiezas: não passarão. Como não passaram os de sinal contrário, entre nós, em Novembro de 1975.

 

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Lisboa, 12 de Novembro de 1975

Ler

Sérgio de Almeida Correia, 02.12.22

Breve História da Democracia - John Keane - Compra Livros na Fnac.pt

"(...) a democracia posiciona-se contra todas as formas de húbris. Considera o poder concentrado cego e, consequentemente, perigoso; pressupõe que aos humanos não deve ser confiado um domínio incontido sobre os seus semelhantes, nem sobre os biomas que estes habitam" (p. 175)

 

O australiano John Keane resolveu escrever um livro que sendo simples, claro e acessível não deixa de ser rigoroso. Fê-lo com elegância e os seus vastos conhecimentos sobre a matéria que aborda, dando-nos uma visão global da evolução daquilo a que se convencionou chamar democracia desde as primeiras assembleias de que há notícia, na Síria-Mesopotâmia, cerca de 2500 a.C., até aos dias hoje.

Basicamente, dividiu a sua história em três grandes períodos que correspondem na sua óptica a diferentes modelos de democracia: democracia de assembleia, democracia representativa e aquilo a que chama de democracia monitorizada.

É esta última que pode suscitar mais controvérsia.

O autor interroga-se sobre o próprio da democracia liberal e não deixa de referir, enaltecendo, apesar de todos os seus defeitos, o exemplo indiano quando afirma que a Índia constituirá o exemplo acabado de como milhões de pessoas pobres e analfabetas , "sobrecarregadas por uma miséria de proporções confrangedoras", "rejeitaram o preconceito de que um país tem de ser rico antes de ser democrático" (p. 143).

Apoiando-se no teólogo estado-unidense Reinhold Niebuhr, remete-nos para uma frase famosa deste ("A aptidão do homem para a justiça torna a democracia possível, mas a tendência do homem para a injustiça torna a democracia necessária") que em seu entender terá estado na base de uma nova compreensão da democracia "como um contínuo escrutínio público, moderando e controlando o poder segundo padrões 'mais profundos' e mais universais do que os antigos princípios de eleições periódicas, governo pela maioria e soberania popular".

Segundo Keane, a democracia monitorizada "está associada às sociedades saturadas pelos meios multimédia – cujas estruturas de poder são acompanhadas e combatidas de forma permanente pelos cidadãos e seus representantes no âmbito dos ecossitemas dos meios digitais", numa espécie de "mundo de abundância comunicativa" que é estruturado por "dispositivos mediáticos que combinam o texto, o som e a imagem", permitindo uma "comunicação por vias de múltiplas plataformas de utilizadores, no âmbito de redes globais moduladas, acessíveis a muitas centenas de milhões de pessoas espalhadas pelo mundo"; afirmando-nos que "a democracia monitorizada e as redes mediáticas informatizadas são gémeas siamesas".  "Se a nova galáxia de abundância comunicativa implodisse subitamente, é provável que a democracia monitorizada não sobrevivesse" (p. 156).

A pandemia e as suas implicações, cada vez mais presentes pelo que se está a passar na China, a tal "democracia que funciona" e que os seus arautos propagandeavam, teve, e tem, implicações na distribuição de riqueza, no bem-estar e no emprego, sendo por isso mesmo questões políticas incontornáveis.

Com evidente oportunidade, cita James Mill e remete-nos para a lembrança de que "se o fim do Governo é produzir a maior felicidade do maior número, esse fim não pode ser alcançado fazendo o maior número de escravos" (p. 187).

Trata-se, afinal, como ele escreve, de "pensar a democracia como guardiã da diversidade do pensamento livre e defensora do poder publicamente responsabilizado", o que tornará a sua ética mais capaz, "mais universalmente tolerante das diferentes e conflituosas definições de democracia", capaz, por isso mesmo, de "respeitar a frágil complexidade dos nossos mundos humanos e não humanos" (p. 174).

Ideias interessantes, conceitos discutíveis, num livro que abre novas pistas de discussão e acaba por ser, nessa medida, intelectualmente estimulante.

