Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Cultura em Maputo, Política aqui

jpt, 31.07.24

ccpmaputo330d.jpg

1. Um amigo, camarada de anos a fio em Moçambique, e que comunga o meu interesse pelo país e pelo que faz o nosso Estado nas relações bilaterais, e em particular nas questões culturais, avisa-me desta notícia: a nomeação de um novo adido cultural para a embaixada de Maputo, José Amaral Lopes, antigo secretário de Estado da Cultura e antigo presidente do Conselho de Administração do D. Maria II, deputado, entre várias outras posições de destaque. Dado o seu perfil "alto" é surpreendente a sua indicação para este posto, até modesto. Mas para todos que se interessam por estas matérias - a mescla entre "acção cultural externa" e "cooperação" - uma nomeação de alguém com este peso biográfico tem um significado: denota um grande e assisado interesse governamental no desenvolvimento destas relações culturais, decerto articulado com alguma capacidade para reforçar os  meios, materiais e humanos, dedicados a essas interacções. Fica-se assim - e mesmo que sem "pedir a Lua" - na expectativa de um período de grande desenvolvimento nas conjugações culturais entre ambos os países. Possamos nós fruir disso!

 

2. Paralelamente - mas sendo, de facto, uma irrelevância - a notícia desta nomeação tem um factor denotativo da mesquinhez intelectual dos mecanismos partidários, em particular os do PS. Amaral Lopes exerce actualmente as funções de presidente de junta de freguesia, eleito pelo PSD. Abandonará o posto para assumir estas novas funções.

O dirigente lisboeta do PS, David Amado, critica-o por ter abandonado a freguesia, dela fugido. Deixando assim até implícito um elogio ao actual presidente, dado que considera gravosa a sua substituição. Mas é a demonstração da total impudicícia desse dirigente socialista. Pois há poucos meses, nesta mesma sua concelhia partidária, um também presidente de junta de freguesia, o socialista Costa, abdicou das suas funções, indo (sem currículo que o justificasse) liderar um mecanismo televisivo de produção de opinião pública. Amado então nada contestou. Entretanto, aqui nos Olivais a socialista presidente de Junta, Rute Lima, aquando reeleita logo se foi a trabalhar para a nova Câmara PS de Loures, e vem por cá "exercendo" funções em regime "parcial". E Amado ficou mudo.

E já agora, até porque o postal é sobre "cultura"  e nisso "bibliotecas" - a do Camões em Maputo é muito relevante na cidade - convém relembrar que a biblioteca da Junta de Freguesia dos Olivais, a antiga Bedeteca, sita no Palácio do Contador-Mor (sempre associado aos Olivaes de "Os Maias") está fechada há mais de três anos. Devido a umas obras não estruturais, que se diz terem sido cabimentadas 2 vezes (!!!), e que se vieram arrastando por incúria da junta - estando agora aparentemente culminadas sem que a biblioteca reabra. Diz-se no bairro, e quem sabe, que esteve prevista a reabertura para o início deste Verão, transitando depois para Outubro. Mas que deverá acontecer apenas cerca do Ano Novo - para agitar as águas em ano de eleições autárquicas. Sobre tudo isto - e tanto mais - não fala o tal David Amado. Nem as hostes socialistas.

Da irremediável decadência do francês

Pedro Correia, 19.01.23

francesa.jpeg

 

Ao ouvir ontem a presidente executiva da TAP, Christine Ourmières-Widener, falar durante grande parte da manhã numa comissão parlamentar em São Bento, confirmei esta evidência: o francês sofre um irremediável declínio.

A gestora é francesa, os deputados são portugueses, mas a senhora - incapaz de dominar o idioma de Camões - recorreu ao inglês. Podia ter-se expressado sem problema na sua língua materna, recorrendo aos competentes serviços de tradução simultânea da Assembleia da República, mas se calhar nem pensou nisso. Preferiu falar na "língua do império", com pronúncia muito questionável, presumindo - porventura cheia de razão - que à volta daquela mesa poucos seriam os deputados capazes de entendê-la sem recorrerem a intérpretes.

Em duas gerações, o francês - dominante na cultura e nos circuitos diplomáticos até meados do século XX - foi riscado do mapa linguístico corrente fora do perímetro dos países onde ainda é idioma oficial. Paradoxalmente, isto aconteceu a partir da data do seu suposto apogeu: a vaga revolucionária do Maio de 68. Que, partindo da esquerda mais radical, funcionou afinal como trampolim definitivo para a expansão da cultura norte-americana a nível planetário. Ao romper os cânones estabelecidos, deitou fora também os vetustos padrões gauleses que imperavam desde o Século das Luzes, começando pela língua, tornada obsoleta. Os próprios franceses a vão abandonando nos palcos internacionais.

E nós? Ainda não chegámos ao ponto de falar em inglês com a senhora francesa – foi ela quem teve de recorrer à tradução simultânea quando ontem os grupos parlamentares lhe formulavam perguntas. Mas à volta daquela mesa não faltou o jargão “amaricano” para designar cargos com designações consagradas na nossa língua. Abundaram as alusões ao “si-i-ou” e ao “chérman” da TAP, como se fôssemos micro-sucursal linguística do vasto império.

A questão é que somos mesmo. Desembocámos nisto.

Das práticas culturais

Zélia Parreira, 16.02.22

Do
INQUÉRITO ÀS PRÁTICAS CULTURAIS DOS PORTUGUESES 2020
(https://www.ics.ulisboa.pt/.../brochura_online_pt...)

"Digno de registo é também outro aspeto: apesar de os dados mostrarem que quanto mais jovem se é, e quanto mais elevadas as qualificações académicas dos pais, maior será a probabilidade de se ter usufruído, na infância e adolescência, de experiências de aproximação ao mundo do livro e da leitura espoletadas pelos pais ou por outros familiares, importa destacar que a maioria dos portugueses raramente ou nunca desfrutou, até aos 15 anos de idade, da leitura de histórias e da oferta de livros por parte da família ou, inclusivamente, de um conjunto de práticas exodomiciliares como idas a feiras do livro, livrarias ou bibliotecas.

