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Delito de Opinião

Comer (11)

Sem pressa, no Clube Naval da Ericeira, onde o peixe é rei

Pedro Correia, 19.08.23

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Verão, para mim, é sinónimo de peixe em termos gastronómicos. Assado, cozido, estufado. Em escabeche, em caldeirada. Mas sobretudo grelhado: cherne, garoupa, robalo, dourada, sargo, solha, peixe espada - o que houver vindo da lota. Em zona balnear, de preferência. Com mar à vista.

Assim fiz, assim tenho feito, num dos meus poisos favoritos: o Clube Naval da Ericeira. Situa-se em zona adjacente ao porto de pesca da vila que tão generosamente me acolhe há um par de anos. 

Condição obrigatória: chegar cedo. Vai-se formando fila à porta, a partir do meio-dia e pouco. Ouvem-se conversas de circunstância dos frequentadores habituais, sábios conhecedores do que ali se petisca.

Impera a boa disposição. O tempo convida a relaxar.

Não é espaço para sofisticações. Nem para aquela comida da moda - com fusões, tofu, muita rúcula, muita espuma que parece ser da barba, fruta tropical misturada com leguminosas e tretas do género.

Tudo clássico, à moda antiga. Pratos do dia escritos a giz num quadro, as gaivotas rondando quase como animais domésticos.

Alargando o olhar, confirmo: aqui o mar é mais azul.

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Há choco à lagareiro, sardinha assada, carapaus. Nos pratos de carne, nem reparo.

Vou para o linguado grelhado: é o que me está a apetecer. Ali ao lado os pescadores reparam as redes, secam peixes em estendais, trocam dois dedos de conversa: a faina do dia está cumprida. 

A casa já encheu. 

Vem para a mesa um jarro de vinho branco - fresco, não gelado. Como mandam as boas regras. Em sequência lógica, surge um queijinho fresco com o magnífico pão local. Confirmo: estou numa das zonas do País onde há melhor pão.

Lição fundamental à mesa em férias: mastigar bem, saborear, aproveitar cada momento prolongando o prazer de partilhar refeições sem agenda profissional para cumprir. Há quem não saiba desligar-se do ritmo laboral, sem perceber como é indispensável fazer pausas para que o trabalho renda plenamente. 

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Chega então o linguado. Vem como gosto: grelhado no ponto certo.

Em Portugal, quase todos se gabam de saber grelhar peixe. Estão profundamente equivocados: abundam os locais, alguns até com fama, em que a grelha mal calibrada ou um cozinheiro negligente secam o peixe, retirando-lhe o suco natural.

Aqui há manifesta competência nesta função: excepto as espinhas, nada se desaproveita deste elegante bicho que há menos de 24 horas nadava no oceano. Até a pele. 

Casa muito bem com as batatinhas cozidas com casca, o feijão verde que serve de complemento e a salada fresca temperada com abundante azeite, um golpe de vinagre, umas gotas de limão.

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A praia, ali a dois passos, pode esperar. A tarde é longa, há sol até depois das oito. 

Nada de pressas, como se tivéssemos todo o tempo do mundo.

Faz parte da magia do Verão: é quando mais vezes somos invadidos pela doce ilusão da eternidade. 

Hei-de voltar ao Clube Naval. Tem lugar cativo no meu roteiro gastronómico. Ponto de romagem sempre que as saudades do bom peixe apertam.

Doses fartas. A preços imbatíveis.

Por mais vezes que regresse, a conclusão é sempre a mesma: daqui nunca saio desiludido.

 

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Uma bifana no Porto

jpt, 26.06.23

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Vim ao Porto. O motivo oficial para isso foi um outro, mas o verdadeiro era uma pesquisa. Pois o blog Gastronautas publicara há pouco tempo um Manifesto apologético das bifanas da consagrada Cervejaria "O Astro", sita ali mesmo em Campanhã. Acorri logo que chegado, mas para enfrentar a desilusão do "estabelecimento encerrado para férias do pessoal", hiato anunciado até 25, o domingo de ontem. Eu regressaria à moirama na sexta-feira seguinte, tombei cabisbaixo.

Os dias passaram. Neste Porto, que em eras antigas justificou o cognome "Invicta", a derrota é agora iminente, ainda que prossigam ferozes combates rua a rua, casa a casa, homem a homem. Mas se às forças locais, traídas pelo generalato nacional, ainda assiste alma, escasseiam já os recursos, desabam as trincheiras. Sobre os escombros de Porto Cale chorei diante de viçosos "pizzaria - sushi", "wine bar", "hamburgarias" e, até, "empanadas argentinas"... 

Por tudo isto, em assomo patriótico prolonguei por uns dias a minha estada a Norte de Gaia. E hoje mesmo, atrevendo-me entre a artilharia de kebabs, cariladas, goulash, spare ribs, chinoiseries e japonices, regressei a Campanhã, fiel seguidor dos Gastronautas. E confirmo, a bifana da "O Astro" é Invicta.

As tripas no Porto

jpt, 21.06.23

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há alguns anos deixara eu um escrito narrando a minha iniciação às tripas portuenses, aquela sempre ansiada, mas também temida de angustiada, “primeira vez”. Fora-me tardia, já proto-cinquentão. Então homem feliz - ainda que nisso matizadamente, dadas as reservas face ao mundo e ao destino, próprio e alheio, devidas a quem se imagina(va) intelectual -, pois de família, viera de Maputo nesse vigente presépio mostrar o Porto avoengo à petiza Carolina. Num desses dias de andanças visitámos aquela Serralves, pausa dita obrigatória em todos os roteiros, e até assim sentida pelo então quase-jovem Zé Teixeira, esse que fora já, imagine-se, “curador” e anunciado como “especialista” em coisas de artes. Enfim, dessa pose armado lá calcorreei, decerto que palavroso maçando amadas mulher e filha, as esquecíveis (e esquecidas) serralvices então apostas. Fôramos nisso surpreendidos pelo almoço, ao qual nos dedicámos em pleno restaurante da “fundação” (sinónimo de “serralves” no dialecto local, equivalendo ao “pingo doce” do linguajar lisboeta). E nesse elegante bufete deparei-me com um dístico anunciando as célebres “tripas à moda do Porto”. Avancei nisso, claro, para me desiludir num genuíno “ora esta!?, isto é apenas uma dobrada!!!”. Desse episódio dei conta publicamente, causando ira entre arreigados… tripeiros, que me invectivaram a opção serralvística e afiançaram a artificialidade falsária daquelas putativas “tripas”. 

Passaram os anos, uma década talvez, entretanto desabou-me a pose, a essência e os adornos. Mas para alguns ficou, indelével, a nódoa daquela ofensa. E ontem obrigaram-me a uma penitência, longa qual Calvário. Para esse efeito fui convocado para o restaurante O Rápido, que me afiançaram ser o verdadeiro produtor do arquétipo das tais tripas. Apresentei-me, ao encontro do Zé Carneiro Pinto e do Jorge Romualdo, aos quais não via há uma década, desde Maputo - e ambos estão com o saudável ar de quem frequenta, amiúde, os melhores restaurantes da cidade, e arredores, isto enquanto lá a Sul eu vou mirrando, até já engelhado. 

