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Delito de Opinião

Responsos

José Meireles Graça, 15.10.25

O PCP foi o principal responsável, nos idos de 74 e 75, pela destruição de parte do tecido económico. Ainda hoje pagamos o preço, sob a forma de inexistência de grandes empresas (salvo no ramo de secos e molhados) e de bancos – os que há, excepto a CGD e outro pequenote, são estrangeiros. E mesmo a CGD, enquanto foi gerida por delegados do Governo, deu prejuízos consideráveis (quatro mil milhões de Euros em seis anos) e regressou aos lucros, entre outras razões, pelo expediente de pilhagem dos clientes com taxas e taxinhas, alegre actividade à qual os outros bancos, aliás, igualmente se dedicam.

Daniel Oliveira, uma personagem que as pessoas de direita detestam e eu estimo, faz aqui a exegese da derrota do PCP nas recentes eleições, com tal rigor analítico que se poderia quase dizer que se trata de um epitáfio.

Não me parece que o PCP vá morrer porque há sempre espaço para seitas religiosas se houver um ambiente, que há, de liberdade de culto. E se morresse não se ganharia nada com isso porque seria substituído por uma daquelas demências organizadas, de que são exemplo o moribundo Bloco e, agora, o Livre que lhe calçou os sapatos sob a liderança parlapatona do demagogo Tavares, o novo santo que a comunicação social carrega no andor do asneirol.

O artigo é bem escrito e bem argumentado, como é costume dele, e falha, como é igualmente costume, por ou partir de pressupostos errados, e portanto não poder chegar a conclusões certas, ou partir de pressupostos bem escolhidos mas interpretá-los erroneamente, e portanto chegar a conclusões erradas.

Se se falar de economia, por exemplo, invariavelmente Daniel está preocupado com a distribuição da riqueza porque o seu terno coração sofre pelos pobres, não lhe ocorrendo jamais perguntar-se se o esbracejar da generosidade prejudica o crescimento económico, cujos mecanismos não entende (nem ele nem os académicos que lê, p. ex. o azougado Mamede ou a simpaticíssima Peralta).

Mas não é de economia que fala, é das dores do PCP nos cuidados intensivos. Desconfio que o doente está pouco ligando para os conselhos deste médico, que deve achar um grande farsante, e não confia nas análises porque vêm de um laboratório suspeito.

Mas não vou escabichar a lista de sintomas que ilustram a doença – não sou cirurgião nem, se fosse, teria particular interesse em lancetar o furúnculo para ver ao certo qual a quantidade exacta de pus que tinha lá dentro.

Concentro-me assim apenas no caso de Lisboa. Que diz Daniel e com ele o bem-pensismo dos desconsolados com a vitória de Moedas? Diz isto:

Enquanto desanca em tudo que se mova à esquerda, acusando todos de traição, o PCP é hiper-reativo a qualquer crítica. Mas devia ouvi-las: está a tornar-se um problema para a esquerda, mesmo que nela só incluam os que estão à esquerda do PS.

E isto:

João Ferreira concluiu, depois de garantir a vitória a Moedas, que o PCP é quem melhor resiste à direita, como se a resistência fosse uma prova de esforço, ausente de objetivos políticos concretos.

E, finalmente (a ordem que o artigo apresenta não é esta, estou a adaptar como me dá mais jeito) isto:

Apesar de ter mais 1200 votos, o resultado da CDU correspondeu à perda de um vereador, à queda para o quarto lugar e, mais importante, à perda da que pode ter sido a última oportunidade para tirar a direita da liderança da capital com a frente mais ampla e mais à esquerda que Lisboa conheceu.

Dito de outro modo: Moedas não ganharia se João Ferreira se tivesse colocado sob a bandeira da Rosa Luxemburgo lisboeta, ganhava era a “frente mais ampla etc.”

