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Delito de Opinião

Efemérides históricas ao tempo da formação de Portugal (19)

Cristina Torrão, 08.03.20

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Urraca I de Leão e Castela - Pintura de 1892/94 por José María Rodríguez de Losada na Prefeitura de Leão

 

A 8 de Março de 1126, morreu D. Urraca, rainha de Leão e Castela, com apenas quarenta e seis anos. Sobre as causas da morte, nada se sabe, mas não constitui novidade que, naquele tempo, se morria de doenças hoje curáveis e/ou evitáveis. Como já aqui escrevi em vários “postais”, nomeadamente neste e neste, as rivalidades entre D. Urraca e a sua meia-irmã D. Teresa foram fundamentais para a formação do reino de Portugal.

Urraca foi a única descendente legítima do imperador hispânico Afonso VI. A sua mãe era a rainha Constança, filha do duque Roberto da Borgonha, bisneta do rei francês Hugo Capeto e sobrinha do abade Hugo de Cluny. Segundo Marsilio Cassotti (2008), D. Urraca era prima em primeiro grau do conde D. Henrique, pai de D. Afonso Henriques. A tradição diz-nos que Henrique e Raimundo, o marido de Urraca, eram primos, mas, segundo esta versão, eram-no apenas por afinidade.

A região da Borgonha estava dividida entre um ducado e um condado. Henrique descendia da Casa Ducal, o que, na verdade, o punha numa condição superior à de Raimundo, que descendia da Casa Condal. D. Henrique era o irmão mais novo do duque Eudes I Borrell, o que fazia do conde portucalense sobrinho da rainha Constança, primo de Urraca e sobrinho-neto do abade Hugo de Cluny.

Com a morte da rainha D. Urraca, o seu filho Afonso Raimundes, que já era rei da Galiza desde os cinco anos de idade (coroado a 17 de setembro de 1111), sobe ao trono de Leão e Castela como Afonso VII, tornando-se no legal soberano do condado Portucalense. O primo Afonso Henriques adoptou em relação a ele um comportamento idêntico ao de sua mãe em relação à meia-irmã Urraca: nunca lhe prestou formalmente vassalagem, mantendo-se ambígua a relação de poder entre eles, até que Roma aceitou a vassalagem do rei português, tornando-o independente do poder central hispânico.

Efemérides históricas ao tempo da formação de Portugal (16)

Cristina Torrão, 05.10.19

Há quem assinale a data de 5 de Outubro de 1143 como a da independência de Portugal. É um facto que, em Zamora, Afonso VII, o imperador da Hispânia, reconheceu o título de rei a seu primo e Portugal como reino. Contudo, não prescindiu da vassalagem de Afonso Henriques.

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Zamora, na nargem direita do rio Douro (Duero)

 

Atentemos ao que diz José Mattoso, na sua biografia de Afonso Henriques (2007; extractos das páginas 207 a 214):

No Verão de 1143, chegou ao reino de Leão o cardeal legado da Sé Apostólica Guido de Vico (…) Guido parece ter-se dirigido primeiro a Portugal. Há informações acerca da sua estadia no Porto e em Coimbra.

(…)

De Coimbra, o legado dirigiu-se a Valhadolid, onde, em 19 e 20 de Setembro, celebrou um concílio.

(…)

Depois de ter encerrado o concílio, o legado papal dirigiu-se a Zamora, onde estava a 4 e 5 de Outubro, e onde se reuniu com os reis de Portugal e de Leão. A este encontro chamam os historiadores modernos a «conferência de Zamora». Tem sido considerada como a reunião que selou o acordo entre Afonso Henriques e Afonso VII, que marcou o reconhecimento pelo segundo da dignidade régia do primeiro, e que permitiu a celebração de um tratado, que talvez incluísse uma repartição dos direitos de conquista sobre territórios muçulmanos, mas do qual, infelizmente, não existe nenhum texto.

(…)

A 13 de Dezembro de 1143, Afonso Henriques dirigiu uma carta ao papa declarando que tinha feito homenagem à Sé Apostólica, nas mãos do cardeal Guido, como cavaleiro de São Pedro (…) Também se torna quase certo que esta decisão obtivera o acordo do cardeal, uma vez que a carta declara que o rei tinha prestado homenagem nas suas mãos. (…) Estes factos significam, por sua vez, a realização de conversações anteriores, talvez por ocasião da passagem de Guido por Coimbra [ou seja, antes da conferência de Zamora].

