A frase que falta
«Je parle. Il le faut bien. L’action met les ardeurs en oeuvre.
Mais c’est la parole qui les suscite.»
Charles de Gaulle, Mémoires de Guerre
Às vezes basta uma frase. Uma simples frase pronunciada no momento certo. Charles de Gaulle pronunciou várias que passaram à história. Dois exemplos: «A França perdeu uma batalha mas não perdeu a guerra», em Londres (1940); «Viva o Quebeque livre!» , em Montreal (1967).
Mas aquela em que mais tenho pensado nestes dias foi pronunciada em Argel, no dia 4 de Junho de 1958, na varanda da sede do governo geral daquele que era então o mais emblemático território ultramarino francês. «Je vous ai compris»", bradou o general, ovacionado pela multidão compacta na praça, nas ruas e nos edifícios fronteiros.
A França encontrava-se numa das suas horas mais difíceis, à beira da guerra civil, quando a decrépita classe política parisiense fora chamá-lo dias antes à sua aldeia para salvar o país, pela segunda vez em duas décadas. A guerra da Argélia e um surto imparável de conflitos sociais ameaçavam tornar ingovernável o país que De Gaulle resgatara dos nazis apenas 14 anos antes.
Uma das primeiras decisões do general foi viajar a Argel. Cerca de um milhão de franceses viviam então em território argelino, devastado pelos sangrentos conflitos entre os militares enviados de Paris e a guerrilha da Frente de Libertação Nacional, que reivindicava a independência.
Os franceses argelinos, na sua esmagadora maioria (incluindo Albert Camus, galardoado meses antes com o Nobel da Literatura), queriam manter a ligação à pátria-mãe que remontava a 1830, mesmo conscientes dos horrores da guerra e das fracturas que o conflito da Argélia provocava na sociedade gaulesa. E foi isso mesmo que exprimiram a De Gaulle naquele dia de Junho numa das manifestações mais participadas de que há memória.
O general, escutando a voz da rua, proclamou: «Compreendo-vos.» Foi acolhido com um imenso vozear de aplauso por todas aqueles que, sem o saberem, engrossariam em breve a longa legião de derrotados da história.
Há hoje as versões mais desencontradas sobre o real significado desta frase que confirmou De Gaulle como efémero herói dos pieds noirs, os intransigentes da Argélia francesa (muitos dos quais argelinos de terceira ou quarta geração).
Uns admitem que se deixou contagiar pela efervescência da multidão e lançou aquele grito como símbolo de adesão simbólica à união franco-argelina sob a bandeira tricolor.
Outros enaltecem-na como símbolo supremo do cinismo em política: no fundo, De Gaulle dizia uma coisa enquanto pensava o seu contrário, como se veria quatro anos mais tarde, ao impulsionar os acordos de Evian que abririam caminho à independência da Argélia, sob a liderança da FLN, e ao impressionante êxodo de centenas de milhares de franceses forçados a dizer adeus a uma terra a que chamavam sua.
Há ainda quem sugira que o general se limitou a exprimir, de forma inconsciente, uma evidência: o carácter irredutível dos franceses que viviam na Argélia tornaria mais dolorosa mas não menos inevitável a via da negociação entre Paris e a guerrilha argelina rumo à independência.
Todos concordam no entanto que esta frase, fossem quais fossem as reais motivações do recém-designado chefe do Governo francês (que ascenderia meio ano depois ao Palácio do Eliseu), permitiu a De Gaulle ganhar tempo, ampliar a sua margem de manobra e congregar um apoio popular sem o qual não lhe teria sido possível fazer ressurgir a França do caos em que mergulhara devido à irresponsabilidade dos políticos da IV República.
Bastou uma frase, muito mais ambígua do que parecia. E às vezes é isso mesmo que falta: uma frase. É sempre nos pormenores que devemos procurar o segredo da diferença entre vitória e derrota em política.