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[(Magnífico) Cartoon de Gargalo]
Tão falado tem sido o caso, verdadeiro drama nacional, que nem é necessário resumir os episódios que o vêm alimentando: é chegado o ocaso de Ronaldo, fenece irremediavelmente o maior atleta português, o mais célebre desportista mundial? Ou, de maneira mais chã e imediata, deve ele ser ainda titular nesta campanha do mundial de futebol? E, ainda mais, é ele ainda credor de algum apreço dos patrícios?
Grassa o azedume avesso ao CR7. O qual não nasceu agora - convém lembrar que ainda em 2013, já ia o homem basto titulado e na ombreira dos 30 anos, ainda era recebido por adeptos portugueses com provocações elogiando Messi. E quem ao longo aos tempos tenha lido jornais digitais bem terá visto constantes coros de invectivas patrícias contra ele (tal como contra Mourinho, um fenómeno similar). Saudando insucessos, anunciando-lhe a degenerescência, a queda iminente, apupando-lhe feitio pessoal e a família, jurando-lhe malfeitorias sexuais ou aventando práticas consideradas "desviantes". Muito disso terá tido uma origem linear, o clubismo: formado no Sporting ele foi mal-amado e, depois - principalmente após um grandioso hat-trick na Suécia -, apenas pouco-amado por adeptos benfiquistas, monoteístas fanáticos sempre ciosos de garantirem o lugar supremo no panteão do King Eusébio, um pouco à imagem dos velhos (e já quase todos falecidos) sportinguistas irredentistas no clamor de que Peyroteo marcava mais golos do que Eusébio... Só que estes não tinham redes sociais nem jornais digitais para verter o fel.
Mas há uma outra razão, muito mais estrutural - cultural, se se quiser - para este azedume para com Cristiano Ronaldo, o qual agora irrompe de modo desbragado. É a sua personalidade, apupada como "egocêntrica". Nisso sendo considerada como desrespeitadora dos seus colegas de equipa e, por extensão, de todos nós, pois constitutivos da "equipa de todos nós", a sacralizada selecção nacional. E tantos reclamam face à inexistência de "humildade" no atleta.
Isto é interessante, pois qualquer "campeão" tem de ser egocêntrico. Só se é campeão, mestre e sábio numa actividade, através de uma dedicação afectiva e intelectual extrema: o "nerd" da informática, o "grande-mestre" de xadrez, o enorme maestro clássico, o prolífico romancista, o pintor abrasivo, etc., são indivíduos que podem ser mais ou menos simpáticos mas são aquilo a que chamamos "aéreos", "distraídos", vão "na sua"... Seguem ensimesmados - o que não sinónimo de enclausurados -, egocentrados. Por maioria de razão segue isso num atleta de alta (altíssima) competição, não só uma vida dedicada a uma disciplina férrea como a uma rotina total. E em que o egocentramento não é apenas uma predisposição para o devaneio imaginativo (do excelso programador informático ou do poeta esconso) mas muito mais o desvelo pelo próprio corpo - nisso assim um Ego hipercorporizado, em que uma leve cárie, o simples quisto, o comichoso calo são prementes questões sobre si-mesmo e não ligeiros incómodos dos quais tantas vezes nós, vulgo, nos abstraímos imersos nos nossos afazeres e mundanidades, dadivosos até.
Ou seja, a "humildade" do (grande) atleta (e do grande artista, do grande criador) é para consigo mesmo, existe na fidelidade às rotinas que o potenciam e possibilitam, e a sua altivez é a descrença na necessidade dessa auto-disciplina. E o "egocentrismo" é a sua condição, sine qua non, de existência - essa existência que nós tanto ansiamos, louvamos e até cantamos, berramos e abraçamos nos momentos de gáudio.
Vejo agora constantes queixas sobre a tal arrogância desmedida do CR7, sempre comparada com a humildade (generosa) dos campeões anteriores, nossos ídolos. Mas isso é tudo falso, pois os anteriores grandes campeões tiveram processos similares, principalmente os surgidos no sempre difícil ocaso das carreiras: Luís Figo, também ele um dia eleito Melhor Futebolista do Mundo, também ele já super-estrela neste mundo globalizado, em pleno estádio português durante a orgia nacionalista do Euro-2004 zangou-se por ser substituído e fugiu para os balneários ("foi rezar à Virgem Maria", veio depois dizer o sabido Scolari, pondo àgua na fervura naquele ambiente...); Futre (eleito apenas o 2º melhor do Mundo) fez birras clamorosas no Atlético de Madrid; o agora falecido bi-bota, Fernando Gomes, protestava durante o Euro-84 estar a viver "o pior momento da carreira" por não ser titular e depois veio a entrar em conflito com o seu tão querido clube devido a ser considerado algo vetusto; António Oliveira (um génio do futebol) e Rui Jordão (outro) nem se falavam na mesma equipa, tamanho o choque de egos, para sofrimento dos sportinguistas. O Enorme Carlos Lopes, ainda que tendo sido uma criatura de Mário Moniz Pereira, teve com este profundos desaguisados após a vitória olímpica. Joaquim Agostinho, tão simbólico do povo, era uma personagem irada, e ficou célebre a birra que fez durante o Tour de France, parando durante uma etapa (dez minutos ou mais) deixando o pelotão ir embora, apenas porque não lhe deram uma Coca-Cola (o falecido Carlos Miranda contava essa e tantas outras histórias em magníficas crónicas no "A Bola"). Etc.
