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Delito de Opinião

Os charlatães

Pedro Correia, 28.09.23

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Somos invadidos, a ritmo crescente, por charlatães que invocam a ciência como patamar supremo de autoridade, sem admitir discussão. Quem ousar um esboço de dúvida é brindado com dois rótulos: fóbico ou negacionista. Desqualificações que põem logo fim a qualquer debate. Quem duvida das teses enunciadas é corrido a pontapé para o terreno pantanoso da patologia ou da equiparação moral aos que recusam a evidência do Holocausto nazi. 

E no entanto, como sabemos, é precisamente com a dúvida que a ciência avança. Foi sempre no confronto com teses adversas que o ser humano deu os tais pequenos passos que geraram os grandes saltos da Humanidade - da descoberta do heliocentrismo à teoria da relatividade, da lei da gravidade terrestre à alunagem de Armstrong e Aldrin em Julho de 1969. 

Os meios de comunicação de massas, privilegiando quem grita mais alto e é capaz de semear o pânico com maior desenvoltura, dão palco aos tais pantomineiros que invocam a ciência como pretexto para a berraria enquanto os cientistas verdadeiros ficam fora dos holofotes.

Todos recordamos as previsões do "apagão universal" que ocorreria no ano 2000 - a maldição milenar que já sobressaltara almas mais crentes no ano 1000 da nossa era, em suposta expiação de múltiplos pecados pessoais e colectivos. Quando os factos desmentiram as teorias, nenhum alarmista foi convocado à sala para prestação de contas. Vários deles já andavam então a prever novas catástrofes.

 

Sempre assim foi, sempre assim será.

A diferença é só de escala: os de agora têm palco planetário. E continuam sem permitir discussão: isso beliscaria a sua putativa aura de autoridade. São herdeiros directos daqueles que em tempos mais recuados chamavam "ciência" ao pensamento mágico enquanto sopravam as trombetas do Apocalipse. Aqueles que na edição da Newsweek de 28 de Abril de 1975 anunciavam o advento iminente de uma «nova Idade do Gelo»: havia comprovado registo de acréscimo de neve no Hemisfério Norte - e  logo se deu um arriscado salto para a tese geral. 

Dar voz a «credenciados especialistas» muitas vezes redunda nisto. No início de 1914, o reputado analista político britânico Henry N. Norman publicou no Guardian um ensaio que concluía: «Creio que não haverá mais guerras entre as seis grandes potências.» Sabemos o que aconteceu nesse mesmo ano.

No seu livro The Population Bomb que foi best seller em 1968, um biólogo da Universidade de Stanford, Paul Ehlirch, garantia em tom desesperado: «Perdemos a batalha para alimentar a Humanidade.» Antevendo uma década seguinte em que «centenas de milhões de pessoas morrerão de fome.» Tese já enunciada noutro best seller, dado à estampa em 1967: Famine 1975! America decision: Who will survive?, dos irmãos William e Paul Paddock - um agrónomo, o outro diplomata. Mencionando a Índia e o Egipto entre «as nações sem esperança» do mundo subdesenvolvido. Erraram: até ao fim do século, a quantidade média de calorias ingeridas por pessoa no mundo aumentou 24%. 

 

Devemos acautelar-nos contra o suposto argumento de autoridade, que detesta ser refutado por teses opostas. Em regra, esse é o caminho seguido não por cientistas mas por embusteiros. E que nos conduz não à iluminação, mas à ignorância. Recorrendo quase sempre à mais primária das vias: o medo. 

Nesta matéria, como noutras, aplaudo o que escreve Mike Hume no seu livro Direito a Ofender: «Numa sociedade livre e civilizada, nenhum debate devia ser dado por encerrado. Mesmo no campo da ciência. O cepticismo e o questionamento de tudo continuam a ser as bases do método científico. E essa abertura torna-se muito mais importante quando passamos à arena intensamente contestada do debate político acerca do futuro da sociedade.»

Além de ser um imperativo de cidadania e liberdade, é também uma garantia adicional de não andarmos tanto à mercê da chusma de charlatães que por aí pululam.

