DEBATE MARCELO-VENTURA
André Ventura teve ontem direito ao seu momento Basílio Horta. Confrontando o poderoso e popular Chefe do Estado que se recandidata a mais cinco anos como inquilino do Palácio de Belém.
O fio do tempo segue percursos sinuosos. Herdeiro espiritual de Basílio em eleições presidenciais, Ventura só tinha oito anos quando o fundador e primeiro secretário-geral do CDS concorreu à Presidência da República com um feroz discurso da direita "fracturante". Culminado num célebre frente-a-frente com Mário Soares nessa campanha presidencial de 1991. A notícia foi ele, por ter afrontado o recandidato apoiado pelos dois partidos maioritários, PSD e PS.
Destronar Soares - ou sequer forçá-lo a disputar uma segunda volta - parecia tarefa impossível. E era mesmo: o Presidente recandidato obteve 70,4% nas urnas, esmagando Basílio, que se contentou com 14,2%.
O curioso, nesta vida política portuguesa pautada pela falta de memória, é assistirmos a repetições que parecem novidade aos incautos. Ontem, no debate entre André Ventura e Marcelo Rebelo de Sousa na SIC, o deputado único do Chega esteve para o seu adversário como a réplica exacta de Basílio naquele frente-a-frente de 1991. A mesma fluência verbal, a mesma repetição de frases sincopadas e façanhudas, a mesma invocação da "verdadeira direita" - de músculo forte, em desprezo absoluto pelos fracos.
Com simetria quase perfeita. Na altura, Soares era acusado à direita do PSD de contemporizar em excesso com o Executivo de Cavaco Silva, tal como Sousa agora recebe farpas pela sua excessiva aproximação ao Governo de António Costa.
Faltava quem corporizasse tal causa. Coube o turno a Ventura, que se apresentou em estúdio com duas fotografias: na primeira via-se o Presidente com várias pessoas, incluindo um presumível delinquente; na segunda, datada de Junho de 2017, com Marcelo junto a um senhor já falecido, na altura em pranto por ter perdido os bens na catástrofe de Pedrógão.
Houve um tempo, neste país, em que os mortos também votavam. Agora servem para caçar votos, quando todos os meios se tornam lícitos para atingir os fins. Talvez nem o arguto Marcelo esperasse tal estocada: fez bem, de qualquer modo, em não trocar cromos com Ventura. Se o fizesse, poderia mostrar imagens enternecedoras da criatura junto ao criador, Luís Filipe Vieira, que iniciou Ventura nas lides televisivas como seu fiel discípulo no canal do Benfica.
O inquilino de Belém optou inicialmente pela via pedagógica, estabelecendo diferenças entre a «direita social», a que ele pertence, e «a direita securitária, a direita do medo», corporizada no antigo comentador de futebol.
Estabeleceu fronteiras em matéria de valores. Considerando inaceitável, por exemplo, que alguém tente reintroduzir penas perpétuas em Portugal.
Ventura deu-lhe réplica, bem ao seu estilo: «Eu não vou ser Presidente dos traficantes de droga, dos pedófilos, dos que vivem à custa do Estado com esquemas de sobrevivência paralelos enquanto os portugueses de bem pagam os seus impostos.» E garantiu que a prisão perpétua vigora na maioria dos países da Europa. É falso, mas o timoneiro do Chega sente alergia aos factos quando atrapalham a sua narrativa.
Em 1991 Basílio conseguiu irritar Soares, que entrou em estúdio com ar pachorrento. Ventura seguiu idêntico guião em 2021: a gota de água, para que Marcelo abandonasse o terreno da amabilidade, foi a exibição da fotografia com o senhor já falecido, entre crescentes insinuações acerca da indiferença presidencial perante a tragédia dos incêndios florestais.
«Se há exemplo de doação minha integral é o dos fogos. Os portugueses lembram-se. Eu estive lá! Eu estive lá! Eu estive lá! Não estiveram muitos políticos, mas eu estive lá!» E, sem desviar os olhos de Ventura: «O senhor andou lá? Foi lá ver? É uma demagogia barata.»
Naquele instante, o seu antagonista cumpriu um desígnio táctico: conseguira que Marcelo perdesse a compostura presidencial. Imagino Basílio a sentir o mesmo perante Soares há 30 anos, ao desfiar-lhe o novelo dos escândalos de Macau.
Mas o candidato do Chega, dominado pela vertigem da velocidade, não se satisfaz com pouco. Pisou ainda mais o acelerador acusando Marcelo de ser «manipulado pelo Governo».
Seguiu-se este breve diálogo, com o Presidente à defesa:
- Fiz o discurso mais violento que houve contra o Governo.
- E consequências disso?
- A ministra da Administração Interna pediu a demissão imediatamente.
O comentador Marcelo apenas cerebral, destituído de emoções e afastado do palco da política, teria aconselhado o recandidato a não ir por aí: exonerar ministros recorrendo a discursos não integra o rol de competências do Presidente da República. Nem a revelar o conteúdo das conversas que trava com os seus convidados no Palácio de Belém, como Rebelo de Sousa fez já no final do frente-a-frente: nestas coisas convém nunca abrir precedentes, sejam quais forem os estados de alma do titular do cargo.
De qualquer modo, Ventura só venceria o debate - muito bem moderado por Clara de Sousa - se aquilo fosse um concurso de frases sonantes. Para azar dele, a política é muito mais que isso.
Nesta campanha, o solitário parlamentar do Chega apenas triunfará se forçar Marcelo a uma segunda volta. À falta disso, resta-lhe um prémio de consolação: conquista o Troféu Basílio Horta.
Aos mais distraídos, convém recordar que o candidato da "verdadeira direita" nas presidenciais de 1991 é hoje presidente da Câmara de Sintra, eleito pelo Partido Socialista.
A vida dá muitas voltas. E a geometria partidária também.
...............................................................
Frases do debate:
Marcelo - «Eu sou da direita social, centro-direita, direita social, que se reconhece na doutrina social da Igreja, no Papa Francisco, na preferência pelos pobres, pelos explorados, pelos oprimidos, pelos dependentes.»
Ventura - «Eu só posso ficar desapontado, à direita, com a candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa.»
Marcelo - «Eu não faço das presidenciais umas primárias das legislativas, eu não tenho várias agendas ao mesmo tempo.»
Ventura - «[Marcelo] passou os últimos anos a desacreditar o centro-direita.»
Marcelo - «Eu sou Presidente de todos os portugueses. Dos desempregados, dos pobres, dos imigrantes.»
Ventura - «Marcelo Rebelo de Sousa é manipulado pelo Governo.»
Marcelo - «Eu não tenho nada a ver com a sua direita.»
Ventura - «Será que alguém de direita, que esteja bom da cabeça, pode votar Marcelo Rebelo de Sousa?»