Graças a uma aula on-line de Miguel Morgado, tomei há pouco tempo conhecimento de uma figura histórica da qual tinha ouvido vagamente o seu nome, mas que, pelo seu percurso e pela sua influência no pensamento europeu e ocidental, rapidamente me surpreendeu. Refiro-me a Frei Bartolomeu de Las Casas, um frade dominicano espanhol que viveu entre os anos 1484 e 1566.
Segundo consta Bartolomeu, com nove anos, terá assistido à chegada de Colombo na sua primeira viagem às Índias Ocidentais. O seu pai, Pedro de Las Casas, acompanhou Colombo na sua segunda viagem. Em 1502 é o jovem Bartolomeu que atravessa o Atlântico para se fixar na ilha Hispaniola, actual território da República Dominicana e do Haiti.
O contacto com o Novo Mundo foi um acontecimento maior na história da humanidade e Bartolomeu tem consciência disso. Mais tarde descreve essa época histórica como “um tempo novo como nenhum outro”.
Juridicamente, a exploração do Novo Mundo tinha como base a Bula Inter cætera, que foi promulgada um ano após o regresso de Colombo, e que estabelece que os novos territórios pertencem aos reinos de Espanha e Portugal (antecipando o que virá a ficar mais tarde conhecido por Tratado de Tordesilhas) referindo, no entanto, que essa posse depende e resulta da evangelização dos povos e da propagação da fé cristã.
Desde a sua chegada ao Novo Mundo que Las Casas se incomoda com a crueldade com que os índios, ameríndios ou indígenas, consoante as diferentes designações, são tratados. O debate que se estabelece entre os colonos e alguns clérigos, remete para as doutrinas aristotélicas, que distinguem a escravatura convencional da escravatura natural. Segundo este filósofo da antiguidade, a escravatura convencional resulta dos direitos de conquista ou da aquisição, enquanto que a segunda sustenta-se numa superioridade natural do esclavagista em relação ao escravizado. Estes dois conceitos desencadearam vários debates ao longo da história da Igreja. Santo Agostinho elabora sobre esse tema dizendo que a escravatura, enquanto criação humana, continha traços do pecado original, afirmando por isso que não era natural. Daí resulta, ainda durante a Idade Média, a proibição de um cristão poder escravizar outro cristão.
Em 1507 Bartolomeu de Las Casas é ordenado padre da ordem dominicana e os seus sermões passam a ser manifestações da sua preocupação com os direitos dos índios. Após um outro clérigo dominicano, António de Montesinos, afirmar que os “espanhóis esclavagistas estão a perder a alma”, Las Casas sobe a parada e diz que é também a salvação da alma do imperador que está em causa, dirigindo-se ao então Infante Carlos, futuro imperador Carlos V, tentando assim sensibilizá-lo para a sua causa.
Todas estas “inovações” são suficientes para que os clérigos que defendem os indígenas passem a ser perseguidos pelos colonos, mas também a conseguirem a atenção do imperador.
Entretanto, em 1537 o Papa Paulo III promulga a bula Sublimus Deus, segundo a qual estabelece que os índios são providos de alma racional. Esse passo confirma que os europeus se devem relacionar com eles como se europeus se tratassem.
Em 1540 Las Casas é nomeado bispo de Chiapas, o que significa que apesar dos incómodos causados, vai ganhando importância na hierarquia eclesiástica e em 1542 o Imperador promulga as Leyes Nuevas que proíbem a escravatura e os maus-tratos aos índios americanos.
A distância e o tempo necessário para que uma nova lei, especialmente impopular entre os colonos, percorresse a distância entre Madrid e os confins do império é enorme. Pouco tempo depois, à escala da época, o Vice-rei do Peru, Vasco Nuñez Vela, é aprisionado, julgado e executado pelos colonos em 1546.
É com todos estes episódios como pano de fundo que Carlos V, em 1550, convoca o Conselho das Índias para o que irá ser conhecido como o Debate de Valladolid, que decorreu no Colégio de São Gregório. Até que o Conselho se pronuncie, o Imperador ordena suspender toda a exploração e conquista no Novo Mundo.
Neste confronto, as duas visões opostas são representadas por Frei Bartolomeu de Las Casas, defendendo os direitos dos índios, e por Juan Ginés Sepúlveda, um jurista aristotélico, que representa os interesses dos colonos.
Sepúlveda é o primeiro a pronunciar-se e afirma que a escravatura dos ameríndios se justifica por direito natural, uma vez que estes são desprovidos de alma. Refere que os sacrifícios humanos e outras práticas de canibalismo são a prova disso mesmo, acrescentando que estes não mostram qualquer interesse pela conversão, chegando a ser violentos para com os evangelizadores. E assim, perante o ilustre Conselho das Índias, Sepúlveda expôs os seus argumentos em menos de uma hora.