Sublinhe-se, porém, que no escalão etário 15-24 são em maior número os que tiveram pais ou outros familiares lendo-lhes histórias frequentemente ou algumas vezes do que raramente ou nunca. O mesmo é válido quanto à oferta de livros, com idêntica manifestação no escalão dos 25-34 anos. Entre outras razões, estes resultados, permitindo entrever um potencial sinal de mudança, podem explicar-se pelo facto de os jovens de hoje terem pais mais escolarizados do que os de gerações mais velhas e, por consequência, mais sensíveis ao valor cultural da leitura.

No que toca à frequência de bibliotecas ou arquivos (gráfico 4.6), e tendo por referência os 12 meses anteriores ao início da pandemia, assinale-se que 80% dos portugueses nunca os visitaram nesse período."

Conclusões:
1. O parágrafo do meio mostra que, apesar de tudo, há um caminho a desenhar-se. São políticas de longo prazo, que não apresentam resultados imediatos e que só políticos com visão conseguem desenvolver, implementar. Comparar isto com políticozinhos com responsabilidades na área da cultura que dizem que não percebem para que serve uma Biblioteca aberta, é anedota. Mas que os há... há.
2. Há muito trabalho por fazer para os profissionais nesta área. Não podemos perder um só dia, porque há um mundo do tamanho do nosso país, ou vá, da terrinha de cada um, para mudar.

A corte

João Sousa, 28.01.22

557910_RTR4IRU5.jpg
Encontro em Monsanto de António Costa
com personalidades independentes da cultura e do desporto

 

Quando li numa notícia a frase de Rosa Mota e os gorjeios do Valter Hugo Mãe em Monsanto, então aflorados aqui no blogue pelo José e hoje pelo João Pedro Pimenta, recordei-me logo do seguinte naco de prosa publicado há meses no Luta Popular:

"O governo fascista de António Costa trata os artistas e os trabalhadores da cultura abaixo de cão. Claro que há os artistas da corte, os pimbas e os versejadores da corte. Não nos referimos a esses vendidos."

O Luta Popular pode ser uma leitura divertida pela alucinação dos seus redactores, mas ser-se alucinado não impede que não se acerte, ocasionalmente, no alvo: "corte" é uma descrição perfeita do que sempre tem rodeado o PS. Primeiro, temos a corte de eternos "independentes" que apoiam qualquer líder socialista, em alguns casos até apresentando-se nas listas de candidatos para, quando eleitos, cederem o lugar a um dos anónimos funcionários do partido. Depois, há a corte da Cóltura, sempre disposta a servir de flor na lapela dos líderes do PS. Este beija-mão a Costa, feito por esta corte cóltural, não é mais do que uma reencenação de vários outros do passado - como em 2011 a José Sócrates.

Os limites da graxa

João Pedro Pimenta, 28.01.22

Muitos ficaram eriçados com a expressão que Rosa Mota usou em relação a Rui Rio, chamando-lhe "nazizinho (e isto para não usar uma "palavra feia", que nem quero imaginar qual seria), num encontro de António Costa com "figuras da cultura e do desporto". Não é para menos, porque é um exemplo  cabal do reductio ad hitlerum que coloca sempre a discussão no fundo do poço. Mas o que me chamou a atenção, entre outros elogios e genuflexões a Costa, foram as palavras de Válter Hugo Mãe. Repare-se no tom entre o delicodoce e o piroso: Rui Rio representa o "inverno cultural" e o "sorriso sereno mas seguro" de António Costa "mudou radicalmente o clima em Portugal", trazendo "a Primavera".

Imensas críticas justas poderão ser feitas a Rio pela presidência no Porto, principalmente na política cultural ou na sua ausência. Já se sabe que em campanha eleitoral os "agentes culturais" adoram fazer-se notar junto dos candidatos, quase sempre à esquerda e particularmente com o PS. Influências que vêm de França desde os tempos de Mitterrand e de Lang, e mínguas da cultura, efectivamente. E também é consabido que Válter Hugo (não era com minúsculas que ele assinava?) gosta imenso de se promover e é o autor mais auto-comercial do meio, sem prejuízo do seu talento e da sua escrita. Mas a manteiguice e o graxismo da cultura à política têm limites. Frases como aquela são dignas dos noticiários norte coreanos dedicados ao Supremo Líder, ou lá como lhe chamam. Não sei se Hugo Mãe está assim com tanta dificuldade em vender os seus livros, mas escusava de se rebaixar a este ponto de submissão. É patético, penoso e provoca vergonha alheia, até porque a cultura, com a actual incumbente do ministério, nem se tem portado muito bem e a migalha do orçamento que lhe é dedicada está muitíssimo longe da quimera dos 1%. Mais uma razão para se manter alguma noção do ridículo. Com a agravante de que para um escritor, o estilo não é digno nem para contos de revistas do coração.

Combate cultural

Pedro Correia, 16.01.22

lalectura0.jpg

 

Um poema de Semónides de Amorgos acaba de ser proibido na Universidade de Reading, do Reino Unido, devido à sua «misoginia extrema», como alegam os censores, preocupados com o «incómodo» que tais palavras pudessem causar aos estudantes. Parecendo ignorar que o texto foi escrito há 2700 anos. 

Considerado um dos pais da sátira nos estudos gregos clássicos, Semónides chocou as sensibilidades das donzelas do século XXI e dos seus tutores masculinos naquele estabelecimento universitário por ter redigido versos como estes: «Nunca passa tranquilo um dia inteiro / todo aquele que com uma mulher convive.»

Eis quanto bastou para as sinetas da interdição soarem em Reading, à revelia do que deve constituir o verdadeiro espírito universitário, livre por definição e natureza. É mais um triste exemplo da chamada "cultura do cancelamento" que vai fermentando um pouco por toda a parte, com a medrosa cumplicidade dos cenáculos culturais e dos meios de comunicação. 

Maite Rico, ex-subdirectora do El País recentemente integrada nos quadros redactoriais do El Mundo, alude à mordaça agora imposta ao velho Semónides na sua "carta de apresentação" da revista La Lectura, que passa a integrar as edições de sexta-feira do diário madrileno de inspiração liberal.

