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Delito de Opinião

A Animação é para crianças (ou não) - 8

João Campos, 10.06.22

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Cidade Assombrada
Título original: Kôkaku Kidôtai (Ghost in the Shell)
Realização: Mamoru Oshii
Argumento: Kazunori Itō
Baseado no manga homónimo de Masamune Shirow (1989-1991)
Produção: Production I.G., Bandai Visual, Manga Entertainment
Ano: 1995
Duração:113 minutos
País: Japão

Ghost in the Shell* será talvez a melhor sequela não-oficial que Blade Runner alguma vez terá.

Trouxe este filme ao Delito pela primeira vez há doze anos, quando publiquei uma série com os meus 15 filmes preferidos de ficção científica - à época, claro. Se repetisse hoje o exercício faria uma lista muito diferente (excepto os três primeiros, que se mantêm, e decerto se manterão por longos anos). Mas dela não retiraria Ghost in the Shell, um filme extraordinário que condensou várias influências do cyberpunk dos anos 80 e 90 para se tornar, também ele, um filme marcante e influente. Voltaria a incluí-lo, e o conhecimento acumulado de mais doze anos de muita ficção científica permitir-me-iam escrever mais algumas linhas.

Referi-o como uma sequela não-oficial de Blade Runner de forma muito livre. Antes de qualquer outra coisa, Ghost in the Shell é a adaptação para cinema de animação da banda desenhada homónima de Masamune Shirow. Será sem dúvida um dos meus três títulos favoritos da Nona Arte, uma história cyberpunk vertiginosa que quebrou algumas das tradições do género, afastando-se das cidades nocturnas e sombrias e de protagonistas criminosos para mostrar uma Newport diurna e futurista, vista pelos olhos de uma força policial de elite. Mas o mangá de Shirow e o filme de Ridley Scott percorrem territórios temáticos similares - a definição de consciência, a relevância da memória, e do que significa ser humano num mundo com corpos artificiais indistinguíveis; e ao adaptar aquelas pranchas densas e detalhadas, Oshii decidiu manter os temas centrais e recuperar o carácter melancólico e soturno (mas nem sempre nocturno) da Los Angeles de Scott.

E tal como Scott, Oshii teve o mérito de entender que adaptar um texto - uma banda desenhada, neste caso - não significa transpor o texto de um formato para outro, exercício que de resto só muito raramente resulta. Assim, a Motoko Kusanagi de Shirow atrevida e bem humorada de Shirow deu lugar à enigmática e introspectiva Major Kusanagi de Oshii, mais adequada à cidade soturna onde a trama de Ghost in the Shell tem lugar. A Secção 9 de Segurança Pública é reduzida aos seus elementos essenciais - Batou, parceiro de Kusanagi, inconfundível com os seus olhos artificiais; Togusa, novato e sem qualquer implante cibernético; e Aramaki, chefe do departamento e profundo conhecedor dos meandros políticos daquele Japão futurista. E a vasta trama do livro é condensada na narrativa do “Puppetmaster”, um hacker com um talento impossível e um segredo impensável. 

O resultado é um filme notável pela forma como gere sequências vertiginosas de acção, momentos de violência quase grotesca, e passagens mais introspectivas com um ritmo perfeito - nada ali está fora do sítio, tudo faz sentido, cada momento alimenta o seguinte sem falta ou excesso. A banda sonora tornou-se icónica, desde o coro do genérico inicial até às batidas minimalistas que pautam o filme (a sequência de planos da cidade à chuva é magnífica e inesquecível). Ghost in the Shell é em simultâneo como thriller, como filme de acção e como trama filosófica, suscitando mais perguntas do que respostas - e em momento algum esses elementos deixam de funcionar.

Que não se pense pelas minhas palavras que Ghost in the Shell se limitou a ir buscar influências ao textos, às pranchas e aos filmes que o antecederam - tal como Akira anos antes, Ghost in the Shell foi uma pedrada no charco da animação japonesa, tornando-se num fenómeno de culto no Japão e no Ocidente, abrindo caminho ao anime na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina. As Wachowskis referiram o filme de Oshii como uma das principais influências de The Matrix, e mesmo James Cameron assumiu a inspiração para Avatar. E a Motoko Kusanagi do filme ter-se-á tornado talvez na versão mais conhecida da personagem: nas várias (e excelentes) séries televisivas que se seguiram, a Major está mais próxima da interpretação de Oshii do que da personagem concebida por Shirow. O que demonstra, mais uma vez, como uma boa adaptação pode - deve - ser muito mais do que uma mera transposição.