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Assinatura do Tratado de Zamora. Painel de azulejos do início do século XX, em Portimão - Foto de Aires de Almeida no Flickr

 

Consideremos este ponto importantíssimo: antes de se dirigir a Zamora, Afonso Henriques prestou homenagem ao cardeal Guido de Vico. Porquê? Só podia ser por saber que o primo não prescindiria da sua condição de vassalo! Como imperador, Afonso VII podia ter reis (e tinha) como vassalos, por isso, o reconhecimento do título real a Afonso Henriques e de reino a Portugal não significa uma aceitação da independência por parte dele.

Neste sentido escreve igualmente o Prof. Miguel Gomes Martins em 1147 - A Conquista de Lisboa (2017):

[Na conferência de Zamora deve ter sido também debatido] o compromisso por parte de Afonso Henriques de não voltar a intervir militarmente na Galiza (…) Este ponto pode mesmo ter sido decisivo para o que se passou de seguida, ou seja, para que Afonso VII, em retribuição e talvez por pressão do legado [papal], reconhecesse o título de rei a Afonso Henriques, algo a que o imperador não deve ter colocado grandes entraves, já que em nada beliscava a sua supremacia face ao primo, que continuaria (…) na sua dependência vassálica. Pelo menos, assim o pensava, pois desconhecia o que secretamente tinha sido negociado em Coimbra, semanas antes, entre Afonso Henriques e Guido de Vico, ou seja, a preparação da vassalagem do monarca português à Santa Sé, acto que necessitava ainda de ser formalizado pelo rei, mas acima de tudo, pelo papado (p. 98).

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Temos aqui uma situação muito curiosa e que costuma ser ignorada: o cardeal Guido de Vico aceitou a homenagem de Afonso Henriques, prometendo libertá-lo do jugo de Afonso VII e, passadas semanas, serviu de mediador num encontro em que o rei português não contestou a sua condição de vassalo do imperador hispânico! Como se explica que um legado papal tivesse tal atitude?

A explicação estará em negociações secretas levadas a cabo entre D. João Peculiar, arcebispo de Braga, e o cardeal Guido de Vico, que terão incluído o casamento de D. Afonso e D. Mafalda de Sabóia. José Mattoso (2007) considera o arcebispo de Braga uma figura chave em todo este processo. Chega a afirmar que D. João Peculiar terá contribuído tanto como o próprio Afonso Henriques para a independência de Portugal.

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Estátua do arcebispo D. João Peculiar, em Braga.

A 13 de Dezembro de 1143, cerca de dois meses depois do encontro de Zamora, Afonso Henriques encontrou-se em Braga com o arcebispo D. João Peculiar e com os bispos do Porto e de Coimbra, a fim de se escrever a missiva (Claves regni celorum) a enviar ao papa, conforme combinara com o cardeal, solicitando vassalagem à Santa Sé. Ora, se o primo já tivesse reconhecido a independência de Portugal, tal passo seria desnecessário.

Este pedido de vassalagem chegou, porém, a Roma numa altura conturbada, em que se realizaram dois conclaves no espaço de seis meses. Inocêncio II, o papa que enviara Guido de Vico à Hispânia, morreu antes do regresso do cardeal. O seu sucessor, Celestino II, faleceu, antes de responder ao rei português e foi finalmente Lúcio II quem enviou a bula Devotionem tuam, datada de 1 de Maio de 1144. Quando finalmente o nosso primeiro rei a segurou nas mãos, porém, deve ter ficado desiludido.

Em primeiro lugar, o papa não o intitulava rei, mas sim «dux portugallensis». E não dizia claramente que Afonso Henriques estaria livre da suserania do primo, optando por uma linguagem difusa: promete-lhe, tanto a ele, como aos seus sucessores, a protecção de São Pedro para as suas almas e para os seus corpos.

Afonso Henriques viu-se, assim, numa situação bastante ambígua: Roma aceitava-o vassalo (e o censo em ouro), ao garantir-lhe a protecção de São Pedro. Mas intitulava-o apenas de «duque»!

O nosso primeiro rei teria de esperar ainda mais de trinta anos para ver reconhecido o seu título real, por parte da Santa Sé. Tinha já cerca de setenta anos, quando recebeu a Bula Manifestis Probatum de Alexandre III.

