Rapidinhas de História #9
O receio de Afonso Henriques
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O receio de Afonso Henriques
Um caso de herança
Os livros por trás das Rapidinhas
A importância do arcebispo de Braga
Anulação de casamentos
Acusação de infiel não faz sentido
Acusada de incesto, mas não pelo que se julga.
D. Teresa - solução temporária
Península Ibérica - um caso único na Europa Medieval
D. Teresa e D. Afonso Henriques - uma família tradicional?
Não resisto a deixar aqui o link da RTP Play para o 10º episódio da série documental Duplas à Portuguesa, transmitido ontem. É dedicado à dupla Afonso Henriques e Egas Moniz.
Infelizmente, não tem direitos de transmissão para o estrangeiro, só poderei ver o programa no próximo dia 7, na RTP Internacional.
https://www.rtp.pt/programa/tv/p42647/e10
Não sei se já ouviram falar na série documental Duplas à Portuguesa, que costuma passar na RTP2, às quartas-feiras, pelas 22:50 horas. O 10º episódio, dedicado à dupla D. Afonso Henriques/Egas Moniz, vai para o ar no próximo dia 1 de Fevereiro.
A 13 de Julho de 2021, desloquei-me ao Museu Soares dos Reis, no Porto, a fim de ser entrevistada sobre essa dupla, para essa mesma série. A entrevista durou cerca de uma hora, mas deduzo que apenas alguns momentos serão mostrados, pois são entrevistadas várias pessoas sobre cada tema.
E era isto. Se pudessem ver, agradecia.
Na época medieval, houve uma infanta portuguesa que se tornou rainha da Dinamarca, estando sepultada junto de outros reis e rainhas medievais, na Sankt Bendts Kirke (Igreja de São Bento), em Ringsted, perto de Copenhaga. Porém, segundo Anabela Natário, autora do livro representado na imagem, o seu epitáfio identifica-a apenas como irmã do conde da Flandres.
Esta identificação, apesar de incompleta, não é falsa. Tudo começou com o avô desta infanta portuguesa, D. Afonso Henriques, ao casar a sua filha Teresa com Filipe da Alsácia, conde da Flandres. O consórcio durou apenas seis anos e o casal não teve filhos (do primeiro casamento de Filipe com Elisabeth de Vermandois também não houve descendência). O conde da Flandres embarcou em várias cruzadas e acabou por sucumbir, em Setembro de 1190, a uma epidemia, durante o cerco a Akkon.
A infanta D. Teresa, ou Matilde, como ficou conhecida por aquelas paragens, por identificação com sua mãe (Mafalda, ou Matilde de Saboia), viu-se assim confrontada com a falta de sucessão e socorreu-se da numerosa prole de seu irmão, D. Sancho I. Nomeou o sobrinho, infante D. Fernando de Portugal, seu sucessor e negociou o casamento dele com Joana de Hainaut. O casal teve, porém, apenas uma filha, que morreu jovem. E, sendo a História da Europa Central intrincada e o condado da Flandres muito disputado, o filho de D. Sancho I viu-se envolvido em várias lutas, acabando prisioneiro do rei de França por cerca de doze anos e perdendo o seu valioso condado.
Fernando de Portugal, conde da Flandres, prisioneiro de Filipe Augusto, rei de França
Bem, tudo isto para dizer que, ao viajar para a Flandres, ao encontro da sua noiva, o infante D. Fernando levou consigo a irmã D. Berengária. E Valdemar II da Dinamarca, ao enviuvar, escolheu esta infanta portuguesa para um segundo consórcio, união igualmente negociada pela tia Teresa. A condessa regente da Flandres pretenderia um aliado contra o rei de França, que exigia a devolução de territórios flamengos conquistados outrora. Há algo, porém, a acrescentar: Valdemar II teria tido, ainda como príncipe herdeiro, contacto com a família real portuguesa. Segundo Anabela Natário, «muitos autores escreveram que D. Sancho I e Valdemar se teriam conhecido em 1189 e lutado lado a lado, ainda Berengária não era nascida. [Valdemar] teria entrado no rio Tejo, à frente de uma armada de cruzados cristãos vinda da Dinamarca e da Frísia (…), que antes de rumar à Terra Santa, ajudaria o rei português a conquistar o Algarve aos muçulmanos» (p.169).