Adriano Moreira, o totalitarismo e Garrincha entram num bar

Paulo Sousa, 04.11.22

O recente desaparecimento de Adriano Moreira motivou muitos textos de homenagem e de comentários vários, também aqui no DO, sobre quem foi e como contribuiu para a evolução entre o Portugal em que nasceu e aquele que, cem anos depois, o viu partir.

Num desses textos, João Carlos Espada, no Observador, recorda uma explicação prévia dada por Adriano Moreira à dupla pergunta: “O que é ser de esquerda?” e “O que é ser de direita?”. Apesar deste episódio se ter passado nos idos anos 80, a explicação prévia continua actual como se tivesse sido dada hoje.

O totalitarismo não é de esquerda nem de direita — inclui o nacional-socialismo de Hitler e o comunismo de Stalin — eles não estiveram coligados? Na actualidade, o totalitarismo abrange os regimes de Leste, as ditaduras de capitalismo selvagem sul-americanas, muitos regimes do Terceiro-Mundo.”

E a seguir explicou enfaticamente: uma vez definida a diferença fundamental entre totalitarismos (de esquerda e/ou de direita), podemos então conversar tranquilamente sobre as escolhas entre direita e esquerda democráticas: “Serão de esquerda os que dão um papel predominante ao Estado, e de direita os que dão um papel predominante às pessoas e às instituições “.

Alguns psicólogos explicam a devoção pelos totalitarismos como uma patologia assente na vontade de uns dominarem todos os demais, a qualquer custo e sem travão, assim como pela incapacidade de outros em decidir por si, preferindo seguir cegamente quem lhes mostre convicções fortes e explicações simples. Uns e outros, tal como lobos disfarçados de cordeiro, circulam por aí disfarçados de democratas. Uns dizem-se de esquerda, outros de direita, mas, mais do que qualquer outra coisa, são apenas amantes do totalitarismo e não hesitarão um instante em derrubar a democracia para lhe tomarem o lugar.

Nos tempos da comunicação contínua, em que o caudal de estímulos é de uma dimensão que torna impossível digerir tudo o que nos acerta, somos facilmente levados pela nossa natureza e pelos nossos enviesamentos cognitivos. Mais apelativo do que quaisquer factos que precisam de ser ponderados e trabalhados, são as emoções que mais facilmente nos mobilizam e agitam. Os amantes do totalitarismo sabem disso, e não hesitam em armadilhar essa informação contínua de forma a poderem chegar ao poder.

Lívia Sant’Anna Vaz, promotora de Justiça no Estado da Bahia, entrevistada há dias pela Folha de São Paulo, dribla magistralmente o conceito básico da liberdade de expressão. Não se chega ao “Anjo das Pernas Tortas”, que foi Garrincha, mas bem que tenta (perdoem-me a formulação sul-americana).

Questionada sobre como a desinformação tolhe a liberdade de expressão, ela começa por afirmar que “as pessoas”, coitadas, não conseguem aceder a elementos que lhes permita ter o que ela designa como “liberdade de expressão consciente”. Por isso acabam por apenas repetir o que ouvem, “supostamente exercendo a sua liberdade de expressão”, mas que é apenas uma “liberdade de expressão manipulada”. Mostra-se assim preocupada com a “absolutização da liberdade de expressão de grupos hegemónicos”. De imediato, como só um estrábico com um joelho varo e o outro valgo conseguiria, e por isso fez-me lembrar o mítico ponta brasileiro, avança e avisa que “os inimigos da democracia podem estar na própria democracia”. E quando? “Quando nós tornamos em valor absoluto determinados princípios da própria democracia, como a liberdade de expressão”.

Jinga que finge que não jinga e avança, como se de um jogo de espelhos se tratasse, salta rapidamente para deduzir que como a sociedade é misógina, racista e LGBTfóbica, em consequência, isso reproduz-se nas redes sociais. Após mais umas simulações e uns faz-de-conta, lá chega à frente da baliza, e após tão elaborada jogada, remata com um “acaba a ser uma ditadura da liberdade de expressão”.

