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Há leis que deviam envergonhar os legisladores. Se essas leis são aprovadas na Assembleia da República sem sequer um honroso voto contra, a vergonha aumenta. E quando o Presidente da República - supremo vigilante dos direitos, liberdades e garantias - as promulga sem sombra de hesitação, a vergonha redobra.
Aconteceu a 17 de Maio, com a aprovação da Lei 27/21 no hemiciclo de São Bento - um diploma com o pomposo (e algo ridículo) título de Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital. Com votos favoráveis do PS, PSD, BE, CDS e PAN, e abstenções do PCP, PEV, IL e Chega.
No seu artigo 6.º, esta Lei condiciona a liberdade de imprensa, tornando-a pasto de tentações autoritárias de qualquer governo de turno. Cinicamente, a pretexto do reforço do exercício da cidadania e do jornalismo.
Em vez de incentivar a auto-regulação dos meios de comunicação social, tenta impor-lhes cangas administrativas através de um órgão composto por comissários políticos e moços de fretes ao serviço de estruturas partidárias.
Em vez de reforçar a isenção e a independência das empresas editoriais, tenta impor-lhes controleiros e certificados de bom comportamento a pretexto da instituição de mecanismos de verificação de factos. Cinicamente, uma vez mais, invocando um louvável motivo: o combate à desinformação e ao boato tornados notícia.
Li com atenção este artigo 6.º, que me suscita sérias reservas e as objecções que sintetizo aqui:
«O Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Acção Contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou colectivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou dinfundam narrativas consideradas desinformação.» (art. 6.º, n.º 1)
Este dispositivo legal, em interpretação extensiva, permitiria reintroduzir em Portugal a Comissão de Censura, justificada aliás, em termos legais, com terminologia semelhante à que vigorou no salazarismo. Destinada a "proteger" os incautos cidadãos, colocados sob a asa vigilante do Estado paizinho e protector. A expressão "narrativas" deixa evidente que já não está só em causa a componente noticiosa dos conteúdos informativos: há via aberta para o delito de opinião. Não este blogue, mas o delito mesmo.
«Considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja susceptível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos.» (art. 6.º, n.º 2)
Dizendo-se proteger a democracia, os legisladores condicionam seriamente a democracia. E lesam uma das principais receitas dos órgãos de informação: toda a actividade publicitária, "criada para obter vantagens económicas". Algo tão simples como "Omo lava mais branco" corre risco de interdição. Esta linguagem ambígua, imprecisa e vaga propicia a criação de um Ministério da Verdade de inspiração orwelliana. Endeusando e glorificando as "políticas públicas", eufemismo para o exercício da actividade governativa.
«Todos têm o direito de apresentar e ver apreciadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social queixas contra as entidades que pratiquem os actos previstos no presente artigo.» (art. 6.º, n.º 5)
Compete aos tribunais, mediante apresentação de queixas-crime, ajuizar sobre eventuais abusos da liberdade de imprensa. Não à ERC, entidade que não emana de qualquer poder auto-regulador da actividade jornalística nem tem vínculos ao poder judicial: é mero órgão administrativo, com membros nomeados pela Assembleia da República e que age ao sabor das conveniências políticas. Basta lembrar que um dos seus presidentes, Azeredo Lopes, viria depois a exercer funções de chefe de gabinete do presidente da Câmara Municipal do Porto (com Rui Moreira) e de ministro da Defesa (com António Costa).
«O Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública.» (art. 6.º, n.º 6)
Compete aos próprios meios de comunicação social, mediante o cumprimento do Código Deontológico em vigor, avaliar em permanência a veracidade dos factos antes da publicação de qualquer notícia. O Estado não tem vocação para o exercício do jornalismo, mas para a instituição de mecanismos de propaganda. Os "selos de qualidade", equiparando órgãos de informação a restaurantes recomendados, são insultuosos para o jornalismo ao instituir certificados de bom comportamento - isto é, de respeitinho e veneração ao poder político.
Esta lei vergonhosa, que infelizmente o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa já promulgou, só entra em vigor no dia 27 de Julho. Ainda há tempo para travá-la, suscitando a apreciação da constitucionalidade.
Vem a propósito lembrar o artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa: «Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de se informar, sem impedimentos nem discriminações. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.»