«Não passa uma semana sem vermos os estragos que vem provocando esta onda de fanatismo neopuritano, com origem nas universidades anglo-saxónicas, que pretende impor pela censura e cancelamentos a uniformidade bem-pensante na academia, na cultura, no jornalismo e na política», escreve a excelente jornalista espanhola. Sublinhando que a nova revista «defenderá o valor da palavra e da liberdade de expressão», frente às «febres identitárias e aos chavões populistas, que usam a chantagem emocional e as queixas para calar quem pensa de modo diferente».

Leio estas palavras, não podendo estar mais de acordo com a linha editorial aqui expressa. E penso como faz falta em Portugal um projecto editorial na mesma linha. Em defesa da liberdade sem adversativas, contra todas as formas de censura - por mais politicamente correctas que se intitulem. Aliás um dos mais urgentes combates culturais tem precisamente de ser feito contra a correcção política. Que multiplica anátemas e tabus, silenciando qualquer opinião que ouse beliscar os novos dogmas.

Uma chave para decifrar o mundo

Pedro Correia, 15.12.21

                    03193_gg.jpg 800px-Nietzsche1882.jpg

 

Ouço com alguma frequência opiniões negativas sobre o ensino das religiões – e da religião cristã em particular. São opiniões que fazem tábua rasa de dois mil anos de história da Humanidade e que, se fossem levadas à letra, conduziriam ao desconhecimento generalizado de uma das nossas bases civilizacionais. A história da pintura, da escultura, da arquitectura e de parte significativa da música ocidental torna-se incompreensível a quem ignora os fundamentos do cristianismo e as inúmeras personagens dos livros da Bíblia. Isto nada tem a ver com crença – tem a ver com cultura, no sentido mais lato, profundo e nobre do termo.

A ignorância das religiões – em nome do princípio da laicidade levado ao extremo – conduz até à incompreensão e à irrelevância de boa parte dos maiores autores ateus, agnósticos e anticristãos, de Voltaire a Nietzsche. Leio, de momento, uma das obras mais emblemáticas de Karl Marx: está cheia de alusões bíblicas, provavelmente ininteligíveis para todos os apóstolos da "indiferença", que fogem da religião como o diabo da cruz em vez de procurarem entender a importância da religiosidade e da espiritualidade como parte integrante da condição humana, da criação artística e do pensamento filosófico através de todas as épocas – incluindo a nossa.

O Moisés, de Miguel Ângelo, a Última Ceia, de Leonardo, a Paixão Segundo São Mateus, de Bach, a catedral de Chartres ou a de Brasília (criada pelo ateu Óscar Niemeyer), para serem devidamente apreciadas enquanto veículos de fruição artística e emanações do melhor da nossa cultura, necessitam de referências que só o conhecimento das religiões (neste caso a religião cristã) nos proporciona. Isto vale também para a Mesquita Azul de Istambul, o Buda Reclinado de Banguecoque, Machu Picchu ou Angkor Wat.

Ao criticarem o estudo das religiões, os arautos desta tese estão no fundo a fazer a apologia da ignorância. Assumi-la em nome da "laicidade" é ainda mais grave. Por constituir uma perversão da genuína laicidade – a que vem expressa, pela voz de Cristo, nos Evangelhos: «Dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.»

É uma frase muito antiga – e tão "moderna" como se tivesse sido impressa no jornal desta manhã. Conhecê-la – e saber por que foi proferida e os efeitos devastadores que causou numa concepção teocrática do poder político – ultrapassa em muito o reduto da fé: é um acto de cultura. Da mesma forma que alguém sem o menor conhecimento bíblico é incapaz de interpretar esta extraordinária frase, contida num dos romances de Graham Greene: «Prefiro ter sangue nas mãos do que água como Pilatos.»

Religião também é isto: uma chave para decifrar o mundo, uma pista para descobrirmos novos mundos. Às vezes longínquos, outras vezes situados bem próximo de nós.

 

Imagens: Voltaire e Nietzsche

O imposto sobre os pobres

Paulo Sousa, 07.02.21

Para uma imensidão de portugueses a maior probabilidade de enriquecer, e assim de mudar de vida, passa pelos números da lotaria. Por isso podemos dizer que não é muito provável que alguma vez deixem de ser pobres.

Nem todos os jogos têm a mesma probabilidade de acertar na chave certa mas em qualquer um deles as hipóteses de vencer são tão reduzidas que toda a dinâmica se resume em pagar para poder sonhar.

É voz corrente que em Portugal se fazem os maiores volumes de apostas per capita de toda a Europa. Procurei dados sobre isso e encontrei apenas uma relação dos cinco maiores prémios pagos até hoje pelo Euro-Milhões, em cada um dos países que fazem parte desta lotaria europeia. Saltou-me à vista que, considerando esses cinco maiores prémios, em Portugal foram distribuídos 63€ per capita, enquanto que na Áustria esse valor não ultrapassou os 28€. Como não nos podemos considerar três vezes mais sortudos que os austríacos, julgo que isto é explicado por apostarmos três vezes mais do que eles, o que diz um pouco sobre a diferença das nossas expectativas de vida.

A dependência que este tipo de jogos provoca está estudada e comprovada. À distância poderá ser apenas mais uma estatística sobre uma adição, mas quando falamos dos jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) falamos de apostadores pobres, e nas terras pequenas esse fenómeno tem nomes e rostos. Não são casos raros em que até os donos dos cafés se entusiasmam com o produto estrela da SCML, que são as Raspadinhas, e depois de começarem à procura de um prémio que lhes pague o prejuízo anterior, acabam por perder a licença por incumprimento na entrega dos valores “cobrados”.

Aposto que será nos bairros mais pobres que os balcões de apostas angariam proporcionalmente mais receitas.

Nas povoações que têm mais do que um café, aquele que tem a máquina da Santa Casa está sempre em vantagem. A máquina de apostas até pode motivar a hipótese de trespasse de um estabelecimento desta natureza. Além da receita do jogo (7% do valor das apostas, segundo soube) esse é sempre o local onde se vende mais café, cigarros e bagaço.

