O mundo nunca deixa de me surpreender
Não há muito tempo tropecei num dos muitos artigos com que as redes sociais nos bombardeiam, segundo o qual, em 2030 a China seria o primeiro, ou segundo (não me recordo), país do mundo com maior número de católicos. Tive o impulso de morder o isco e, a partir daí, ir à procura de mais dados e informação. Por falta de tempo não o fiz. Numa conversa com amigos introduzi o assunto à baila, o que não deixou de os surpreender.
Em sequência a esse meu mote, um deles relatou que numa viagem profissional a Viena, num intervalo entre vários compromissos, deu por si a passear por um bairro habitacional que, não pertencendo ao centro histórico, se distribuía todo ele ao redor de uma igreja católica. Por curiosidade entrou no templo. Já tinha séculos suficientes para ter uma nave gótica, vitrais e um cadeiral. Reparou numa imagem de um Santo António com o Menino Jesus ao colo. Pela etiqueta que na sua base dizia “Von Padua”, entendeu que era o nosso, o de Lisboa.
Às horas em que não decorrem celebrações, o silêncio das igrejas choca sempre quem nelas entra, especialmente se do lado de fora das portas existir uma cidade. Certamente que à mesma hora não muito longe dali, na Catedral de Santo Estêvão, a coqueluche turística da capital austríaca, os visitantes produziam um ruído incomparavelmente maior do que o silêncio quase sepulcral daquela igreja de bairro. A única excepção vinha de uma minúscula capela localizada logo à direita da entrada. Empurrado pela curiosidade, entrou. Mesmo sem dominar a língua germânica, entendeu que o sacerdote atrás do altar estava a celebrar uma missa. Dois idosos assistiam à cerimónia. Com a sua entrada em cena a assistência à missa aumentou em 50%. Sentiu-se constrangido e, por solidariedade àquela escassez de público, foi ficando. Os dois idosos lá iam respondendo às frases que os ritos definem que sejam ditas pelos fiéis. Mesmo condoído por aquela falta de participação, este meu amigo permaneceu em silêncio. As limitações de alemão em geral e do alemão litúrgico em particular, justificaram tal mudez.
Disse-nos depois que, como em nenhum outro momento até então, teve consciência da descristianização da Europa. O padre seria sexagenário e era o mais novo daqueles três cristãos austríacos.
Ao lado da Igreja funcionava uma creche, que talvez até fosse gerida pela paróquia. Apesar da gritaria distante das crianças e dos inúmeros reformados que preenchem as cidades, mais ninguém ali estava.
Foi com este relato fresco na memória que recebi uma newsletter do Expresso com um texto do Henrique Raposo que tinha como título “Lamento, mas o catolicismo está a voltar em força”. Pelo que entendi o texto está apenas disponível nesta mensagem e não no sítio do jornal.
Por não me ser possível resumir o que ali apresenta sem o amputar toscamente, passo a transcrevê-lo:
É suposto vivermos num ocidente laico e pós-religioso. Essa é uma das grandes lentes do nosso tempo, sobretudo quando é aplicada à Igreja Católica, a besta negra das duas grandes narrativas que dominaram a modernidade nos últimos 200 anos: a narrativa francófona e laica baseada em 1789, e a narrativa anglo saxónica e protestante baseada na revolução inglesa e depois em 1776.
Mas a verdade é que o catolicismo é, neste momento, uma força triunfante no mundo inteiro, em África, na China e na Ásia em geral. Na Coreia do Sul o crescimento do catolicismo no último meio século é para lá de inacreditável: já temos quase 6 milhões de católicos coreanos.
Mas queria salientar que esta coolness do catolicismo está a crescer dentro do ocidente alegadamente pós-religioso. No ocidente das apps de telemóvel, o mercado das apps religiosas está a crescer. Da próxima vez que vir um jovem a andar na rua de phones nos ouvidos, pense que ele talvez esteja a rezar com o Passo a Rezar, por exemplo.
Estamos a viver, de facto, algo parecido ao revivalismo católico de há cem anos. Depois de décadas de globalização (segunda metade do século XIX e início do XX) ligada à ciência e à economia, tivemos na primeira metade do século XX um renascimento católico simbolizado por escritores como Greene, Bernanos, Chesterton.