Ou seja: A melhor maneira de o PCP preservar a sua identidade é dissolver-se em colectivos que vão fazer o que lhes der na veneta; e acrescentar o PCP a uma coligação de esquerdas soma os votos dele mas não afasta nenhuns.

Enunciemos o que Daniel não percebe: O PCP automutilou-se com a adesão à Geringonça porque vendeu a alma; e misturar João Ferreira com a burguesa Alexandra somava os votos dele mas afastava muitos dos dela.

É o que eu digo: O bom do Dany (chamo-lhe assim por simpatia, não por achincalho) nunca percebe nada.

O fantasma das caixas

José Meireles Graça, 09.06.21

Num artigo gabado por amigos meus Daniel Oliveira toma, e bem, como natural, inevitável e provavelmente desejável a inovação da supressão de caixas num estabelecimento do Continente.

Quando Daniel daniela, fico de pé atrás. Porque o moço, que aliás estimo desde os tempos longínquos em que perorava no Arrastão, prestigiado blogue do qual eu era, como comentador, um dos poucos reaccionários residentes, costuma ter muita razão à primeira vista, e bastante menos à segunda.

Proponho-me respigar algumas frases, que ornarei com os pertinentes comentários, e, no fim, como nas boas parábolas, tirarei uma moral. Assim:

E é por isso que, quando um empresário me diz, para parecer um bom samaritano, que ao contrário de mim criou imensos empregos, só consigo sorrir. Um empresário cria tantos empregos como um trabalhador que mantém a empresa sustentável e produtiva.

O que mantém a empresa sustentável e produtiva são os clientes. A satisfação deles, e por conseguinte a sua fidelidade, depende da qualidade das escolhas (estratégicas, tácticas, comerciais, de diferenciação e inúmeras outras) que o empresário fizer. Estas escolhas implicam a do pessoal a contratar, bem como a supervisão do seu desempenho. Mas nada disto autoriza afirmar que o contributo de um ou vários trabalhadores, por indispensável e meritório que seja, tenha a mesma relevância.

O empresário diz isto porque quer ganhar superioridade moral num debate que não é moral.

Dany (a familiaridade do trato não vem de qualquer superioridade moral ou outra minha, é antes uma manifestação de apreço), reconheço que não faltam empresários a usar esse argumento. Mas o que ele costuma querer dizer, mesmo que nem sempre articuladamente, é isto: toda a gente se toma como gestor e explica com inexcedível competência as maravilhas de crescimento que seriam engendradas por empresários com formação e amor ao risco, em vez dos tristes trastes que os daniéis deste mundo querem acabrunhar com impostos, regras, regulamentos, interditos e pedras ao pescoço. Mas gente com formação é o que mais há; e com competências excelsas que só precisam de ser postas à prova, também. Donde, a pergunta quer dizer isto: por que razão os que julgam saber como se faz, incluindo trabalhadores, não fazem? Quem sabe se, se fizessem, não mudariam de opinião?

O resto do texto está pontilhado aqui e ali com outras considerações discutíveis que não vou escabichar por serem menores e não querer dar a impressão que é tudo para deitar fora, porque não é. Daí que salte para a conclusão:

Para isso, é preciso uma política fiscal que desvie o dinheiro que apenas serviria para concentrar ainda mais a riqueza nuns quantos (é o que está a acontecer) e desemprego noutros para reconverter trabalhadores para trabalho mais qualificado, para reduzir horários ou criar um novo mercado de trabalho social e público. A questão não é como travar a tecnologia. É como pô-la ao serviço de todos - e não apenas de alguns. E isso cabe à política.

Não faltam estudos sábios a demonstrar que, em Portugal, capital sob a forma de reservas não há – há quarenta anos que o capital vem sendo consistentemente destruído, sendo substituído por dívida, pública e privada. E que, portanto, é necessário atrair investimento estrangeiro porque as inundações periódicas de fundos da UE não chegam. Segundo Daniel, pelos vistos, há. E o que é preciso é, pela punção fiscal, ir pilhar quem ainda o tenha, com o meritório propósito de o alocar a fins de grande nobreza e utilidade.

