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Delito de Opinião

As transferências futebolísticas como caso-estudo de gestão

João André, 14.10.20

Andei com afazeres pessoais e sem tempo para parvoíces, por isso foi engraçado espreitar os desenvolvimentos no futebol europeu e descobrir (uns dias tarde) que Rúben Dias tinha ido para o Manchester City e que Otamendi tinha seguido na direcção oposta. Tirando questões desportivas para o lado (como o facto de os centrais do meu Benfica terem agora uma média de idades superior à da mãe de Eusébio), achei engraçada a discussão que li nos posts de alguns amigos sobre se tinham sido duas vendas (Dias para um lado e Otamendi para o outro) ou uma troca (vendendo Dias por dinheiro e Otamendi).

Ora, sem querer estar a fazer afirmações peremptórias sobre a gestão dos dois clubes, deixo aqui a explicação para serem duas vendas e porque razão resultaram em lucro para ambos os clubes.

Ponto 1) Dias foi vendido por 56,6 m€ e assinou contrato por 6 anos. Otamendi foi vendido por 15 m€ e assinou por 3 anos.
Ponto 2) os clubes usam a amortização do valor da aquisição do jogador ao longo do contrato nas suas práticas de contabilidade. Isto significa que Dias custa cerca de 9,5 m€ por ano ao Man City e Otamendi 5 m€ por ano ao Benfica.
Ponto 3) o dinheiro recebido pela transferência é imediatamente contabilizado. Ou seja, o Benfica recebeu 56,6 m€ e o Man City 15 m€.
Ponto 4) Os valores para 2020 foram então 1) para o Benfica, de 56,6 m€ de redimento e 5 m€ de custos, i.e., 51,6 m€ de lucro e; b) para o Man City, de 15 m€ de rendimento e 9,5 m€ de custos, i.e., 5,5 m€ de lucro. Isto, claro, ignora a questão da amortização das transferências anteriores, especificamente da de Otamendi para o Man City (já lá chego).

Temos então que ambos os clubes lucraram. Claro que para 2021 ambos irão ter gastos, mas isso gere-se nessa altura, usando outras transferências.

O mesmo aconteceu na "troca" de Arthur e Pjanić entre Barcelona e Juventus. O primeiro foi para a Juventus por 72 m€ e o segundo para o Barcelona por 60 m€. Teoricamente isto resultaria num gasto líquido para a Juventus de 12 m€, mas não. Pjanić assinou por 4 épocas (custo de 15 m€ por época) e Arthur por 5 anos (14,4 m€ por ano). Isso significa que o Barcelona lucrou 57 m€ e a Juventus 45,6 m€. Isto sem contabilizar o valor residual dos contratos (já lá vou). Isso foi fundamental para o Barcelona poder equilibrar as contas e não entrar em conflito com o Financial Fair Play da UEFA.

O valor residual é outra história. Vamos usar Pjanić. O custo da sua transferência, por época, é de 15 m€. No entanto, ao fim de 2 anos, o seu custo residual é de 30 m€ (dos 60 m€ iniciais, 2x 15 m€ foram já pagos). Se nesse momento assinar um novo contrato por mais 2 anos, os 30 m€ residuais são distribuídos pelos 4 anos do novo contrato, trazendo assim os custos para 7,5 m€ por ano (alguns clubes oferecem novos contratos aos seus jogadores mais caros também por isto). Se no final dos 2 anos do novo contrato (4 no total) ele for vendido, os 15 m€ de valor residual têm que ser contabilizados como custo.

Isso significa que os meus cálculos acima da troca "Dias/Otamendi têm que ser revistos. Dias subiu pela formação, pelo que estes custos são insignificantes. Já Otamendi custou 44.5 m€ ao Man City em 2015. Não sei quantos contratos terá assinado, mas vamos assumir que apenas assinou uma extensão de 3 anos após 3 anos do contrato inicial. Nesse caso o custo residual foi de 5,8 m€. Fazendo assim as contas, a troca de Dias por Otamendi custou (contabilisticamente) uns 300 mil € ao Man City. Isto sem contabilizar salários, prémio, bónus e comissões, claro.

