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Delito de Opinião

A frase que falta

Pedro Correia, 10.05.23

 

«Je parle. Il le faut bien. L’action met les ardeurs en oeuvre.

Mais c’est la parole qui les suscite.»

Charles de Gaulle, Mémoires de Guerre

 

Às vezes basta uma frase. Uma simples frase pronunciada no momento certo. Charles de Gaulle pronunciou várias que passaram à história. Dois exemplos: «A França perdeu uma batalha mas não perdeu a guerra», em Londres (1940); «Viva o Quebeque livre!» , em Montreal (1967).

Mas aquela em que mais tenho pensado nestes dias foi pronunciada em Argel, no dia 4 de Junho de 1958, na varanda da sede do governo geral daquele que era então o mais emblemático território ultramarino francês. «Je vous ai compris»", bradou o general, ovacionado pela multidão compacta na praça, nas ruas e nos edifícios fronteiros.

 

A França encontrava-se numa das suas horas mais difíceis, à beira da guerra civil, quando a decrépita classe política parisiense fora chamá-lo dias antes à sua aldeia para salvar o país, pela segunda vez em duas décadas. A guerra da Argélia e um surto imparável de conflitos sociais ameaçavam tornar ingovernável o país que De Gaulle resgatara dos nazis apenas 14 anos antes.

Uma das primeiras decisões do general foi viajar a Argel. Cerca de um milhão de franceses viviam então em território argelino, devastado pelos sangrentos conflitos entre os militares enviados de Paris e a guerrilha da Frente de Libertação Nacional, que reivindicava a independência.

Os franceses argelinos, na sua esmagadora maioria (incluindo Albert Camus, galardoado meses antes com o Nobel da Literatura), queriam manter a ligação à pátria-mãe que remontava a 1830, mesmo conscientes dos horrores da guerra e das fracturas que o conflito da Argélia provocava na sociedade gaulesa. E foi isso mesmo que exprimiram a De Gaulle naquele dia de Junho numa das manifestações mais participadas de que há memória.

O general, escutando a voz da rua, proclamou: «Compreendo-vos.» Foi acolhido com um imenso vozear de aplauso por todas aqueles que, sem o saberem, engrossariam em breve a longa legião de derrotados da história.

 

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Há hoje as versões mais desencontradas sobre o real significado desta frase que confirmou De Gaulle como efémero herói dos pieds noirs, os intransigentes da Argélia francesa (muitos dos quais argelinos de terceira ou quarta geração).

Uns admitem que se deixou contagiar pela efervescência da multidão e lançou aquele grito como símbolo de adesão simbólica à união franco-argelina sob a bandeira tricolor.

Outros enaltecem-na como símbolo supremo do cinismo em política: no fundo, De Gaulle dizia uma coisa enquanto pensava o seu contrário, como se veria quatro anos mais tarde, ao impulsionar os acordos de Evian que abririam caminho à independência da Argélia, sob a liderança da FLN, e ao impressionante êxodo de centenas de milhares de franceses forçados a dizer adeus a uma terra a que chamavam sua.

Há ainda quem sugira que o general se limitou a exprimir, de forma inconsciente, uma evidência: o carácter irredutível dos franceses que viviam na Argélia tornaria mais dolorosa mas não menos inevitável a via da negociação entre Paris e a guerrilha argelina rumo à independência.

 

Todos concordam no entanto que esta frase, fossem quais fossem as reais motivações do recém-designado chefe do Governo francês (que ascenderia meio ano depois ao Palácio do Eliseu), permitiu a De Gaulle ganhar tempo, ampliar a sua margem de manobra e congregar um apoio popular sem o qual não lhe teria sido possível fazer ressurgir a França do caos em que mergulhara devido à irresponsabilidade dos políticos da IV República.

Bastou uma frase, muito mais ambígua do que parecia. E às vezes é isso mesmo que falta: uma frase. É sempre nos pormenores que devemos procurar o segredo da diferença entre vitória e derrota em política.