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Seja dito que ao leme esteve o José Pinto, reservando-se o Romualdo à função de imediato algo contestatário. O processo foi encetado por umas “entraditas”, que consistiam nuns bolinhos (como eles aqui chamam aos pastéis) de bacalhau - que eu avalizei como deliciosos mas que o Jorge considerou não estarem tão bons “como de costume” -, um “pratinho” (!) de salpicão, exigido pelo Jorge, de excelência, daquele que logo sentimos mesmo a entupir as artérias. E acima de tudo, umas tripas enfarinhadas, algo de que eu nem sequer ouvira falar, um petisco verdadeiramente pecaminoso. Tudo isto foi acompanhado de um verde branco AJTS, uma breve garrafa que veio a ser substituída, devido à contestação (mais uma) do Jorge, por um branco do Douro, Maritávora n. 5, cuja qualidade é inversa à fealdade do nome.

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O branco duriense escoltou até à mesa o caldeirão das tripas. O qual umas horas depois veio a ser reforçado - “este tipo vem de Lisboa para repetir três ou quatro vezes!”, recordo ter sido um dos simpáticos tópicos da conversa do Romualdo… Não posso indexar os seus componentes, tal a profusão constituinte, mas comprovo a saborosa viscosidade de narizes, entranhas, entrefolhos e quejandas parcelas que envolviam os feijões, empanturrado-me eu, desvanecido, enquanto o arquitecto Romualdo exarava um compungido “não, isto não está tão bom como de costume!!!…”. Entretanto aparecera à mesa, dando-se assim a conhecer, o João M Taborda, há pouco chegado de Nampula, que nem sessenta anos ainda passaram…, o qual se furtou às tripas, com o álibi de provir de uma outra almoçarada, mas que ainda bebericou um vinho, tal como depois comeu uns pastéis - aos quais esqueci o nome -, e ainda uns outros mimosamente ditos "matateus", excelsa doçaria que ali veio convidada apenas para acompanhar um espumante bruto, dito Ortigão, e também não se tendo negado ao cálice, verdadeiro dedal, de aguardente que foi nosso corolário.

Em suma, magnífico almoço, maravilhosas, viscerais até, tripas. Momento inolvidável. E o preço?, perguntarão os mais meticulosos. Como bem sabem os que acompanham no blog (e no FB) a minha filha e a minha irmã insistem para que não escreva eu palavrões…

Comer (6)

"Müla", em Alvalade, com bênção de Santo António

Pedro Correia, 26.06.22

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                   Arroz de galo e cogumelos                                                  Arroz nero com camarão, lula e amêijoa

 

Ainda existe algum preconceito contra restaurantes situados em centros comerciais. Como tantos outros, também este não tem o menor fundamento. Foi nisto que pensei ao visitar o acolhedor Müla, recém-inaugurado no espaço exterior do centro comercial Alvalade, em Lisboa.

Aludir a espaço exterior parece mero pormenor, mas não é. Faz toda a diferença, um restaurante ter esplanada. Esta é aprazível, numa varanda com visão panorâmica da Praça de Alvalade, a que alguns chamam "praça do Santo António", apontando a estátua do célebre alfacinha que chegou a doutor da Igreja, concebida pelo escultor António Duarte e erguida em Outubro de 1972.

Ignoro por que motivo o restaurante se chama Müla - assim mesmo, à alemã, com trema. Mas tem pelo menos a vantagem de ser um nome que se fixa de imediato. Está colado ao Mercantina, ali existente desde 2013 e que já se tornou referência entre os comensais do bairro, vocacionado sobretudo para comida italiana.

 

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A esplanada, com 40 lugares, é espaçosa. Sem o defeito, frequente em tantos outros poisos, de ter as mesas do lado demasiado próximas da nossa.

Aqui a comida tradicional portuguesa alia-se a sabores sul-americanos, com incursões na culinária espanhola. Havendo aposta deliberada em petiscos, que podem ser apreciados a partir das cinco da tarde. 

Já lá fui três vezes - e nunca saí decepcionado, longe disso. 

Na primeira, arrisquei bastante para noite de estreia. Optando por um prato que muito aprecio mas raras vezes consumo longe do Alentejo: sopa de cação. Passou no teste, com nota positiva. Pela espessura do caldo, pelo casamento do peixe com os coentros e pelo magnífico pão alentejano que lhe serve de complemento.

Na segunda incursão, decidi-me pelo arroz de galo e cogumelos em forno a lenha com manteiga de tomate seco e queijo da ilha. Imaginativo, ambicioso e suculento: teste superado também. Pela qualidade dos ingredientes e pelo esmero na confecção. A impressão muito favorável consolidou-se na terceira visita, quando experimentei um louvável arroz nero em forno de lenha com camarão, lula, amêijoa, mexilhão e tomate confitado. Respeitando os pergaminhos mediterrânicos que lhe servem de referência e daí rumaram à América de expressão castelhana. 

Os gulosos têm boas opções à escolha. Da acolhedora mousse de chocolate com praliné de avelã, azeite e flor de sal ao capitoso cheesecake da ilha, com goibada e bolacha de manteiga queimada - que deve ser partilhado para evitar excessos calóricos. Também a tarte de lima merengada justifica boa nota.

 

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Cheesecake da ilha com goiabada

 

Enfim, um local a que apetece regressar. Até por ser inspirador de boas conversas. Precisamos de recuperar a arte do convívio, que anda a ser desprezada nesta era em que tantos preferem passar o tempo de olhos fixos num ecrã. Esquecidos de que há mais mundo para além dos dispositivos tecnológicos e daquilo a que erradamente chamamos "redes sociais".

Verdadeira rede social é a que se estabelece em torno de uma mesa.

Comer (3)

"Nortada", na Praia Grande: paisagem inigualável

Pedro Correia, 05.06.22

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Por estes dias, como creio já ter dito, é muito raro comer fora. Cozinho quase sempre e sem sacrifício algum. Cozinhar tornou-se um dos meus passatempos favoritos. É um desafio que começa antes de me aproximar do fogão: também gosto de elaborar ementas, de preparar os ingredientes, de descobrir novas receitas. É algo que me relaxa enquanto me desafia não apenas na criatividade mas também na precisão: um minuto de diferença, a mais ou a menos, pode estragar um prato. 

Foi este o desafio que lancei a mim próprio ao iniciar-me nestas lides. Jurei jamais recorrer a um restaurante como via alternativa (tenho sete a poucos metros da porta de casa). Comeria sempre o que fizesse, fosse qual fosse o desfecho. Esta exigência pessoal reforçou a necessidade de me safar bem entre caçarolas e frigideiras.

 

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Mas por vezes abro uma excepção. Aconteceu há poucos dias: quis matar saudades de um dos meus restaurantes favoritos. O Nortada, a curta distância da Praia Grande, no concelho de Sintra.

Há uns tempos que lá não ia. Soube-me bem contemplar de novo aquela paisagem inigualável, na sala exterior do restaurante. É cenário que nunca me canso de desfrutar, mesmo em dias de Primavera envergonhada.

Sala espaçosa, desafogada, inundada de luz, com amplas vistas sobre o jardim adjacente e o oceano um pouco mais abaixo. Toalhas de pano - hoje quase um anacronismo. E talheres de peixe, como mandam as boas regras. Serviço irrepreensível.

A nosso lado, um pequeno grupo de italianos fazendo jus à gastronomia lusitana. À mesa, poucos como eles sabem apreciar o que é realmente bom.

 

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Começámos por partilhar uma entrada soberba, só disponível naquele dia: tártaro de atum com manga. Casamento perfeito entre o peixe cru, marinado com sapiência, e o doce fruto tropical. Por ser dia de aniversário, justificava-se a escolha de um vinho especial: veio o Cartuxa, um dos meus brancos de eleição.

Seguiram-se filetes de pescada com arroz de berbigão: polme discreto, sem vestígio de gordura em excesso, confecção apuradíssima da popular gramínea que alimenta metade da população do mundo. Seco, consistente, apaladado. É assim que gosto dele.