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Bula Manifestis Probatum, de 23 de Maio de 1179

Efemérides históricas ao tempo da formação de Portugal (15)

Cristina Torrão, 26.09.19

Em Setembro ou Outubro de 1127, D. Afonso VII entrou com um exército no norte do condado Portucalense. D. Afonso VII, ou Afonso Raimundes, o primo de D. Afonso Henriques, era rei de Leão, Castela e Galiza havia cerca de ano e meio. Depois da morte de sua mãe, D. Urraca, em Março de 1126, os reinos hispânicos entraram em convulsão e o jovem rei viu-se obrigado a impor a sua autoridade, a fim de suceder a seu avô como imperador. Organizou campanhas contra Aragão e, tendo subjugado o rei aragonês, entrou pelo Minho à frente de um exército.

O condado estava já muito dividido, porquanto o Norte, mais poderoso, apoiava Afonso Henriques. Por isso, ele se aquartelou em Guimarães, enquanto D. Teresa e Fernando Peres de Trava se quedavam por Coimbra ou Viseu. Afonso VII soube aproveitar este conflito. Foi na sequência desta sua invasão que se deu o cerco a Guimarães, originando uma das lendas mais conhecidas da nossa História: a lenda de Egas Moniz de Ribadouro, que terá ido, com a família, de corda à garganta, pedir perdão ao rei leonês, ao ver-se impossibilitado de manter a sua palavra, em como Afonso Henriques prestaria vassalagem ao primo.

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Egas Moniz em Leão (Roque Gameiro, Quadros da História de Portugal, 1917

 

Na verdade, e segundo José Mattoso (2007), esta lenda terá sido obra de um trovador da corte de D. Afonso III, pai de D. Dinis, chamado João Soares Coelho. Na segunda metade do século XIII, a família de Ribadouro estava extinta, mas João Soares Coelho era seu descendente por linha bastarda. A fim de honrar o seu antepassado, criou um cantar épico, a Gesta de Egas Moniz, onde se contava o episódio. Este entranhou-se no imaginário colectivo e foi incluído nas crónicas medievais, como se de um facto se tratasse.

Como todas as lendas, é baseada em acontecimentos verídicos (invasão de Afonso VII e o cerco a Guimarães), mas fica por dizer que, nessa altura, era D. Teresa quem regia sobre o Condado Portucalense, pois ainda não se tinha dado a batalha de São Mamede. Além disso, Afonso Henriques, com cerca de dezoito anos, era um jovem infante (por sua mãe se intitular rainha), que tinha sido investido cavaleiro há apenas um ou dois anos (conforme as versões) e que não tinha ainda travado nenhuma batalha, nem feito uma conquista que fosse.

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Castelo de Guimarães, Foto © Horst Neumann 2009

Nota: Só na segunda metade do século XIII, com as reformas góticas, o castelo de Guimarães adquiriu as características que se lhe conhecem, hoje em dia, incluindo os oito torreões de planta quadrangular, os merlões pontiagudos e a torre de menagem de planta quadrada.

 

Ao saberem Guimarães em perigo, alguns barões do Norte foram acudir ao infante, entre eles, Soeiro Mendes o Grosso, tenente da terra de Sousa. Parece ter sido ele quem coordenou a defesa da vila e do castelo. As fontes não permitem perceber com rigor a cronologia, a duração, ou mesmo a forma como decorreu o cerco, mas o seu desfecho parece ter sido favorável ao rei de Leão. A vila de Guimarães, nesse tempo, e ao contrário do castelo, não tinha ainda defesas eficazes, não estando sequer amuralhada em todo o seu perímetro. Por isso, e contrariando a lenda, Afonso Henriques acabou por se render e por aceitar as exigências do primo, prometendo-lhe vassalagem, mas… em nome da mãe, D. Teresa!

Neste caso, o filho rebelde, pelos vistos, não teve problemas em reconhecer sua mãe como soberana do condado. E conseguiu, assim, uma situação dúbia, pois prometeu vassalagem sem a prestar, uma situação que, como sabemos, virá a explorar ao sabor dos seus interesses, no futuro. A prova da rendição de Afonso Henriques está no facto de ter confirmado, com a sua assinatura, três importantes diplomas de D. Afonso VII, lavrados a 13 de Novembro de 1127 (pouco depois do cerco), em Santiago de Compostela. Ou seja, depois de se render e prometer vassalagem em nome de sua mãe, Afonso Henriques acompanhou o primo à capital da Galiza.

 

Fontes:

Af H Mattoso.jpg

 

Guerreiros de Pedra.jpg

 

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