O último dia do general De Gaulle

Pedro Correia, 09.11.21

 

Aquele parecia ser um dia igual a todos os outros na casa da família De Gaulle desde que o general abandonara o Palácio do Eliseu, ano e meio antes. Um dia de Outono, com as folhas das árvores do bosque que rodeava a mansão La Boisserie já pintadas de castanho dourado. Charles de Gaulle, a poucos dias de completar 80 anos, levantou-se cedo, como sempre sucedia. Saiu do quarto também como sempre fazia, já com o habitual fato escuro, de gravata igualmente escura sobre uma camisa branca. E fez a tradicional caminhada -- sempre em passadas largas, costume que adquirira desde os tempos de jovem, quando frequentava a Academia Militar -- pelo frondoso parque da sua propriedade, situada na aldeia de Colombey-les-Deux-Églises. Um lugarejo perdido no norte de França que o general pôs subitamente no mapa.

Ao fim dessa segunda-feira, 9 de Novembro de 1970, o nome daquela aldeia começaria a ser pronunciado nos serviços informativos de todo o mundo.

De Gaulle e a mulher, Yvonne, viviam ali em reclusão voluntária após o general ter decidido abandonar a Presidência da República. As glórias mundanas, que sempre depreciou, deram lugar à atmosfera espartana e tranquila de La Boisserie, longe dos flashes dos fotógrafos.

 

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O homem que durante a II Guerra Mundial foi o rosto e a voz da França livre irritou-se ainda naquela manhã ao ler num jornal uma crítica negativa ao seu recém-lançado livro, Mémoires d’ Espoir. E saiu para o seu passeio. Havia vento. Por isso Yvonne não o acompanhou naquela que havia de ser a última caminhada de um homem que parecia infatigável.

Comeu com apetite ao almoço, conversou com um vizinho sobre espécies de árvores que pretendia plantar. Às 18.30 foi à cozinha, onde a mulher combinava com a empregada as ementas da semana, e pediu-lhe um endereço. Caía já a noite. Cumprindo outro ritual, assistiu ao noticiário regional na TV enquanto se entretinha com um naipe de cartas na sua mesa de brídge.

De súbito Yvonne ouviu um grito: «Sinto-me mal! Nas costas...» O maior gigante da política francesa acabava de tombar, fulminado por um aneurisma. Morte súbita, como talvez desejasse este homem de 1,92m que fora duas vezes ferido na I Guerra Mundial, vira Hitler pôr-lhe a cabeça a prémio, fora condenado à pena capital pela justiça fantoche do marechal Pétain e -- já presidente -- escapara quase por milagre a várias tentativas de assassínio, incluindo uma saraivada de tiros contra o seu carro.

 

De uma grandeza singular em vida, foi-o também no momento em que partia. Primeiro presidente francês católico praticante, quis ser enterrado no humilde cemitério da aldeia, após missa celebrada pelo pároco. Sem honras de Estado. Sem flores nem sermões. Sem a presença dos ilustres da política francesa e mundial.

«O sangue seca depressa», costumava dizer De Gaulle. Mas o exemplo de alguns homens jamais se apaga.

Leituras

Pedro Correia, 17.08.13

 

«Les positions sur l'avenir de l'Angola sont en revanche nettement divergentes. Kennedy souhaite [en Mai de 1961] que le général fasse pression sur Salazar afin que le Portugal se désengage en Afrique. De Gaulle refuse: toute intervention de cette sorte risquerait, à ses yeux, de déboucher sur du désordre au Portugal, voire l'établissement d'un régime communiste. De nouveau le dialogue de sourds recommence.»

Eric Roussel, De Gaulle II. 1946-1970, pp. 270-271

Ed. Perrin, Paris, 2006

O que estou a ler (11)

Pedro Correia, 05.08.13

 

Vivemos num tempo fragmentado, que convida a uma dispersão crescente, e somos vítimas desse fenómeno. A nossa capacidade de concentração é cada vez mais escassa. Paramos a série televisiva a meio para ver não importa o quê, tornámo-nos incapazes de assistir a um filme de duas horas sem interrupções, passamos o tempo a indagar se há novas mensagens no telemóvel mesmo quando não esperamos nenhuma, as redes sociais solicitam-nos a todo o instante um pequeno pensamento em inócuas pastilhas de 140 caracteres.

Este estúpido frenesim em que mergulhámos graças aos avanços tecnológicos não propicia leituras muito profundas.

 

Acabo também por viver fragmentado. Mas em matéria de leituras, valha a verdade, sempre fui errante. Enquanto um livro não me prende a atenção por inteiro, sobrepondo-se aos demais, vou-me dividindo por títulos e géneros muito diversos em coexistência pacífica um pouco por toda a casa.