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Depois fizemos honras ao polvo assado com batata doce - confesso que raros petiscos me mobilizam tanto como o octópode, que congrega adeptos de norte a sul do país. Tenro e sápido, em perfeita comunhão com a batatinha de Aljezur a que apetece dedicar um hino.

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Aniversário justificava sobremesa: compareceu um magnífico leite creme em massa filo. Para encerrar a refeição com chave de ouro.

 

Despedi-me do Nortada com um "até já". Fazendo votos para que nunca figure num guia Michelin. Prefiro-o assim, sem ceder a padrões alheios, tão avessos à nossa tradição gastronómica e tão propícios a preços que se tornam proibitivos.

Para que possa haver outros dias de celebração como este. Com sol ameno e o mar amigo ali tão perto, num cíclico sussurro de parabéns.

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Delito à mesa (18)

Pedro Correia, 20.08.20

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Peixe fresquíssimo no extremo sul, onde a terra acaba e o mar começa. Aqui é aconselhável evitar o pecado da carne.

 

Sim, é verdade. Os olhos também comem. Quando o panorama é soberbo, como sucede aqui, o apetite desperta com mais vigor. Estamos nas imediações de Lagos, no alto de uma falésia. Lá em baixo, a bela praia do Camilo. Cá em cima, o restaurante homónimo. Aberto desde 1980, há nove anos nas mãos do actual proprietário. Que se preocupa em acorrer ao mercado, ainda o sol é mal nascido, em busca do peixe mais fresco. Nada de produto de viveiro.

 

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Corvina grelhada, horas depois de sair do mar

 

Chego cedo, reservei lugar de véspera: é fundamental telefonar a marcar mesa. Na chamada época alta, como se presume ser a actual, a lista de espera pode ser longa: só há cerca de 40 lugares sentados n’ O Camilo distribuídos entre a sala interior, com amplas vidraças sobre o mar, e a esplanada, noutros anos atulhada de turistas – em grande parte ingleses, agora quase desaparecidos do litoral algarvio. Muitos sem fazerem a menor ideia da riqueza piscícola aqui disponível: mandam vir, por exemplo, costeletas de carneiro. Como se estivessem ancorados num pub britânico em vez de disfrutarem de bom ar e bom clima num dos recantos da Europa onde se come melhor peixe.

      

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                      Sopa de peixe                             Tarte de limão

 

À entrada, um amplo mostruário do pescado do dia. Quem quiser, basta escolher. Aconteceu comigo: apontei para uma enorme corvina recém-chegada. Pedi que me fornecessem uma posta, bem grelhada. E assim veio à mesa, na companhia de batatas cozidas e legumes salteados, tudo em recipientes autónomos.

Noutra incursão, optei pelo bife de espadarte - que chegou igualmente bem acompanhado, em dose generosa: ninguém sai com fome daqui. Sobretudo se iniciar a refeição com uma sopa de peixe, bem fornecida de material piscícola. Recomendo.

 

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Um senão: ainda não me habituei a comer peixe com talheres de carne, como aqui sucede. Será a nova moda – tal como dispensar toalhas na mesa. Lamento: não faz o meu género.

Mas o essencial é a qualidade da matéria-prima. E neste teste O Camilo passa com distinção. Apostei num branco algarvio, o Paxá, e fiz bem: funcionou como adequado actor secundário para fazer brilhar ainda mais a corvina. Na segunda visita, pedi um rosado algarvio, a copo: Barranco Longo, uma boa surpresa para quem não conhece. 

O preço – contemplando ainda uma tarte de lima que superou a prova – foi uma agradável surpresa. Em qualquer outro país europeu com panorama similar, pagaríamos talvez o dobro. Valeu por uma sinfonia em homenagem ao oceano que o Infante D. Henrique tantas vezes dali avistou.

 

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Restaurante O Camilo

Praia do Camilo, Lagos

Telefone 281 322 050

Não encerra

Pequenas vaidades

Pedro Correia, 30.01.20

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Ao longo de muitos anos no jornalismo entrevistei líderes partidários, ministros, deputados, artistas, escritores, actores, prémios Nobéis, celebridades várias: Jorge Amado, Bjorn Borg, Peter Ustinov, Alvin Toffler, Fernando Arrabal, Ramos-Horta, José Saramago, Julião Sarmento - só para citar uns quantos. Tenho autógrafos concedidos em missão profissional por todos os jogadores da selecção portuguesa que ficou em terceiro lugar no Europeu de Futebol em 1984 (saravá, Rui Jordão!) e de Maurício de Sousa (sim, o criador da Mônica e do Cebolinha, uma simpatia de pessoa).

Nunca me envaideceu o convívio com gente que - para utilizar a bela expressão de Camões - se vai da lei da morte libertando. Nem as centenas de notícias que levei às primeiras páginas em onze jornais ou revistas. Nem os muitos "prémios cacha" que ganhei no Diário de Notícias quando era liderado por esse grande director (e um inesquecível ser humano) chamado Mário Bettencourt Resendes, tão cedo desaparecido. Sempre considerei cada momento desses como mais um dia no trabalho. "Business as usual", na sagaz e concisa fórmula norte-americana.

 

Mas confesso-vos uma pequena vaidade: ter o meu nome associado, enquanto jornalista, a dois restaurantes que muito prezo. O Poleiro, em Lisboa, e a Adega Vila Meã, no Porto. Lá estão, emoldurados nas paredes, textos meus alusivos a estas casas de bem-comer.

O da adega portuense, datado de 2019, só há pouco o vi, na minha mais recente visita à Invicta, era o primeiro sábado deste ano. Ia com vontade de matar saudades do cabrito assado no forno, mas já não constava do cardápio. Optei então pelos filetes de polvo com arroz do dito. Era dia de muita afluência, a hora já a pender para o tardio, diz-me a patroa que chegara ao fim. Expressei um lamento. Ela faz uma rápida incursão à cozinha e diz-me que ainda se arranja meia dose de meia dose. Mais que suficiente para mim. «Venha ela», ordenei.

Meia dose ali, como sabem os comensais, dá para encher o papo. E meia dose de meia dose, digo-vos eu agora, também. Voltei a fazer jus à fama e ao proveito do estabelecimento, ali tão discreto na baixa do Porto. Ao sair, descubro o meu texto já consagrado na parede, à vista de quem lá vai.

Sorri para dentro: eis talvez o único troféu que gosto de exibir na profissão.

 

É a hora de pagar, alguém avisa a patroa lá do fundo, na cozinha: «É a minha filha a dizer-me para não me esquecer de só lhe cobrar a meia dose da meia dose.»

Saravá, Adega. A partir de agora és um pouco minha também.

Delito à mesa (17)

Pedro Correia, 14.12.19

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Uma das salas do Medieval

 

As cidades também nos conquistam pelo estômago: eis dois restaurantes clássicos de Évora agora revisitados para proveito de quem não anda em busca de modernices de importação nem da última moda mastigatória.

 

Já não é a primeira vez que menciono isto: considero Évora uma das capitais da gastronomia portuguesa. Regresso sempre com a certeza antecipada de que farei por cá refeições dignas de guardar na memória. E a convicção reforçada de que as cidades também nos conquistam pelo estômago.

Volta a acontecer-me. Comecei por matar saudades do Dom Joaquim, que já apresentei aqui: lá me esperava desta vez uma salada de camarão com papaia e manga (entrada), seguida de terrina de bochechas de porco estufadas em vinho tinto com esmagada de batata trufada e legumes salteados.