Isto tornou-se técnico, é certo, mas é curioso e faz-nos pensar. Uma das razões porque os grandes clubes continuam a dominar financeiramente poderá ser não só pelo seu poder financeiro inicial, mas também porque conseguem mais facilmente atrair gestores e contabilistas criativos que mantêm as contas em terreno positivo, mesmo quando os gastos são elevados. E não se pense que se trata apenas dos grandes clubes: todos o fazem, mas alguns são mais criativos que outros. Tudo isto me faz pensar que as universidades poderiam incluir transferências de futebolistas nas aulas de gestão financeira. Tenho a impressão que acordaria alguns alunos.

Paradoxo

Sérgio de Almeida Correia, 26.08.16

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"What we now see emerging is a notion of democracy that is being steadily stripped of its popular component – easing away from demos" - Peter Mair (1951-2011)

 

A fotografia da bancada do Parlamento Europeu vazia e com um único deputado não deixa de ser curiosa e, ao mesmo tempo, elucidativa desse afastamento do demos de que falava o saudoso Peter Mair, talvez o mais brilhante cientista político da sua geração. Desconheço se o livro já foi lido e se é conhecido dos políticos portugueses, mas o paradoxo está em que o deputado que ficou na bancada e que serve de ilustração à capa deste livro póstumo de Mair é um ex-jotinha, Carlos Coelho, o deputado europeu do PSD que é reconhecidamente um dos mais trabalhadores, preocupados e esforçados políticos nacionais. A fotografia é injusta para ele, não fazendo jus ao seu trabalho, sem deixar de ser igualmente um reconhecimento pelo seu empenho, visto que foi o único que lá ficou. De qualquer modo, poucos se devem poder orgulhar de terem sido capa num livro de Peter Mair. Pelas boas e pelas más razões.

Census

Francisca Prieto, 22.09.14

 

Entro na farmácia de receita em punho, “Boa tarde, queria uma embalagem de Eutirox 137, se faz favor”. “Eutirox não temos, nem nunca tivemos” responde-me o farmacêutico com a certeza de quem conhece a fundo todas as gavetas do armazém. “Então e consegue-me arranjar?”, pergunto com o receio de quem possa estar a pedir uma substância ilícita. Responde afirmativamente, mas que só para o dia seguinte. Pergunto-lhe se quer ficar com os meus dados. Diz que não, que para ali nunca vai haver dúvidas acerca do destinatário do medicamento.

Conclusão: A quem possa interessar, posso garantir com toda a certeza que no concelho de Vila do Bispo TODOS os habitantes têm tiróide.

Sense and Sensibility

Ana Vidal, 12.07.12

Hoje houve um fogo na serra de Sintra. Mais exactamente na Quinta da Capela, propriedade da marquesa de Cadaval, uma das mais importantes mecenas das artes que este país já conheceu. Pois bem: fiel defensora do modelo laico e republicano em que vivemos, a repórter da SIC N que veio fazer a cobertura do acontecimento não esteve com meias medidas e matou dois coelhos (a igreja e a aristocracia) de uma só cajadada, anunciando assim o sucedido nas notícias da noite: "Incêndio em Sintra, na quinta do Cadaval". Nada como um espírito prático.

Da beleza masculina

Ana Vidal, 21.06.12

 

"Mas não tenhas gosto em frisar com ferro o teu cabelo, nem rapes, com a aspereza da pedra pomes, as pernas; deixa que façam isso aqueles por quem a mãe cibeleia é celebrada ao som de cantos ululantes. Uma beleza desarranjada é o que fica bem aos homens.


A filha de Minos, Teseu a levou, sem ter a cabeça enfeitada com qualquer gancho. Hipólito, Fedra perdeu-se de amores por ele, e ele não era muito elegante. Paixão de uma deusa foi Adónis, afeiçoado aos bosques.


