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Delito de Opinião

O comentário da semana

«A mensagem do cristianismo foi a revolução mais revolucionária de todas»

Pedro Correia, 02.10.24

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Crucificação Branca, de Marc Chagall (1933), um libelo anti-totalitário

 

«Nem engenharia social inflamada por cartilhas ideológicas nem por cartilha de espécie nenhuma: bem pregou Cristo a evidente lógica da irmandade básica dos homens e da impossibilidade de servir ao mesmo tempo o deus dinheiro e o deus amor ao próximo, fazendo mesmo milagres para não ser apenas mais um profeta na sua terra, que ninguém escuta; bem se esforçou Paulo por explicar, com absoluta clareza, que não há diferença entre judeu e gentio, escravo ou senhor, homem ou mulher, pois todos são um em Cristo.

A mensagem de Cristo foi sem dúvida escutada e compreendida, pois que resistiu até hoje. Mas, logo desde o início, inquinada pelo tal "cerne da natureza humana", que a impediu, e continua a impedir, de florescer como a Verdade anunciada.

Uma mensagem que constituiu, na minha opinião, a revolução mais revolucionária de todas, e cujos valores, de forma manifesta, vieram fundamentando o progresso humano. Há que distinguir os valores cristãos em sentido absoluto da religião que, bem de acordo com a "natureza humana", se impôs num papel de intermediário ritualista, de que nunca mais saiu. É como a "ditadura do proletariado" do marxismo: de fase transitória, passou a ser o fim em si mesmo da revolução.

E Cristo não é a Inquisição ou os orfanatos de má memória: Cristo é a fraternidade, solidariedade e igualdade que as outras revoluções iriam apresentar como suas. Mas não são os anões que trepam aos ombros dos gigantes outra conhecida característica da "natureza humana"?

 

De qualquer maneira, estou em crer que é às revoluções de índole humanista, começando pela do cristianismo, que devemos o progresso que, apesar de tudo, conseguimos ir alcançando. Muito devagar, estupidamente devagar, com legiões de sacrificados, estupidamente sacrificados, mas avançando: se não tivéssemos progredido em termos de fraternidade, solidariedade e igualdade, nem saberíamos falar de direitos, liberdades e garantias, que estão normalizados no nosso quotidiano de "ocidentais"- apesar de termos que os defender com unhas e dentes, se quisermos mantê-los e desenvolvê-los. A "natureza humana" é, por definição, contra-revolucionária, no sentido de egoísta, belicosa e anti-progressista. Por mais que tenha, nunca nada lhe chega e tudo lhe é devido.

Cada revolução teve o seu papel nesse lento progresso, sempre alguma coisa útil deixou na História comum, apesar das tragédias dos povos e das distorções das ideologias originais, de que se destaca a inicial, a do cristianismo. E terá sido esta, gigante a cujos ombros as outras treparam, a ideologia revolucionária que deixou as marcas, os valores, que continuam a orientar-nos, por imperfeitamente praticados que (ainda) sejam.

 

Da nossa leitora Gracinha. A propósito deste meu texto.

Mais duas notas sobre as JMJ e o Cristianismo

Paulo Sousa, 07.08.23

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A primeira destas notas, resulta do grito que ecoou à volta da estátua do Marquês de Pombal, figura que há mais de duzentos anos expulsou os jesuítas do país e que, por ironia histórica, teve agora de assistir a uma imensa multidão reunida para escutar um papa dessa mesma ordem religiosa. E o grito foi: “Todos, todos, todos”, já aqui trazido pelo Pedro Correia, através do texto de João Miguel Tavares.

Este grito, e o texto já referido, trouxe-me à memória algo que li há uns bons anos.