Dos mais recentes que li, destaco a biografia de Mário Soares por Joaquim Vieira. Um livro sobre o qual tenciono escrever aqui muito em breve.

Neste momento vou lendo alternadamente O Intruso, de William Faulkner (interrompido, à espera de fôlego suplementar, na página 100), Um Gentleman na Ásia, de Somerset Maugham (em ponto morto desde a página 48), Pensar, de Vergílio Ferreira (suspenso sine die na página 46), Os Ditadores, de Richard Overy (obra gigantesca interrompida, até ver, na página 178), La Aventura de Pensar, de Fernando Savater (de que tenho lido pedaços não consecutivos), e o segundo volume da biografia do general Charles de Gaulle, de autoria de Eric Roussel.

Este é o que me tem captado mais a atenção.

 

É uma edição de bolso da editora francesa Perrin intitulada simplesmente De Gaulle II. 1946-1970, tendo na capa o último retrato conhecido do velho general, tirado poucos dias antes da sua morte. O primeiro volume, que ainda não abri, vai de 1890 a 1945 - do nascimento até ao ponto culminante do seu primeiro período no poder, quando conseguiu fazer ascender uma França desonrada e exangue, que chorava 600 mil mortos, ao reduzido patamar das potências do mundo pós-Ialta, com assento permanente no Conselho de Segurança da ONU (juntamente com os EUA, a URSS, o Reino Unido e a China) e ocupando uma parcela da Alemanha desmilitarizada (embora sem adquirir a soberania permanente do Sarre e do Rur, como o general pretendia).

 

Não sei se convosco acontece o mesmo: eu começo muitas vezes a leitura de biografias pelo fim. Sucedeu-me novamente com esta, em que me apressei a ler as cem páginas finais antes de ir às primeiras 170 (este volume tem 605 páginas).

Esta opção deveu-se, no caso concreto, à minha curiosidade em saber como respondeu o então presidente francês à rebelião de Maio de 1968, que apanhou de surpresa todas as estruturas políticas. Incluindo, à esquerda, o influente Partido Comunista, incapaz de compreender como aqueles "filhos da burguesia", sem "consciência revolucionária", abalaram os alicerces da nação francesa, prenunciando o advento de uma nova era - consumista, hedonista, individualista. Sans Dieu ni maître.

 

De Gaulle era um "príncipe da ambiguidade", como lhe chama o biógrafo, sem esconder o fascínio pela personagem, certamente um dos melhores políticos do século XX e um dos maiores franceses de todos os tempos. "Superior a Napoleão", como reconheceu em 1990 o insuspeito François Mitterrand, seu inimigo de estimação.

Mas não há políticos imunes ao erro. E, quanto maior a dimensão da luz, mais vastas são as sombras que projecta.

De Gaulle cultivava um aura de mistério mesmo para os colaboradores mais próximos e ostentava uma aura majestática que ia muito para além da pose, integrando-se na sua verdadeira personalidade. Era um homem que exigia dos outros um grau de lealdade que se confundia com devoção e não tolerava o mais leve indício de dissidência.

Os seus anos crepusculares no Palácio do Eliseu foram marcados por uma surda hostilidade entre o general e o primeiro-ministro Georges Pompidou, o mais destacado e brilhante elemento da corte gaullista. 

Maio de 68 foi o ponto de ruptura entre ambos.

Pompidou percebeu, muito mais cedo do que o idoso presidente, a natureza fracturante da revolta estudantil - condição indispensável para conseguir neutralizá-la. De Gaulle começou por desvalorizar a rebelião, considerando-a uma "rapaziada". Depois, ultrapassado pelos acontecimentos, quis "normalizar" a situação com mão pesada, recorrendo à repressão policial e chegando a equacionar a intervenção do exército para esvaziar as ruas de Paris. O chefe do Governo trocou-lhe as voltas com uma hábil estratégia negocial com a poderosa CGT, central sindical pró-comunista, destinada a isolar os estudantes.

O Partido Comunista, tão horrorizado como a burguesia parisiense com o "aventureirismo" da bagarre estudantil, pôde reclamar o triunfo que Pompidou sabiamente lhe concedeu nesta brilhante manobra táctica, concretizada no aumento de 33% do salário mínimo, que abrangeu dois milhões de trabalhadores, e benefícios de diversa ordem relacionados com a formação profissional, a segurança social e o reforço da presença sindical nas principais empresas.

