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Delito de Opinião

Hidroginástica à 4.ª Feira

Maria Dulce Fernandes, 06.02.25

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Sete da manhã e estavam 6⁰ C. O calor é preguiçoso, mas era mesmo  preciso levantar. Depois vem o cafezinho e o sumo de laranja, toma-se a medicação da manhã e vamos ler as gordas e debatê-las à luz das tendências de cada um, porque num casamento de quase 45 anos é da discussão que a faísca alimenta o fogo.

- Então, vamos ou não? -Vamos... - Mas está frio. - Dentro de água  não se sente.

E fomos. Esperámos o autocarro da Carris Metropolitana e lá fomos, rumo ao CNA na Reboleira, para mais uma aula de hidroginástica.

Como habitualmente saímos na paragem do Supermercado e atravessámos o pequeno ajardinado do outro lado da estrada, que desemboca na Rua Pedro Del Negro junto à igreja. Foi por essa altura que ouvimos o que pensamos serem uns foguetes meio murchos. Já junto ao estádio vimos um colega de piscina que estugava o passo e nos disse meio afogueado “Ouviram os tiros? É um tiroteio entre gangues rivais. Vou-me embora!”

Ficámos sem saber o que fazer. Alguns populares corriam na direcção da entrada e só se ouvia ao longe o som de sirenes. “Olha, vamos lá. Estou a ver uma data de colegas de aula. Se não houver função, vamos embora.”

Nada acontecia na entrada das piscinas. O que quer que estivesse a suceder, passava-se mais ao lado, junto à entrada do ginásio. Chegou uma ambulância. Não fui ver. Estava muita gente e só se ouviam gritos. Entrámos, mudámos de roupa e fizemos a aula tranquilamente.

À saída, o circo estava instalado, com tudo o que era polícia, grupos de intervenção e comunicação social a incomodar toda a gente. Eu não vi nada. Não sei nada nem quero saber. Não posso comentar. 

Já em casa verificámos pelas notícias na tv que o dito “tiroteio entre gangues rivais” tinha sido uma cobarde execução de uma pessoa por outra ainda pior que se arvorou em juiz, júri e carrasco, num julgamento em que era tão ou mais culpado.

Seja qual for a sua origem, para esta gente a lei não existe. A pessoas que viram e viveram aqueles momentos de pânico, na sua maioria seniores (para não entrar no idadismo), sentem que a instabilidade e a insegurança que se vêm instalando na vizinhança reduzem cada vez mais a pouca qualidade de vida de que ainda podem usufruir.

Se há polícia, é porque há polícia. Se não há polícia, é porque não há, nem querem que haja. Para quê, se afinal os criminosos ministram a sua própria justiça sempre que lhes aprouver?

Chama-se Tiago

Pedro Correia, 30.10.24

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Finalmente sabemos o nome dele. Durante mais de uma semana, era apenas «o motorista da Carris». Sem direito a identidade, vítima indefesa de um cobarde bando de encapuzados quando desempenhava o seu trabalho: transportar pessoas para as periferias pobres de Lisboa. Servia a comunidade, cumprindo o dever profissional, em Santo António dos Cavaleiros (Loures).

Não abriu telejornais.

Ninguém indagou o seu tom de pele.

Ninguém o louvou, ninguém o enalteceu, ninguém se lembrou sequer de mencioná-lo pelo nome de baptismo: Tiago.

Tem 42 anos, permanece internado na unidade de queimados do Hospital de Santa Maria. Aparentemente com lesões no aparelho respiratório que lhe ficarão para o resto da vida - consequência do brutal ataque com cocktails Molotov quando transportava os últimos passageiros na última paragem da última viagem daquela fatídica madrugada que terminou com a destruição total do veículo. Alegadamente a pretexto de «vingar» a trágica morte do comerciante cabo-verdiano Odair Moniz, vítima de um deplorável disparo policial no bairro do Zambujal (Amadora).

O agente da PSP está já indiciado por homicídio. Quem atacou Tiago com selvajaria, quase o condenando à morte, permanece impune. 