Parece que estamos a chegar de novo a esse ponto.
E não estamos a falar apenas de um crescimento da religiosidade em países onde à partida isso seria expectável, como a Polónia. Embora isto tenha de ser dito: a nova potência europeia, da economia às forças armadas, é uma potência católica, que faz do catolicismo uma identidade fortíssima.
Mas avancemos para os países da Europa ocidental.
Neste momento, em França, o número de adultos que se batizam está a conhecer uma subida incrível. Porquê? Além do óbvio (procura de sentido e pertença num tempo tão marcado por mudanças), é impossível não pensar nesta hipótese: o aumento do islamismo radical dentro de França tem vários efeitos, um deles é o aumento da religiosidade católica. Se as mesquitas estão cheias, porque é que as igrejas estão vazias?
Este fenómeno – batismo ou entrada na vida católica já em adulto – não é apenas um fenómeno francês. Está a acontecer noutros países. Na Inglaterra, em breve, os católicos vão superar os anglicanos. Apetece perguntar: para quê tanto esforço, Henrique VIII? A ascensão silenciosa do catolicismo no Reino Unido é mesmo algo extraordinário que talvez merecesse mais atenção. Até o “Guardian” não tem outro remédio senão falar desta questão. E fica aqui um dado ou pista relacionada com um tema que já abordei noutra newsletter: as sucessivas vagas de imigrantes na Europa trazem pessoas mais religiosas e mais conservadoras e isso tem impacto nesta nova adesão à religião organizada. É por isso que eu dizia há uns meses que a esquerda é que devia ser mais rígida na política de entrada de imigrantes.
Nos EUA, como diz esta peça da Free Press, há dioceses dos EUA que tiveram um aumento de 30% no número de catecúmenos adultos. O tom elegíaco de certas dioceses é claro. Ou seja, o revivalismo católico nos EUA é evidente. O que coloca duas questões.
Primeira: no contexto das crises das igrejas evangélicas, altamente politizadas e desgastadas, a identidade cristã dos EUA vai ser liderada pelo catolicismo, até porque o Papa é americano e porque há um crescimento natural da população hispânica?
Segunda: se a resposta à pergunta de cima for sim, isto é uma profunda mudança na identidade americana, que, num certo sentido, foi feita contra o centralismo da igreja católica. Ross Douthat, cronista católico do “NY Times”, tem dito muitas vezes que o catolicismo, que no passado era associado nos EUA aos imigrantes mais pobres, é hoje visto como a religião mais cool nas elites, substituindo nesse ponto correntes protestantes como o presbiterianismo ou o episcopalismo.
Seja como for, a pergunta "precisa o ocidente de um revivalismo religioso?" já não é um absurdo ou uma discussão meramente académica.
Porque é que isto está a acontecer? As respostas a esta pergunta saem um pouco fora da natureza desta newsletter. Mas parece ser claro que o ritualismo católico, a começar por exemplo no véu das raparigas, tem um encanto e um sentimento de pertença a algo antigo, o que é importante numa era de tantas mudanças drásticas. Quando tudo está a mudar à nossa volta, pertencer a um rito com 2000 anos talvez dê algum conforto e pertença. Eu sou daqueles que ficam incomodados com este apego ao lado externo e meramente litúrgico da fé: o véu, as missas tridentinas em latim. Mas este revivalismo existe e é um dado importante.
Para terminar, deixo um ponto interessante para desenvolvermos em breve. Parece que são os homens que estão a liderar este revivalismo. Nos EUA, elas estão a deixar a igreja(s), são eles que estão a ingressar. Idem para Inglaterra. Ou seja, este revivalismo religioso faz parte da diferença em curso entre homens mais conservadores e mulheres mais progressistas? De que forma o ingresso dos homens na Igreja pode atenuar ou reforçar os excessos da tal masculinidade tóxica que alimenta parte do populismo? Um homem católico pode olhar para Trump e Ventura e sentir-se representado?
Termino o postal, que já vai longo, com uma outra ideia. Apesar da não coincidência temporal entre a laicização do Ocidente e a sua perda de centralidade geoestratégica, não deixa de ser curioso que os novos polos dessa centralidade, sejam também os novos polos do catolicismo.