Esses fins são a formação para trabalho mais qualificado, a redução de horários de trabalho e um novo mercado pérépépé.

Sucede que Portugal exporta, ao contrário do que dantes sucedia, trabalho qualificado, de tal forma que as gerações actuais não são ingénuas ao ponto de acreditarem que vão encontrar colocação no nosso terrunho – têm de dar corda aos sapatos e ir para o estrangeiro. Vozes cépticas chamam há muito a atenção para isto e para o facto de que, sem crescimento económico, investir nos jovens para os ver serem forçados a expatriarem-se é investir em formação para beneficiar outros países. Não é que aumentar os níveis de formação académica seja mau – é necessário, mas não suficiente. Infelizmente, a receita do crescimento nunca depende de um só factor.

De formação profissional nem é bom falar, que desde praticamente o início da adesão à CEE têm sido enterrados incontáveis milhões nessa galinha dos ovos de ouro para os sortudos que dela beneficiam – na realidade para disfarçar desemprego, e alimentar escolas de inúteis que fingem que ensinam alunos que fingem que aprendem. De resto, como é que Daniel sabe quais são as formações que permitiriam aos novos desempregados encontrar colocação alternativa? Na minha longa carreira profissional de pequeno industrial tropecei muitas vezes em necessidades de formação que quase nunca poderiam ser satisfeitas com a oferta que existia – esta é quase sempre, se fora do ensino oficial, e com excepção do que esteja ligado a informática, de papel, lápis e treta.

A redução dos horários de trabalho talvez venha a ser necessária. Porém, os países que empreenderem esse caminho fá-lo-ão porque podem. Candeia que vai à frente alumia duas vezes, mas só se estiver acesa. Quem tem uma candeia apagada, como nós, faz bem em andar atrás, para ver onde põe os pés. Daniel, que é uma pessoa arguta, entenderá a alegoria.

O novo mercado de trabalho social e público não sei bem o que seja, mas não é difícil intuir que se trata de mais uma extensão da sombra do Estado e, portanto, despesa pública. A sério, a que há ainda não chega?

Uma nota final: há um pano de fundo para este tipo de artigos e o intervencionismo na vida das empresas, e esse não é apenas a simples ignorância e falta de experiência no terreno. É que Daniel Oliveira acha que não há nenhuma diferença de qualidade intrínseca entre a gestão pública e a privada, e acha isso com base em alguns casos de pública bem sucedida, e muitos de gestão privada que o não foi. Mas mesmo sem entrar em esgrimas sobre o assunto, que é aliás uma pedra de toque entre convicções de esquerda, de um lado, e esclarecidas, do outro, faço uma pergunta retórica: que é que sucede quando se substituem todos os empresários privados por gestores nomeados pelo Poder, mesmo que estejam albardados de qualificações, ou tenham larga experiência, ou tenham sido escolhidos pelos trabalhadores?

O bom do Daniel dirá decerto que no segundo caso falta o mercado, e portanto o mecanismo de selecção. Porém, o mercado também funciona para o empreendedorismo, o que quer dizer que se o Poder não sabe gerir também não sabe empreender. De modo que deixar em paz os empresários que existem talvez não seja má ideia, ao menos enquanto não surgirem outros melhores. E, já agora, criar condições para que esses melhores apareçam.

Como? Dou uma dica: não é a garantir-lhes que, se tiverem sucesso, serão esbulhados.