*Excepcionalmente, não me refiro ao filme pelo seu título em português, por a tradução não fazer qualquer sentido. Percebo a dificuldade de traduzir ou adaptar “ghost” e “shell” dado o significado que assumem no filme - “ghost” como consciência ou até mesmo alma, e “shell” como corpo, sobretudo se artificial. Mas alguém poderia ter feito algum esforço, sei lá.

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A Animação é para crianças (ou não) - 7

João Campos, 03.06.22

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Akira
Realização: Katsuhiro Otomo
Argumento: Katsuhiro Otomo e Izo Ashimoto
Baseado no manga homónimo de Katsuhiro Otomo (1982-1990)
Produção: Tokyo Movie Shinsha
Ano: 1988
Duração: 124 minutos
País: Japão

É muito provável que sem Akira - tanto o mangá original de Katsuhiro Otomo como o filme que o próprio Otomo realizou e estreou em 1988 - a banda desenhada, a animação e a ficção científica fossem muito diferentes daquelas que conhecemos, tanto no Japão como no Ocidente.

A afirmação poderá parecer hiperbólica a quem nunca tiver lido ou visto Akira, mas quem conhece sabe do que falo. A influência das pranchas e da animação de Otomo é inegável: desde logo na banda desenhada, com o cyberpunk japonês a expandir-se com títulos notáveis como Ghost in the Shell de Masamune Shirow ou Battle Angel Alita de Yukito Kishiro; por sinal, duas obras que encontraram influências bem distintas em Akira. Nos videojogos, títulos japoneses consagrados em todo o mundo como Metal Gear Solid ou Final Fantasy VII foram beber abundantemente a Otomo. E na animação, para além das referências mais óbvias, como a adaptação cinematográfica de Ghost in the Shell por Mamoru Oshii, importa falar do fenómeno de culto que o filme gerou nos anos 80 e 90, e do contributo decisivo que deu para a animação japonesa se afirmar na Europa, nos Estados Unidos, e daí para o resto do mundo. Muito do sucesso que a animação japonesa conheceu no Ocidente a partir da segunda metade dos anos 90 pode ser explicado por este filme singular de 1988. 

Na sua essência, Akira, o filme, é uma versão condensada da banda desenhada de Otomo, com uma trama cyberpunk localizada na Neo-Tokyo em 2019, reconstruída em redor da enorme e misteriosa cratera de impacto que assinala a destruição da capital japonesa em 1988 e marca o início da Terceira Guerra Mundial. Tudo isto é passado no momento em que o filme começa, claro: nele seguimos o bando de adolescentes delinquentes que cruza Neo-Tokyo nas suas motas à procura de sarilhos, liderados por Kaneda e Tetsuo. Um acidente num antigo viaduto, porém, leva Tetsuo a descobrir um poder inesperado, e obriga Kaneda a enfrentar as forças militares da cidade, grupos políticos subversivos, seres com poderes extraordinários, e os seus próprios amigos.

Akira ocupa um lugar de destaque dentro do movimento cyberpunk da ficção científica que marcou os anos 80, a par de obras como o filme Blade Runner de Ridley Scott, o romance Neuromancer de William Gibson e a antologia de ficção curta Mirrorshades, editada por Bruce Sterling - há entre elas um nexo narrativo, temático e estético cuja influência ainda hoje se faz sentir. Otomo transpõe com mestria as suas próprias pranchas para uma animação magnífica, que continua espantosa ao fim de mais de três décadas, e dá a cada cena uma intensidade tremenda, quase eléctrica na sua violência, à medida que vai desvendando o mistério que envolve Tetsuo, os militares e o misterioso “Akira”. Já passaram mais de trinta anos sobre a sua estreia, e nem por isso o filme perdeu força. Pelo contrário: continua influente, pertinente e assombroso. E a mota vermelha de Kaneda continua a ser um ícone da cultura popular global, identificada com facilidade em qualquer parte do mundo.

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