Quem não conseguiu ver bem por onde é que a bola passou, precisa de repetição, ou do VAR, que me dizem ser a moda actual. E é então no VAR que, deixando o estádio incrédulo, Lívia Sant’Anna Vaz afirma que “a liberdade de expressão é um elemento fundamental da democracia, MAS não se pode tornar num elemento absoluto e minar e destruir a própria democracia”. “Então é importante que a gente tenha limites à liberdade de expressão para concretizar a própria democracia”.

Os finteiros que sugerem uma democracia com limites à liberdade de expressão, não são mais do que totalitaristas disfarçados de cordeiros. É gente perigosa. Adriano Moreira avisou-nos.

Constituições, Liberdade e Democracia

João André, 20.10.22

Ao longo dos anos que me habituei a ler uma crítica à Constituição portuguesa relativamente à sua extensão e especificidade, nomeadamente no que diz respeito a protecções e direitos. O contraponto tende a ser a Constituição dos Estados Unidos, curta, essencialmente simples e concisa, e que permite vê-la quase como uma tela em branco onde se colocam os direitos e deveres considerados importantes em cada era. É uma tese atraente e fácil de compreender e que comentadores e analistas (na sua maioria) de direita apoiam. Os de esquerda (habitualmente) contrapõem que se os direitos não forem explícitos, poderão ser ignorados, esquecidos ou perdidos. Compreendo os argumentos de um lado e de outro e, não sendo jurista (felizmente para mim), não entrarei nessa discussão.

Há no entanto algo que complica hoje a discussão. É mais que claro que constituições longas, muito explícitas e complexas não são ideais. Mesmo no que diz respeito a direitos e deveres, pode-se tomar uma posição que se não foram explicitados no texto não estão protegidos. Quanto mais complexas mais difícil torná-las coerentes e remover aspectos que se tornem obsoletos ou que talvez nunca lá devessem ter estado. Penso que muitas pessoas podem apontar aspectos da nossa Constituição que se adequam a tal descrição.

O reverso da medalha são os problemas que se causam quando as constituições são mais leves e abertas mas dependem da boa fé dos seus actores. Podemos olhar para os Estados Unidos e ver como a má fé de Trump quase corrompeu as últimas eleições presidenciais (e abriu caminho para que no futuro outros o imitem). Também se vê a forma como muitos no Partido Republicano estão hoje a tentar manobrar essa liberdade na Constituição para criar condições para a ignorar, subverter ou alterar, mesmo utilizando caminhos enviesados para tal. Não vou avaliar a exequibilidade de tais esforços (não tenho competências para tal) mas parece crível que possam ser bem sucedidas se certas condições existirem em simultâneo. Se os Republicanos forem bem sucedidos (ou estiverem lá perto), não demorará muito até que os Democratas os imitem.

As notícias de hoje vindas do Reino Unidos também dão que pensar. Num país sem Constituição escrita, vimos hoje a Primeira-Ministra, que não foi eleita nas eleições gerais, a demitir-se ao fim de 45 dias, e o processo a ser iniciado para escolher um sucessor. Este processo será completamente controlado pelo Partido Conservador, que não irá chamar eleições e poderá reduzir em muito o alcance da eleição do seu líder, podendo simplesmente sugerir um par de nomes (escolhidos pelos seus deputados) aos seus membros que poderão ter uma votação uns dias mais tarde. Tudo indica que o Reino Unido terá um novo Primeiro-Ministro, não eleito e potencialmente escolhido com uma base minúscula do eleitorado, a partir do fim da próxima semana.

Não quero com isto atacar as Constituições mais genéricas e abertas e defender as complexas e labirínticas. Apenas questiono se não será tempo de repensar nas Constituições para os tempos modernos. As mais complexas são incompreensíveis para a população comum. As mais simples estão abertas a abusos e subversões. Não levam em consideração os tempos modernos nem a forma como a informação se move hoje. Talvez seja hora de uma convenção das constituições. Não para criar uma constituição específica, mas para pensar naquilo que as constituições modernas devem ser.