Bênçãos terrenas

Sérgio de Almeida Correia, 16.09.19

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Passaram uns dias antes que eu pudesse aqui voltar. Resolvi fazê-lo esta manhã, aproveitando uma pequena pausa nas minhas obrigações, em jeito como que de homenagem à Mélita, que faz hoje 92 anos. 

Sei que a Melita não poderá ler este texto, não está em condições de poder fazê-lo porque as vicissitudes por que tem passado já não o permitem. Por vezes, a apatia sobrepõe-se ao sorriso, sereno e terno, que sempre está presente, em especial quando ouve a nossa, a minha, voz, e aproveitando a passagem de alguém por lá consegue vislumbrar e reconhecer quem lhe acena e fala de longe a partir da imagem de um telemóvel.

Em todo o caso, foi nela em quem pensei quando no passado dia 9 de Setembro, viajando entre Kumamoto e Fukuoka, li este texto que hoje aqui vos trago de Frei Bento Domingues.

Quem me conhece, e aqui ou ali me vai lendo, sabe quais são as minhas convicções. Nunca o escondi. Fui sempre transparente, mesmo em matéria religiosa, não confundido aquilo em que acredito com a fé e a religião que muitas vezes me querem servir.

Talvez por tudo isso tenha sentido de uma forma mais profunda as palavras do cronista do Público que, pese embora muitas vezes esteja nos meus antípodas, leio com agrado. E devoção. Seja pela forma generosa como se expõe, e à sua fé, como igualmente pelo convite à reflexão, à introspecção, e a um outro olhar para o mundo que nos rodeia. Frei Bento Domingues fá-lo com extrema elegância, sem nos querer impôr nada, entrando e saindo quase sem se dar por ele, deixando, no entanto, um rasto que nos leva a segui-lo e a olhar para as suas palavras com a atenção que o autor e os seus textos merecem.

Sei que a Mélita gostaria de poder lê-lo. Talvez até admitisse discutir comigo alguma da fé que de um modo tão próprio, muitas vezes sem o referir, cultivou ao longo da vida e que tão esforçadamente me quis transmitir sem grande sucesso.

Espero poder voltar a vê-la e abraçá-la dentro de alguns dias, quando finalmente a reencontrar, para voltar a ter a ternura do seu olhar e a graça do seu conformado sorriso. Por tudo o quanto a vida lhe deu e lhe tirou, sem aviso e sem que nada tivesse feito para o merecer.

Enquanto isso não acontece, deixem-me que aqui partilhe algumas das palavras de Frei Bento Domingues, a quem desde já agradeço a generosidade de connosco ir partilhando a sua fé e as suas dúvidas:

"No mês de Agosto, ao ler e ouvir ler alguns textos do Antigo Testamento (AT), indicados para a celebração diária da missa, senti-me arrepiado perante o ódio que os inspirava. Apesar da sua beleza literária, eram insuportáveis: Iavé mata e manda matar.

Deixo, aqui,  alguns exemplos: "Atravessaste o Jordão e chegastes a Jericó. Combateram contra vós os homens de Jericó, os amorreus, os perizeus, os cananeus, os hititas, os guirgaseus, os heves e os jebuseus; mas Eu [Iavé] entreguei-os nas vossas mãos. Mandei diante de vós insectos venenosos que expulsaram os dois reis dos amorreus. Não foi com a vossa espada, nem com o vosso arco. Dei-vos, pois, uma terra que não lavrastes, cidades que não edificastes e que agora habitais, vinhas e oliveiras que não plantastes e de cujos frutos vos alimentais" (...)

"Jefté marchou contra os amonitas e travou combate contra eles: Iavé entregou-os nas suas mãos. Derrotou-os desde Aroer até às proximidades de Minit, tomando-lhes vinte cidades, e até Abel-Queramim; foi uma derrota muito grande; deste modo, os amonitas foram humilhados pelos filhos de Israel" (...)

