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Delito de Opinião

A espada de D. Dinis, Alcanices e os meus antepassados espanhóis

Cristina Torrão, 30.10.22

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A recuperação da espada funerária de D. Dinis, em sequência do restauro do seu túmulo, é uma sensação arqueológica mundial. Escolhi, de propósito, uma imagem com legenda em inglês, de uma página do Facebook intitulada Swordmaker, a fim de mostrar o quanto este achado já agitou a comunidade internacional, tanto de profissionais, como de entusiastas e amantes da época medieval. É uma espada lindíssima, que será restaurada e dará informações preciosas sobre a arte e a estética medievais ibéricas, mas também sobre a sua relação com as restantes tendências europeias.

Com a abertura do túmulo, recuperaram-se, igualmente, restos mortais, nomeadamente, o crânio, possibilitando uma reconstituição do rosto de D. Dinis (algo que aguardo com grande expectativa), assim como os tecidos das suas vestes. Ainda há muito para descobrir sobre a Idade Média. Em muitos campos, como o do vestuário, continua a trabalhar-se com hipóteses ou probabilidades (não exclusivamente).

D. Dinis é conhecido por ter sido poeta/trovador, fundado a Universidade e incrementado a agricultura, mas os seus quarenta e seis anos de reinado (1279-1325) tiveram bem maior significado. O cognome Lavrador não lhe faz justiça. Além da agricultura, ele incrementou a pesca e o comércio. Além disso, incentivou a substituição do latim pelo português nos documentos oficiais (dando um grande contributo para a uniformização da nossa língua), reformou quase todos os castelos e foi um diplomata de excepção (importantíssimo para a estabilidade do reino castelhano, à época, cheio de convulsões internas). O seu reinado teve, porém, facetas amargas, como o conflito armado com o irmão Afonso e os desentendimentos com o seu próprio herdeiro, futuro D. Afonso IV, que mergulharam o reino numa guerra civil e terão inclusive tirado anos de vida ao Rei Poeta.

Há ainda algo que raramente se refere, mas de uma importância extrema: D. Dinis foi o responsável pelas fronteiras definitivas de Portugal, ao incluir no reino, de forma pacífica, as localidades de Moura, Serpa, Noudar e Mourão, e alguns lugares de Ribacoa, como Castelo Rodrigo, Almeida e Sabugal. Foi este o resultado do Tratado de Alcanices (ou Alcañices), assinado a 12 de Setembro de 1297, entre D. Dinis e D. Fernando IV, sob a tutela de D. Maria de Molina, mãe do rei castelhano, que, à altura, tinha apenas onze anos.

Emociona-me que D. Dinis possa, sete séculos depois da sua morte, contribuir tanto para entendermos melhor a sua época. Ele tem sido uma presença recorrente na minha vida, ao longo da última década. Comecei por gozar da sua “companhia” nos dois anos passados em trabalhos de pesquisa e na escrita da sua biografia romanceada, hoje existente apenas numa reedição de autor (neste caso, de autora).

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Mas o meu elo de ligação ao Rei Lavrador passa também por Alcanices, uma ligação que não reside apenas no facto de já lá ter passado dezenas de vezes, nas minhas viagens entre a Alemanha e Portugal, pois entro pela fronteira de Quintanilha. Uma das minhas bisavós (avó paterna do meu pai), Maria de Jesús Rodriguez, era natural de Fonfría, uma localidade do concelho de Alcanices, por onde aliás também passo (não há auto-estrada entre Zamora e Quintanilha). Os pais e os avós de Maria de Jesús Rodriguez (meus tris- e tetravós) eram todos daquela zona. Além de Fonfría, registam-se outros lugares com nomes tão interessantes como Carvajales, Mancenal del Barco e Perrilla de Castro. Tudo isto eu apurei no Arquivo Distrital de Bragança, onde já passei horas e horas a consultar, transcrever e fotografar registos dos livros paroquiais antigos. Se quiser ir mais longe na árvore genealógica, terei, aliás, de ir ao Arquivo de Zamora.