A situação passa-se na Irlanda do Norte, durante uma homilia proferida por um padre católico. Segundo o que me recordo, este clérigo terá surpreendido os seus fiéis com o aviso de que ali dentro daquela igreja deveriam ter cuidado com as algibeiras. E deveriam ter esse cuidado, porque era ali que se reuniam os pecadores e pecadores de toda a espécie. Até os carteiristas e outros bandidos. Quem, de entre a assembleia, quisesse estar livre desses perigos, deveria participar nas celebrações anglicanas, onde não apareciam pobres, nem carteiristas, mas apenas gente de elevado estatuto social e até aristocratas. Esta segunda nota será já um reflexo da fricção política da região, mas no resto coincide com a mensagem do Papa Francisco, que, como diz João Miguel Tavares, incomoda até a parte dos católicos que “aponta o dedo” e não “abre os braços”.

A outra nota, resulta de algo que Helena Matos disse no Contra-Corrente de sexta-feira passada.

O tema do programa é desencadeado pelo recente filme “Oppenheimer” e anda à volta das questões morais relacionadas com recurso à bomba atómica. Numa parte mais adiantada do programa é referido uma das diversas rupturas introduzidas pelo cristianismo. Até à crucifixão de Cristo, os deuses pagãos eram impulsivos e agiam com fúrias e outras humanas paixões. Qual dos deuses da antiguidade se conteria perante a execução do seu próprio filho? Qual dos deuses pagãos não esmagaria de imediato quem se atrevesse a tal ofensa? A auto-contenção de, podendo causar a morte e de castigar para todo o sempre alguém que o afrontasse, opta por não o fazer, constitui, em termos antropológicos, um tremendo salto.

Indo buscar memórias de outras leituras, este salto poderá ser comparado ao acrescentar de uma nova camada a um sistema nervoso, que na sua versão mais primitiva, permite que um indivíduo se alimente, de defenda e se reproduza, tudo isso por instinto e sem consciência de cada decisão. É assim que funcionam os répteis. O cérebro do humanos, com o seu cerca de um quilo e meio de peso, mais do que triplicou desde os nossos parentes primatas não humanos mais recuados. A parte mais primitiva do nosso cérebro, o tronco cerebral, é comum a quase todas espécies animais e é mais primitiva também em termos da sua formação enquanto feto. Milhões de anos mais tarde, à volta deste centro, foram-se desenvolvendo centros emocionais e, depois destes, aquilo que podemos designar como um cérebro pensante. O facto de o cérebro pensante ter evoluído a partir do emocional, explica também a nossa relação entre o sentimento e o pensamento. É nesta evolução que podemos melhor entender a auto-contenção como uma nova capacidade, a tal capacidade de não exercer todo o poder que que se tem, para dar largas ao instinto sobre o qual assenta o intelecto. Quando uma religião, enquanto modelo de interpretação da realidade, acrescenta esta possibilidade às abordagens anteriores, assiste-se de facto a um enorme salto antropológico.

Jornada Mundial da Juventude

Pedro Correia, 03.08.23

«Sinto que muitos olham para estes jovens [participantes da Jornada Mundial da Juventude] com alguma desconfiança, por serem filhos da revolução tecnológica. Mas esta é uma demonstração de espiritualidade que as vozes mais pessimistas achariam que estava completamente arredada desta geração.»

José Luís Peixoto, ontem, na SIC Notícias

As reacções às JMJ

Paulo Sousa, 03.08.23

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Missa de terça-feira 1 Agosto no Parque Eduardo VII

As JMJ em curso têm conseguido desencadear uma série de reacções transbordantes de significado e que permitem interessantes interpretações.

Muito para além da questão dos custos, gostaria de aqui abordar algumas dessas reacções.

Seria demasiado simplista dizer que é a esquerda que está mais irritada com tudo isto. É imenso o que existe em comum entre a doutrina social da Igreja e parte significativa dos programas dos partidos de esquerda. Os mais lunáticos extremistas dirão, sem qualquer pejo, que terá sido a Igreja a copiar-lhe as ideias. Eu, sorridente, aprecio o debate do “eu é que disse primeiro” a que a Igreja, inteligentemente, não dá seguimento.

O humanismo das correntes políticas, mais ou menos progressistas, tem uma génese judaico-cristã e o resto é foguetório.