Os jogos da Santa Casa são um negócio de milhares de milhões de euros. As receitas brutas da SCML ascenderam em 2019 a 3.360 milhões de euros. Ando a ganhar o hábito de converter os grandes valores da nossa economia em SMN, e assim essa receita equivalerá a mais de 5 milhões de SMN. Nada mau.

Podemos dizer que estes jogos canalizam recursos de todo o país para os cofres de uma das muitas Santas Casas da Misericórdia, neste caso para a de Lisboa. É como se fosse um imposto pago pelos pobres de todo o país e que é gasto em Lisboa.

Claro que os responsáveis da SCML entrarão logo em defesa do seu ganha-pão e dirão que deste valor cerca de 1.000 milhões de euros (aprox. 1,6 milhões de SMN) são transferidos para os beneficiários sociais da SCML, entre os quais encontramos o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ministério da Saúde e Ministério da Educação, dando razão à ideia do imposto.

Em pleno confinamento pandémico os cafés estão impedidos de vender bicas, ou cimbalinos conforme a região. Nem cafés, nem bares podem agora vender os seus produtos “ao postigo”. Até o Elefante Branco se queixa desta medida destruidora da economia.

Aqui na minha terra o café, onde já há uns anos deixou de se poder fumar, deixou agora também de poder tirar cafés. Mas como tem uma máquina da SCML, esticaram duas fitas plásticas vermelhas e brancas para, qual curro, assinalar o caminho mais curto das moedas dos bolsos do pobres até à gorda conta da SCML. Para que dúvidas não haja, a santidade está-lhe intrínseca no nome. É como a publicidade subliminar, nem damos por ela, levamos com o produto, com a embalagem e com o recado, tudo junto antes de ter tempo de respirar. E santa que é, consegue sem pestanejar, apelar à nossa ajuda para poder ajudar a dar uma resposta extraordinária à pandemia. Fiquei curioso e após vasculhar no site da dita, acabei por encontrar um link que nos leva ao respectivo relatório e contas (https://www.scml.pt/sobre-nos/relatorios-e-contas/), mas afinal não leva. Diz que é o erro 404, seja lá o que isso for. Mas, como quem dá uma resposta extraordinária à pandemia, quase como quem nos abraça, conforta-nos dizendo “Todos nós perdemos o rumo de vez em quando. A Santa Casa ajuda-o a encontrar o caminho” e, preocupada, encaminha-nos de volta à página principal.

Provavelmente durante um dos seus drinks de fim de tarde a Ministra da Cultura lembrou-se de criar mais um imposto especial sobre os pobres, para angariar receitas que serão canalizadas – e esse é o nobre destino das receitas, serem canalizadas – para ajudar a responder a “necessidades de intervenção de salvaguarda e investimento” em património classificado ou em vias de classificação. Diz que tem o objectivo de “envolver todos” e arranca já em Maio.

Quem nunca teve uma epifania depois de beber uns copos que atire a primeira pedra.

Uma desgraça

Pedro Correia, 31.07.20

 

- Durante três meses, é ou não verdade que houve pessoas em situação absolutamente desesperada, com uma quantidade de dinheiro por mês que é insuficiente, para dizer o mínimo?

- Houve muitas pessoas...

- Sente que falhou a essas pessoas?

- Ó... ó... vamos lá ver. O Estado, durante esse tempo, aprovou medidas muito importantes de apoio social...

- Claro. Como por exemplo o lay-off simplificado para as empresas...

- O lay-off simplificado...

- Sabe quanto tempo é que essa medida demorou a ser aprovada?

- Mas... oiça... vamos ver...

- Senhora ministra: sabe quanto tempo?

- Eu sei quanto tempo.

- Quanto?

- Eu sei quanto tempo.

- Quanto?

- Mas há uma coisa... há uma coisa que é preciso...

- Quanto tempo, senhora ministra?

- Há uma coisa que é preciso... há uma coisa que é preciso... 

- Vou replicar a pergunta: sabe quanto tempo é que o lay-off simplificado demorou a ser aprovado?

- Sei. E há uma coisa que é preciso aqui realçar. É preciso realçar o seguinte: todos os dados...

- Eu vou deixá-la realçar o que entender, mas gostaria de insistir nesta questão. Porque aqui a questão do tempo de reacção é muito importante...

- Claro que é.

- ... e se o lay-off simplificado demorou uma semana a ser aprovado, o que permitiu ajudar milhares de famílias, a minha pergunta para a senhora ministra da Cultura é porque é que o seu ministério demorou três meses.

- Mas o meu ministério... vamos lá a ver... há aqui um ponto que é muito importante realçar: é que Portugal é um estado social, tem um sistema de segurança social de natureza universal, não há nenhuma razão... não há nenhuma razão... não há nenhuma razão para que as pessoas... todas as pessoas, inclusive as que trabalham na agricultura, não estejam abrangidas pelo sistema de apoio social universal. 

 

Excerto de uma entrevista à ministra da Cultura, Graça Fonseca, conduzida pelo jornalista Bento Rodrigues, há pouco, no Primeiro Jornal da SIC

Notas pessoais sobre o Dia Mundial da Língua Portuguesa

Paulo Sousa, 05.05.20

Hoje assinala-se pela primeira vez o Dia Mundial da Língua Portuguesa.

Muito poderá ser dito sobre este património imaterial que nos une, e por praticantes muito mais versados que eu próprio.

Não quero, no entanto, deixar de fazer aqui três pequenas notas.

 

1 – Felizmente a língua portuguesa é de facto imaterial e não pertence apenas ao nosso país. De outro modo ainda poderia ser dada em garantia de dívidas contraídas. Celebremos por isso.

 

2 – Após ter procurado afincadamente por outro caso, em que uma língua coincida com um território, com um país, com uma bandeira e uma identidade nacional, e em que ao cruzar qualquer fronteira a língua aí praticada também seja diferente, encontrei apenas dois países nestas condições. Portugal e o Brasil.

Será que me escapou algum outro caso? E quando falo em fronteiras, refiro-me a fronteiras terrestres. Ilhas não contam.

 

3 – A língua portuguesa, sendo a mais falada no hemisfério sul, já tem relevância global. Mas se não for uma ferramenta de ensino, que acrescenta espessura cientifica aos idiomas locais com que coabita, até pelo desperdício de oportunidade será como um diamante em bruto à espera de ser valorizado.