Mantém o patamar de excelência que me levou a elegê-lo como melhor restaurante da nobre e bela urbe alentejana.

 

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Superada a prova inicial com gosto e proveito, em dias subsequentes tenho lançado âncora noutras enseadas gastronómicas eborenses, aproveitando esta época em que por cá se circula com muito mais tranquilidade e desafogo do que nos Verões recentes, insuflados de turismo internacional.

Permiti-me revisitar o Medieval, um dos meus portos de abrigo na cidade, chova ou faça sol. Sei de antemão, por experiência acumulada, o que encontro nesta casa: genuína comida tradicional do Alto Alentejo, sem concessões a modernices de importação nem às mais recentes modas mastigatórias.

Antecipo um conselho: evitem trazer pressas. A cozinha cá do burgo tem o seu ritmo muito próprio de elaboração, nada condizente com o frenesim lisboeta daqueles que chegam afogueados e pedem «o que estiver mais pronto a sair» porque têm o carro «mal parado», não desgrudam os olhos do telemóvel e alegam «não ter tempo a perder com refeições».

Coitados. Sabem lá eles o que é perder ou ganhar...

 

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Migas com carne de porco preto

 

Abanquei aqui pronto a matar saudades das típicas migas com carne de porco preto. Ele, o bicho, com fritura adequada. Elas como eu gosto: moldadas com água a ferver numa massa de pimentão e alhos pisados, depois douradas em frigideira ou tacho de barro antes de rumarem à mesa.

Casamento perfeito. E abençoado com um jarro de tinto da casa, oriundo da região de Borba.

 

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Noutro dia, pousei n' O Trovador. Menos popular e mais sofisticado do que o anterior, mas respeitando os pergaminhos gastronómicos locais. E mantendo a atmosfera caseira que tanto aprecio nestas incursões.

Aqui optei pela clássica sopa de cação, prato que só consumo no Alentejo. Chegou à mesa em dose abastada, convenientemente repartida: travessa reservada ao peixe cartilaginoso, parente dos tubarões, e a terrina onde repousava o caldo - numa base de azeite, cebola, alho, louro e abundantes coentros - e generosas fatias de bom pão de trigo alentejano.

A mistura é feita no prato, ao gosto de cada um.

Garanto-vos: em qualquer dos casos, apetece regressar. Não só pela qualidade do que se come mas pelo módico preço que se paga. E pelo incomparável sossego que se desfruta: o tempo aqui rende sempre mais.

 

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Sopa de cação

 

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Restaurante Medieval                                                                                     

Rua do Raimundo, n.º 47, Évora.

Telefone 266 744 116.

Horário: 10.00-22.00. Encerra à segunda-feira.

 

Restaurante O Trovador                                                                                       

Rua da Mostardeira, 4-6, Évora.

Telefone 266 707 370.

Horário: 12.30-15.30, 19.30-23.00. Encerra ao domingo.

Delito à mesa (16)

Pedro Correia, 18.05.19

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Num restaurante, o cenário conta muito. No Gilão, contribui imenso para cativar os clientes, encostado ao rio que lhe empresta o nome. Mesmo no centro de Tavira, no recuperado Mercado da Ribeira, dotado de uma ampla esplanada onde é preferível escolher mesa. Porque os olhos também comem.

 

Mas as virtudes desta casa comandada por duas mulheres – Ângelo Botelho, a proprietária, e Cecília Paixão, a chefe da cozinha - estão longe de esgotar-se no panorama.

Aqui é perfeito o cruzamento da tradicional comida algarvia com uma culinária criativa, aberta a novos paladares. Desde logo nas entradas: imperdíveis, as chamuças de cavala em molho de caril e gengibre. Superlativa, a tempura de polvo e mel picante. Mas há mais: camarão em molho de mostarda e laranjas; ceviche de atum e lima em emulsão de manga; empada de pato com redução de Porto e salada de rúcula e laranja.

 

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Tempura de polvo e mel picante

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Lombo de atum com migas de broa e azeitonas

 

Como prato principal, recomenda-se lombo de atum com migas de broa e azeitonas, polvo na frigideira com batata doce ou peito de frango e camarão em molho de caril com arroz de coco. Tudo provado, tudo aprovado. E bem regado, a combater a canícula, com um simpático rosado algarvio, o Barranco Longo.

Também se servem cataplanas (robalo com camarão, por exemplo) e pratos vegetarianos. Nas sobremesas, recomenda-se o cheesecake e a tarte de alfarroba.

Com qualidade garantida tanto nos petiscos que chegam à mesa como no atendimento atento e profissional, este Gilão é um excelente cartaz gastronómico de Tavira. Onde apetece sempre voltar.

 

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Restaurante Gilão

Rua do Cais, Mercado da Ribeira, Loja 2A, Tavira

Telefone 281 322 050

Não encerra

Delito à mesa (15)

Pedro Correia, 27.04.19

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Empadas de galinha, arroz de perdiz, tarte de requeijão: a refeição ideal no lisboeta Salsa & Coentros, onde se presta tributo à cozinha do Alentejo e Trás-os-Montes. Mick Jagger gostou do que aqui comeu.

 

É o melhor restaurante do meu bairro. O bairro de Alvalade, em Lisboa, onde não faltam espaços capazes de satisfazer os palatos mais exigentes. Mas tenho uma especial predilecção por este, a cuja inauguração praticamente assisti. Aqui presta-se tributo à cozinha tradicional portuguesa – sobretudo de inspiração transmontana e alentejana – aliada à arte de bem-receber, cultivada pelo seu proprietário, José Duarte, diplomado pela Escola de Hotelaria de Lisboa e com uma longa experiência anterior na Adega da Tia Matilde, também na capital.

No Salsa & Coentros sinto-me sempre em casa, sobretudo à hora do jantar, quando o ambiente ganha tons familiares e as conversas são ainda mais amenas: percebe-se que tem clientes incapazes de trocá-lo por outro restaurante da zona. No final do Verão, o espaço foi remodelado e adquiriu um toque suplementar de sofisticação.

 

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Empadas de gallinha

 

Mal nos sentamos, somos brindados com acepipes que contribuíram para a boa fama da casa. Favinhas de coentrada, pimentos com coentros, cogumelos de coentrada – e sobretudo as empadas de galinha: ainda não encontrei melhores em Lisboa. Elas contribuem para esta minha longa fidelidade ao restaurante, fundado em 2006, a curta distância do Mercado de Alvalade, na rua em frente aos bombeiros.

 

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Arroz de perdiz

 

Mas aquilo de que mais gosto são os arrozes de caça. Sobretudo o arroz de perdiz, com um toque adequado de vinagre. Nesta época, quando aqui venho, nem preciso de espreitar a ementa: é o prato que peço sempre. 

Feito no momento, demora a chegar à mesa. Mas asseguro que vale a pena esperar. E o apetite pode ser entretido com um apreciável naipe de entradas: recomendo os espargos com ovos ou as migas de batata e ovo.

 

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Empada de perdiz com arroz de grelos

 

Todas as semanas há opções novas em vinhos – em garrafa ou servidos a copo. Na minha mais recente incursão, apreciei um tinto do Douro, Raposeira, colheita de 2015. Acompanha bem outros pratos fixos: empada de bacalhau, pato borracho com arroz malandro ou os suculentos lombinhos de porco preto fritos com pimentão. Sem esquecer a empada de perdiz com arroz de grelos.

