As eleições americanas e a nossa defesa
A cada eleição presidencial nos EUA é interessante ver como deste lado do Atlântico as opiniões se inflamam e indignam com as escolhas dos americanos. Dadas as diferenças históricas e sociológicas, é comum que sejam os candidatos democratas que reúnem mais apoio entre os europeus, mas a nossa inelegibilidade para ali votar faz com que esse apoio não conte para nada.
À importância global da, ainda, maior potência da actualidade, junta-se a forma como as notícias sobre a eleição presidencial são divulgadas, em que a fronteira entre a informação e o conteúdo de entretenimento, é reduzida à escala milimétrica.
Desde o desmoronamento da União Soviética, mas especialmente desde a ascensão internacional da China, que o antigo Império do Meio passou a ser a potência desafiadora da hegemonia norte-americana. Em resultado disso, o interesse estratégico dos EUA no espaço euro-atlântico diminuiu drasticamente.
Em micro-economia existe o conceito de externalidade, que pode ser negativa ou positiva. Os exemplos são inúmeros, desde as consequências que os habitantes de uma povoação sofrem por ali se instalar uma empresa poluidora (externalidade negativa), até ao benefício substantivo no bairro onde é construída uma esquadra policial. Nenhuma destas ocorrências depende de quem delas beneficia ou por elas é prejudicado.
Durante a segunda metade do século passado, a Europa ocidental beneficiou de uma externalidade positiva, que resultava dos interesses estratégicos dos EUA. Perante tão sólido e duradouro chapéu de chuva, muita da capacidade orçamental dos países europeus foi transferida da defesa para os benefícios sociais à sua população.
É com este enquadramento como pano de fundo que assistimos à mudança geográfica da origem da maior ameaça à hegemonia americana. A sua rotação do espaço euro-atlântico para a ásia-pacifico têm consequências objectivas na segurança europeia. Regressando à comparação anterior, os EUA irão por isso transferir capacidades para outra “esquadra” devolvendo assim aos europeus parte da responsabilidade em assegurar a própria defesa.
Este facto, apesar de bastante anunciado e divulgado, deixou muitos europeus incrédulos e até chocados. No caso de uma vitória de Trump nas próximas eleições, tudo aponta para que a Nato veja reduzida a participação dos EUA, o que coloca enormes desafios aos governos europeus. Essa é a esperança de Putin e de quem lhe suceda.
Trump tem uma enorme capacidade de criar grande repulsa. Isso resulta do seu percurso pessoal e criminal, da sua propensão para o autoritarismo, do seu desprezo antidemocrático pelos adversários, da arrogância sem freio, da sua misoginia e racismo, da sua incapacidade de se rir de uma piada e da sua postura geral de pessoa desagradável. Para os europeus, a toda esta lista, junta-se o receio do anunciado enfraquecimento da Nato.
Mas como quem vota nas eleições norte-americanas são os seus cidadãos, e muitos deles são sociologicamente bastante diferentes da maioria dos europeus, não vale a pena os classificarmos como incultos, rednecks, white trash, ou o que seja, pois nada que façamos irá alterar as suas convicções, nem o seu sentido de voto. Podemos fazer figas, rezas ou desconjuros (os esconjuros já foram feitos pela nata evangélica do GOP) pela vitória da candidata democrata, mas não mais do que isso.
O que importa tomar consciência é que, sem outras mudanças, a nossa segurança actual depende de eleições nas quais não votamos. Sem Putin, ou outro ditador russo que o substitua, tal não seria um assunto de tremenda importância, mas, exactamente por isso, importa tomar consciência que nas próximas décadas a nossa relação com a defesa, o nosso empenho com as forças armadas e a relação com os nossos aliados terá de ser mais intensa e exigente. Os nossos adolescentes devem ser informados que com elevada probabilidade serão chamados para o restabelecimento do SMO. Já aqui falei sobre isso, e até já sabemos que cerca de 47% dos portugueses são favoráveis a esta ideia.
Do resultado das eleições americanas não resultará a necessidade de fazermos mudanças, mas apenas a sua urgência.