 

Na sequência do lançamento da moderna Tele-escola, como forma de manter o ensino em funcionamento durante o estado de emergência, reparei que os conteúdos pedagógicos aí produzidos poderiam ser preciosos para outros países da CPLP.

Nem todos os países que hoje connosco assinalam este dia sofrem do mesmo nível de carências de ensino, mas de facto para alguns deles estes conteúdos, produzidos regularmente e abrangendo os diversos níveis de ensino, poderiam valorizar muito as vidas de quem de outra forma acabará por não ter acesso a um nível de instrução inclusiva no mundo actual.

Qualquer coisa dentro desta linha poderia fazer mais pela cultura em língua portuguesa do que vários 1% do PIB sempre na boca dos donos da coisa cultural.

Festa na RTP

José Meireles Graça, 10.04.20

António Costa não percebe e acredito que, contra os seus hábitos, esteja a ser sincero: não percebe mesmo. A ideia de que não compete ao Estado sustentar artistas, oferecendo ao público aquilo a que o público pode aceder, se quiser, pagando do seu próprio bolso, não lhe ocorre. E menos ainda lhe passa pela cabeça que o Estado nunca oferece nada: o que gasta com uns deixa de gastar com outros; e não pode nunca dar sem cobrar primeiro ꟷ com juros, se for depois.

Dos artistas a inaugurar a série (Fernando Tordo, Marisa Liz, Ricardo Ribeiro e Rita Guerra) só conheço o primeiro, mas não foi pelo ardente desejo de não ouvir os seus gorjeios que assinei a petição para cancelar o deboche. Para isso bastava-me não ligar o canal ou canais onde ele tivesse lugar, coisa que aliás faço quase sempre que a música seja ligeira.

A simpática e desnorteada ministra da Cultura deve ter ficado varada com a reacção. Porém, uma petição que recolhe num dia mais de 20.000 assinaturas não a deveria impressionar por aí além se estivesse a fazer alguma coisa que coubesse dentro das atribuições do seu ministério e correspondesse a alguma política consistente de cultura.

Uma petição é uma manifestação na internet, que tem duas vantagens sobre as de rua: agrega quem dificilmente se daria ao trabalho de se misturar com os profissionais do ramo do berreiro; e diz claramente ao que vem, como as outras, mas explica porque vem.

Sucede que o artigo do Público para que remete o link acima abunda nas tradicionais queixas dos que ficaram de fora e na discussão dos critérios a que deve obedecer a distribuição de subsídios. Quaisquer que sejam os critérios, ou a falta deles, seja para pôr uns maganos a gemer a um microfone, para juntar uma troupe para realizar um filme que ninguém quer ver ou encenar uma peça a que ninguém quer assistir, para ajudar uns futuros génios a borrar umas telas, ou para desfear o espaço público com esculturas ou instalações de consagrados como Cabrita Reis, a quem sobra em lata e influência o que falta em talento, há sempre quem discorde.

Os que discordam acham que deviam ser eles os beneficiados, ou a seita deles. Compreendo os queixumes, de mais a mais agora que haverá artistas que estão a passar mal e a ver a vida a andar para trás; e, na verdade, não me incomodo excessivamente com a caridade pública de não os deixar morrer de fome.

Mas uma coisa é ocorrer a desvalidos; e outra, muito diferente, coonestar este negócio obsceno, que dura há demasiado tempo, de comprar o apoio da gente dita da cultura com o expediente de a sustentar com dinheiros públicos.

Entendamo-nos: o Estado gasta pouco com o ensino musical, na minha discutível opinião, mas isso é um assunto de educação, e logo doutra pasta; o mercado não sustenta, só por si, orquestras sinfónicas ou teatros, mas nem por isso os conservatórios ou os teatros nacionais devem ser encerrados, mas isso não tem directamente a ver com o passadio de A ou B.

O ideal seria que o ministério da cultura tratasse dos monumentos em ruínas, das bibliotecas sem condições, dos museus sem acervos que prestem, ou mal conservados, ou ocultos; e que, em suma, se tiver de apoiar a cultura, na ausência de outros mecenas que não a Gulbenkian, porque em Portugal até os ricos são pobres, subsidie organizações sólidas e com tradição segundo critérios objectivos compreensíveis, não circo para a populaça nem bodos para grupos de amigos muito lá de casa.

Dat kan niet

João André, 29.03.20

Já vivendo e/ou trabalhando há uns bons anos entre Holanda, Alemanha e Bélgica, há uma coisa de que me apercebi: cada país tem as suas características gerais e estas, com maior ou menor variação interna, definem os seus habitantes como grupo e definem em traços grossos as suas decisões. Dirão muitos, e com boa razão, que eu já o deveria saber há muito. Acontece que vivi durante muito tempo com a ilusão que somos todos europeus e essencialmente semelhantes. As diferenças que eu hoje percebo como regionais num único país em tempos entendi como regionais pela Europa inteira.

Os holandeses, como todos os outros povos, têm as suas caracaterísticas genéricas. Notam-se mais quando estão em grupo - em especial quando os encontramos em grupo fora da Holanda, por contraste aos demais - mas estão sempre presentes. Essas características em si não são boas nem más, depende dos pontos de vista de cada um, preferências pessoais e situações individuais. O moralismo é uma característica que lhes é frequentemente atribuída, mas eu prefiro olhar para eles como julgando frequentemente actos e pessoas. Isto está obviamente ligado à moralidade, mas eu prefiro pensar nessa característica desligando-lhe esse elemento. Cada um julga pelo seu prisma, que em muitos casos é moral e noutros não tanto.

Ora mais que moralistas, os holandeses têm um hábito enraizado de julgar outros. Todos o fazemos, não há povo que não o faça e não acredito que haja quem não o faça, mesmo que o façam de forma bem intencionada. O julgamento holandês, mais que moralista, é informado por uma crença de existir uma forma correcta de fazer as coisas. Os holandeses gostam de discutir toda e qualquer decisão ou posição e esperam que os outros tenham uma opinião sobre qualquer assunto, seja ele qual for. Da mesma forma, valorizam que toda a gente contribua, mesmo que seja simplesmente para repetir o que os outros disseram. Quem não tem uma opinião é visto com desconfiança, como não estando preparado.