Enfim, os grandes campeões não podem ser "humildes" (no sentido vulgar do termo). Podem ser dadivosos, até filantropos (CR7 é-o), mas têm de ser egocentrados, extremamente ciosos de si mesmos e nisso absolutamente convictos. "Férreos" "como o aço"! E a todos custa envelhecer, pois acham que ainda têm dentro de si algo que os outros não vêem - como não viram ao longo de todos os seus trajectos. Caso contrário não são grandes campeões, serão atletas talentosos, até bem sucedidos. Mas não extra-ordinários (assim mesmo, com hífen, para sublinhar que não são pessoas normais).
Qual a razão de a tantos custar a aceitar estas características dos seus campeões - mesmo que tanto fruam dos seus sucessos, em particular os no "desporto-rei", actual paixão nacional? Porque esta gente, estes atletas, quase sempre "vem de baixo". Ou, alguns, agora, da "classe média remediada". E ascendem ao topo, o das disponibilidades económicas e ao topo das propriedades simbólicas (a visibilidade é a moeda desta vertente). Transcendem as "ordens" pré-estabelecidas, as da velha sociedade tradicional. Fazem-no com estrondo. E nisso descuram demonstrar o "respeitinho", aquele que "é muito bonito", face ao "que deve de ser", nesse entretanto retorcendo o chapéu entre mãos, servis diante do destino que os fez subir. Enquanto nós outros para aqui andamos, raisparta, nesta merda de vida...
Enfim, deve Cristiano Ronaldo jogar hoje? É evidente que a decisão compete ao seleccionador Fernando Santos. Sobre cujo trabalho já aqui opinei, sabiamente.
(créditos: SAPO/Fabricce Cofrini/AFP)
A cena não é nova. De vez em quando, o tipo amua, torna-se ordinário, e comporta-se como um vulgar badameco desmerecedor do seu talento, sucesso, honras e encómios.
Confesso que não percebo porquê.
Todos temos os nosos egos. De um modo ou de outro vivemos os nossos momentos, os bons e os menos bons. Mas há alturas em que se exige a todos e a cada um de nós a superação. Não tanto enquanto desportistas ou heróis; antes como simples e discretas peças de um todo muito maior, que em cada dia nos obriga a elevarmo-nos, a procurar fazer sempre mais, a dignificarmos a nossa herança e a preparar o futuro das gerações vindouras na base do trabalho, da preserverança e do exemplo.
Vê-lo sair assim do campo, como se a festa não fosse também dele, como se não tivesse contribuído para o êxito, torna-o pequenino e distante. Como se afinal não fosse mais um de nós, um dos poucos que conseguiu elevar-se da medriocridade institucionalizada pela força do trabalho e carácter.
Os portugueses, a Nação, dispensavam estes amuos em final de carreira.
Tudo perdoamos, tudo esquecemos, e muitas vezes ignoramos o que não pode passar despercebido. Porque não somos ingratos e continuamos a acreditar.
Certamente que não deixaremos de fazê-lo, de enaltecer os seus méritos e virtudes, porque os possui, dando-lhe toda a gratidão pelo que de bom fez e tem feito, talvez elevando-nos, algumas vezes, muito acima daquilo de que efectivamente somos merecedores. Mas depois de tudo o que dias antes aconteceu, que de tão feio deverá ser rapidamente esquecido, ao ver a atitude dos seus companheiros, sempre, que nunca lhe regatearam estatuto, apoio e aplausos, exigia-se outra grandeza na hora da celebração, dispensando-se desculpas estafadas, respostas para cretinos.
E quando se olha para a forma como um Hajime Moriyasu se dirigiu aos adeptos que acompanharam a sua equipa na hora da derrota, e o modo como os outros o viram, não deixa de ser penoso e triste, para mim, ver o princípe abandonar o campo da maneira que o fez.
É nos momentos difíceis que se reconhecem os que são capazes de se elevar acima do mundo, os que pela criação se fizeram e aprenderam a perdurar para além do tempo, os que à sua dimensão e no seu lugar, com a sua humildade e génio, foram absolutamente excepcionais. Em quase tudo; sempre no que é essencial, estruturante e nos define.
Eusébio foi um deles. Pelé também, uma espécie de segundo nós quando não havia mais Eusébio.
Gostava que Cristiano também o tivesse sido. E gostava, ainda mais, que fosse capaz de ainda o ser. Para bem dele, dos seus filhos, e satisfação de todos nós quando um dia falarmos dos seus feitos aos nossos, aos que um dia hão-de vir para nos ajudarem a recordá-lo. De sorriso largo e reconfortante. Como tantas vezes o vimos.
Há dois conceitos que evito associar às minhas reflexões ocasionais sobre o fenómeno desportivo - e o futebol em particular.
O primeiro é o conceito de justiça. Escuto e leio muitas análises aos jogos ancoradas neste conceito - «se houvesse justiça, a equipa X teria ganho»; «a vitória da equipa Y foi justa».