Os filhos de Israel "abandonaram Iavé e adoraram Baal e os ídolos de Astarté. Inflamou-se a ira de Iavé contra Israel e entregou-os nas mãos dos salteadores que os espoliaram e vendeu-os aos inimigos que os rodeavam. Eles já não foram capazes de lhes resistir. Para onde quer que saíssem, pesava sobre eles a mão de Iavé como um flagelo, conforme lhes havia dito e jurado; e foi muito grande a sua angústia".

Com a entrada do mês de Setembro, parece que mudamos de Deus e de mundo. São textos tirados da tradição sapiencial. Frei Francolino Gonçalves, exegeta dominicano, membro da Comissão Bíblica Pontifícia e professor da Escola Bíblica de Jerusalém, faleceu há dois anos. Deixou-nos textos essenciais para ler a Bíblia com inteligência, para não cedermos a nenhuma espécie de fundamentalismo. Hoje, evoco um que aborda, precisamente, a distinção de dois iaveísmos. Diria, por conveniência fundada, que se trata de Iavé de Agosto diferente de Iavé de Setembro. O melhor, porém, abstraindo desta circunstância, é ouvir o próprio autor, mediante um fragmento de uma grande elaboração que pode ser lida, na íntegra, nos Cadernos ISTA acessíveis na Internet.

Na Bíblia, Deus não é apresentado só com uma pluralidade de nomes, mas também com uma multiplicidade de retratos. O que a Bíblia põe na boca de Deus, ou diz dele, sugere um grande número de imagens muito variadas, contrastadas e, nalguns casos, aparentemente contraditórias. A grande maoria é de uma grande beleza, mas também as há que são de uma notável fealdade, ou até assustadoras."

Francolino Gonçalves defendeu a ideia de que não devemos atribuir esse mundo bíblico apenas à corrente nacionalista, cujo centro é a eleição de Israel como povo de Deus e a aliança entre ambos. Já havia alguns autores que tinham discordado dessa amálgama. Segundo ele, os exegetas não prestaram a estas vozes discordantes a atenção que mereciam. A esmagadora maioria parece nem as ter ouvido. Por isso ficaram sem eco, não tendo chegado ao conhecimento dos teólogos, dos partores nem, por maioria de razão, do público cristão. As minhas pesquisas nesta matéria confirmaram, essencialmente, os resultados dos estudosque referi e, além disso, levaram-me a propor uma hipótese de interpretação do conjunto dos fenómenos religiosos do AT, que é nova. A meu ver, o AT documenta a existência de dois sistemas iaveístas diferentes: um fundamenta-se no mito da criação e o outro na história da relação de Iavé com Israel.

Simplificando, poderia chamar-se iaveísmo cósmico ao primeiro e iaveísmo histórico ao segundo. Contrariamente à opinião comum, a fé na criação não é um elemento recente, mas constitui a vaga de fundo do universo religioso do AT.

3. Dei a palavra a Francolino Gonçalves. Na homenagem internacional que lhe foi prestada, na Universidade de Lisboa e no Convento de S. Domingos, no passado mês de Maio, a questão dos dois sistemas iaveístas foi objecto de várias intervenções. Eu próprio, na homilia que me pediram, tentei mostrar o alcance pastoral desta distinção: quando um Deus se apresenta como tendo escolhido um povo, com o qual estabeleceu uma aliança, e este povo se considera o eleito, o povo de Deus, estamos perante um Deus nacionalista.

A causa de Deus e a causa da Nação passam a ser uma só, embora, de vez em quando, Deus manifeste que o povo depende dele, mas ele não depende do povo.

O nacionalismo continua a revelar-se como pouco recomendável para o bem da humanidade. Um nacionalismo divinizado é a peste das pestes."

Confesso que, passada uma semana, não posso deixar de estar de acordo com Frei Bento Domingues. Creio que a Mélita também estaria se pudesse lê-lo. Como não pode, deixo aqui, com a devida vénia, este extracto da crónica.

Parabéns à Mélita pelo seu aniversário. Parabéns a Frei Bento Domingues por nos ajudar a pensar e a ver melhor. A Mélita e Frei Bento Domingues são duas bênçãos nos meus dias. Terrenas, evidentemente. Nem por isso menos divinas. E estou-lhes agradecido.