Sobre os custos do acontecimento, aprecei uma comparação de João Marques de Almeida no seu texto de ontem no Observador. Segundo ele,  “o dinheiro injectado na TAP pelo Estado chegava para organizar mais de 100 JMJ, uma todos os anos no próximo século."

A esquerda tuga, que rejubilou com o “há mais vida para além do défice”, que depois arrepiou caminho tentando parecer que gosta de contas certas, embora com orçamentos fictícios assentes em cativações massivas e impostos recorde, vem agora vociferar, com veias do pescoço infladas e tudo, contra o desperdício de receber em Portugal centenas de milhar de jovens, que regressarão a casa com uma imagem positiva do nosso país. Defendem uma austeridade que não permitiria a realização do evento, mesmo quando estamos a falar de um centésimo do que foi gasto na TAP, o que me leva a concluir que a questão dos custos não é mais do que um argumento circunstancial.

Mais do que qualquer outra coisa, estas reacções baseiam-se exclusivamente numa atitude de oposição. Eles são anti-clericais, porque associam a Igreja ao conservadorismo de alguma direita. Eles são contra o catolicismo, porque este não se ajusta às suas reivindicações progressistas, reivindicações essas que no fundo não são mais do que uma tentativa gramsciana de corrosão das instituições. Eles exigem uma discriminação positiva a todos que não se inscrevam no que designam como sendo cisgénero, mas não vacilam em vandalizar o Bar Finalmente, se os seus proprietários se atreverem a abrir as portas a uma festa LGBT organizada pela Embaixada de Israel. E porquê? Porque Israel é apoiado pelos EUA, o grande Satã do capitalismo e do liberalismo. Os talibãs, que professam uma versão radicalizada de uma outra religião, matam mulheres que tentem ir à escola? Sim e depois … eles são contra os EUA… “e, para já, não houve atrocidades”.

Todas estas incoerências não passam de diferentes formas de estar simplesmente contra. Conheço um anarca tardio, que nem sabe que o é, que quando se fala de política, sempre repete a sua visão do mundo. Há governo? Então sou contra! Não é mais do que uma rebeldia anti-sistema. A civilização ocidental tem uma matriz judaico-cristã? Então sou contra a Igreja e também antissemita! O capitalismo cria riqueza e por isso existem pessoas mais ricas do que eu? Então sou contra o capitalismo! Confirmam que as causas ditas fracturantes não são mais do que instrumentais de uma pura visão anti-sistema, cujos protagonistas agora se incomodam com as JMJ, pela constatação de que existe uma imensa multidão, muito maior do que eles todos juntos, que vive serenamente num quase silêncio mediático e que não podia ser mais contrastante com os activismos histriónicos que lhes servem de pedestal, que enchem os noticiários e marcam as agendas políticas.

Tudo isto está à vista regularmente, mas assumiu uma nova dimensão nestas JMJ e isso tem sido extremamente interessante. Continuarei a tirar notas.

Curiosidades do Adriático: o Sagrado Coração da Refundação

João Pedro Pimenta, 27.06.23

Entre a foto de cima e a de baixo medeiam quase vinte anos mas poucas outras diferenças.
 
A de cima é de Dezembro de 2003. A de baixo é de Maio passado. Trata-se da esquina da secção da Refundação Comunista do "sestiere - ou bairro - de Castello, em Veneza, na realidade a única que o partido mantém na Sereníssima. A Refundação é o que resta do antigo (e outrora poderoso, com votações à roda dos 30%) Partido Comunista Italiano, que no fim dos anos oitenta, na sequência do "eurocomunismo" lançado pelo seu antigo líder Enrico Berlinger, decidiu reformar-se de alto a baixo, transformando-se no Partido Democrático de Esquerda e, entre outras metamorfoses, seria parte integrante do actual Partido Democrático, também ele a atravessar algumas convulsões. Uma minoria não aceitou a mudança e juntou-se na Refundação, mantendo o espírito comunista original, que, como na maior parte dos países da Europa, está inserida numa coligação com outras formações de esquerda e escassamente representada nos parlamentos.
 