Valdemar II e D. Berengária casaram em Maio de 1214, na semana de Pentecostes. Mas a infanta portuguesa, feita rainha da Dinamarca, morreria em 1221, com pouco mais de vinte anos, depois de já ter dado quatro filhos à luz. Não se sabe as razões da sua morte, mas poderia ter sido de parto, como tantas vezes acontecia.
Berengária era realmente irmã do conde da Flandres. Porém, se é esta a única informação que consta do seu epitáfio, o povo dinamarquês, em geral, não conhece a verdadeira origem desta sua rainha.
Existe, no entanto, outro caso de uma infanta portuguesa assinalada, ainda segundo Anabela Natário, como «filha do rei de Espanha», no seu epitáfio dinamarquês! Mas disso falarei noutra ocasião.
Nota de rodapé: a infanta D. Teresa, filha de D. Afonso Henriques, é-nos apresentada, neste livro de Anabela Natário, como Teresa Henriques (pp.84 e seguintes), designação com a qual não posso concordar. Filhos e filhas adquiriam o apelido do pai, a partir do nome próprio deste, com uma terminação derivada do genitivo latino (por isso, Henriques filho de Henrique; Sanches filha de Sancho; Gonçalves filho de Gonçalo, etc.). Este apelido não transitava para netos e netas. Sendo Teresa filha de Afonso (e não obedecendo o nome de Afonso à regra do genitivo latino), a designação correcta para esta infanta portuguesa seria Teresa Afonso.
«Em Portugal, houve nas últimas décadas uma explosão de investigações que alargou imenso as temáticas (…) Sabemos hoje muito mais sobre o que aconteceu no território que veio a tornar-se Portugal, e sobre o reino português, do que há 25 anos, e de uma forma mais plural» - palavras da historiadora Maria de Lurdes Rosa, na entrevista que serve de introdução a este especial Visão História.
A publicação cumpre aquilo que a historiadora nos promete. Abrange toda a época medieval (do século V ao XV), dando-nos informações sobre aspectos normalmente desprezados pela nossa História, mas essenciais para entendermos a formação de Portugal e as raízes do nosso povo, como a época dos reinos Suevo e Visigodo e a era islâmica, bem mais diversificada do que aquilo que nos fizeram crer, durante séculos. Além disso, apresenta artigos sobre a vida dos camponeses, os mesteres, a organização da sociedade, as finanças, o ensino, a cultura, a literatura, etc. Porque estudar a História não é apenas decorar datas e nomes de reis, batalhas e guerras.
E, no entanto, "não há bela sem senão". O artigo sobre D. Afonso Henriques, cheio de incongruências, não possui o nível qualitativo das outras contribuições. Para começar, o autor, Luís Almeida Martins, diz-nos que o «político e jurista Diogo Freitas do Amaral (…) deu em 2006 à estampa o livro D. Afonso Henriques - Biografia». Na verdade, esse livro é seis anos mais velho, foi publicado, pela primeira vez, no ano 2000, pela Bertrand Editora. Mais à frente, D. Teresa surge como sendo galega, quando não se sabe ao certo onde nasceu, embora se considere ter sido leonesa. Aponta-se o castelo leonês de Ulver, situado nos montes do Bierzo, como local do seu nascimento. Luís Almeida Martins diz-nos ainda haver uma lenda que diz ser D. Afonso Henriques filho de Egas Moniz, ou seja, o nosso primeiro rei teria sido fruto dos amores ilícitos de D. Teresa com o fidalgo de Ribadouro! Ora, a lenda não fala de “amores ilícitos”. O pequeno Afonso teria nascido aleijado das pernas e D. Egas Moniz, encarregado da sua educação, resolveu trocá-lo, ainda bebé, por um filho seu da mesma idade. Neste caso, a mãe nunca poderia ser D. Teresa! E, para dar mais um exemplo da falta de cuidado na escrita deste capítulo, atente-se à seguinte passagem: «já com 60 anos, D. Afonso Henriques (…) tentou apoderar-se de Badajoz. Ali, teve de lutar contra mouros e leoneses, acabando prisioneiro de Afonso VII (…) Acabaria por ser libertado pelo primo em troca de uma faixa de terreno na Galiza». Na verdade, quando o nosso primeiro rei atacou Badajoz, em 1169, o seu primo estava já morto há doze anos! Quem o fez prisioneiro foi Fernando II de Leão, filho do dito Afonso VII. E, diga-se de passagem, genro do próprio Afonso Henriques.