Paralelismos

beatriz j a, 10.03.22

Estrangeiros dirigem-se à Ucrânia para formar uma legião estrangeira contra o fascismo de Putin como no século passado o fizeram dirigindo-se a Espanha, pouco tempo antes da Segunda Grande Guerrra, com o mesmo objectivo de lutar contra o fascismo. Para quem estranhe que se faça um diagnóstico de fascista a Putin, sendo um ex-KGB, é só avaliar os sintomas visíveis: populismo; distorção da História para engrandecer o povo; apelo e exaltação dos valores da mística da Nação russa; propaganda de demonização do Ocidente; identificação do Estado ao líder messiânico (ser contra Putin é ser contra a Rússia); identificação do líder com a alma do povo russo; vitimização; fabricação de narrativas de mentira com ocultação sistemática dos factos; agressividade.

Outros povos também tiveram líderes de perfil fascista, alguns recentemente, mas o seu sucesso foi sempre limitado devido a viverem em democracias com instituições que resistiram a esse assalto do poder por uma pessoa e a sua clique, o que é uma razão acrescida para não deixar Putin sair vitorioso desta guerra que impôs à Ucrânia, um país democrático e para reforçar a união das democracias no mundo.

 

publicado também no blog azul

Reforma eleitoral - uma proposta

Paulo Sousa, 04.09.21

No meio da imensa vacuidade com que somos continuamente bombardeados pelos media, terá passado quase despercebida a proposta de Reforma Eleitoral apresentada pela SEDES (Associação para o Desenvolvimento Económico e Social) e pela APDQ (Associação para uma Democracia de Qualidade).

Esta proposta prevê a criação do sistema de voto duplo em que, como o que funciona na Alemanha, cada eleitor possa escolher o partido que prefere, mas também a pessoa que no seu círculo eleitoral quer ver eleita. Desta forma pretende-se criar uma ligação efectiva entre o eleitor e o eleito e limitar as jogadas dentro de cada aparelho partidário e que leva a que cada deputado represente o seu chefe de facção dentro do partido e não quem o elegeu.

De acordo com esta proposta os círculos eleitorais (CE) mais pequenos serão agregados com outros de forma a terem no mínimo oito deputados. Na actualidade, nos CE como o que de Portalegre, que tem apenas dois deputados, a democracia é bem mais pobre que a democracia para os eleitores de Lisboa ou Porto.

A concretização desta mudança não carece de qualquer alteração à Constituição e, por isso, só depende da vontade dos partidos e da abertura que terão para aceitar esta mudança que, a realizar-se, permitirá que tenhamos uma melhor democracia, e que sem dúvida contribuirá também para a redução da abstenção.

Para quem quiser mergulhar em detalhes pode consultar a proposta integral aqui ou uma explicação com o exemplo do CE de Coimbra dada por Ribeiro e Castro, um dos seus autores. 

Liberdade sim, mas só para nós

Pedro Correia, 31.08.21

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Quarenta e sete anos depois do 25 de Abril, chegámos a isto: queremos a democracia para nós enquanto toleramos e até aplaudimos a implantação de ditaduras noutros quadrantes. Tenho pensado nisto enquanto escuto à minha volta várias vozes mostrando indiferença ou até um discreto regozijo pela queda do regime de Cabul, substituído pela sinistra turba talibã.

Ao ouvir isto concluo, uma vez mais, que pecamos por falta de apego à liberdade. Tenho a convicção de que muitos portugueses não se importariam de voltar a ver por cá um regime "musculado". Só isso explica a defesa que fazem, nas redes sociais, dos regimes autoritários ou ditatoriais implantados além-fronteiras.

O mais contraditório é que muitas das pessoas que emitem opiniões deste género estão sempre a enaltecer o "nosso" 25 de Abril. Enquanto negam que outros povos tenham o seu próprio 25 de Abril. Democracia aqui, tudo bem; ditadura noutros países, tudo bem também.

«Não me venham falar em direitos humanos», vou lendo e escutando demasiadas vezes. Frase que poderia ter sido proferida por Salazar, reeditada neste Portugal do século XXI. Como se a atracção pelos regimes de "pulso forte" estivesse inscrita no nosso código genético. E se calhar está mesmo.

Como evitar a armadilha?