O curioso aqui é o nicho mesmo ao lado da entrada. Consta que aquele Sagrado Coração de Jesus já lá estava antes, havia décadas, quando aquilo era um tasco, e o partido manteve-o e tratou dele. Mas, se olharem bem (e a foto de cima não ajuda), verão uma diferença: em 2003 era aquele Cristo mais loiro e de olhos azuis, que costumamos ver em pequenas imagens tradicionais; agora, é um Jesus mais moreno, com feições mais semitas. Parece que os detentores quiseram dar-lhe um cunho mais "palestiniano", menos europeu e provavelmente até mais próximo do real aspecto de Jesus. E assim, utilizando a arte popular religiosa para alguns fins políticos, podem ter ficado mais próximos da verdade.
 
De resto, a secção tem um bar polvilhado com imagens de Che Guevara e de antigos líderes comunistas italianos, e, à volta, junta-se um público claramente esquerdista mas heterogéneo, entre velhos militantes do "partido" com respectivo crachá e gente de rastas a fumar cigarros de enrolar. Tudo isto numa Veneza com menos turismo, que vai rareando cada vez que se caminha para Norte em direcção a San Pietro di Castello, e onde, se não se estiver rodeado do silêncio que já indicia a proximidade da laguna, até se pode encontrar uma coisa rara e em vias de extinção: venezianos autênticos.

Os símbolos da JMJ

Paulo Sousa, 26.05.23

Ontem, na sequência de um pedido impossível de não atender, acompanhei a chegada dos símbolos das Jornadas Mundiais da Juventude à minha Freguesia.

Os símbolos estão circular por todo o país, diocese a diocese e quase paróquia a paróquia. Passamos pelo quartel dos Bombeiros Voluntários que, depois de uma bênção especialmente dedicada à época dos incêndios que se aproxima, os operacionais disponíveis escoltaram a pé a carrinha que transporta os referidos símbolos até à igreja matriz.

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Ali, estavam à espera alunos desde o pré-escolar até ao ensino secundário. Alguns, apenas para aproveitar a borla para faltar às aulas, a contar com esta, terá sido a primeira vez que entraram numa igreja. Nem todos, mas alguns. O ambiente era de festa. Muitas palmas com o hino das JMJ em loop sempre em altos decibéis, acompanhado pela coreografia comandada pelo Zé Luís, um empresário do ramo das telecomunicações que nestes dias cedeu à diocese a carrinha com que habitualmente transporta postes das linhas telefónicas.

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Soube de alguns pais que, avisados do evento, proibiram a escola de expor os seus resguardados filhos de tal tormento. Coitados, no futuro, num debate em que alguém queira falar sobre a importância do cristianismo na nossa cultura, no que designamos como ocidente, por desconhecimento, nem saberão o que dizer. E já nem falo dos símbolos do nosso país.

Os símbolos da JMJ, de que já aqui falei, são compostos por uma cruz de madeira, com quase quatro metros de altura, e por um ícone de Nossa Senhora, que parece ser de inspiração ortodoxa. Esta cruz específica foi construída de acordo com a vontade de João Paulo II em 1984 e, além de todos os países onde já se realizaram as JMJ, já visitou mais de 90 países e já foi tocada por milhões de pessoas. Eu próprio vi crianças, jovens e idosos, alegres, a querer tocar-lhe.

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Passamos também por três empresas que solicitaram que os símbolos por ali passassem. Em duas delas, a laboração foi interrompida para que os trabalhadores pudessem assistir ao breve evento.

Paramos ainda num lar de idosos, onde a passagem dos símbolos foi o motivo para interromperam as suas, imagino, monótonas rotinas.

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Em cada uma das paragens, o Padre António explicou brevemente o significado destes símbolos, fez uma pequena oração e repetiu que a cruz representa Cristo ressuscitado e por isso representa a paz. Em cada paragem, foram distribuídas bênçãos e, sem excepção, vi que atrás da caravana dos símbolos, deixamos pessoas satisfeitas e alegres.