Tenho ainda uma crítica a fazer a este especial Visão História: falta um artigo dedicado a D. Teresa! Ela aparece-nos em vários momentos, incluindo um capítulo intitulado Ser Rainha, no meio de, por exemplo, D. Mafalda de Saboia, D. Isabel ou D. Filipa de Lencastre. D. Teresa não se enquadra, porém, neste contexto. Ela não se limitou a ser esposa de um rei (até porque foi casada com um conde); ela regeu sozinha sobre o condado Portucalense durante dezasseis anos. D. Henrique continua a ter mais destaque do que ela. Mas, como eu já aqui referi no Delito de Opinião, D. Teresa marcou indubitavelmente a independência em relação a sua meia-irmã D. Urraca, a única herdeira do imperador Afonso VI. Recusou-se terminantemente a prestar-lhe vassalagem, assim como ao sobrinho (depois da morte de D. Urraca em 1126). Ou seja: muito mais do que o conde D. Henrique, ela foi a preparadora do caminho que seu filho haveria de percorrer.
Pelos vistos, e apesar do avanço do estudo histórico, D. Teresa ainda é limitada à adúltera, a quem o filho teve de pôr na ordem. E, não contentes com os irmãos de Trava, ainda lhe querem impingir outro amante, o próprio Egas Moniz! Haja paciência!
Estátua da rainha D. Teresa, em Ponte de Lima
- Acaso achais que haja alguém que sofra mais do que eu com o rumo que nossas vidas tomaram? Desejo a paz. Desejo o melhor para a minha família e para a minha terra, as duas cousas que mais amo. E é em nome desses amores, pelo seu bem-estar, que vos peço que intercedais junto do papa, a fim de anular o matrimónio de Fernando Peres de Trava com Sancha Gonçalves.
Ergueu as sobrancelhas em grande espanto:
- Anular o matrimónio de D. Fernando? A que propósito?
- Pensei que o motivo era inquestionável. Carrego o fruto da minha união com o filho do conde de Trava e não desejo continuar a viver em pecado. D. Fernando e eu pretendemos casar. E seria do interesse de todos que a situação se regularizasse.
- Não desejais viver em pecado? Pois deveríeis haver pensado nisso antes de pecar!
- D. Paio Mendes, somos as duas maiores instâncias deste condado. Não ajamos como se fôsseis vós um pároco de aldeia e eu uma lavadeira que se deixou encantar pelas palavras de um mancebo de estrebaria! Está em causa a nossa terra, que herdei de meu pai. Pretendo engrandecê-la e só o poderei fazer se remarmos todos juntos.
- Estais à espera que eu, os bispos e os barões pactuemos com mancebia e incesto? A vingança de Deus cairá sobre vós, D. Teresa. E o castigo será gigantesco!
Engoli em seco, como que prevendo as desgraças que estavam para vir. Recusei-me, porém, a mostrar fraqueza:
- Tal não sucederá, D. Paio, se vós derdes ouvidos a vossa rainha e tudo fizerdes para que ela possa desposar o pai de seu futuro filho.
- Não se pode usar o poder da Santa Igreja a seu bel-prazer, minha senhora, lavando pecados mortais, apagando-os como se não houvessem existido!