Tendo um cunho tao colegial, as posições tomadas por holandeses são também muito fortes e enraizadas. Uma vez decidido um rumo, é frequente vê-los decididos a avançar mesmo quando lhes são apresentados dados suficientes para o colocar em causa. Se um holandês disser «isso não pode ser», seja lá qual for o tom, está a indicar algo que não vai considerar de forma nenhuma. É uma tradução de «dat kan niet» e não consigo imaginar expressão mais forte na língua holandesa.

Os holandeses são vistos como muito directos na sua comunicação. É simplesmente a forma de ser deles. Frequentemente essa componente é visto como mais, como ofensiva. Não é, ou pelo menos não é suposto ser. Quando alguém se ofende com as mensagens que eles enviam, os holandeses ficam genuinamente confusos: não compreendem porque razão alguém se há-de ofender com uma opinião dada francamente, honestamente e de forma directa, sem rodeios. Da mesma forma, as culturas que preferem rodeios (e a nossa gosta deles mais que os holandeses, mas francamente menos que os japoneses), não conseguem entender porque razão alguém fala assim, sem enquadrar antes a sua opinião.

Quando um ministro holandês diz que gostaria de investigar o que foi feito antes de entregar dinheiro, está genuinamente a indicar que gostava de saber porque razão a preparação não existia. Do ponto de vista dele não existe um ataque, antes uma avaliação honesta e sincera de uma situação e a explicação para a sua relutância. Quando um governante de outro país lhe diz que as declarações são repugnantes, ele não entende e ficará ainda mais reluctante em tomar a decisão de apoiar financeiramente. Na óptica dele, este é apenas mais um dado para avaliação da situação e é um que lhe diz que os outros querem o dinheiro e não querem prestar contas. O governante, no entanto, vê as declarações do holandês como uma quebra de um espírito europeu.

Note-se que não sei o que Hoekstra pensou nem qual o objectivo de Costa quando cada um prestou as suas declarações. Apenas faço uma análise perante aquilo que sei da cultura holandesa. E tudo nesta situação irá empurrar os holandeses, mais ainda que no passado, para uma posição de «dat kan niet». E não creio que qualquer pessoa que tenham nos respectivos staffs lhes explicará as diferenças culturais, ou, explicando-as, que as entendam. Para certos aspectos é necessário viver tais diferenças ou comunicá-las de forma clara.

O que isto significa é que os holandeses, já convencidos da sua justeza na questão dos eurobonds (ou coronabonds como alguns lhes chamam agora), fincarão ainda mais os pés perante as posições dos outros países. Para um holandês, não deve haver segredos (as finanças holandesas conhecem o montante que tenho no banco sem que eu lhes diga nada) e como tal, verificar as acções dos outros é algo absolutamente normal. Para um português (ou espanhol, italiano, etc), espreitar pela janela de casa é bisbilhotar e ofensivo. Um holandês tem a sua janela do rés do chão com as cortinas abertas.

Podemos agora argumentar para a frente e para trás quem tem razão ou não. A verdade é que depende da bússola pessoal e de para onde aponta o norte de cada um. Os holandeses, por exemplo, decidiram avançar para um percurso de combate ao covid-19 que é diferente da maior parte da Europa. Aconselham as pessoas a não ir trabalhar se o puderem fazer a partir de casa, fecham escolas, mas não fecharam nada. O valor mais recente de casos é de cerca de 10 mil, mas deve ser brutalmente subavaliado, dado que não estão a fazer testes a não ser a certos grupos (pessoas que têm que ser internadas com problemas, pessoas com sintomas indicativos que pertençam a grupos de risco, etc) e apenas nos hospitais (onde só se entra em emergências ou com o médico de família a indicá-lo). É uma estratégia e há muitos que avisam ser má, mas é a que foi decidida há semanas e os holandeses não mudam de rumo. Dat kan niet.

Em relação aos eurobonds, a posição que cada um terá depende também da sua bússola e da sua perspectiva perante a Europa. Comecei por escrever que vejo os povos como muito mais diferentes do que no passado, mas isso não significa que nos veja como separados. Há uma história comum (que em Portugal é muito ignorada) e o projecto de construção europeia tem centenas de anos. De certa forma, é aquilo que nos une, mais que qualquer outra coisa (mais que qualquer cristianismo que motivou algumas das piores guerras do continente). A ideia de uma Europa que nem sequer tem fronteiras decentemente marcadas a não ser por caprichos de cartógrafos. É uma ideia indefinida, mas existe. E é o que nos une.

É suficiente para os eurobonds? Cada um que pense por si. Sei qual a opinião dos holandeses. Dat kan niet.

A reversão do património cultural africano

jpt, 29.01.20

O partido LIVRE - do historiador Rui Tavares (ex-coligação trotskistas/estalinistas/maoistas) e do advogado Sá Fernandes (ex-candidato do MDP, ex-membro do governo PS, aquele partido do "socialismo democrático/social-democracia") e que como tal diz surgir com a inovação de ser esquerda que nada tem a ver com o marxismo - acaba de propor a devolução do "património cultural" aos países africanos.

Eu sou tintinófilo. E como tal nada me choca a ideia. Cresci com ela. [Sim, eu sei que há antropólogos aldrabões e outros funcionários públicos intelectuais ignorantes que dizem ser Tintin obra racista, bem demonstrando a sua desonestidade demagógica]. Só me pergunto a que dinâmicas externas e internas é que responde esta proposta parlamentar e quais as condições da sua realização. Pergunto-me e respondo-me. Isto é demagogia pura do advogado Sá Fernandes e do historiador Rui Tavares. E da tralha restante que os acompanha. Entenda-se, entre outras coisas, trata-se de (mais) um advogado aldrabando na vida pública.

E mais, para não entrar em detalhes mais "técnicos" e políticos sobre esta questão do património e da museologia: o Partido LIVRE (dos tais importantes e ponderados cidadãos, em especial do referido Ilustre Causídico) quer comissões de devolução desse património constituídas por "activistas antiracistas". O Dr. Ba, deles compagnon de route, propôs há tempos a instalação de "policiamento comunitário" nas cidades. Agora o dr. Sá Fernandes e o historiador Tavares avançam com a ideia da activação de "comissários políticos".