Horror: há uma cruz na bandeira

Pedro Correia, 07.02.23

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Afonso Costa, reencarnado em Vital Moreira, mostra-se horrorizado com a cruz. Foge dela e grita: «Muito grave é a profunda "facada" na Constituição que consiste na edificação de um altar religioso, com cruz e tudo, por uma cole[c]tividade pública.»

É quanto basta, na perspectiva do antigo ministro da Justiça e Cultos(!), para configurar grave atentado à lei das leis desta nação valente, imortal. Uma blasfémia ao Estado laico. Daí, rasga com furor as vestes: «Tal como não não compete ao Estado ou outras coletividades públicas promover ou organizar cerimónias religiosas, muito menos participar nelas, também não lhes compete construir equipamentos de culto, seja com a cruz ou com o crescente.»

 

Nada surpreende esta posição de Afonso Costa, tratando-se do mesmo vulto que em 1911 profetizou que «em breve a religião católica entre nós se extinguiria» e bradava na Assembleia Nacional contra os «exploradores da Cruz» que se alimentavam da «superstição existente e da ignorância da massa popular».

Surpreende, sim, a tenacidade que continua a aparentar no seu perpétuo rancor contra a Igreja: mesmo reencarnado no preclaro doutor da Anadia, estamos perante alguém prestes a festejar 152 anos.

 

É tanto o furor que aguardo a qualquer momento uma proclamação igualmente vigorosa contra o escudo da bandeira nacional, onde se divisa a cruz.

Transcrevo a ladainha oficial: «As 5 quinas simbolizam os 5 reis mouros que D. Afonso Henriques venceu na batalha de Ourique. Os pontos dentro das quinas representam as 5 chagas de Cristo. Diz-se que, na batalha de Ourique, Jesus Cristo crucificado apareceu a D. Afonso Henriques e disse: "Com este sinal, vencerás!" Contando as chagas e duplicando as chagas da quina do meio, perfaz-se a soma de 30, representando os 30 dinheiros que Judas recebeu  por ter traído Cristo.»

Horror: um atentado ao Estado laico inscrito na própria bandeira da pátria! Há que derrubar estes vestígios da negredada e nefasta fé plasmados no supremo símbolo. Contra os canhões, marchar, marchar!

Frei Bartolomeu de Las Casas, e não só

Paulo Sousa, 26.10.22

Graças a uma aula on-line de Miguel Morgado, tomei há pouco tempo conhecimento de uma figura histórica da qual tinha ouvido vagamente o seu nome, mas que, pelo seu percurso e pela sua influência no pensamento europeu e ocidental, rapidamente me surpreendeu. Refiro-me a Frei Bartolomeu de Las Casas, um frade dominicano espanhol que viveu entre os anos 1484 e 1566.

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Segundo consta Bartolomeu, com nove anos, terá assistido à chegada de Colombo na sua primeira viagem às Índias Ocidentais. O seu pai, Pedro de Las Casas, acompanhou Colombo na sua segunda viagem. Em 1502 é o jovem Bartolomeu que atravessa o Atlântico para se fixar na ilha Hispaniola, actual território da República Dominicana e do Haiti.

O contacto com o Novo Mundo foi um acontecimento maior na história da humanidade e Bartolomeu tem consciência disso. Mais tarde descreve essa época histórica como “um tempo novo como nenhum outro”.

Juridicamente, a exploração do Novo Mundo tinha como base a Bula Inter cætera, que foi promulgada um ano após o regresso de Colombo, e que estabelece que os novos territórios pertencem aos reinos de Espanha e Portugal (antecipando o que virá a ficar mais tarde conhecido por Tratado de Tordesilhas) referindo, no entanto, que essa posse depende e resulta da evangelização dos povos e da propagação da fé cristã.