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Esta zona espanhola (eu gosto de dizer leonesa), tão parecida com Trás-os-Montes, no seu isolamento e nas suas pequenas aldeias (algumas não chegam a atingir a centena de habitantes) tornou-se de grande importância para mim. Não passo lá uma única vez sem imaginar os meus antepassados nos seus trabalhos quotidianos e D. Dinis a assinar um dos tratados mais importantes da nossa História.

Afinal, quem fundou a Universidade?

Cristina Torrão, 22.04.21

A editora Clube do Autor publicou, há cerca de um mês, um romance histórico com o título “A Herança de D. Dinis”, de Maria Antonieta Costa. No texto promocional, pode ler-se:

O testamento de D. Dinis é a prova de que o monarca alcançou uma riqueza extraordinária. Como teria sido possível acumular tantos bens em apenas vinte e cinco anos, o tempo do seu reinado, entre 1299 e 1325?

A segunda frase é extremamente infeliz. Dela se depreende que o reinado de D. Dinis durou apenas vinte e cinco anos, iniciando-se em 1299. Sendo assim, gostaria de perguntar aos responsáveis por estas linhas (que, segundo a autora, fazem parte do texto da contra-capa), qual o monarca responsável por nada menos do que sessenta cartas de foral concedidas entre 1279 e 1298; quem presidiu às Cortes reunidas por quatro vezes, entre 1285 e 1291 (Lisboa 1285, Guimarães 1288, Lisboa 1289, Coimbra 1291); quem fundou a cidade de Vila Real em 1289; quem fundou o Mosteiro de Odivelas em Fevereiro de 1295; quem assinou o Tratado de Alcanices, a 12 de Setembro de 1297, no qual se definiram as fronteiras definitivas entre Portugal e Castela.

E afinal, quem fundou a Universidade, em 1290?

O reinado de D. Dinis durou quase quarenta e seis anos. Iniciou-se a 16 de Fevereiro de 1279, data da morte de seu pai D. Afonso III, e findou a 7 de Janeiro de 1325, com a sua própria morte. Seria demais pedir maior rigor, ao escrever sobre romances deste tipo?

 

Nota: gostaria de salientar que, antes da publicação de um livro, a editora mostra a contra-capa ao escritor, que pode solicitar alterações ao texto.

Dois reis medievais e “suas” cidades

Cristina Torrão, 07.01.20

Este postal não se insere na série das efemérides à volta da formação de Portugal, mas não quis deixar de assinalar o aniversário da morte de D. Dinis, pois ele e D. Afonso Henriques são os dois reis mais significativos da nossa Idade Média. Além disso, aproveito para falar da sua ligação às cidades com que os identificamos.

D. Dinis morreu a 7 de Janeiro de 1325, com sessenta e três anos, depois de um reinado longo e sobejamente preenchido. Apesar de ter sido coroado com apenas dezassete primaveras, D. Dinis estava, desde o início, perfeitamente vocacionado para a sua tarefa. Pode-se dizer que foi um monarca feliz, se exceptuarmos a recta final do reinado, marcada pela guerra civil contra o seu próprio herdeiro, conflito que tanto o amargurou e desgastou, que bem pode ter acelerado a sua morte.

De todas as medidas que tomou ao longo dos 46 anos de reinado, a fundação da Universidade é a que mais se recorda, levando-nos a acreditar que o Rei Poeta preferia a cidade de Coimbra, onde terá vivido a maior parte do seu tempo, escrevendo poemas nas margens românticas do Mondego. Esta imagem, porém, não passa de uma fantasia. Apesar de gostar de Coimbra (como gostava, ou amava, todo o seu reino), D. Dinis identificava-se, acima de tudo, com Lisboa, a sua cidade-natal e, de longe, a preferida. E foi precisamente na nova capital do reino (desde o tempo de seu pai, D. Afonso III) que a Universidade (inicialmente apelidada de Estudo Geral das Ciências) foi fundada.