 

 

Isolados os estudantes, sem suporte dos comunistas e dos seus parceiros sindicais, Maio de 68 chegava ao fim. E terminava também a longa carreira de Pompidou à frente do Governo: em Junho, De Gaulle substituiu-o por Maurice Couve de Murville. Como acontece tantas vezes às grandes personalidades, o presidente não tolerava que alguém pertencente ao seu reduto político brilhasse mais que ele.

Por ironia, um ano após ter cessado funções, o ex-primeiro-ministro ascenderia à Presidência da República, como sucessor do velho general, retirado da vida pública. De Gaulle e Pompidou não voltaram a encontrar-se.

O destino é tão imprevisível e caprichoso como os voláteis humores dos governantes. É disto que nos fala também a biografia escrita por Eric Roussel. E é este um dos motivos que me levam a gostar tanto deste livro.

 

(E agora pergunto à Teresa: o que tens andado a ler?) 

Foto de baixo: De Gaulle e Pompidou (ao centro) em 1964

A frase que falta

Pedro Correia, 07.05.13

 

«Je parle. Il le faut bien. L’action met les ardeurs en oeuvre.

Mais c’est la parole qui les suscite.»

Charles de Gaulle, Mémoires de Guerre

 

Às vezes basta uma frase. Uma simples frase pronunciada no momento certo. Charles de Gaulle pronunciou várias que passaram à história. Dois exemplos: "A França perdeu uma batalha mas não perdeu a guerra", em Londres (1940); "Viva o Quebeque livre!" , em Montreal (1967). Mas aquela em que mais tenho pensado nestes dias foi pronunciada em Argel, no dia 4 de Junho de 1958, na varanda da sede do governo geral daquele que era então o mais emblemático território ultramarino francês. "Je vous ai compris", bradou o general, ovacionado pela multidão compacta na praça, nas ruas e nos edifícios fronteiros.

A França encontrava-se numa das suas horas mais difíceis, à beira da guerra civil, quando a decrépita classe política parisiense fora chamá-lo dias antes à sua aldeia para salvar o país, pela segunda vez em duas décadas. A guerra da Argélia e um surto imparável de conflitos sociais ameaçavam tornar ingovernável o país que De Gaulle resgatara dos nazis apenas 14 anos antes.

Uma das primeiras decisões do general foi viajar a Argel. Cerca de um milhão de franceses viviam então em território argelino, devastado pelos sangrentos conflitos entre os militares enviados de Paris e a guerrilha da Frente de Libertação Nacional, que reivindicava a independência.

Os franceses argelinos, na sua esmagadora maioria (incluindo Albert Camus, galardoado meses antes com o Nobel da Literatura), queriam manter a ligação à pátria-mãe que remontava a 1830, mesmo conscientes dos horrores da guerra e das fracturas que o conflito da Argélia provocava na sociedade gaulesa. E foi isso mesmo que exprimiram a De Gaulle naquele dia de Junho - há quase 55 anos - numa das manifestações mais participadas de que há memória.

O general, escutando a voz da rua, proclamou: "Compreendo-vos." E foi acolhido com um imenso vozear de aplauso por todas aqueles que, sem o saberem, engrossariam em breve a longa legião de derrotados da história.

 

Há hoje as versões mais desencontradas sobre o real significado desta frase que confirmou De Gaulle como efémero herói dos pieds noirs, os intransigentes da Argélia francesa (muitos dos quais argelinos de terceira ou quarta geração). Uns admitem que se deixou contagiar pela efervescência da multidão e lançou aquele grito como símbolo de adesão simbólica à união franco-argelina sob a bandeira tricolor. Outros enaltecem-na como símbolo supremo do cinismo em política: no fundo, De Gaulle dizia uma coisa enquanto pensava o seu contrário, como se veria quatro anos mais tarde, ao impulsionar os acordos de Evian que abririam caminho à independência da Argélia, sob a liderança da FLN, e ao impressionante êxodo de centenas de milhares de franceses forçados a dizer adeus a uma terra a que chamavam sua.

Há ainda quem sugira que o general se limitou a exprimir, de forma inconsciente, uma evidência: o carácter irredutível dos franceses que viviam na Argélia tornaria mais dolorosa mas não menos inevitável a via da negociação entre Paris e a guerrilha argelina rumo à independência.