Paulo Sousa, 08.06.21

O mundo observado por apenas um individuo é um mundo amputado da contribuição das observações dos outros indivíduos. Por isso, alguém que tenha de avaliar sozinho o que o rodeia, e depois decidida com base no que observou, corre um enorme risco de tomar decisões erradas.

A história da humanidade que antecede o recurso regular ao método científico é uma sequência de decisões baseadas em palpites, instinto e paixões. As grandes figuras da história que antecede a ciência não terão sido mais do que indivíduos que acertaram nos seus palpites, que tinham os instintos apurados ou foram capazes de mobilizar multidões.

A aparente simplicidade de tomar um comprimido que previne uma doença, de assistir em directo ao que decorre no outro lado do mundo, ou noutro planeta, através do écran de um telemóvel, ou ainda de aprender a tocar um instrumento, ou a instalar um ar condicionado através de um canal no YouTube, encerra e exigiu mais entendimento, colaboração e partilha do que qualquer grande feito da antiguidade.

O desenvolvimento, produção e distribuição em tempo recorde de vacinas como as que estão a ser administradas contra a Covid, e que se têm revelado eficazes em controlar esta doença, são mais um exemplo disso mesmo. Temos como adquirida uma capacidade científica e logística impensável há poucos anos e, distraídos, nem reparamos que isso ascende à escala do maravilhoso.

A observação individual da realidade incorre num enorme risco do que pode ser designado por enviesamento cognitivo. A decisão desprovida de método leva a escolhas baseadas em atalhos e a preconceitos a que recorremos sem que disso tenhamos noção. Basta comparar a publicidade de há umas décadas atrás com a actual, e será fácil de entender como os publicitários se tornaram exímios em explorar as nossas limitações. Antes explicava-se e argumentava-se porque é que se devia escolher um produto, mas hoje recorre-se apenas a mensagens garridas, com elementos cativantes, cores fortes, sons apelativos, frases curtas e simples, corpos quase despidos e insinuantes. Perante eles a lógica e o bom senso são facilmente esmagados.

A exploração destes nossos mecanismos é também uma das bases de trabalho dos que designamos por políticos populistas. As mensagens simples, simplistas, as medidas imediatas que não exigem análise nem método, assim como as soluções fáceis que prometem resultados instantâneos, mobilizam mais rápida e facilmente do que as demais.

A exploração destas nossas limitações cognitivas por parte de políticos ávidos de poder, passo a redundância, são um desafio às democracias liberais. Se nos perguntarem qual a maior ameaça a que a democracia portuguesa está sujeita, fácil e rapidamente respondemos que esse risco vem de fora do sistema, mas numa análise mais cuidada ficamos então sem entender o que é que aconteceu para que o sistema, por si só, já esteja em regressão. Quem o diz é o relatório anual publicado pela revista The Economist. De democracia plena em 2019 fomos despromovidos para a classificação de democracia com falhas em 2020.

Alguns dos motivos que levaram a esta regressão estão descritos no referido artigo. Falta, no entanto, abordar a indiferença com que se aceita esta regressão. A já designada crispação de política portuguesa, não é mais que uma tribalização iniciada há uns anos. Entendeu-se ser politicamente interessante queimar pontes, e explorar a ideia de estanquicidade da decência, que existe apenas no nosso lado da barricada. Isso não é mais do que uma exploração de um enviesamento cognitivo do bicho gregário que somos. Somos nós contra eles, e assim torna-se fácil decidir o que está certo e errado. Nesta linha, que procura apenas o beneficio de curto prazo, faz sentido dinamizar a promoção mediática de um javardo, e é a isso que temos assistido.

E como é que se pode ultrapassar esta armadilha?