 

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Tarte de requeijão

 

Em 2014, Mick Jagger jantou aqui – por sugestão da fadista Ana Moura, sua amiga e cicerone no roteiro gastronómico alfacinha. Consta que saiu satisfeito, desde logo com as favinhas, o que constitui prova inegável de bom gosto. Se não provou a tarte de requeijão, fez mal: é imperdível.

Aviso ao leitor: os dois pisos do restaurante estão sempre cheios. É indispensável fazer marcação prévia, de segunda a sábado, para evitar ir a outro lado. Seria uma pena. 

 

Restaurante Salsa & Coentros

Rua Coronel Marques Leitão, 12, Lisboa.

Telefone 21 841 09 90

Horário: 12.30-15.00, 19.30-23.00. Encerra aos domingos.

Delito à mesa (14)

Pedro Correia, 06.04.19

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Requinte e tradição conjugam-se à mesa, a poucos metros do local onde decorre uma cena fundamental desse monumento do romance português que é Os Maias. Eça haveria de gostar.

 

Não podemos deixar de pensar que pouco metros acima de nós se desenrolou uma cena fulcral do melhor romance português de todos os tempos, Os Maias, quando Carlos é apresentado à fogosa Condessa de Gouvarinho. Eis-nos num dos mais belos recantos de Lisboa, marcado por referências melómanas, ou não estivéssemos no rés-do-chão do Teatro Nacional de São Carlos, e também literárias: no majestoso prédio fronteiro, num 4.º andar, nasceu a 13 de Junho de 1888 um tal Fernando António Nogueira Pessoa, figura cimeira da nossa poesia.

Mas o que hoje aqui nos traz é algo prosaico: comer. Neste Café Lisboa – um dos estabelecimentos com a marca de José Avillez, cada vez mais influente no circuito gourmet do Chiado – tudo é recomendável. O cenário, o ambiente, o serviço, o vinho JA (exclusivo dos restaurantes deste chefe, em produção conjunta com o enólogo e gastrónomo José Bento dos Santos), os preços razoáveis para tão inspiradora localização, no centro cultural e turístico de Lisboa.

Aconselha-se reserva: a oferta de lugares não é escassa, mas a procura abunda. Se o tempo estiver convidativo para tomar um copo para celebrar o fim da tarde, prefira a esplanada. Onde poderá jantar também.

 

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Bacalhau à Brás com azeitonas explosivas

 

Tem muito por onde escolher em matéria comestível, de matriz bem portuguesa.

Nas entradas, por exemplo, tártaro de polvo ou favinhas de coentrada.

Nos pratos principais, bacalhau à Brás com azeitonas explosivas (ou moleculares, segundo a patente registada por Ferran Adrià no mítico El Bulli), bacalhau assado com cebolada, pastéis de Lisboa com arroz de grelos, cachaço de porco com favinhas guisadas e enchidos.

Confesso: o meu preferido é bife de atum com manjericão – servido sobre migas de batatas.

 

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Bife de atum com manjericão

 

Nas sobremesas, queijos vários. Para os mais gulosos, torta de laranja com sorvete de laranja ou toucinho-do-céu de Lisboa com sorvete de framboesa. Ou um simples pastel de nata - outra forma de promover a doçaria nacional e alfacinha.

Para degustar num ritmo compassado, apreciando o panorama circundante e o prazer da companhia. Este Café Lisboa não merece menos.

 

Restaurante Café Lisboa

Largo de São Carlos, 23, Lisboa

Telefone 211 914 498

Horário: do meio-dia à meia-noite, todos os dias

Delito à mesa (13)

jpt, 30.03.19

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O "Ponto de Encontro" é o meu porto de abrigo aqui em Schaerbeek. Por cá a um estabelecimento como este chamam "petite restauration", o que pode esconder muito, até apoucando-o. Por isso prefiro, e muito, tratá-lo pelo nosso antigo termo casa de pasto, o qual deixa antever um local de alimento e estada, convívio.

A gente sabe-o, negócios destes não vivem das "estrelas" dos críticos ou da publicidade. Mas muito dependem dos patrões, de como estes sabem acolher a clientela, vinculá-la. E aqui é mesmo a casa do casal Belchior, o Luís e a Sónia, que muito justificam o "cinco estrelas", pois são gente com muito boa onda. Daquela rara de encontrar. Da qual se gosta não por qualquer atendimento particular, por alguma "atençãozinha" feita, pequeno favor ou informação. Simpatiza-se, e chega. E volta-se no dia seguinte.

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Alentejanos de Elvas, mas o Luís cresceu aqui no bairro (na "comuna") até à adolescência, quando a sua família fez "torna-viagem". Chegada a recente crise, trancada a actividade económica na zona, para cá voltou, num verdadeiro regresso à "origem". E se a história local da imigração portuguesa sempre remete para a praça Flagey, em Ixelles, onde se agregaram os patrícios desde os anos 1960s (por lá está o Fernando Pessoa a simbolizá-lo), desde então que também houve um menos conhecido fluxo alentejano ancorando a Schaerbeek - e tanto que no quarteirão acima está ainda a antiga sede do clube "Campomaiorense", encerrado há um ano. Por isso chegar ao "Ponto de Encontro" é encontrar um núcleo alentejano residente, de elvenses e de campomaiorenses em particular. Desde uns poucos de jovens recém-chegados, ainda quase glabros, até outros bem mais antigos, com meio século de Bruxelas, alguns também veteranos da guerra de Angola, com tanto mundo marchado.

Mas o que é muito significativo, demonstrando a qualidade do serviço e a excelência dos donos, é que tendo aberto o "Ponto de Encontro" em Outubro - antes exploraram um café distante apenas dois quarteirões - a casa não se encerrou na clientela portuguesa. Pois abundam os belgas, tantos deles acotovelando-se para o jogo das setas (o Luís é jogador federado, os jogos do campeonato nacional são constantes). Chegam espanhóis, romenos, ocasionais turcos, há um inglês habitual, e brasileiros, pois claro. É Schaerbeek, é Bruxelas, com a bela marca "Elvas", "Alentejo" mas não nela encerrada. Anima. 

E há a comida. Sim, com a tal marca alentejana. Almoços durante a semana, e também jantares aos fins-de-semana. Nos quais a cozinha é reforçada pela amiga Sandra Madeira, elvense, claro está, imigrada há pouco e que antes explorou restaurantes em Elvas e Borba ("Sabores do Alentejo"). O cardápio é curto e variado, 3 pratos do dia nos sábados e domingos, 2 nos dias úteis. E o sistema é o de preço pelo "menu" (exceptuando a sobremesa).

Aqui partilho a bela memória do almoço de sábado passado:

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A sopa Juliana, que estava como deve-de-ser, e que fora antecipada pela mini Super-Bock e por um apetitoso cacho de azeitonas, que se apresentavam em estado muito meritório.

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O cesto de pão, com legítima manteiga Gresso, aqui acompanhado da até mítica água de Carvalhelhos.

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E o que convocara a atenção, migas com entrecosto. Não me é necessário adjectivar a qualidade do prato. Apenas refiro que os três convivas à mesa não deixaram migalha de migas, e roeram, despudoradamente, todas as fibras do saudado entrecosto. Saciados, com extremo agrado, foi como ficámos. Foi esta parte do repasto acompanhado de vinho da casa, dois copos de tinto Ermelinda Freitas por pessoa.

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Para a sobremesa aportou o não tão regional pudim Molotov, símbolo do acima referido cosmopolitismo da casa. Foi comido com agrado geral.

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E para rematar o café e a aguardente Mosca. A "bica" bem tirada, algo não tão usual assim por estas paragens (e outras). E a água-da-vida bem aprazível. Foi, aliás, repetida.