Ora, salvo no que se refere a procedimentos disciplinares, a justiça não é para aqui chamada. Um desafio de futebol não é uma audiência de tribunal. Aqui o importante é vencer - por uma margem muito dilatada, de preferência, mas se for pela diferença mínima também serve. Que se vença até por «meio golo», como na velha boutade das conversas de café.
Ao pretendermos explicar tudo em futebol recorrendo ao conceito de justiça, acabamos por não explicar nada. Porque aquilo a que por comodidade chamamos injustiça é uma espécie de lei não escrita imanente a todo o jogo. Uma das mais brilhantes proezas técnicas da carreira em campo de Cristiano Ronaldo foi aquilo a que se chama um golo limpo, "injustamente" anulado pelo árbitro por alegada deslocação de Nani numa vitória da selecção portuguesa contra a Espanha.
Eu estava lá - e vi. Nunca hei-de esquecer aquele golo, reproduzido aqui mais acima.
É inútil insistir no contrário: não existe uma justiça poética nos estádios que resgata os verdadeiros campeões, projectando-os da relva dos estádios para esse simulacro de Campos Elíseos a que se convencionou chamar verdade desportiva. Penso nisto todas as vezes que me lembro de um dos jogadores mais celebrados da história do futebol. Diego Maradona, ele mesmo. Um dos seus golos mais famosos - e decisivos - foi marcado com a mão, à margem das leis do jogo. Passou à eternidade não como infractor, mas como lenda viva.
Onde mora a justiça em tudo isto?
O segundo conceito é o de sorte.
Diz-se que Fulano é um sujeito com sorte ou que Beltrano, figura estimável, padece no entanto do facto confirmado por todas as evidências de não ser acompanhado por essa cobiçada deusa a que chamamos Sorte. E ninguém quer figuras tocadas pelo estigma do azar na sua equipa do coração.
A sorte conquista-se, constrói-se. Dá muito trabalho. Prefiro sempre usar a palavra mérito em vez da palavra sorte. E volto a Cristiano Ronaldo: desde cedo, ainda na escola desportiva de Alvalade, onde se formou para o futebol e para a vida, o campeão madeirense prolongava as sessões de treino, continuando a exercitar-se mesmo após a partida dos colegas. Aperfeiçoou e desenvolveu da melhor maneira as suas aptidões naturais. Ultrapassou a fronteira que separa os jeitosos (que é quanto basta quase sempre em Portugal) daqueles que têm verdadeiro talento.
A sorte ajuda? Pois ajuda. Mas não explica nada. Quando Cristiano, com um remate bem colocado, cheio de força, faz tremer o poste da baliza adversária, os analistas que adoram cultivar o lugar-comum dirão: «Teve azar.» Ele será o primeiro, no entanto, a reconhecer que esteve quase mas terá de esforçar-se ainda um pouco mais para a bola entrar na próxima vez. Que poderá ser já no minuto seguinte.
Foto de Robert Capa no Dia D (Normandia, 6 de Junho de 1944)
Experimentem usar mérito ou competência no lugar da palavra sorte.
Não é uma simples questão semântica: há toda uma filosofia de vida subjacente às palavras que escolhemos.
Cristiano Ronaldo está para o futebol como Robert Capa estava para as reportagens de guerra. Merecidamente distinguido em vida com o título de melhor repórter fotográfico da sua geração, Capa costumava dizer: «Se a foto não estava suficientemente boa é porque não estavas suficientemente perto.»
A sorte é isto. E constrói-se a todo o tempo por aqueles que beneficiam dela.
(Aqui torno a colocar uma história, acontecida em 2013 ou 2014, no Mpumalanga. Já a publicara aqui. Mas vem-me a propósito, quando ouço tantos a criticarem-no...)
À saída de Nelspruit não paro nos semáforos desligados, que quando assim funcionam como sinal de "stop", pois nenhum carro se avistava no cruzamento. E logo dois policias saltam à estrada, mandando-me parar. "Estou tramado!", resmungo, antevendo os rands da multa e o atraso na viagem. Desculpo-me, explico-me, eles impávidos. Claro que viram a matrícula moçambicana, e tão habituados estão ao tráfego inter-fronteira, mas perguntam-me para onde vamos ("Maputo", respondo), de onde somos ("portugueses", digo-lhes), se viemos às compras. Que não, esmiúço, em busca de hipotética solidariedade, que ali vim para trazer a miúda ao (orto)dentista, a Carolina a comprová-lo no banco traseiro, com o aparelho dentário tão brilhante, acabado de calibrar na visita mensal. Um deles (suazi? tsonga? sotho?, não lhes consigo destrinçar a origem), inclina-se sobre a minha janela, quase enfiando a cabeça no carro e pergunta "how are you, sissi (maninha)?" e assim percebo que não pagarei multa. Depois diz-me "se você é português vou-lhe fazer uma pergunta" e eu logo que sim, dando-lhe um sorriso prestável, antevendo uma qualquer dúvida sobre ares ou gentes de Moçambique. Mas afinal "Qual é o melhor, Ronaldo ou Messi?". Eu rio-me, num "Ah, meu amigo, são ambos excepcionais, diferentes mas excepcionais", enfatizo, mas ele insiste, "mas qual é o melhor?". "Ok", e enceno-me, olhando à volta, "só vocês é que me ouvem, assim posso falar, sou português mas o maior é Messi", e estou a idolatrar o jongleur, o driblador dono da bola, alegria do povo, nós-todos miúdos de rua. "Não, você está errado" riposta ele (ndebele? zulu? khosa?, não lhe consigo destrinçar a origem), "Ronaldo é o melhor. Messi nasceu assim, Ronaldo é trabalho, muito trabalho!". Ri-se, riem-se, rimo-nos, e conclui num "podem ir". Avanço pela N4 e sorrio a este afinal meu espelho, apatetado europeu (armado em) intelectual com prosápias desenvolvimentistas, a levar uma lição de ética de trabalho de uma pequena autoridade (formal) africana.