Não há volta a dar

Sérgio de Almeida Correia, 23.08.15

O Rui Rocha, com a sua isenção e assertividade, já aqui tinha escrito o essencial, e que embora entrando pelos olhos há ainda quem não queira ver. Ou fazer dos outros parvos.

Se a coligação PSD/CDS-PP não quiser participar nos debates não participa. Será mau para a democracia e o debate, que se espera que ainda venha a haver sobre os assuntos pertinentes que dizem respeito aos portugueses, deixando de fora, o que não será fácil porque lhes está na massa do sangue, as trampolinices eleitorais em que se especializaram. Mas, desta vez, o ponto final é dado por alguém que integra as próprias listas da coligação: “Segundo a lei, as televisões têm de incluir nos debates obrigatoriamente apenas um representante de cada candidatura”.

Se não era isso que queriam pôr na lei, se queriam ter a deputada Heloísa nos debates ao lado do camarada Jerónimo, deviam ter pensado nisso antes e tê-lo dito claramente.

E, já agora, para serem coerentes e consequentes, também podiam esclarecer neste momento o seguinte: se amanhã uma coligação se apresentar a eleições com cinco ou seis partidos, como acontece noutros países europeus, cada um dos partidos que integra a coligação ficará autorizado a enviar o seu representante aos debates, tal como hoje Passos Coelho e Paulo Portas pretendem? A resposta deve ser simples e directa, penso eu.

Coisas que me apoquentam

João André, 04.03.15

Há coisas que não entendo muito bem. Se um privado pedir dinheiro para comprar uma casa, ela é usada como garantia. Se não se puder pagar a dívida, o banco pode ir buscar a casa e, caso o seu valor tenha caído, o privado ainda continua a dever dinheiro. Coprar a casa é um investimento que pode correr mal, portanto.

 

Se uma empresa pedir dinheiro para expansão e a coisa correr mal, o banco não só pode pedir a execução dos bens para pagar a dívida como pode ainda perseguir os indivíduos da empresa para ser ressarcido do montante. O empréstimo é portanto um investimento que pode correr mal.

 

Se um país pedir dinheiro emprestado ("emitir dívida", no jargão engana-parvos) tem de o pagar de volta. Se a sua economia não crescer o suficiente para pagar essa dívida, fica com uma maior que anterior (pede dinheiro para pagar a dívida anterior). Pedir esse dinheiro é mais um investimento que pode correr mal.

 

Se um banco emprestar dinheiro a privados, a empresas ou a países, o dinheiro tem que regressar, seja por que via for (por dívida ad aeternum, reemissão de dívida, compensação por estados, etc). Ou seja, apesar de um banco emprestar dinheiro com a esperança de receber mais que aquele que emprestou - faz, por definição, um investimento - não partilha quase qualquer risco, este é eliminado por via da obrigação quase absoluta do endividado.

 

Não contesto que uma dívida deve ser paga (se não o for sofrem-se as consequências de se perder credibilidade, por exemplo). Mas, coisa que me apoquenta: sou só eu que tem a impressão que há aqui qualquer coisa que não bate certo?

Está aí alguém?

Sérgio de Almeida Correia, 04.02.14

Os comentários a mais um episódio rocambolesco da nossa vida pública e judiciária deixo-os para os entendidos. Não discuto o valor das obras, a sua qualidade, a sua importância para o património nacional. A mim, como cidadão, compete-me apenas formular algumas perguntas para as quais ainda não obtive resposta em nenhuma das notícias que li e/ou ouvi:

 

1. Quem autorizou a saída das obras de Miró?

2. Quem negociou com a leiloeira?

3. Quem aprovou os termos da negociação e autorizou o contrato com a leiloeira?

4. Quem no Governo, ao nível do primeiro-ministro, ministros e secretários de Estado, sabia o que se estava a passar?

5. Como sai o Ministério Público desta embrulhada?

 

O resto torna-se marginal.

 

P.S. Mesmo sem respostas, descortino na leiloeira o bom senso que faltou em quem levou para lá as obras. Lá se vai o alívio dos aliviados.