Preço? Com Molotov à parte - e, pormaior que julgo relevante, a dez minutos pedestres do coração do "bairro europeu", a praça Schuman e sua chusma de restaurantes "italianos", "irlandeses" e quejandos - o "menu" importa em 13 euros.

Em suma, belo repasto, excelente acolhimento, clientela simpática, e preço mais do que acessível. Quereis melhor conselho?

Ponto de Encontro, Av. Dailly, 150, 1030 Bruxelles (encerra às segundas-feiras)

Delito à mesa (12)

Pedro Correia, 16.03.19

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Vai sendo tempo de reabilitar a comida de forno e tacho, para travar o crescente predomínio dos grelhados. É o que sucede neste restaurante situado no centro histórico de Castelo Branco.

 

Tal como o nosso vocabulário comum tem vindo a comprimir-se em proporções assustadoras, tornando-se mais esquemático que nunca, também os nossos gostos alimentares se vão estreitando, sujeitos a modismos de importação e à ditadura dos grelhados. Felizmente há locais como este, capazes de reabilitar a ancestral comida de forno e tacho, que exige vagar, minúcia e requinte culinário – muito mais do que uma chapa quente num fogão para satisfazer clientelas apressadas.

Esta Cabra Preta, inaugurada em 2016 no centro histórico de Castelo Branco, passa com distinção no teste. E assume-se como digna herdeira do encerrado Praça Velha, que durante anos honrou os pergaminhos gastronómicos albicastrenses. Sendo novo, este estabelecimento sabe cultivar a memória, trazendo-nos à mesa a melhor tradição gastronómica beirã.

Aos apreciadores, recomenda-se o serrabulho, recém-premiado em concurso regional. Pode chegar como entrada ou como prato principal, neste caso acompanhado de ovos de cebolada, finas fatias de pão regional, arroz e feijão. Opção alternativa, para entreter o apetite enquanto se aguarda o manjar central, é a tiborna – pão acabado de sair do forno, regado com um fio de azeite e coroado com uma fatia de bom presunto.

 

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Serrabulho: entrada premiada

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Ensopado de veado, ex libris da casa

 

Quem optar pelo arroz de pato não sairá desiludido. Mas o que mais recomendo é o ensopado de veado, um dos cartazes gastronómicos da casa. Sem prescindir, ainda como entrada, dos suculentos cogumelos emporcalhados – salteados em azeite, com pedacinhos e chouriço e lombo, também a evocar-nos refeições de outros tempos. Siga a opção vinícola da casa, em branco ou tinto: Conde Villar, belo vinho alentejano, da Herdade de Penedo Gordo (Borba).

Castelo Branco já merecia um restaurante como este.  

 

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Restaurante Cabra Preta

Rua de Santa Maria, n.º 13, Castelo Branco

Telefone 272 030 303

Horário: 11.30-22.45. Encerra às terças e ao almoço de quarta-feira

Delito à mesa (11)

Pedro Correia, 09.03.19

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Em equipa que ganha não se mexe. A Adega do Chico, em Caminha, entrou na sétima década de vida mantendo o bacalhau da casa como prato emblemático.

 

Há coisas que não mudam. Ir a Caminha, no extremo norte do País, e apreciar o bacalhau à Chico é um prazer antigo sempre renovado. A Adega do Chico chama-se assim por ter sido fundada em 1957 por uma figura bem conhecida na vila, que respondia pela alcunha de Francisco dos Jornais. Era um tasco de características muito populares, que granjeava clientela graças à qualidade da cozinha. Com destaque para o famoso bacalhau, muito bem demolhado e frito em abundante cama de azeite e cebolada, servido com batatas fritas às rodelas. Uma dose do apreciado bicho, pescado em águas islandesas, chega à vontade para duas pessoas.

 

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                   Bacalhau à Chico, confeccionado com a cozinha à vista dos clientes

 

Há 36 anos na mesma família, que adquiriu o estabelecimento ao senhor Francisco, esta acolhedora Adega situada junto ao pano da muralha medieval da vila soube cultivar as características originais, conservando o caldo verde e o bacalhau como cartões de visita. As alternativas são escassas, mas suculentas: arroz do mar à chefe, robalo à marinheira, polvo cozido, cabrito à Serra de Arga. Tudo confeccionado pela cozinheira Elsa, sempre de acordo com a matriz original. Para acompanhar, e visto estarmos em zona de vinho verde, nada melhor do que um branco de Ponte de Lima.

 

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Também no exterior, a paisagem do passado ecoa no presente: a matriz, as tílias na praça central, a torre do relógio, o Coura desaguando no Minho, a silhueta tutelar da Serra d' Arga e a massa imponente do Monte de Santa Tecla, já na Galiza. Apetece sempre regressar, a caminho de Caminha. 

 

Adega do Chico

Rua Visconde Sousa Rego, n.º 30, Caminha.

Telefone 258 921 781.

Horário: 12.00-15.00, 19.00-22.00. Encerra às quintas.

Delito à mesa (10)

Pedro Correia, 02.03.19

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Há restaurantes que nos conquistam à primeira. É o caso deste, situado num espaço rural, a escassos quilómetros de Alcobaça, na saída para norte.

 

Estamos num cenário de quinta. Real, não encenada. Há cavalos, cabras, cães, muitas flores. No topo de um cabeço, para fazer jus ao nome do restaurante. Com um panorama deslumbrante sobre a cidade que alberga o mais célebre mosteiro cisterciense português.

Conjugar a envolvência rústica com um inesperado requinte de cozinha de autor é o segredo deste restaurante, inaugurado em 2011 por um casal, Evelina e Pedro João. Viviam-se tempos de crise, a clientela escasseava, estiveram quase a fechar portas. Mas o esforço e a persistência recompensaram: hoje é raro o dia em que não têm as duas salas cheias. Convém fazer reservas, de terça a sábado. O Cabeço encerra aos domingos e segundas: este é o único defeito que lhe encontro.

 

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Folhado de queijo de cabra e croquetes de farinheira

 

Também se recomenda muito apetite. Desde logo para as entradinhas – folhado de queijo de cabra, croquetes de farinheira, patês variados. Fuja aos lugares-comuns: se quer frango na púcara, prato típico da região de Alcobaça, tem alternativas na própria cidade. Opte pela originalidade, este é o sítio certo. Sem fugir às raízes portuguesas.

 

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Bife de atum braseado com escabeche de maracujá

20180922_131538-1.jpgStrudel de pato com cogumelos

 

Algumas sugestões: cataplana de polvo, camarão frito à Cabeço, risoto de polvo, camarão e cogumelos, coxa de pato confitada com cogumelos salteados. Para mim, elejo bife de atum braseado, com escabeche de maracujá, juliana de legumes e esmagado de batata doce (peixe) ou strudel de pato com cogumelos (carne). Há menu infantil e opções vegetarianas. Vinho? Um Dorna Velha, da Quinta do Silva (Douro), branco, passou com distinção.

O atendimento é cordial: sentimo-nos em casa. Enquanto comemos, espraiamos o olhar pela magnífica paisagem circundante: um cenário relaxante, apaziguador. E apetece voltar, uma vez e outra.

 

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Restaurante O Cabeço

Rua D. Elvina Machado, 65, Bemposta, Alcobaça.

Telefone 914  500 202.

Horário: 12.30-14.00, 19.30-22.00. Encerra aos domingos e segundas.

Delito à mesa (9)

Pedro Correia, 23.02.19

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Quem gosta de comer com o pé no acelerador deve escolher outro poiso. No Dom Joaquim, hoje o melhor restaurante de Évora, a gastronomia aprecia-se com um ritmo propício à digestão e à verdadeira sabedoria. Que nos manda seguir devagar para chegar longe.