Na carreira de Cristiano Ronaldo houve um momento que me deslumbrou completamente, daqueles que me deixou encantado. Foi no jogo do play-off de qualificação para o mundial do Brasil, na segunda mão, na Suécia. Foi em parte um jogo publicitado como Ronaldo contra Ibrahimović mas que acabou demonstrando que embora o sueco fosse de facto excepcional, Ronaldo estava a outro nível.
Talvez seja estranho lembrar um jogo já tão antigo (amanhã faz 9 anos) e para um Mundial onde Portugal não se cobriu de glória, mas foi a memória mais indelével que tenho de Ronaldo como jogador e especialmente ao serviço da selecção. Sei que podemos lembrar outros jogos excepcionais, onde Ronaldo foi o ataque da selecção portuguesa, ou aqueles onde os seus esforços arrancaram vitórias ou empates mesmo no fim ou cujos esforços mantiveram a selecção portuguesa num jogo, mesmo quando ele próprio não marcou. Poderíamos falar nos 3 golos à Espanha no último mundial, no salto estratosférico para marcar de cabeça ao serviço do Manchester United contra a Roma, na energia, no desejo e na intensidade que transmitiu (às vezes) sentado no banco durante a final do Euro 2016, no pontapé de bicicleta ao serviço do real Madrid contra a Juventus e que levantou as bancadas.
Todos esses momentos e muitos outros são memoráveis e emblemáticos de Ronaldo, mas eram momentos que Ronaldo parecia estar sempre a postos de oferecer, de mostrar como podia mudar um jogo, deslumbrar espectadores, companheiros de equipa e até adversários. Momentos que nunca imaginámos estarem fora do alcance dele. Só que, por alguma razão, eu nunca senti em momento nenhum de Ronaldo que ele seria inevitável, que fosse o que fosse que sucedesse em campo, ele acabaria por marcar ou fazer outra coisa qualquer que garantisse uma vitória. Excepto nessa noite de Novembro de 2013 na Suécia.
Portugal tinha chegado a esse jogo com uma vantagem de 1-0 do jogo em Lisboa e ampliou-a no início da segunda parte. Só que Ibrahimović acordou, marcou dois golos e deu a sensação que poderia mudar o jogo. Por apenas um segundo. Porque havia algo em Ronaldo naquela noite que o fazia intocável. Não era aquele seu gesto de "calma, eu estou aqui". Era uma leveza nos movimentos, na corrida, uma determinação que não parecia pesar-lhe, como se já soubesse qual seria o resultado. Não vinha da sua inacreditável determinação mas de outra fonte que ele nem sempre demonstrou: serenidade. A partir do momento em que Ronaldo arrancou para o seu segundo golo da noite e para o 2-2 que na prática já deixaria a eliminatória entregue, eu soube que não haveria problemas. Poderia descer um exército de Klingons para o parar e ele acabaria por marcar. Foi um jogo algo transcendente que eu só tinha vivido como adepto uma única vez.
Lembro isso hoje quando olho para a forma como Ronaldo teve a sua carreira. Em tempos li um artigo que avançava a teoria de um psicólogo de Federer, Nadal e Djoković serem psicópatas (mas de uma boa forma). Sem entrar em detalhes técnicos que não domino, o essencial é que esses 3 grandes do ténis teriam uma obsessão tão grande de vencer que não tinham problemas em destruir quem lhes aparecesse pela frente e que tal obsessão continuava bem viva ao fim de quase 20 anos. Penso que Ronaldo é semelhante. O desporto é colectivo e não individual, mas a obsessão de Ronaldo é individual e arde da mesma forma hoje quanto ardia quando há pouco mais de 20 anos marcou o seu primeiro golo sénior pelo Sporting. Será talvez esse o aspecto que o aproximou tanto a Alex Ferguson, outro obsessivo pela vitória.
A dificuldade que tal obsessão acarreta é no entanto a compreensão dos limites. Seja da idade (Federer) limites do próprio corpo (Nadal) ou da sua influência em aspectos não desportivos (Djoković). Costuma-se dizer, quando vemos atletas a prolongar a carreira, que "a idade é só um número. A alternativa é a expressão "o Pai Tempo é imbatido". Como em tudo, a entropia vence e há um momento em que o número passa mesmo a ser idade. A dificuldade para certos atletas é compreendê-lo e, para atletas excepcionais e que sempre dependeram tanto de um corpo afinado até ao mais ínfimo detalhe e de um desejo obsessivo de ser o melhor, tal facto torna-se impossível de aceitar. Creio ser isso o que vemos hoje com Ronaldo.