E a gente não os pode insultar. Tem até que os tratar como "democratas". Há até gente que lhes soletra os nomes. E há mesmo quem respeite, tipo "Doutor Sá Fernandes". Que gente ...

Tavares patinando sobre Bonifácio

Tiago Mota Saraiva, 19.07.19

Além de racista e supremacista, o texto que M. Fátima Bonifácio deu à estampa é fundamentado a partir de premissas pouco cultas, quando não, falsas. Um dos seus efeitos mais perversos não é o da conversão, mas o da replicação do tom e modo por quem anseia escrever para as audiências que Bonifácio teve.
João Miguel Tavares, depois de alinhar no tom crítico ao ensaio de Bonifácio, tem vindo a explorar alguns "mas" com o mesmo grau de rigor usado por Bonifácio. Tavares não se interessa pelo conhecimento que já foi produzido sobre Cultura ou Raça (Claude Lévi-Strauss, por exemplo, terá escrito qualquer coisa relevante sobre o assunto) mas tergiversa sobre culturas superiores e inferiores, tratando o fascismo como uma cultura e não ideologia ou declarando as suas teses como polémicas ou passíveis de despertar acalorada discussão. Mas não. Tal como não se deve aceitar debater que a Terra é plana como se se tratasse de uma polémica científica, não se deve aceitar discutir cultura com quem a reduz a conceitos cientificamente ultrapassados no decorrer do último século.

A cultura entre dois homens de espectro oposto

João Pedro Pimenta, 13.06.19

 

Ruben de Carvalho, que morreu há dois dias, era das personalidades mais interessantes cá da terra. Um comunista convicto e fiel ao partido (que exerceu funções de vereador em Setúbal e Lisboa, a cuja câmara concorreu, e de deputado), que esteve preso no tempo do Estado Novo, e um divulgador cultural muito influenciado pela cultura americana, em especial o jazz (tinha uma colecção gigantesca de discos), mas também pelo fado e pela música popular, e que há muitos anos era o responsável cultural da festa do Avante. A ele se deve, soube-o agora, a primeira actuação de Chico Buarque em Portugal. Tinha semanalmente um programa de debate na Antena 1, o Radicais Livres, com Jaime Nogueira Pinto - politicamente nos antípodas - que de vez em quando ouvia e que me divertia com as exclamações e dissertações daqueles dois homens que discorriam sobre tudo.

Curiosamente, no dia da sua morte, a RTP-2 exibiu um documentário sobre um dos políticos mais independentes e importantes dos últimos quarenta anos: Francisco Lucas Pires. Do nacionalismo revolucionário da Cidadela, ainda em Coimbra, ao europeísmo liberal, foi o primeiro a tentar trazer ideias liberais em voga nos anos oitenta a um país ainda fresco da revolução e do PREC, por via da liderança do CDS (que depois trocaria pelo PSD) e pelo seu grupo de Ofir. No governo da AD teve também a pasta da cultura, da qual, ao contrário de muitos que se proclamam "liberais", nunca desdenhou. É graças a ele que Serralves passou para as mãos do estado antes de se tornar na instituição que hoje é (embora Santana Lopes a tenha querido vender a Valentim Loureiro, coisa que felizmente não levou a cabo).


Ou seja, no mesmo dia exaltaram-se as virtudes de dois homens, um de esquerda comunista, outro de direita liberal, mas que muito fizeram pela cultura e que mereceram o respeito da comunidade. Um podia ter ficado mais uns anos, e o outro decididamente deixou-nos muito cedo.

Deixo à laia de homenagem dois vídeos em baixo: um é do tal documentário completo sobre Lucas Pires. Noutro apenas toca a Carvalhesa, aquela música originária dos planaltos transmontanos de Tuizelo, em Vinhais, recolhida por Giacometti, que Ruben de Carvalho adaptaria a banda sonora da festa do Avante e que se tornaria até hoje numa das mais felizes (e alegres) músicas políticas portuguesas, e cuja melodia saltitante deambula por aí em tempos de campanha eleitoral dos "camaradas" de Ruben.

 

Contra todas as cegueiras

Pedro Correia, 10.03.19

20190303_113706-1.jpg

 

É curioso analisarmos, por vezes, como resulta a transposição de grandes romances em língua portuguesa para outros idiomas. Aconteceu-me faz hoje oito dias, em Londres. Com o Ensaio Sobre a Cegueira, porventura o melhor livro de José Saramago - que originou um filme premiado. Intitula-se Blindness, em inglês.

Espreito o parágrafo de abertura:

«The amber light came on. Two of the cars ahead accelerated before the red light appeared. At the pedestrian crossing the sign of a green man lit up. The people who were waiting began to cross the road, stepping on the white stripes painted on the black surface of the asphalt, there is nothing less like a zebra, however, that is what it is called. The motorists kept an impatient foot on the clutch, leaving their cars at the ready, advancing, retreating like nervous horses that can sense the whiplash about to be inflicted.»

Eis a força da boa literatura: capaz de suplantar barreiras linguísticas, geográficas, afectivas, culturais. Capaz de emocionar, inspirar, comover e fazer sonhar gente de todos os idiomas.

Boa sorte aos que vão e paciência aos que ficam

Diogo Noivo, 16.01.19

AFP_MNAA_ReinaldoRodrigues_GlobalImagens.jpg

 

O postal que aqui deixei sobre a monográfica de Joaquín Sorolla no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) tem um post scriptum sobre o término de funções da direcção daquele museu. Ontem, o Diário de Notícias publicou uma entrevista ao director cessante, António Filipe Pimentel, interessantíssima para compreender as razões da direcção, o comportamento da tutela e as necessidades da Cultura em Portugal. Merece ser lida.