 

Évora é uma das cidades portuguesas onde mais se honra a excelência das nossas tradições gastronómicas. E o melhor restaurante da bela capital alentejana, que nunca cessa de nos deslumbrar pela sua beleza paisagística e pelo vigor que mantém na defesa do seu rasto cultural, é o Dom Joaquim, inaugurado em 2007 e assim denominado em alusão ao chefe Joaquim Almeida, comandante destas navegações gastronómicas de longo curso. Um restaurante situado dentro das muralhas da cidade, a dois passos do histórico Largo das Alterações, onde em 1637 se produziu o primeiro levantamento popular contra o invasor castelhano, em antecipação da independência que viria a ser recuperada três anos depois.

Honrar os pergaminhos culinários do Alto Alentejo, reabilitando a comida de tacho e forno tantas vezes desprezada nestes tempos em que se come de pé no acelerador e se recorre com exagerada frequência aos congelados, é um dos nobres propósitos desta casa. Quem aqui vem, não espere velocidades: há que saborear bem, no seu devido tempo, cada prato que chega à mesa. Também não espere “cozinha de fusão” nem outras modernices: aqui a prioridade é cultivar os valores ancestrais da gastronomia transtagana. Com uma palavra amável para o cliente, que pode já ser ou vir a tornar-se um amigo: no Alentejo, comer, conversar e conviver são verbos de parentesco muito próximo.

Sugestão a abrir: se quer conseguir lugar, é imprescindível reservar mesa. A sala é espaçosa, além de bem decorada, mas acaba quase sempre por encher.

 

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Coelho à São Cristóvão

 

Para inaugurar a refeição, recomenda-se ovos mexidos com espargos verdes, cogumelos de coentrada, ovos de codorniz de vinagrete ou coelho à São Cristóvão – sendo este desossado e desfiado após levado a assar, e depois temperado com azeite em abundância, vinagre, alhos picados e coentros.

 

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Migas de espargos com carne de porco

 

Feitas as apresentações, rumemos aos pratos principais. Se apostar na tradição, não se arrependerá. E aqui tradição rima com sopa de cação. Mas também com arroz de lebre malandrinho, borrego assado no forno com batatinhas a murro, migas de espargos verdes com carne de porco do alguidar. Pode também optar por aquele que para alguns comensais mais regulares se tornou o ex-libris da casa: bochecha de porco assada em vinho tinto acompanhada de puré de maçã. Ou por outra emblemática criação do chefe: almofada de porco preto – uma generosa empada com borrego, leitão, bacalhau ou caça que chega à vontade para duas pessoas.

Se é incapaz de rematar uma refeição sem ceder à tentação da sobremesa, seguem duas sugestões: pudim de água de prata ou bolo de chocolate com aguardente vínica e frutos secos. Além da doçaria mais tradicional da região, nunca aqui com falta de comparência.

 

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Javali estufado

 

À margem da ementa fixa, aguarde que lhe transmitam as novidades gastronómicas da semana: aqui a rotina não rouba lugar ao imprevisto. No Dom Joaquim, por exemplo, comi o melhor javali estufado que guardo na memória. Regado com um tinto alentejano proveniente da abundante adega da casa. Aconselho o Bojador, que superou com distinção a prova.

Tudo com o requinte prévio da travessa em vez de chegar já empratado da cozinha, contrariando uma péssima tendência agora em voga. Tudo em porções generosas, que convidam à partilha. Porque essa é outra tradição a honrar e preservar neste Alentejo que tem memória.

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Restaurante Dom Joaquim                                                                                          

Rua dos Penedos, n.º 6, Évora.

Telefone 266 731 105.

Horário: 12.00-15.00, 19.00-22.45. Encerra aos jantares de domingo e às segundas.

Delito à mesa (8)

Pedro Correia, 17.02.19

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O centenário Faz Frio foi recuperado sem perder as características que lhe deram fama. Assim se evitou o óbito de outro histórico restaurante de Lisboa.

 

Eis a boa notícia: o restaurante Faz Frio, na zona do Príncipe Real, em Lisboa, reabriu as portas. De cara lavada, com um toque renovado na decoração, mas mantendo a traça original, incluindo as salinhas interiores características de uma época cada vez mais dissolvida na memória dos alfacinhas.

Quem conhecia a Antiga Casa Faz Frio, encerrada em 2017, receou o pior. Felizmente, o centenário estabelecimento não veio acumular as negras estatísticas necrológicas da capital, que tem visto desaparecer vários restaurantes que levaram consigo inumeráveis histórias narradas por sucessivas gerações de clientes.

É bom saber também que reabriu com qualidade renovada, a preços comportáveis, com serviço competente e uma ementa que, sendo escassa, não descura o bom casamento entre modernidade e tradição. Sempre com uma sugestão diária. Na semana em que lá passei, os destaques eram estes: arroz de polvo, açorda de bacalhau, arroz de carnes fumadas, entrecosto com ervilhas, bacalhau à Assis, pastéis de massa tenra com arroz de feijão.

 

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Peixe assado com puré de cebola

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Cachaço de porco preto com xerém de amêijoas

 

O menu fixo deste remoçado Faz Frio, assumidamente, «troca as voltas ao passado», dando realce aos sabores sazonais de cada época. Agora, por exemplo, experimenta-se ali peixe assado com puré de cebola ou cachaço de porco preto com xerém de amêijoas. Bacalhau, em diversos formatos, há todos os dias. E pelo menos um prato vegetariano. Vinho a copo, com opções variadas. A rematar, arroz doce com creme de canela ou musse de chocolate 70% com abóbora, laranja e amêndoa.

Saúde-se a proeza: novos artífices honrando sabores antigos.

 

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Musse de chocolate 70% com abóbora, laranja e amêndoa

 

Rua D. Pedro V, 96, 1250-091 Lisboa

Telefone: 21 581 42 96

Horário: do meio-dia à meia-noite. Encerra às segundas.

Delito à mesa

Pedro Correia, 17.02.19

Só para avisar que vou recuperar, a partir de hoje, a série que leva este nome, lançada há quase sete anos no DELITO DE OPINIÃO pela Ana Vidal e prosseguida por alguns de nós, incluindo por mim, com um texto que só agora tem sequência porque entretanto a vida dá muitas voltas e outras prioridades foram acontecendo.

Fica aqui o aviso - em jeito de teaser, como agora se diz em "português técnico" - e a lembrança dos restaurantes anteriormente mencionados. Sendo esta uma secção de autoria colectiva, permanece aberta a qualquer colega de blogue que nela queira participar. Até porque, felizmente, bons restaurantes de todos os géneros não faltam em qualquer recanto deste nosso doce país e deste vasto espaço comunitário onde hoje nos integramos.

Mariana (Afife, Viana do Castelo)

Tapadão (Monforte)

Golfinho Azul  (Ericeira, Mafra)

Chiringuito (Lisboa)

Eira do Mel (Vila do Bispo)

Zé Manel dos Ossos (Coimbra)

 

Flagrante Delito com estreantes à mistura

João Pedro Pimenta, 24.04.18

Aos dezanove dias do corrente do ano da Graça de 2018, os membros do Delito reuniram-se em ambiente de obscura conspiração, em forma de um jantar no clássico e luminoso Café Império, sempre resistente aos chamamentos da vizinha igreja que se assenhoreou do ex-cinema o mesmo nome. O pretexto era a possibilidade de alguns membros da confraria se puderem estrear nestas conspirações imperiais, pelo que parte dos membros não pôde vir. Ainda assim, e com a anunciada vinda do João André dos Países Baixos, do José Pimentel Teixeira desembarcado há já uns tempos de Moçambique e dos escritor destas linhas quase directamente vindo do Porto, a coisa realizou-se.