Não vou discutir os méritos do Ronaldo de hoje nem se de facto ainda é o melhor ou um dos melhores do mundo. Deixo-me pela simples observação: o Ronaldo de hoje já não é o Ronaldo de há 15 anos, nem de há 10 ou 5 anos e direi que nem sequer o de há um ano. Ronaldo vai ficando mais lento e vai conservando a sua energia cada vez mais, o que reduz a sua contribuição para um jogo cada vez mais focado em pressão alta e contribuição constante. Não é justo, mas é um facto. Não é o único. A isto poderão acrescer outros aspectos privados sobre os quais não especularei, mas realço apenas um: a perda de um filho durante o parto, algo que pode deitar abaixo qualquer ser humano. Não vou imaginar como Ronaldo se sentiu, mas é difícil não imaginar que tal situação não o tenha afectado também a nível profissional.
Temos então a partir de domingo o início de um mundial que nunca deveria ter sido atribuído ao Qatar mas que seja como for vai ter lugar. Será quase de certeza o último da carreira de Ronaldo. Penso que ele possivelmente já não deveria jogar de início e deveria guardar a sua energia para atormentar defesas adversárias já cansadas na segunda parte (especialmente no calor do Médio Oriente) e ir motivando os seus companheiros de equipa, mas eu não sou seleccionador nem sequer jogador. Sou apenas adepto. E como adepto, espero apenas que Ronaldo, no seu declínio, possa ainda oferecer uma repetição dessa noite sueca de há 9 anos e me deslumbre. Possivelmente uma tal exibição não seria o suficiente para trazer um troféu, mas é talvez o meu maior desejo para esse mundial: um jogo em que Ronaldo é intocável. Já me bastaria.
PS - este texto foi sendo escrito ao longo de várias semanas, com mudanças e correcções. Não quis incorporar quaisquer referências à entrevista de Ronaldo que foi transmitida nos últimos dois dias. Deixo apenas um desejo para o seu futuro pós-mundial: que regresse ao seu Sporting para fechar o ciclo, nem que seja por uma época antes de ir ganhar milhões para os EUA. Faço este desejo também como benfiquista.
Ando a ouvir e a ler, há semanas, que Maradona foi o melhor futebolista de todos os tempos. A pretexto da sua morte, as hipérboles sucederam-se numa espiral de títulos delirantes: não faltaram jornais a gritar em manchete que Deus tinha morrido.
Distante de tudo isto, e sem paciência para esta canonização laica do astro argentino que foi campeão mundial em 1986, limito-me a perguntar: o que tinha Maradona a mais do que tem, por exemplo, o nosso Cristiano Ronaldo?
Quando Ronaldo alcançou na semana passada os 101 golos em jogos internacionais (apenas a 8 do recorde absoluto de Ali Daei), lembrei-me deste artigo de 2019 sobre Federer, Nadal e Djokovic. E lembrei-me dele essencialmente porque numa carreira da selecção já com 17 anos, Ronaldo marcou 46 dos 101 golos desde 2016 (e 2020 mal conta para isto), ou seja, depois dos 30. Se recuarmos a 2013, quando tinha 28 anos quando atingiu o que seria o pico para a maioria dos jogadores na sua posição, marcou 64 golos (e ainda houve o período em que não jogou muito pela selecção), ou seja, mais de 60% dos golos.
Podemos escrever muito sobre os motivos: a forma como a selecção melhorou em pessoal e em orientação técnica, podemos referir a ética e as qualidades únicas de Ronaldo, a sua inacreditável capacidade física mesmos aos 35 anos e até a forma como soube adaptar o seu jogo, minimizando-o mas tornand-se mais focado e excepcionalmente eficaz a marcar golos. Eu prefiro referir a sua fome e aquilo que nos diz.
É comum referir a forma como Ronaldo trabalha imenso, tem cuidado com o seu corpo e a vontade que continua a ter de vencer. Falar disso como se fosse excepcional é no entanto errado: não creio que o seja. Ronaldo é um ser humano excepcional, mas as suas características mentais provavelmente são comuns a vários outros desportistas, alguns dos quais poderão não passar da mediania mas só atingirão tal nível precisamente devido a esse desejo e dedicação. Gosto sempre de me lembrar de António Pereira, que conseguiu um recorde nacional e o 11º lugar nos Jogos Olímpicos de 2008 nos 50 km marcha e que se preparava apenas após passar pelo menos 8 horas por dia na sua profissão de electricista e que teria recebido como apoio apenas um par de sapatilhas oferecidas pela sua autarquia (cito de memória). Talvez a sua dedicação e fome não fossem menor que a de Ronaldo, mas os seus meios, especialmente físicos, eram-no certamente.
No entanto Ronaldo tem um aspecto que o distingue: apesar de continuar a vencer troféus e a arrecadar prémios individuais, a sua fome de mais não diminui. É comum ver equipas de enorme qualidade a perderem capacidade de vencer à medida que os seus jogadores "enchem a pança" e, apesar de a sua qualidade desportiva não ser menor, deixarem de conseguir competir como no passado. Alex Ferguson durou imenso como treinador (manager seria mais correcto) do Manchester United precisamente porque sabia ser necessário renovar a equipa (além de tomar decisões difíceis quando necessário). Ronaldo é dos poucos jogadores que nunca parecem satisfeitos com o que alcançaram e querem sempre mais, mesmo que seja do mesmo.