Desde a sua chegada ao Novo Mundo que Las Casas se incomoda com a crueldade com que os índios, ameríndios ou indígenas, consoante as diferentes designações, são tratados. O debate que se estabelece entre os colonos e alguns clérigos, remete para as doutrinas aristotélicas, que distinguem a escravatura convencional da escravatura natural. Segundo este filósofo da antiguidade, a escravatura convencional resulta dos direitos de conquista ou da aquisição, enquanto que a segunda sustenta-se numa superioridade natural do esclavagista em relação ao escravizado. Estes dois conceitos desencadearam vários debates ao longo da história da Igreja. Santo Agostinho elabora sobre esse tema dizendo que a escravatura, enquanto criação humana, continha traços do pecado original, afirmando por isso que não era natural. Daí resulta, ainda durante a Idade Média, a proibição de um cristão poder escravizar outro cristão.

Em 1507 Bartolomeu de Las Casas é ordenado padre da ordem dominicana e os seus sermões passam a ser manifestações da sua preocupação com os direitos dos índios. Após um outro clérigo dominicano, António de Montesinos, afirmar que os “espanhóis esclavagistas estão a perder a alma”, Las Casas sobe a parada e diz que é também a salvação da alma do imperador que está em causa, dirigindo-se ao então Infante Carlos, futuro imperador Carlos V, tentando assim sensibilizá-lo para a sua causa.

Todas estas “inovações” são suficientes para que os clérigos que defendem os indígenas passem a ser perseguidos pelos colonos, mas também a conseguirem a atenção do imperador.

Entretanto, em 1537 o Papa Paulo III promulga a bula Sublimus Deus, segundo a qual estabelece que os índios são providos de alma racional. Esse passo confirma que os europeus se devem relacionar com eles como se europeus se tratassem.

Em 1540 Las Casas é nomeado bispo de Chiapas, o que significa que apesar dos incómodos causados, vai ganhando importância na hierarquia eclesiástica e em 1542 o Imperador promulga as Leyes Nuevas que proíbem a escravatura e os maus-tratos aos índios americanos.

A distância e o tempo necessário para que uma nova lei, especialmente impopular entre os colonos, percorresse a distância entre Madrid e os confins do império é enorme. Pouco tempo depois, à escala da época, o Vice-rei do Peru, Vasco Nuñez Vela, é aprisionado, julgado e executado pelos colonos em 1546.

É com todos estes episódios como pano de fundo que Carlos V, em 1550, convoca o Conselho das Índias para o que irá ser conhecido como o Debate de Valladolid, que decorreu no Colégio de São Gregório. Até que o Conselho se pronuncie, o Imperador ordena suspender toda a exploração e conquista no Novo Mundo.

Neste confronto, as duas visões opostas são representadas por Frei Bartolomeu de Las Casas, defendendo os direitos dos índios, e por Juan Ginés Sepúlveda, um jurista aristotélico, que representa os interesses dos colonos.

Sepúlveda é o primeiro a pronunciar-se e afirma que a escravatura dos ameríndios se justifica por direito natural, uma vez que estes são desprovidos de alma. Refere que os sacrifícios humanos e outras práticas de canibalismo são a prova disso mesmo, acrescentando que estes não mostram qualquer interesse pela conversão, chegando a ser violentos para com os evangelizadores. E assim, perante o ilustre Conselho das Índias, Sepúlveda expôs os seus argumentos em menos de uma hora.

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Chegando a vez de Bartolomeu de Las Casas se pronunciar, este começa a ler um tratado que tinha preparado para o efeito, e que não era mais do que o somatório dos pensamentos desenvolvidos durante toda a vida a defender os que, sendo diferentes, eram simplesmente semelhantes[1]. A leitura deste tratado demora vários dias. Por conhecer há muito os argumentos de Sepúlveda, disserta sobre cada um deles.

Las Casas argumenta que se os indígenas são desprovidos de alma, então não poderão ser convertidos e isso esgota a validade da Bula Inter Cætera e esvazia a base intemporal da descoberta e exploração do Novo Mundo. Afirma ainda que a conversão deve ser um acto de amor, pelo pregador que ama o pagão enquanto criatura de Deus, e que este também acabará por se sentir amado por Deus. Só depois de convertido, o indígena dará cumprimento à bula papal, aumentando assim os direitos intemporais do Papa e, por decorrência da bula, também os direitos temporais do Imperador.