Todos concordam no entanto que esta frase, fossem quais fossem as reais motivações do recém-designado chefe do Governo francês (que ascenderia meio ano depois ao Palácio do Eliseu), permitiu a De Gaulle ganhar tempo, ampliar a sua margem de manobra e congregar um apoio popular sem o qual não lhe teria sido possível fazer ressurgir a França do caos em que mergulhara devido à irresponsabilidade dos políticos da IV República.

Bastou uma frase, muito mais ambígua do que parecia. E às vezes é isso mesmo que falta: uma frase. É sempre nos pormenores que devemos procurar o segredo da diferença entre vitória e derrota em política.

Leituras

Pedro Correia, 21.11.12

 

«Churchill compreendia e respeitava de Gaulle; no que dizia respeito às concepções de história (e também da natureza humana) de ambos, Churchill e de Gaulle, dois líderes nacionais da direita, tinham mais em comum do que Churchill e Roosevelt. Isso é o que a maioria dos intelectuais não conseguiu  entender: que em 1940 os verdadeiros antagonistas do hitlerismo eram homens da direita, não da esquerda. Churchill e de Gaulle, cada um representando uma certa espécie soberba de patriotismo, não internacionalismo.»

John Lukacs, Churchill.

Jorge Zahar Editor, RJ, 2003. Tradução: Claudia Martinelli Gama.

O regresso do Quebeque.

Luís Menezes Leitão, 05.09.12

 

A vitória do partido independentista no Quebeque ameaça recolocar de novo na agenda a questão da independência da única província francófona do Canadá, como os confrontos de ontem indiciam. A verificar-se, será em grande parte devida ao célebre discurso do General De Gaulle, Presidente da França, que em 24 de Julho de 1967, ao terminar uma visita oficial ao Canadá, pronunciou no Hotel de Ville de Montreal as palavras que ainda hoje ressoam como o melhor slogan independentista do Quebeque: "Vive Montréal! Vive le Québec! Vive le Québec libre". Que diferença entre estas declarações incendiárias e o actual politicamente correcto que os governantes de hoje constantemente exibem.

Leituras

Pedro Correia, 14.11.11

 

«Dos primeiros anos de Charles de Gaulle quase nada se sabe, a não ser que em todas as circunstâncias revela carácter íntegro e pretende ocupar o primeiro lugar. Embora leia muito -- como Júlio Verne, a condessa de Ségur e também historiadores como Thiers --, a sua natureza indisciplinada impede-o de ser dos melhores da escola, para desespero do pai. Destaca-se dos outros sobretudo por uma forte consciência do destino grandioso para o qual se sente chamado. Com 15 anos [em 1906], escreve o relato dum conflito imaginário decorrido em 1930 entre a França e a Alemanha. Ora, neste texto, intitulado Campagne d' Allemagne, a pátria é salva por um certo general de Gaulle!»

Éric Roussel, De Gaulle, edições 70, Lisboa, 2011

(tradução de Victor Silva)

O último dia do general De Gaulle

Pedro Correia, 09.11.11

 

Aquele parecia ser um dia igual a todos os outros na casa da família De Gaulle desde que o general abandonara o Palácio do Eliseu, ano e meio antes. Um dia de Outono, com as folhas das árvores do bosque que rodeava a mansão La Boisserie já pintadas de castanho dourado. Charles de Gaulle, a poucos dias de completar 80 anos, levantou-se cedo, como sempre sucedia. Saiu do quarto também como sempre fazia, já com o habitual fato escuro, de gravata igualmente escura sobre uma camisa branca. E fez a tradicional caminhada -- sempre em passadas largas, costume que adquirira desde os tempos de jovem, quando frequentava a Academia Militar -- pelo frondoso parque da sua propriedade, situada na aldeia de Colombey-les-Deus-Églises. Um lugarejo perdido no norte de França que o general pôs subitamente no mapa. Ao fim dessa segunda-feira, 9 de Novembro de 1970, o nome daquela aldeia seria pronunciado nos serviços informativos de todo o mundo.
De Gaulle e a mulher, Yvonne, viviam ali em reclusão voluntária após o general ter decidido abandonar a Presidência da República. As glórias mundanas, que sempre depreciou, deram lugar à atmosfera espartana e tranquila de La Boisserie, longe dos flashes dos fotógrafos.