Federer, Nadal e Djokovic têm vindo a dominar o ténis nos últimos 15 anos, mais ou menos. E têm cada um mais Grand Slams que qualquer outro jogador. Independentemente de como eles sejam vistos por cada observador no que diz respeito às suas posições nas listas dos melhores de sempre, não há quaquer dúvida que a sua fome de títuos é verdadeiramente inacreditável. É verdade que cada um teve períodos de seca. Federer abrandou para passar mais tempo com a família, Djokovic para fazer o mesmo e reencontrar a sua fome de títulos e Nadal por motivos físicos, mas cada vez que qualquer um deles entra no court, os seus adversários sabem que estão a lutar para sobreviver e que qualquer erro será severamente punido.
No artigo acima, refere-se que um psicólogo desportivo considera os 3 como psicópatas, mas "em bom". Não entro nos detalhes, porque farei asneira num campo que não domino, mas a ideia é interessante, porque de facto, além das características físicas, aquilo que muitos dos grandes desportistas da história parecem partilhar é uma fome insaciável e uma capacidade de punir quaisquer lapsos de concentração.
Ronaldo parece ser um deles. A forma como é determinado a vencer todo e qualquer troféu, todo e qualquer jogo, todo e qualquer duelo individual, toda e qualquer jogada, evidencia uma pessoa com algum tipo de diferença na forma como o seu cérebro funciona. Parece ser alguém que quer esmagar o adversário, não porque tenha prazer na humilhação, mas porque retira prazer na forma como vence tudo. Num artigo que li, outros jogadores da selecção comentam como ele tem essa atitude competitiva mesmo a jogar ténis de mesa ou cartas. O recente "hagio-documentário" sobre Michael Jordan, The Last Dance, apontava para o mesmo tipo de comportamento pela antiga estrela dos Chicago Bulls.
Por isso mesmo, ainda que os seus dotes físicos estejam em declínio, a sua mentalidade levá-lo-à a procurar sempre mais. Talvez um dia isso o leve a procurar objectivos dolorosamente fora do seu alcance, talvez um dia vejamos Ronaldo a arrastar-se pelos campos em busca de duelos que possa vencer, nem que seja um raro golo ou um raro drible. Não o creio: Ronaldo demonstrou já ser inteligente o suficiente para saber que terá que se retirar. E, seja como for, há sempre outro tipo de desafios para focar a sua determinação.
Para um jovem alemão de vinte e poucos anos, estudante de Jornalismo, ele valeu 64.000 euros!
Foi na versão alemã do concurso "Quem Quer Ser Milionário" (Wer Wird Millionär), transmitido pela RTL. O rapaz começou cambaleante. Porém, à medida que as perguntas aumentavam de valor, ele ia ficando cada vez mais seguro e atingiu o patamar dos 64.000 euros. Aliás, sem jokers. A pergunta era:
"Qual foi a primeira pessoa, no fim de Janeiro, a quebrar a barreira dos 200 milhões de seguidores no Instagram?"
Hipóteses de resposta:
A - Cristiano Ronaldo
B - Kim Kardashian
C - Papa Francisco
D - Ed Sheeran
Como referi, o jovem já não tinha jokers. Se optasse por não responder, levava para casa 32.000 euros. Respondendo errado, caía para os 500 euros. E ele arriscou a resposta, escolhendo Cristiano Ronaldo.
Claro que o apresentador fez suspense, depois de a resposta estar bloqueada. Começou com o que tinha menos seguidores: o Papa Francisco. A seguir, Ed Sheeran. E depois: Kim Kardashian ou Cristiano Ronaldo? A resposta certa é...................... CRISTIANO RONALDO!
O nome luso assim gritado, o público a aplaudir entusiasticamente... e uma portuguesa, do outro lado do ecrã, a sentir-se muito orgulhosa.
Pequenas alegrias, em tempos difíceis.
Nota: o programa foi apresentado ontem, mas a gravação tinha já vários dias, do tempo em que ainda não se tinham decretado medidas drásticas por causa do Covid-19. Desde o fim-de-semana que não há programas televisivos alemães com público no estúdio.
Imagem: captação de ecrã do vídeo do programa, aqui disponível.
«Sou português com muito orgulho. Não trocava a minha nacionalidade por nenhuma outra.»
Cristiano Ronaldo
«Sou uma pessoa obcecada com o sucesso.»
Cristiano Ronaldo, ontem, em entrevista à TVI
(Postal para o És a Nossa Fé)
Juventus-Manchester United, no palco global da “Champions” o jogo entre as equipas dos dois portugueses mais conhecidos do mundo, pelos seus extraordinários méritos. Também por isso eles alvos de tanta raiva nacional, mostra desse traço cultural constante, a inveja dos patrícios com sucesso “lá fora”, tão paradoxal e desprezível num país que foi colonial (e abominou os seus colonos) e é de emigração (e menospreza os seus emigrantes). A abjecta reacção generalizada, isenta daquilo chamado “dúvida”, às acusações de uma acompanhante de luxo a Cristiano Ronaldo, é um caso extremo disso. Mas é algo continuado, há uns anos (2012, 2013?), num treino da selecção antes de um jogo particular em Guimarães o público gritava “Messi, Messi” para espanto do CR7. Pois porquê aquilo? Tal como a constante maledicência sobre Mourinho – há quantos anos, 10?, se lêem inúmeros comentários e opiniões na imprensa sobre o estar ele “ultrapassado”? – disso é prova.