- Não me façais rir, arcebispo! Bem sabeis que a Igreja anula matrimónios a pedido de reis e príncipes, a fim de legitimar bastardos, ou repudiar esposas incómodas e estéreis. A vossa Igreja não se escusa a pactuar com os tais pecados que referistes, quando se trata de homens!
- Ensandecestes, D. Teresa? Quereis vós, herdeira da Eva pecadora e tentadora, medir-vos com os excelsos varões deste mundo?
Este diálogo não passa de ficção, mas foi escrito a fim de realçar as dificuldades enfrentadas por D. Teresa apenas por ser mulher. Já sei, vão acusar-me de anacronismo, que a mentalidade daquele tempo era essa, etc. e tal. Acontece, porém, que D. Teresa foi muito maltratada pela História, ao longo dos séculos. Nos últimos vinte anos, tem-se vindo enfim a recuperar a sua imagem, mas enfrentando a resistência de muitos, isso sim, verdadeiro anacronismo.
Desde sempre se convencionou considerar D. Afonso Henriques o sucessor de seu pai, continuando a sua obra, como se os dezasseis anos em que D. Teresa esteve à frente do condado Portucalense não existissem. Ela é considerada um acidente de percurso, uma mulher promíscua, que queria “vender” o condado aos galegos. Valeu-nos ter um filho justiceiro, que pôs tudo em ordem e recuperou o bom nome do pai.
Na verdade, D. Afonso Henriques continuou mais a obra da mãe do que do pai. D. Teresa fez muito mais pela independência de Portugal do que o marido, ao recusar aceitar sua meia-irmã D. Urraca como a única herdeira do pai de ambas. D. Teresa insistiu na divisão da herança: Leão e Castela para a irmã, Galiza e Portucale para ela. E a sua luta deu frutos, colhidos pelo filho que, afinal, não era tão avesso à ideia de juntar Galiza a Portucale, pois, assim que assumiu o poder, andou, durante cinco anos, a tentar conquistar territórios galegos. Se nos guiarmos pelas fontes históricas, em vez de por preconceitos e lendas medievais, constatamos que D. Afonso Henriques colaborou com a sua mãe até ao ano de 1127, ou seja, só um ano antes de S. Mamede ele decidiu fazer-lhe oposição, ao contrário dos barões portucalenses, que começaram a abandonar a corte de D. Teresa já por volta de 1121.
Afonso Henriques é venerado em Portugal (e com razão), mas onde está o nosso reconhecimento pela obra de D. Teresa? Foi, por isso, com muito agrado que vi esse reconhecimento numa pequena vila portuguesa, onde ela é venerada como uma rainha (a própria aliás assinava os documentos da cúria com esse título e foi inclusive assim tratada pelo papa Pascoal II). Eu já sabia que em Ponte de Lima havia uma estátua dela, mas é importante vê-la ao vivo, admirá-la, a fim de assimilarmos melhor essa homenagem.
Adorei a estátua, faz-lhe toda a justiça. D. Teresa segura na mão o foral que concedeu à vila, em 1125, ainda antes de Portugal existir.
Uma homenagem mais do que merecida.
«Afonso cumpriu o ritual dos cavaleiros da alta nobreza, guerreiros divinos ao serviço de Deus, purificando o corpo e a alma: jejuou um dia inteiro e passou a noite em vigília na igreja de São Salvador de Zamora, estando a catedral ainda a ser construída.
Meu filho armou-se a si próprio cavaleiro, tomando pela sua mão as armas que se encontravam sobre o altar, benzidas pelo bispo Bernardo de Périgord, realçando assim a sua condição de infante, filho de rainha, neto de imperador. Foi uma cerimónia parca de testemunhas, mas mui intensa para nós, imbuídos do espírito de Henrique, que parecia pairar sobre nossas cabeças como as línguas de fogo do Espírito Santo sobre as dos apóstolos».