Debate e cidadania

José Meireles Graça, 28.09.20

Bruno Alves, proprietário de uma excelente cabeça, disse numa rede, a propósito de um debate sobre a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento: “De um lado, o pessoal achou que Oliveira ‘destruiu’, ‘humilhou’, ‘arrasou’, ‘arrumou’, ‘limpou’ ou ‘deixou KO’ Sousa Pinto. Do outro, a conclusão foi de que Sousa Pinto ‘destruiu’, ‘humilhou’, ‘arrasou’, ‘arrumou’, ‘limpou’ ou ‘deixou KO’ Oliveira. O que só quer dizer que ficou demonstrada a absoluta inutilidade do debate político”.

Foi realmente assim, confirmo. Mas não subscrevo a ideia da inutilidade: quando o assunto se presta a diferenças nítidas esquerda/direita, e se não houver um patente desnível da capacidade argumentativa dos debatedores, o normal é que cada um veja como campeão aquele cujas ideias subscreve. Isto justificaria realmente que todos os debates desta natureza fossem inúteis se não se desse o caso de as ideias que as pessoas têm sobre a forma como o Estado deve intervir na vida dos cidadãos evoluírem.

Evoluem, sim. Tanto que todos conhecemos pessoas que se deslocaram para a direita do espectro, defendendo hoje o que antes censuravam, e, ao contrário, pessoas que se deslocaram para a esquerda, perdendo a capacidade de detectar tolices.

O próprio Daniel Oliveira é um exemplo disso, tanto que no seu extenso percurso político já esteve muito mais à esquerda. E gente incuravelmente optimista como eu, que simpatizo com o homem, vai a ponto de imaginar que, se a esperança média de vida estivesse nos 120 anos, aquele ilustre comentador da Sic ainda podia bem acabar em liberal.

Os debates fazem parte deste lento processo de alquimia: em sólidos edifícios de certezas um dia um argumento pode abrir uma fenda imperceptível; mais à frente a fenda pode evoluir para uma brecha; e um belo dia já há uma cratera e o habitante muda de poiso. Um debate não chega e, nesse sentido, é inútil; são necessários muitos, e são portanto essenciais.

O Bruno sabe bem disto. Irritou-se foi com a acrimónia, que realmente era dispensável, ainda que por mim ache que o que se perdeu em civilidade se ganhou em sinceridade. E se lá estivesse ainda era pior porque nem sequer entendo, como Sérgio, que o programa da disciplina devesse ser outro, mas antes que nem sequer deveria existir, ao menos sob a forma obrigatória. E a indignação moralista de Daniel, que guardou do Bloco aquele tique de depositário de uma superioridade moral que imagina ser atributo daquela seita tresloucada que ajudou a fundar, convenhamos: faz perder a cabeça a um santo.

Não vou juntar o meu arrazoado ao que inúmeros (desde logo os dois contendores, ambos em artigos no Expresso) já disseram: quem quiser que vá ler, além deles, o que escreveram, por exemplo, António Barreto ou Mário Pinto.

Somente chamo a atenção para este facto que, por demasiado óbvio, passa despercebido: quase toda as pessoas de direita são contra esta Cidadania e Desenvolvimento; e quase todas as de esquerda são a favor.

O que significa que, a mim, não me passa pela cabeça educar os filhos de Daniel. Se, por exemplo, o bom do intelectual quiser oferecer às netinhas carrinhos e não bonecas, não vá as prendinhas inculcarem nos tenros espíritos das meninas ideias preconcebidas sob géneros, por mim faz favor; mas já vejo com maus olhos que a escola diga à minha neta que, se o vovô lhe deu bonecas e não carrinhos, fez muito mal porque o paizinho tem tanta obrigação de cuidar dos filhos como a mãezinha.

Talvez tenha. Mas isso é um assunto nosso – não de Daniel, nem da escola, nem do legislador.

E então, este Sérgio, deputado socialista, ou, já agora, António Barreto, são de direita? Não. Apenas têm a ideia peregrina de que, no combate das ideias, é um golpe baixo formatar os filhos de uns nas ideias dos pais de outros. Ou pelo menos é assim que interpreto. Mas, lá está, não sou um espectador isento.