A entrevista dá para longas páginas de análise. Cinjo-me a dois pontos. Primeiro, o Ministério da Cultura prevê agora atribuir um NIF aos museus, passo elementar para um módico de autonomia, uma reivindicação antiga de Pimentel que S. Exa. a Ministra da Cultura terá recusado sempre – aparentemente, a reivindicação tornou-se atendível após a direcção do MNAA ter manifestado a sua indisponibilidade para continuar em funções.

Segundo, nos museus, como em tantos outros domínios públicos, a austeridade não só se mantém como é hoje mais intensa. Pior, e porventura reflexo de posicionamento ideológico, a tutela trata como iguais coisas que são manifestamente diferentes. Para efeitos de enquadramento do assunto, note-se que a colecção do MNAA é a “única coleção de relevância internacional existente em Portugal. Não é por acaso que, no ano passado, estiveram emprestadas 150 peças e 450 outras de toda a parte do mundo que vieram para exposições nossas.”

A par da sua importância estritamente cultural, os museus e as instituições culturais podem ser armas potentes na projecção externa de um país. Pimentel refere, e bem, o papel desempenhado pelo Museu do Prado na “marca Espanha”. Aliás, sem entrar no debate público vs privado, instituições como o Prado, o Thyssen-Bornemisza, o Reina Sofia e o Caixaforum Madrid mostram de maneira muito tangível como se cria e divulga uma imagem positiva de  Espanha no mundo.

Em 2014, os habituais vultos da cultura pátria e os intelectuais de ocasião congregaram-se em torno a António Costa, pois só ele poderia acabar com a austeridade e com a "falta de visão" no sector. A Cultura apoia António Costa, lia-se no cabeçalho do manifesto com cerca de 600 subscritores. Salvo o erro, nenhum se pronunciou ainda sobre o estado de coisas no MNAA, nem mesmo o inefável e antes muito activo António-Pedro Vasconcelos – o mesmo Vasconcelos encabeçou o protesto contra a privatização da TAP e agora, com a companhia aérea novamente na esfera de influência do Estado, nada tem a dizer sobre o facto de esta liderar o ranking mundial de atrasos.

Vale o que vale, mas à direcção cessante do MNAA desejo as maiores felicidades. Já a nós, os que fruímos de bens culturais, desejo paciência. Estamos condenados aos caprichos de uma tutela errante que se vê imbuída de uma missão civilizadora e, claro, aos inconsequentes vultos da cultura nacional.

Lamento

Pedro Correia, 09.01.19

Uma das melhores livrarias de Lisboa, de que fui durante anos visitante e cliente habitual, era a Bulhosa, situada no extremo sul do Campo Grande, já quase em Entre-Campos. Um dia, há pouco mais de um ano, encerrou "para inventário", como rezava o letreiro. Não voltou a abrir: morreu assim, ingloriamente, perante o alheamento quase total desta cidade que anda de costas ostensivamente viradas para a cultura.

Há dias passei por lá. Onde morou a Bulhosa está agora um desses estabelecimentos pindéricos que prometem "depilação total nas axilas e nas virilhas" em letras garrafais estampadas à entrada. É uma actividade em expansão, ao que parece. A malta preocupa-se com a fachada e marimba-se para o intelecto: os neurónios não propiciam fotos giras no Instagram.

Lamento, claro. Mas não estranho. Ainda há pouco, numa roda de amigos com um nível cultural supostamente acima da média, perguntei-lhes quantos livros tinham comprado em 2018. Zero, nada: nem um. «Li por obrigação quando andava na escola, felizmente hoje já não preciso disso», respondeu um, sem sombra de ironia. Daí as livrarias - que também eram um espaço de convívio, de socialização, de buscas e descobertas - irem fechando, umas atrás das outras, por esse país fora. Pobre e frívolo país, tão mal instruído e tão bem depilado.

Sorolla em Lisboa

Diogo Noivo, 07.01.19

Joaquín Sorolla (1863-1923) é um nome maior da pintura espanhola, celebrizado pela reprodução magistral da luz nas praias mediterrânicas. A luminosidade, na sua infinita complexidade, e os reflexos tortuosos do brilho são retratados com uma qualidade fotográfica que não se limita ao real e apela à imaginação.

sorolla.jpg

Corriendo por la playa (Valência, 1908)

 

São igualmente admiráveis os retratos por ele traçados, uns por agradecimento a mecenas, outros por curiosidade, e outros por profunda ternura e amor – Clotilde García del Castillo, mulher de Sorolla, é uma constante nas várias fases do trabalho do pintor. Ficou para a História o retrato de D. Alfonso XIII, pintado ao ar livre na lindíssima Granja de San Ildefonso, na província de Segóvia. O monarca não é de boa memória – cedeu o passo a Primo de Rivera e enterrou o regime da Restauración –, mas o quadro é dos mais emblemáticos da época.

Alfonso XIII.png

Retrato del Rey Don Alfonso XIII con el uniforme de husares de Pavía (Segóvia, 1907) e fotografia do processo de pintura.

 

Não tenho especial sensibilidade ou apetência por artes plásticas, mas o fascínio pela obra de Sorolla já me fez correr meia Espanha e, naturalmente, levou-me ao Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, à exposição “Terra Adentro”, a primeira monográfica do pintor em Portugal. O acervo exposto é menos célebre, porque mais telúrico. É, ainda assim, uma mostra a não perder: está bem organizada, a escolha das obras é cuidada e inteligente. Permite conhecer algumas das fases do prolífico Sorolla, pintor inexplicavelmente desconhecido por estas paragens.

IMG_20181208_144838.jpg

IMG_20181208_145515.jpg

(os quadros são notáveis, o fotógrafo é que nem por isso)

 

Para saber mais sobre Sorolla e sobre esta monográfica, que pode ser visitada até ao dia 31 de Março, recomendo a leitura deste artigo no Público e de este outro no Babélia, o suplemento cultural do jornal El País, escrito por Antonio Muñoz Molina.

 

Post Scriptum – lamento a demissão da direcção do Museu Nacional de Arte Antiga, cujo desempenho foi francamente positivo. A direcção cessante não pedia mais dinheiro, apenas mais autonomia. Parece que o Governo de turno, que se arroga o direito de definir o que é civilização e cultura, pretende dar continuidade a lógica omnipresente e omnipotente (e fortemente subsidiada) da gestão centralizada.