In “Memórias de Dona Teresa”, de minha autoria (Poética Edições 2018)
Nota: embora não se saiba a data da investidura de D. Afonso Henriques, muitos historiadores apontam para o Pentecostes (altura preferida, naquele tempo), dos anos 1125 ou 1126.
A 8 de Março de 1126, morreu D. Urraca, rainha de Leão e Castela, com apenas quarenta e seis anos. Sobre as causas da morte, nada se sabe, mas não constitui novidade que, naquele tempo, se morria de doenças hoje curáveis e/ou evitáveis. Como já aqui escrevi em vários “postais”, nomeadamente neste e neste, as rivalidades entre D. Urraca e a sua meia-irmã D. Teresa foram fundamentais para a formação do reino de Portugal.
Urraca foi a única descendente legítima do imperador hispânico Afonso VI. A sua mãe era a rainha Constança, filha do duque Roberto da Borgonha, bisneta do rei francês Hugo Capeto e sobrinha do abade Hugo de Cluny. Segundo Marsilio Cassotti (2008), D. Urraca era prima em primeiro grau do conde D. Henrique, pai de D. Afonso Henriques. A tradição diz-nos que Henrique e Raimundo, o marido de Urraca, eram primos, mas, segundo esta versão, eram-no apenas por afinidade.
A região da Borgonha estava dividida entre um ducado e um condado. Henrique descendia da Casa Ducal, o que, na verdade, o punha numa condição superior à de Raimundo, que descendia da Casa Condal. D. Henrique era o irmão mais novo do duque Eudes I Borrell, o que fazia do conde portucalense sobrinho da rainha Constança, primo de Urraca e sobrinho-neto do abade Hugo de Cluny.
Com a morte da rainha D. Urraca, o seu filho Afonso Raimundes, que já era rei da Galiza desde os cinco anos de idade (coroado a 17 de setembro de 1111), sobe ao trono de Leão e Castela como Afonso VII, tornando-se no legal soberano do condado Portucalense. O primo Afonso Henriques adoptou em relação a ele um comportamento idêntico ao de sua mãe em relação à meia-irmã Urraca: nunca lhe prestou formalmente vassalagem, mantendo-se ambígua a relação de poder entre eles, até que Roma aceitou a vassalagem do rei português, tornando-o independente do poder central hispânico.
Este postal não se insere na série das efemérides à volta da formação de Portugal, mas não quis deixar de assinalar o aniversário da morte de D. Dinis, pois ele e D. Afonso Henriques são os dois reis mais significativos da nossa Idade Média. Além disso, aproveito para falar da sua ligação às cidades com que os identificamos.
D. Dinis morreu a 7 de Janeiro de 1325, com sessenta e três anos, depois de um reinado longo e sobejamente preenchido. Apesar de ter sido coroado com apenas dezassete primaveras, D. Dinis estava, desde o início, perfeitamente vocacionado para a sua tarefa. Pode-se dizer que foi um monarca feliz, se exceptuarmos a recta final do reinado, marcada pela guerra civil contra o seu próprio herdeiro, conflito que tanto o amargurou e desgastou, que bem pode ter acelerado a sua morte.
De todas as medidas que tomou ao longo dos 46 anos de reinado, a fundação da Universidade é a que mais se recorda, levando-nos a acreditar que o Rei Poeta preferia a cidade de Coimbra, onde terá vivido a maior parte do seu tempo, escrevendo poemas nas margens românticas do Mondego. Esta imagem, porém, não passa de uma fantasia. Apesar de gostar de Coimbra (como gostava, ou amava, todo o seu reino), D. Dinis identificava-se, acima de tudo, com Lisboa, a sua cidade-natal e, de longe, a preferida. E foi precisamente na nova capital do reino (desde o tempo de seu pai, D. Afonso III) que a Universidade (inicialmente apelidada de Estudo Geral das Ciências) foi fundada.
A 12 de Novembro de 1288 redigiu-se, em Montemor-o-Novo, a carta ao papa Nicolau IV, pedindo autorização para a criação do Estudo Geral das Ciências em Lisboa. Em resposta, o papa emitiu, a 9 de Agosto de 1290, a bula De Statu Regno Portugaliae, confirmando o ensino de Cânones, Leis, Medicina e Artes e autorizando a concessão de grau de licenciado pelo bispo ou vigário da Sé lisbonense.