 

Devo dizer que fui dos últimos a chegar e o primeiro a ir embora, por inadiável compromisso. Mas aquele convívio permitiu que em poucas horas se estabelecesse uma data de conversas, de uma incrível diversidade, que se cruzavam entre elas tornando difícil seguir uma e outra. Os escritos dos membros do Delito não são prosa para impressionar o leitor com o seu incrível conhecimento geral dos factos, mas produtos de reflexão, conversa e troca de impressões várias, como se podia comprovar ao vivo. 

 

Assim, e entre a chegada dos bifes da vazia (com maioria qualificada) e das cervejas que constantemente arribavam à mesa, falou-se na experiência na blogosfera e nos nossos fieis comentadores, aos quais qualquer dia teremos de endereçar convites para um convívio, caso queiram (pôs-se a possibilidade de alguns serem criações do Pedro Correia para estender e melhorar o nível de conflituosidade nos comentários); de como nos mantemos resilientes apesar do domínio das redes sociais; do início dos blogues e de como em determinadas situações foram trampolins para um maior mediatismo; de casos de perseguição obsessiva (stalking, não é?), incluindo o conhecimento do nosso paradeiro; mencionaram-se antigos jovens assistentes universitários e as suas actuais ambições políticas; falou-se de bola, com maioria leonina, e apostou-se em Jesus para substituto de Wenger no Arsenal.

 

Do lado onde me encontrava ouvi sobretudo as recentes impressões de Roma (algo desiludidas) do José Bandeira, ao qual asseguraram que Nápoles estava muito melhor que a capital, e dos mais harmoniosos percursos pela Toscana; as recordações de buscas arqueológicas da Ana Cláudia, com a velha discussão dos mármores do Pártenon levados por Lord Elgin e da defesa da civilização ocidental logo assumida pelo José Teixeira. Ressoaram também as opiniões jurídica abalizadas do Luís Menezes Leitão e as suas memórias de viagem ao gelo da Rússia, o percurso de vida do João André, que pelo meio o levou ao Delito, e de novo a defesa da civilização agora pelo José Navarro de Andrade. A distância  e os obstáculos sonoros ainda me impediram de ouvir melhor o Luís Naves e a Teresa Ribeiro. O Pedro coordenava o jantar e distribuía assuntos de conversa. Eu tentava ouvir um pouco de tudo e limitava-me a lançar algumas opiniões, na esperança de que tivessem algum impacto.

 

Ainda houve tempo para admirarmos, em primeira mão, e nas nossas mãos, o novo opus do Pedro - 2017 - As Frases do Ano - antes do lançamento oficial e que é um apanhado exaustivo e divertido de tudo quanto se disse no ano passado, arrumado de forma cronológica. Para a coisa ser melhor, faltou apenas o livro do próprio do Delito, que deve estar por dias.

 

Como disse atrás, tive de sair mais cedo do que seria desejável, ao mesmo tempo que o Luís. Não posso descrever o fim da conspiração, sendo certo que teria certamente valido a pena continuar caso pudesse. A desforra ficará para próxima reunião, previsivelmente à hora de jantar.

 

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PS: a fotografia já tinha sido revelada antes, bem sei, mas além de não ter outra, acho que vale a pena ser exibida novamente. Os membros do Delito merecem-no.

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João André, 03.01.17

Confesso que há muito que não tenho o hábito de ir a restaurantes. Sempre gostei de o fazer com amigos mas afazeres profissionais, ter saído de Portugal e ter por perto menos dos amigos com quem gosto de partilhar estes momentos, além da vida familiar que por vezes torna difícil a ida a restaurantes, tudo isto tem conspirado para que eu não tenha renovado os meus hábitos comensais públicos. Na falta dos mesmos, recorro a um hábito já antigo a que volto sempre que posso (ou por lá passo).

 

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O Zé Manel dos Ossos é uma instituição de Coimbra onde não há café no final da refeição, o vinho vem à escolha de branco ou tinto, copo ou jarro (garrafa também pode ser), as paredes estão escarrapachadas de papéis de toalha de mesa escrevinhados com saudações, poemas ou outras inspirações de rotundas barrigas, a fila à entrada pode ir dos 20 minutos à hora e meia para quem chega depois das 7 da noite e o espaço dá para uma meia dúzia de mesas e pouco mais. Quem quiser sofisticação e estilo bem pode ir a outro lado.

 

Conta a lenda que tudo começou quando o Sr. Zé Manel começou a recolher os ossos de um talho ao lado e a cozinhá-los com umas ervas, sal e outros truques que só serão transmissíveis em quintas-feiras de lua cheia depois de sacrificar um gato, um lagarto e um javali aos diversos deuses da gula nos intermináveis panteões da história universal. Facto é que os ossos, além do nome, dão o carácter ao restaurante. A maioria dos pratos incluem ossos de uma forma ou outra, mas os ossos a sério, aqueles que se pedem sem dizer nada mais além do número de convivas, esses são motivo só por si para uma espera de uma hora num beco de Coimbra aos 35 °C de uma noite de Verão.

 

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Os preços (além da qualidade) tornam o restaurante obrigatório entre estudantes, mas não se pense que enchem o espaço e o tornam impossivelmente "académico". Os simples factos de ser necessário enfrentar filas para entrar depois das 7 e meia da noite (ou tarde, depende da altura do ano), de se situar na Baixa (e fora dos circuitos habituais da Universidade) conspiram para controlar o fluxo de clientela e permitir que qualquer pessoa se sinta em casa. Uma vez dentro, há sempre o risco de o calor ser altíssimo e o espaço exíguo. Mas vale a pena aguentar tudo.

 

A melhor escolha inicial é dizer que se quer ossos. O empregado decide quanto vai trazer em função dos convivas à mesa (esqueçam as noções de doses se ali entram) e é possível ter tempo para decidir o que se vai comer. Mais uma vez, o ideal é escolher uma selecção de pratos e deixar que as quantidades fiquem à escolha da casa. Pessoalmente vou sempre pelas barriguinhas ou costeletas com arroz de feijão ou pela feijoada de javali. O vinho é despretensioso mas costuma ir muito bem com a comida e o ambiente.

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Não há pressão para se sair da mesa, apesar da fila que existe à porta. Há sempre contudo a oferta de mais bebidas, como que a lembrar-nos para consumirmos um pouco mais. Mas sem verdadeira pressão: a simpatia esteve sempre presente. No final não há café. A máquina ocupa espaço e, na realidade, ninguém lá vai para isso. E beber um café poderia ter o mesmo efeito que a folhinha de menta em The Meaning of Life.

 

A melhor demonstração do restaurante ocorreu quando um dia tive um jantar com os elementos de uma banda americana (que tinham dado um concerto organizado pela Ru( na noite anterior). Nesse dia alguns dos elementos da banda dormiram tarde e almoçaram já perto das seis da tarde. Vontade de jantar: perto de zero. Umas horas mais tarde tinham-se deliciado com a comida e iam rebolando alegremente para o hotel. Passados uns anos um amigo reencontrou um deles e foi imediatamente reconhecido com as palavras: «os ossos!».

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Resumindo: a visita ao Zé Manel dos Ossos vale sempre a pena. Sem pressas e com espaço no estômago. E escritas estas linhas, estou com vontade de marcar uma viagem a Coimbra para breve.