Em França e na Irlanda foram feitas algumas experiências recorrendo ao que podemos designar como Assembleias de Cidadãos. Um grupo de pessoas, imaginemos uma centena, é escolhido aleatoriamente, com a preocupação que seja representativo da diversidade da sociedade. O grupo é moderado por um orador que define a regras, apresenta e enquadra os temas em debate. Os resultados foram surpreendentes. Cidadãos comuns mostraram ser capazes de entendimentos negociados, cara a cara, sem o anonimato e o ruído das redes sociais. É possível que o estado, em vez de temer os seus cidadãos, possa confiar neles? São os cidadãos suficientemente adultos e capazes para que possam participar nas decisões? E não estamos a falar em democracia directa, estamos sim a procurar alternativas ao retrocesso a que seremos levados se simplesmente encolhermos os ombros perante o que está a acontecer.

A liberdade não tem donos

Pedro Correia, 22.04.21

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Manifestação salazarista (27 de Agosto de 1963)

 

Só em ditaduras existem praças e avenidas com proprietários privados. Era assim o Terreiro do Paço no tempo de Salazar: ali se organizavam as grandes manifestações em apoio do regime.

Só em ditaduras existem datas com donos. Era assim o 10 de Junho, alegado "Dia da Raça", no tempo de Salazar.

Em democracia, nenhuma data do calendário civil tem proprietário privado. Muito menos o 25 de Abril, que não assinala só a Revolução dos Cravos: celebra também o aniversário do primeiro dia em que os portugueses disseram o que queriam em sufrágio livre, directo, secreto e universal.

Em democracia, nenhuma avenida tem dono. Muito menos a Avenida da Liberdade.

Não de todos: só da maioria

Pedro Correia, 10.03.21

O Presidente da República não tem de ser "de todos os portugueses": esta foi uma fórmula encontrada em 1976 por António Ramalho Eanes, num contexto histórico muito específico, quando o regime democrático estava a definir os seus contornos e o País escapara à tangente de uma guerra civil que só poderia ter consequências devastadoras. Isabel II é que é a soberana de todos os britânicos, Naruhito é que é o imperador de todos os japoneses. Eis uma das diferenças essenciais entre monarquia e república: um Presidente não pode, e em muitas ocasiões não deve, esconder as suas convicções. Em Portugal compete-lhe - isso sim - cumprir e fazer cumprir a Constituição: se necessário, contra uma parte dos portugueses. Só isto. Que é tudo.

A gravidez e o gato de Schrödinger

Diogo Noivo, 07.03.21

No nosso vizinho Estado Sentido, o Samuel de Paiva Pires assina um interessante 'postal' sobre a relação tortuosa de parte da direita nacional com o Partido Comunista Português. Muitas das razões aduzidas parecem-me acertadas, desde logo porque bem fundamentadas.

Contudo, creio que o argumento coxeia quando argui que o respeito dos comunistas pelas regras do jogo demoliberal basta como credencial democrática. Discordo: no quadro de um Estado de Direito, a aceitação das normas e procedimentos democráticos constitui um mínimo olímpico. De resto, os partidos e movimentos que os rejeitam são normalmente proibidos por disposições constitucionais.   

As democracias não se distinguem dos demais regimes por força dos procedimentos que adoptam, mas por via dos valores e princípios nos quais se sustentam. Dito de outro modo, o voto e os parlamentos não são exclusivos de regimes democráticos, mas os direitos, liberdades e garantias sim. Acresce que as convicções democráticas, tal como a gravidez, operam numa lógica binária: ou existem, ou não existem. Não dá para estar mais ou menos grávido.

O que nos leva de volta ao PCP. É evidente que os comunistas portugueses aceitam com zelo e escrúpulo os termos do jogo demoliberal, embora a forma como se pronunciam sobre violações gravosas de Direitos Humanos noutras latitudes nos faça duvidar da sua adesão aos valores e princípios nos quais se fundam as democracias. De facto, do comunismo português sobrevém o paradoxo de ser democrático dentro de portas e manifestamente autoritário noutras paragens. É o nosso gato de Schrödinger.

Tem razão o Samuel quando escreve que parte da direita portuguesa ainda não percebeu que o muro caiu. Porém, o “Fim da História” não foi exactamente o prometido. As democracias europeias estão sob acosso à esquerda e à direita, donde importa defender a adesão aos valores democráticos, pois a aceitação dos procedimentos resume-se muitas vezes a lip service. Há, de facto, muita gente que não percebeu 1989, mas não estão todos na direita.