Cerca de dezassete anos mais tarde, porém, é feito o pedido de transferência do Estudo Geral para Coimbra. Das razões, pouco se sabe. Na sua biografia de D. Dinis, o Professor José Augusto Pizarro refere conflitos com a Casa da Moeda em relação ao terreno que D. Dinis doara para a construção do edifício do Estudo Geral, no Campo da Pedreira à Lapa, perto do Mosteiro de São Vicente de Fora. Também haveria conflitos entre os estudantes e a população de Lisboa, embora, como referi, os motivos, tanto para uns, como para outros, não sejam hoje claros. A transferência foi autorizada por Clemente V a 26 de Fevereiro de 1308 e, a 15 de Fevereiro de 1309, pela Charta magna privilegiorum, D. Dinis estipulou os estatutos do Estudo Geral de Coimbra.
O assunto, no entanto, não ficou por aqui. A Universidade mudaria várias vezes de local, sempre entre Lisboa e Coimbra, e só ficou definitivamente instalada junto ao Mondego em 1537, mais de duzentos anos depois da morte do Rei Poeta.
Fotografia: © UC | Ana Zayara
Para a identificação de D. Dinis com Coimbra contribuíram, não só a fundação da Universidade e a estátua inaugurada, nos anos 1950 como o facto de D. Isabel ter vivido recolhida, depois de enviuvar, no mosteiro de Santa Clara, junto ao Mondego, por ela própria mandado construir, e ter lá ficado sepultada. Ao contrário de D. Dinis, que preferiu ficar junto a Lisboa, no mosteiro de Odivelas, também por ele fundado.
Túmulo de D. Dinis em Odivelas. Foto ©José Custódio Vieira da Silva
Na verdade, quem devia ser identificado com Coimbra era D. Afonso Henriques! Não ponho em causa a importância de Guimarães no início da nossa nacionalidade. Apesar de haver reservas quanto ao facto de o primeiro rei lá ter nascido, foi lá que ele assentou arraiais, ainda infante, ao afastar-se de sua mãe e de Fernando Peres de Trava. Como sabemos, o conflito viria a desembocar na Batalha de São Mamede, junto ao castelo de Guimarães, na sequência da qual D. Afonso Henriques atingiu o poder sobre o condado Portucalense. Lembremos, porém, que, à altura deste prélio, o nosso primeiro rei tinha apenas cerca de vinte anos. Viria a morrer com cerca de setenta e cinco - são mais de cinquenta anos de diferença… vividos em Coimbra.
Foi de facto na cidade junto ao Mondego que D. Afonso Henriques estabeleceu a sua corte, fundando o mosteiro dos Cónegos Regrantes de Santa Cruz, no início dos anos 1130, data a partir da qual poucas vezes terá estado em Guimarães, até à sua morte, em 1185.
Afonso I - Óleo de Carlos Alberto Santos
Nota: O estado degradado em que se encontra a sepultura de D. Dinis, levou um grupo de cidadãos, há alguns anos, a criar uma página no Facebook, vamos salvar o túmulo do rei D. Dinis, a fim de alertar para a necessidade da sua recuperação. Graças a esta iniciativa, já se efectuaram alguns melhoramentos.
Túmulo de D. Afonso Henriques na igreja de Santa Cruz, em Coimbra. © Horst Neumann
Não se sabe a data e o local de nascimento de D. Afonso Henriques, mas, quanto à sua morte, não há dúvidas: o nosso primeiro rei faleceu a 6 de Dezembro de 1185, em Coimbra. Se considerarmos as datas mais prováveis do seu nascimento, entre 1107 e 1110, ele tinha de 75 a 78 anos, o que representa um caso relativamente raro de longevidade, naquela época. E isto, apesar de D. Afonso Henriques ter vivido os seus últimos dezasseis anos bastante incapacitado.