Ontem o confronto (também) entre eles. Algo que connosco fala, sportinguistas, sobre o nosso clube. O CR7 orgulho máximo da nossa formação, encabeçando o trio maravilha de três décadas gloriosas, Futre-Figo-Cristiano. Talvez o melhor jogador do mundo, e cada vez mais isso se evidencia (Messi como o génio trabalhado, Ronaldo como o trabalho genial). E Mourinho, o técnico em actividade com mais vitórias relevantes, em tempos recusado pelo Sporting (um dos três erros históricos do clube, junto aos com Eusébio e Futre). Negado, julgo recordar (ou sonho a memória?), quando o actual director do futebol do Sporting, então capitão, se armou em Sérgio Ramos e torpedeou em público essa vinda, associando-se aos sábios espectadores, esses sempre armados de vigorosos lenços brancos, que clamaram inadmissível que um treinador transitasse do Benfica para o Sporting. Pois desde há décadas que os fungões espirram …
Enfim, vem isto a propósito do final do jogo de ontem. Mourinho, que em Manchester e Turim foi azucrinado pelos adeptos italianos, jogou bem e triunfou. A Juventus é melhor, ganhara soberbamente fora e em casa tinha o jogo na mão. CR7 fez um jogo magnífico, um golo espantoso e deu outros a marcar, desperdiçados por pés Quadrados. Mas Mourinho pensou bem, substituiu melhor, e teve a sorte (essa grande jogadora) por ele. E fez a reviravolta, mesmo no fim. Jogo épico.
Mas o que é mesmo magnífico é a sua reacção. Provocatória, deselegante, desnecessária, digam o que disserem. Mas é uma delícia. Porque é futebol. Mas ainda mais do que isso, porque é completamente portuguesa. Não exactamente o gesto da mão na orelha, algo mais comum. Mas é aquele trejeito da boca, “hâânnn?”, “dígam lá agóra!!”. Algo, ricto e óbvio som, tão nosso, tão português de rua, bairro, popular, tão “tuga”, tão treinador da bola, como se fosse ali aqueles técnicos dos tempos de antes, os do Aliados do Lordelo ou do Montijo a ganharem à Sanjoanense ou ao Amora, assim a fazer o mundo pequeno e igual quanto às mesuras que se lhe (não) deve, e nisso também tão eu, tão nós, os que não temos nem vergonha de ser portugueses nem abominamos os nossos que ganham alhures. Vejo-o ali na tv e rio-me, gargalho, “ah g’anda Mourinho, meu patrício”, meu e nosso orgulho amanhã. Saídos à rua, entre nós e com os outros, “hâânnn?”, “dígam lá agóra!!”. Nós povo, rindo, que hoje no fim do dia tragaremos o “petit verre”, escorropicharemos o bagaço branco, e irei eu até à rua, à porta da “petite restauration”, a tasca daqui, a fumar o cigarro e, se necessário, no choque com o frio, assoar-me-ei aos dedos, sacudindo o ranho para o chão, e se calhar ainda terei que cuspir, na azia do álcool. E, entre nós, riremos, com desprezo mas também mágoa, desses invejosos lá na terra. E ainda mais, com gargalhada mesmo, com alguma amarga piada sobre essa paneleirage, tão amaricada, sensíveis coitadinhos, a agitarem os lencinhos brancos, arrebitados em meneios no “olhem para mim”, que é para isso que lhes servem os trapos.
G’anda Zé Mourinho, g’anda patrício. E viva também o CR7, o melhor do mundo.
Quando surgiu a notícia da transferência de Ronaldo para a Juventus, uma das frases que mais ouvi (e que se ouve ou lê cada vez que alguma trasnferência deste tipo é completada) foi: «vai pagar isso só em camisolas.» Ora, esta afirmação está errada, não apenas em geral mas também para Ronaldo, não importa aquilo que aconteça. É por isso que a notícia do DN (e de quem mais siga pelo mesmo caminho) não está simplesmente errada: demonstra imensa preguiça jornalística.
Vejamos a notícia. Diz o DN que «Ronaldo já rendeu pelo menos 54 milhões à Juventus». As contas são feitas por a Juventus ter anunciado já ter vendido 520 mil camisolas de Ronaldo com preços a oscilar entre os 104 € e os 144 €. Ora isto são contas que nem de merceeiro (os merceeiros compreendem a necessidade de pagar eles próprios pelos produtos que vendem) e que não reflectem nem as margens de lucro para os clubes nem as dinâmicas de vendas.
[Cristiano Ronaldo agradecendo os aplausos dos adeptos da Juventus após o (2º) golo marcado em Turim]
(Após a nervoseira deste Portugal-Espanha lembrei-me deste postal que meti em Abril no És a Nossa Fé)
Não temos a certeza se é melhor receber o ordenado anual em 12 ou 14 meses. Não conseguimos determinar se a carga fiscal diminuiu ou aumentou em 2017. Mas sabemos que o Ronaldo se elevou exactamente dois metros e trinta e oito cêntimetros para fazer um pontapé de bicicleta contra a Juventus.