O homem que durante a II Guerra Mundial foi o rosto e a voz da França livre irritou-se ainda naquela manhã ao ler num jornal uma crítica negativa ao seu recém-lançado livro, Mémoires d’ Espoir. E saiu para o seu passeio. Havia vento. Por isso Yvonne não o acompanhou naquela que havia de ser a última caminhada de um homem que parecia infatigável.
Comeu com apetite ao almoço, conversou com um vizinho sobre espécies de árvores que pretendia plantar. Às 18.30 foi à cozinha, onde a mulher combinava com a empregada as ementas da semana, e pediu-lhe um endereço. Caía já a noite. Cumprindo outro ritual, assistiu ao noticiário regional na TV enquanto se entretinha com um naipe de cartas na sua mesa de brídge.
De súbito Yvonne ouviu um grito: “Sinto-me mal! Nas costas...” O maior gigante da política francesa acabava de tombar, fulminado por um aneurisma. Morte súbita, como talvez desejasse este homem de 1,92m que fora duas vezes ferido na I Guerra Mundial, vira Hitler pôr-lhe a cabeça a prémio, fora condenado à pena capital pela justiça fantoche do marechal Pétain e -- já presidente -- escapara quase por milagre a várias tentativas de assassínio, incluindo uma saraivada de tiros contra o seu carro.
De uma grandeza singular em vida, foi-o também no momento em que partia. Primeiro presidente francês católico praticante, quis ser enterrado no humilde cemitério da aldeia, após missa celebrada pelo pároco. Sem honras de Estado. Sem flores nem sermões. Sem a presença dos ilustres da política francesa e mundial, como recordava faz agora um ano a Paris Match, numa excelente edição especial sobre o 40º aniversário da sua morte.

“O sangue seca depressa”, costumava dizer De Gaulle. Mas o exemplo de alguns homens jamais se apaga.

O general que queria ser escritor

Pedro Correia, 12.06.10

 

Charles de Gaulle, como Churchill e alguns outros gigantes da política do século XX, não cessa de estar na moda. Talvez por ser tão flagrante o contraste com os políticos actuais. Os ecos das polémicas de outras eras esbateram-se: como sublinhava há dias a revista L' Express, os franceses preparam-se para assinalar em clima de consenso três efemérides relacionadas com o general - os 120 anos do seu nascimento (22 de Novembro de 1890), os 70 anos do seu célebre apelo à resistência gaulesa contra o invasor nazi (18 de Junho de 1940) e o 40º aniversário da sua morte (9 de Novembro de 1970). No mundo editorial parisiense, abundam por estes dias as obras relacionadas com o homem que salvou duas vezes a França (na II Guerra Mundial e em 1958, quando o seu regresso à política impediu o país de mergulhar na guerra civil devido ao conflito na Argélia).

Mas o maior acontecimento é a publicação integral das Cartas, Notas e Cadernos em três volumes - os dois primeiros à disposição do público desde segunda-feira e o último com edição prometida para Outubro. A "fascinante" leitura destes documentos - sublinha Jérôme Dupuis na L' Express - permite reconstruir a vida do ex-presidente francês "quase dia por dia" e sobretudo descortinar "um destino a forjar-se perante os nossos olhos". São cartas aos pais quando se encontra prisioneiro dos alemães durante a I Guerra Mundial, ao marechal Pétain, camarada de armas que viria a tornar-se o maior dos seus inimigos políticos, a um colaborador a quem deixou claro (em 1946) que detestava a expressão "gaullista", cunhada a partir do seu próprio nome... O último documento é uma carta que escreveu ao filho, Philippe de Gaulle, no próprio dia em que morreu.

 

Estes documentos confirmam também o talento literário do militar que foi político mas preferia ter sido escritor, redigiu poesia e chegou até a concluir um romance, nunca editado. A sua vasta biblioteca pessoal, na mansão de Colombey-les-Deus-Églises, tinha mais livros de ficção do que de História - com autores como Hemingway, Aragon, Camus, Buzzati e Kipling. Manteve amizade e correspondência com autores tão diversos como Mauriac, Claudel e Cocteau. Malraux foi seu ministro da Cultura. E mesmo quando ocupou o Palácio do Eliseu, entre 1958 e 1969, gabava-se de ler em média três livros por semana. "Foi o último grande escritor de França", não hesita em assinalar o editor Jean-Luc Barré à L' Express.

De que homens de Estado - do estado a que a Europa chegou - se poderá hoje dizer o mesmo?