Em Maio de 1169, o monarca terá sofrido um acidente grave na luta pela posse de Badajoz. Tinha à volta de 60 anos e não se sabe a verdadeira dimensão dos seus ferimentos. Nas crónicas medievais, há alusões a não se conseguir mover pelos próprios meios e parece certo que nunca mais tornou a montar. Este último aspecto é, porém, muitas vezes explicado com a promessa que teria feito ao genro, D. Fernando II de Leão, de não tornar a combater, o que aliás pode ser uma tentativa medieval de esconder a sua incapacidade física. A ser verdade a gravidade dos ferimentos e suas consequências, mais notável ainda é o facto de ter vivido ainda dezasseis anos, num tempo de cuidados médicos muito precários.
Afonso Henriques foi sepultado no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, no mesmo local em que a esposa, D. Mafalda (ou Matilde), já repousava há quase trinta anos. Depois de casar, a rainha D. Mafalda viveu apenas doze anos, falecendo na sequência do seu sétimo parto, a 3 de Dezembro de 1157 (curiosamente, quase coincidindo no dia com o marido). Dos sete filhos que teve, só três chegaram à idade adulta: o príncipe herdeiro, D. Sancho, e as duas filhas mais velhas, D. Urraca e D. Teresa.
A sepultura de D. Afonso Henriques, que se pode visitar na igreja de Santa Cruz de Coimbra, não é a original. Quase nada resta do primeiro edifício, construído no século XII, depois de D. Manuel I ordenar uma extensa reforma, reconstruindo e redecorando o mosteiro e a sua igreja, a partir de 1507. Nessa época, foram transladados os restos mortais de D. Afonso Henriques e de D. Sancho I dos seus primitivos sarcófagos para novos túmulos, os actuais, decorados em estilo manuelino.
Há quem assinale a data de 5 de Outubro de 1143 como a da independência de Portugal. É um facto que, em Zamora, Afonso VII, o imperador da Hispânia, reconheceu o título de rei a seu primo e Portugal como reino. Contudo, não prescindiu da vassalagem de Afonso Henriques.
Zamora, na nargem direita do rio Douro (Duero)
Atentemos ao que diz José Mattoso, na sua biografia de Afonso Henriques (2007; extractos das páginas 207 a 214):
No Verão de 1143, chegou ao reino de Leão o cardeal legado da Sé Apostólica Guido de Vico (…) Guido parece ter-se dirigido primeiro a Portugal. Há informações acerca da sua estadia no Porto e em Coimbra.
(…)
De Coimbra, o legado dirigiu-se a Valhadolid, onde, em 19 e 20 de Setembro, celebrou um concílio.
(…)
Depois de ter encerrado o concílio, o legado papal dirigiu-se a Zamora, onde estava a 4 e 5 de Outubro, e onde se reuniu com os reis de Portugal e de Leão. A este encontro chamam os historiadores modernos a «conferência de Zamora». Tem sido considerada como a reunião que selou o acordo entre Afonso Henriques e Afonso VII, que marcou o reconhecimento pelo segundo da dignidade régia do primeiro, e que permitiu a celebração de um tratado, que talvez incluísse uma repartição dos direitos de conquista sobre territórios muçulmanos, mas do qual, infelizmente, não existe nenhum texto.
(…)
A 13 de Dezembro de 1143, Afonso Henriques dirigiu uma carta ao papa declarando que tinha feito homenagem à Sé Apostólica, nas mãos do cardeal Guido, como cavaleiro de São Pedro (…) Também se torna quase certo que esta decisão obtivera o acordo do cardeal, uma vez que a carta declara que o rei tinha prestado homenagem nas suas mãos. (…) Estes factos significam, por sua vez, a realização de conversações anteriores, talvez por ocasião da passagem de Guido por Coimbra [ou seja, antes da conferência de Zamora].