Sábado à tarde entretive-me a ver a final do Mundial de Clubes, que, como habitualmente, contou com os representantes da Europa e da América do Sul. Vitória natural do Real Madrid sobre o Grémio de Porto Alegre, com um ainda mais natural golo de livre de CR7, a conquistar o ceptro mundial (e ainda lhe anularam inexplicavelmente outro tento). A equipa gaúcha revelou-se uma desilusão, a anos-luz do excelente Grémio de meados dos anos noventa, com Jardel, Paulo Nunes, Adilson e restante esquadra comandada por Scolari. Só o central Geromel, que até passou os primeiros anos da carreira em Chaves e Guimarães, se destacou da mediania-menos.
Bem menos natural do que o triunfo da multinacional desportiva sediada em Madrid é que numa final em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, apareçam nas placas comerciais à volta do relvado anúncios da Qatar Airways, rival da Emirates, a companhia aérea daquele território (e autêntico embaixador e reserva económica). Ainda por cima a Qatar é patrocinada por um estado que está de relações cortadas com os Emirados e até sofre por parte destes e dos seus aliados um bloqueio económico. É tão bizarro como ver na final da Super Bowl anúncios a uma companha cubana, se a houvesse. Seria uma provocação ao Real Madrid (a Qatar Airways patrocina o Barcelona)?
Dizem-me que afinal a transportadora qatari é uma das patrocinadoras da FIFA. Talvez assim se compreenda: a grande organização do futebol mundial é de tal forma poderosa que consegue romper bloqueios e tensões internacionais e impor publicidade em países que tanto por razões políticas como económicas certamente a não desejariam. E assim fica um exemplo eloquente de como uma organização mundial não-governamental tem mais influência e poder do que muitos estados, mesmo os mais endinheirados.
«Espero por isto a cada ano que passa.»
Cristiano Ronaldo, hoje, ao receber pela quinta vez a Bola de Ouro, galardão que distingue o melhor jogador de futebol do ano à escala mundial
Dizem-me que as "redes sociais" cá do burgo se encheram nas últimas horas de tugas indignados a disparar sarcasmos em diversos tons contra Cristiano Ronaldo, ontem eleito pela quinta vez melhor profissional de futebol do mundo. Preferiam talvez o argentino Messi, como se o nosso compatriota não tivesse conquistado só neste último ano a Liga dos Campeões, o campeonato espanhol e o Mundial de clubes, além de ter integrado a selecção portuguesa que subiu ao pódio da Taça das Confederações.
É sina nossa: quando alguém cá nascido e aqui criado se destaca, erguendo-se acima da mediania, logo sente os conterrâneos a crivá-lo de "fogo amigo", com palavras quase tão mortíferas como punhais. A inveja é uma espécie de passatempo nacional exercido com prodigalidade. E quanto mais alto está o alvo, mais se enfurece a legião de detractores.
Uma das críticas recorrentes a Cristiano Ronaldo, no vespeiro das redes, relaciona-se com o idioma: acusam-no de ter um domínio insuficiente do português. Tomaram muitos destes anónimos internautas que o apontam de dedo em riste - analfabetos funcionais - exprimirem-se tão bem não apenas na nossa língua mas também em inglês e castelhano, como se expressa o mais célebre n.º 7 do futebol à escala planetária.
Por mim, gostaria de ver muitos dos nossos políticos, que mal chegam a Badajoz desatam logo a palrar "estrangeiro", comunicar em português perante plateias internacionais como ontem Ronaldo fez na gala da FIFA, recorrendo com orgulho ao idioma de Camões com o mundo a escutá-lo. Senti-me orgulhoso enquanto compatriota. E senti também orgulho pelo miúdo pobre do Funchal que subiu a pulso no desporto e na vida, à custa de muito talento, muito esforço e muito brio. Dando autênticas lições de tenacidade a milhões de meninos pobres que sonham conseguir o mesmo nos mais diversos recantos do planeta.
Tento imaginar os adeptos argentinos a torcer por Ronaldo enquanto lançam impropérios a Messi. Não consigo: esta é uma originalidade cá do torrão, nada transmissível. Padecemos de endémica alergia ao mérito enquanto prestamos tributo recorrente à mediocridade mais rasteira. Se existe sintoma do nosso atraso estrutural, no capítulo das mentalidades, é precisamente este. Que nos tem levado, geração após geração, a marcar golos consecutivos na própria baliza.
A justiça espanhola tem vindo a apertar o cerco à evasão fiscal no futebol, que durante décadas passou impune. Sem poupar sequer os grandes astros da modalidade.
Lionel Messi foi condenado - com sentença já transitada em julgado - por defraudar a administração tributária em 4,1 milhões de euros. Por sua vez, Cristiano Ronaldo está a ser ouvido num inquérito a propósito da suposta fuga ao fisco num valor de 14,7 milhões de euros relativos a direitos de imagem.
Impõe-se a pergunta: quando terá a justiça portuguesa oportunidade ou coragem para investigar todos os contratos dos jogadores de futebol profissional?