Chegando a vez de Bartolomeu de Las Casas se pronunciar, este começa a ler um tratado que tinha preparado para o efeito, e que não era mais do que o somatório dos pensamentos desenvolvidos durante toda a vida a defender os que, sendo diferentes, eram simplesmente semelhantes[1]. A leitura deste tratado demora vários dias. Por conhecer há muito os argumentos de Sepúlveda, disserta sobre cada um deles.
Las Casas argumenta que se os indígenas são desprovidos de alma, então não poderão ser convertidos e isso esgota a validade da Bula Inter Cætera e esvazia a base intemporal da descoberta e exploração do Novo Mundo. Afirma ainda que a conversão deve ser um acto de amor, pelo pregador que ama o pagão enquanto criatura de Deus, e que este também acabará por se sentir amado por Deus. Só depois de convertido, o indígena dará cumprimento à bula papal, aumentando assim os direitos intemporais do Papa e, por decorrência da bula, também os direitos temporais do Imperador.
Acrescenta dizendo que ao defender os direitos naturais de liberdade dos índios, defende também as almas dos colonos e até do imperador. E, pelo contrário, os argumentos de Sepúlveda representam ali o trabalho do demónio.
Passados os dias necessários para que todo o tratado fosse lido, os ilustres membros do Conselho das Índias recolhem para debate e meditação e, após quase um ano, acabam por reconhecer a validade dos argumentos de Las Casas, sem que, no entanto, tivessem forma de fazer que os colonos dessem seguimento às conclusões dali saídas.
Bartolomeu da Las Casas, os dominicanos em geral, assim como outras ordens religiosas, insistem em recusar os sacramentos a quem escravizar os índios, defendendo igualmente os direitos e o respeito pelos escravos africanos.
A distância a Madrid e a incapacidade do imperador que daí resultava, levou a que todos os tratados e argumentos elaborados por Bartolomeu da Las Casas não tivessem efeitos imediatos sobre as práticas que este condenava, mas lançou um sólido debate e a má consciência do mundo cristão relativamente à escravatura.
É frequente associarmos o Padre António Vieira a este mesmo movimento, mas os seus famosos sermões foram proferidos mais de um século e meio depois, o que sublinha bem a importância de Frei Bartolomeu de Las Casas.
O interesse que este clérigo dominicano espanhol me gerou, resulta da confirmação do que já sabia, e que era que a escravatura, enquanto prática inaceitável e repugnante, além de existir desde a antiguidade, foi substancialmente questionada dentro dos impérios europeus cristãos e que a sua posterior abolição resultou exactamente do debate criado por estes pensadores da própria sociedade esclavagista.
Independentemente do que cada europeu, possa achar ou sentir sobre religião cristã e católica, só por ignorância ou má vontade, ou ambas, poderá negar que aquilo em que nos tornamos resulta do que fomos ao longo de uma história milenar.
O que podemos definir como Ocidente, é exactamente resultado, deste percurso, encharcado de pecados, de dúvidas, de tentativas e erros, de más decisões, palmilhado por gente boa, que por vezes fez coisas horríveis e por gente horrível, que por vezes fez coisas boas.
Existiu uma ciência na antiguidade longínqua, mas só os mais alienados podem fazer por ignorar que o método científico, conforme o conhecemos, só poderia ter surgido na procura, maravilhada, das regras divinas escondidas nos fenómenos físicos e químicos. Se existe uma matemática escondida na posição dos planetas e das estrelas, como é que o cosmos pode existir sem uma inteligência prévia?
São, ou não, as obras clássicas basilares da nossa civilização? O Messias de Händel, o Requiem de Mozart, a Paixão Segundo São Mateus de Bach, a Pietá de Michelangelo e a Deposição de Cristo de Raffaello. Como é que nos podemos desligar dessa herança espiritual, cultural e artística?
Está ou não o cristianismo no âmago da nossa sociedade que, entretanto, se tornou anti-confessional? E as marcas da pressão dos dedos do Rapto de Proserpina de Bernini? Em que outra região do globo seria possível esculpir tal detalhe?
E o Jazz, o Blues, o Samba e o Rock? Alguma vez teriam existido sem que tivesse havido a escravatura? E como é que foi possível criar algo tão maravilhoso em cima de tanto sofrimento?
O mundo nunca esteve resolvido. Sempre avançou como quem estica uma perna só para não cair. E isso é o que se faz para caminhar. Sempre andamos à procura de um equilíbrio que nos fez avançar, convictos de que o mais difícil é mesmo ficar imóveis. Por isso avançamos.
Olhar para trás é importante e até crítico. Conhecendo a história, aprendemos como evitar mais trambolhões e a não nos deixarmos iludir pelos revolucionários, que por um impulso de autoritarismo ou apenas por uns momentos de glória, não hesitarão em lançar o caos.
[1] Ouvir este argumento nos dias de hoje, em que tanto radicalismo assenta exclusivamente na impossibilidade de aceitar os que pensam de maneira diferente, é especialmente interessante.