Acrescenta dizendo que ao defender os direitos naturais de liberdade dos índios, defende também as almas dos colonos e até do imperador. E, pelo contrário, os argumentos de Sepúlveda representam ali o trabalho do demónio.

Passados os dias necessários para que todo o tratado fosse lido, os ilustres membros do Conselho das Índias recolhem para debate e meditação e, após quase um ano, acabam por reconhecer a validade dos argumentos de Las Casas, sem que, no entanto, tivessem forma de fazer que os colonos dessem seguimento às conclusões dali saídas.

Bartolomeu da Las Casas, os dominicanos em geral, assim como outras ordens religiosas, insistem em recusar os sacramentos a quem escravizar os índios, defendendo igualmente os direitos e o respeito pelos escravos africanos.

A distância a Madrid e a incapacidade do imperador que daí resultava, levou a que todos os tratados e argumentos elaborados por Bartolomeu da Las Casas não tivessem efeitos imediatos sobre as práticas que este condenava, mas lançou um sólido debate e a má consciência do mundo cristão relativamente à escravatura.

É frequente associarmos o Padre António Vieira a este mesmo movimento, mas os seus famosos sermões foram proferidos mais de um século e meio depois, o que sublinha bem a importância de Frei Bartolomeu de Las Casas.

O interesse que este clérigo dominicano espanhol me gerou, resulta da confirmação do que já sabia, e que era que a escravatura, enquanto prática inaceitável e repugnante, além de existir desde a antiguidade, foi substancialmente questionada dentro dos impérios europeus cristãos e que a sua posterior abolição resultou exactamente do debate criado por estes pensadores da própria sociedade esclavagista.

Independentemente do que cada europeu, possa achar ou sentir sobre religião cristã e católica, só por ignorância ou má vontade, ou ambas, poderá negar que aquilo em que nos tornamos resulta do que fomos ao longo de uma história milenar.

O que podemos definir como Ocidente, é exactamente resultado, deste percurso, encharcado de pecados, de dúvidas, de tentativas e erros, de más decisões, palmilhado por gente boa, que por vezes fez coisas horríveis e por gente horrível, que por vezes fez coisas boas.

Existiu uma ciência na antiguidade longínqua, mas só os mais alienados podem fazer por ignorar que o método científico, conforme o conhecemos, só poderia ter surgido na procura, maravilhada, das regras divinas escondidas nos fenómenos físicos e químicos. Se existe uma matemática escondida na posição dos planetas e das estrelas, como é que o cosmos pode existir sem uma inteligência prévia?

São, ou não, as obras clássicas basilares da nossa civilização? O Messias de Händel, o Requiem de Mozart, a Paixão Segundo São Mateus de Bach, a Pietá de Michelangelo e a Deposição de Cristo de Raffaello. Como é que nos podemos desligar dessa herança espiritual, cultural e artística?

Está ou não o cristianismo no âmago da nossa sociedade que, entretanto, se tornou anti-confessional? E as marcas da pressão dos dedos do Rapto de Proserpina de Bernini? Em que outra região do globo seria possível esculpir tal detalhe?

E o Jazz, o Blues, o Samba e o Rock? Alguma vez teriam existido sem que tivesse havido a escravatura? E como é que foi possível criar algo tão maravilhoso em cima de tanto sofrimento?

O mundo nunca esteve resolvido. Sempre avançou como quem estica uma perna só para não cair. E isso é o que se faz para caminhar. Sempre andamos à procura de um equilíbrio que nos fez avançar, convictos de que o mais difícil é mesmo ficar imóveis. Por isso avançamos.

Olhar para trás é importante e até crítico. Conhecendo a história, aprendemos como evitar mais trambolhões e a não nos deixarmos iludir pelos revolucionários, que por um impulso de autoritarismo ou apenas por uns momentos de glória, não hesitarão em lançar o caos.

 

[1] Ouvir este argumento nos dias de hoje, em que tanto radicalismo assenta exclusivamente na impossibilidade de aceitar os que pensam de maneira diferente, é especialmente interessante.