Consideremos este ponto importantíssimo: antes de se dirigir a Zamora, Afonso Henriques prestou homenagem ao cardeal Guido de Vico. Porquê? Só podia ser por saber que o primo não prescindiria da sua condição de vassalo! Como imperador, Afonso VII podia ter reis (e tinha) como vassalos, por isso, o reconhecimento do título real a Afonso Henriques e de reino a Portugal não significa uma aceitação da independência por parte dele.
Neste sentido escreve igualmente o Prof. Miguel Gomes Martins em 1147 - A Conquista de Lisboa (2017):
[Na conferência de Zamora deve ter sido também debatido] o compromisso por parte de Afonso Henriques de não voltar a intervir militarmente na Galiza (…) Este ponto pode mesmo ter sido decisivo para o que se passou de seguida, ou seja, para que Afonso VII, em retribuição e talvez por pressão do legado [papal], reconhecesse o título de rei a Afonso Henriques, algo a que o imperador não deve ter colocado grandes entraves, já que em nada beliscava a sua supremacia face ao primo, que continuaria (…) na sua dependência vassálica. Pelo menos, assim o pensava, pois desconhecia o que secretamente tinha sido negociado em Coimbra, semanas antes, entre Afonso Henriques e Guido de Vico, ou seja, a preparação da vassalagem do monarca português à Santa Sé, acto que necessitava ainda de ser formalizado pelo rei, mas acima de tudo, pelo papado (p. 98).
Temos aqui uma situação muito curiosa e que costuma ser ignorada: o cardeal Guido de Vico aceitou a homenagem de Afonso Henriques, prometendo libertá-lo do jugo de Afonso VII e, passadas semanas, serviu de mediador num encontro em que o rei português não contestou a sua condição de vassalo do imperador hispânico! Como se explica que um legado papal tivesse tal atitude?
A explicação estará em negociações secretas levadas a cabo entre D. João Peculiar, arcebispo de Braga, e o cardeal Guido de Vico, que terão incluído o casamento de D. Afonso e D. Mafalda de Sabóia. José Mattoso (2007) considera o arcebispo de Braga uma figura chave em todo este processo. Chega a afirmar que D. João Peculiar terá contribuído tanto como o próprio Afonso Henriques para a independência de Portugal.
Estátua do arcebispo D. João Peculiar, em Braga.
A 13 de Dezembro de 1143, cerca de dois meses depois do encontro de Zamora, Afonso Henriques encontrou-se em Braga com o arcebispo D. João Peculiar e com os bispos do Porto e de Coimbra, a fim de se escrever a missiva (Claves regni celorum) a enviar ao papa, conforme combinara com o cardeal, solicitando vassalagem à Santa Sé. Ora, se o primo já tivesse reconhecido a independência de Portugal, tal passo seria desnecessário.
Este pedido de vassalagem chegou, porém, a Roma numa altura conturbada, em que se realizaram dois conclaves no espaço de seis meses. Inocêncio II, o papa que enviara Guido de Vico à Hispânia, morreu antes do regresso do cardeal. O seu sucessor, Celestino II, faleceu, antes de responder ao rei português e foi finalmente Lúcio II quem enviou a bula Devotionem tuam, datada de 1 de Maio de 1144. Quando finalmente o nosso primeiro rei a segurou nas mãos, porém, deve ter ficado desiludido.
Em primeiro lugar, o papa não o intitulava rei, mas sim «dux portugallensis». E não dizia claramente que Afonso Henriques estaria livre da suserania do primo, optando por uma linguagem difusa: promete-lhe, tanto a ele, como aos seus sucessores, a protecção de São Pedro para as suas almas e para os seus corpos.
Afonso Henriques viu-se, assim, numa situação bastante ambígua: Roma aceitava-o vassalo (e o censo em ouro), ao garantir-lhe a protecção de São Pedro. Mas intitulava-o apenas de «duque»!
O nosso primeiro rei teria de esperar ainda mais de trinta anos para ver reconhecido o seu título real, por parte da Santa Sé. Tinha já cerca de setenta anos, quando recebeu a Bula Manifestis Probatum de Alexandre III.