É a limpeza que deve dar prazer, revele o corpo a pele tisnada no Campo de Marte; esteja a toga apresentável e sem nódoas; não deve usar-se calçado ressequido e não haja ferrugem nas fivelas, nem ande o pé a nadar, desengonçado, em pele largueirona; nem dê mau aspecto a cabelos enrijecidos um corte mal feito; sejam cabelo e barba aparados por mão firme; as unhas não devem dar nas vistas de compridas e devem estar limpas; no nariz não deve haver qualquer pêlo; não saia mau hálito de uma boca malcheirosa, nem atinja o nariz dos outros o fedor do macho e do pai do rebanho.


Quanto ao resto, deixa-o por conta das mulheres dadas ao prazer ou de qualquer homem que tenha o vício de possuir outro homem."

(Ovídio, in A arte de amar)

Royal weather

Ana Vidal, 11.05.12

 

Numa experiência inédita para aproximar a monarquia inglesa do povo, o príncipe Carlos de Inglaterra apresentou a meteorologia na BBC. Seguiu-se-lhe Camila, com mais nervos e menos graça.

Nada de novo para nós, afinal. Sir Passos Coelho e master Gaspar passam a vida a anunciar-nos raios e coriscos, e lady Cristas até vai mais longe: não só nos fala do tempo como tenta dominá-lo com orações.

As últimas palavras

Ana Vidal, 12.01.12

Nem sempre são inspiradas ou geniais - nem sempre se sabe que serão as últimas, e as circunstâncias também não ajudam - mas têm o peso de uma vida na memória dos que ficam. Aqui vos deixo, à laia de epitáfio, as de vinte e cinco escritores famosos.

 

O meu preferido é Voltaire, pelo humor requintado e lúcido no momento decisivo, de que teve plena consciência. Quando o padre, na extrema unção, lhe perguntou se renunciava a Satanás, teve esta resposta extraordinária:

 

 

Inutilidades: Como comprar Listerine em Istambul

Cláudia Köver, 11.11.11

Avistei a farmácia onde esperava adquirir o medicamento que me aliviasse uma inflamação nas gengivas. Abri a porta, com as mãos cobertas por luvas grossas, e comecei por sorrir, sabendo que a paciência, a linguagem gestual e recurso a um inglês básico – que mais se parecia com um “You Jane, Me Tarzan” – seriam a melhor arma para fazer passar a minha mensagem.

 

Por detrás do balcão o sorriso foi-me devolvido, juntamente com uma sopa de letras, que em linguagem local deveria significar algo do género: “Como posso ajudar?”. Talvez ele, de corpo enrolado na sua bata branca, me tenha dito algo diferente - do estilo: “Que tempo que está hoje! Que frio!”. Fiquei-me pela intuição. 

 

Ora, apontei para as gengivas e fiz rostos que, na nossa terra, remetem para o verbo “sofrer”. Raios, como se diz gengivas em inglês? – pensei. Raios, como se chamam aqueles produtos que se usam para estes males!? Não passei por macaco, nem por analfabeta, mas também não havia palavra que pronunciasse à qual ele conseguisse atribuir significado.

 

Por fim, disse-me - apontando com o dedo o circuito -, que contornasse o balcão e me sentasse na sua cadeira. Hesitei, com receio de ter lido mal o esquema. Por fim, cedi. Sentou-me, colocando as mãos sobre os meus ombros e apontou para o visor no qual abrira a página do “Google translate”. Sorri, seleccionei o idioma. Ele observava e acenava. Escrevi: “gengiva inflamada”. De imediato algo indecifrável se formou do lado direito e o senhor exclamou “Ahhhh”. Sai porta a fora com uma embalagem de Listerine e um sorriso satisfeito. Ele permaneceu, divertido. Ambos levámos para casa uma história para contar – cada um na sua língua, enfim.