A 12 de Novembro de 1288 redigiu-se, em Montemor-o-Novo, a carta ao papa Nicolau IV, pedindo autorização para a criação do Estudo Geral das Ciências em Lisboa. Em resposta, o papa emitiu, a 9 de Agosto de 1290, a bula De Statu Regno Portugaliae, confirmando o ensino de Cânones, Leis, Medicina e Artes e autorizando a concessão de grau de licenciado pelo bispo ou vigário da Sé lisbonense.

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Cerca de dezassete anos mais tarde, porém, é feito o pedido de transferência do Estudo Geral para Coimbra. Das razões, pouco se sabe. Na sua biografia de D. Dinis, o Professor José Augusto Pizarro refere conflitos com a Casa da Moeda em relação ao terreno que D. Dinis doara para a construção do edifício do Estudo Geral, no Campo da Pedreira à Lapa, perto do Mosteiro de São Vicente de Fora. Também haveria conflitos entre os estudantes e a população de Lisboa, embora, como referi, os motivos, tanto para uns, como para outros, não sejam hoje claros. A transferência foi autorizada por Clemente V a 26 de Fevereiro de 1308 e, a 15 de Fevereiro de 1309, pela Charta magna privilegiorum, D. Dinis estipulou os estatutos do Estudo Geral de Coimbra.

O assunto, no entanto, não ficou por aqui. A Universidade mudaria várias vezes de local, sempre entre Lisboa e Coimbra, e só ficou definitivamente instalada junto ao Mondego em 1537, mais de duzentos anos depois da morte do Rei Poeta.

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Fotografia: © UC | Ana Zayara

Para a identificação de D. Dinis com Coimbra contribuíram, não só a fundação da Universidade e a estátua inaugurada, nos anos 1950 como o facto de D. Isabel ter vivido recolhida, depois de enviuvar, no mosteiro de Santa Clara, junto ao Mondego, por ela própria mandado construir, e ter lá ficado sepultada. Ao contrário de D. Dinis, que preferiu ficar junto a Lisboa, no mosteiro de Odivelas, também por ele fundado.

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Túmulo de D. Dinis em Odivelas. Foto ©José Custódio Vieira da Silva

Na verdade, quem devia ser identificado com Coimbra era D. Afonso Henriques! Não ponho em causa a importância de Guimarães no início da nossa nacionalidade. Apesar de haver reservas quanto ao facto de o primeiro rei lá ter nascido, foi lá que ele assentou arraiais, ainda infante, ao afastar-se de sua mãe e de Fernando Peres de Trava. Como sabemos, o conflito viria a desembocar na Batalha de São Mamede, junto ao castelo de Guimarães, na sequência da qual D. Afonso Henriques atingiu o poder sobre o condado Portucalense. Lembremos, porém, que, à altura deste prélio, o nosso primeiro rei tinha apenas cerca de vinte anos. Viria a morrer com cerca de setenta e cinco - são mais de cinquenta anos de diferença… vividos em Coimbra.

Foi de facto na cidade junto ao Mondego que D. Afonso Henriques estabeleceu a sua corte, fundando o mosteiro dos Cónegos Regrantes de Santa Cruz, no início dos anos 1130, data a partir da qual poucas vezes terá estado em Guimarães, até à sua morte, em 1185.

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Afonso I - Óleo de Carlos Alberto Santos

 

Nota: O estado degradado em que se encontra a sepultura de D. Dinis, levou um grupo de cidadãos, há alguns anos, a criar uma página no Facebook, vamos salvar o túmulo do rei D. Dinis, a fim de alertar para a necessidade da sua recuperação. Graças a esta iniciativa, já se efectuaram alguns melhoramentos.