 

Dos 23 suspeitos detidos e identificados por alegado envolvimento em 155 actos de fogo posto, dano e resistência à polícia de que resultaram quatro autocarros carbonizados, pelo menos 36 veículos ligeiros destruídos e centenas de contentores e ecopontos incinerados, nem um ficou em prisão preventiva. Alguns foram libertados com a solene advertência de estarem proibidos de usar isqueiros, o que já gera anedotas a nivel nacional. Pondo a justiça a ridículo.

«Se o barril de pólvora estourar com maior intensidade, estamos muito longe de conseguir aplicar com rigor, celeridade e eficácia, a boa receita que Keir Starmer utilizou no Reino Unidos, nos tumultos de 2007 e agora, já este ano», observava ontem Eduardo Dâmaso numa lúcida nota editorial no Correio da Manhã

Aviso feito: convém levá-lo a sério. E pôr fim à indecorosa prática da indignação selectiva. Que pode tornar-se num extremismo tão pernicioso como outro qualquer.

 

Leitura complementar:

O direito ao nome do assassinado (Delito de Opinião, 16 de Dezembro de 2020)

Passam a ter vida ainda mais difícil e dura

Pedro Correia, 25.10.24

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No domínio dos eufemismos, que por estes dias inundam os canais de televisão a propósito da onda de vandalismo na cintura de Lisboa, nem sei quais devo destacar. Abundam as referências a «jovens» para designar com suavidade os supostos autores de danos à propriedade pública (quatro autocarros da Carris Metropolitana, diversos contentores do lixo, ecopontos, bancos de jardim e outros equipamentos urbanos) e à propriedade privada (largas dezenas de automóveis regados com jerrycans ou brindados com cocktails Molotov e vidros de residências estilhaçados, além da tentativa felizmente falhada de pôr a arder pelo menos um posto de venda de combustíveis). 

Meros «incidentes», banais «desacatos». Assim designados por benévolos repórteres, como se testemunhassem vulgares altercações de trânsito em hora de engarrafamento rodoviário. Outros, confundindo a árvore com a floresta, aludiam a «conflitos entre populares e polícia», como se esta dicotomia fizesse algum sentido num cenário destes. Houve até quem garantisse haver «revolta da população» na tentativa - obviamente falhada - de justificar os distúrbios que puseram vários concelhos a ferro e fogo durante noites consecutivas. Em locais tão diferentes como Carnaxide, Damaia, Alfragide, Santo António dos Cavaleiros, Queluz, Pontinha, Cacém, Rio de Mouro, Brandoa, Arrentela, Laranjeiro e até na pacata Trafaria.

 

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Mas elejo afinal o verbo arder. Numa insólita voz passiva.

Viaturas queimadas, incendiadas, destruídas pelo fogo posto, reduzidas a uma dantesca porção de ferros retorcidos? Nada disso: apenas «carros ardidos». Como se fosse combustão espontânea, fenómeno natural, talvez até consequência desse amor romântico que arde sem se ver, forma subtil de celebrar o quinto centenário de Camões.

 

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Um dos carros vandalizados era de uma humilde residente no chamado Bairro Novo, em Loures. Ainda em estado de choque, dizia ela à RTP: «Eu não sou culpada de nada, não sou culpada de nada. O meu carro era recente, comprei-o em Maio do ano passado.» Enquanto uma senhora idosa relatava o que lhe sucedera naquela noite de pavor: «Saí por uma porta para o quintal, saímos todos, pensávamos que o prédio ardia.» Aterrorizada pelos vândalos.

Sem querer, alguns jornalistas seguem a máxima do angelical Padre Américo: não há rapazes maus. Ardendo de compreensão por delinquentes que aplicam a política de terra queimada e mantêm sob sequestro os habitantes destes bairros desfavorecidos na periferia da capital. Gente que trabalha muito e ganha pouco. Gente que tem servido de pasto a indecorosos extremismos políticos. Gente que passa a ter a vida ainda mais difícil, mais insegura, mais carregada de incertezas.

Sem eufemismos de qualquer espécie.

Intolerável

Pedro Correia, 07.08.24

É intolerável que vítimas civis e desarmadas de um conflito armado, sejam quem forem, acabem apontadas como "danos colaterais".

Não devemos calar a nossa indignação perante o crime, venha de onde vier. Nem podemos permanecer indiferentes perante o crime, sob pena de nos transformarmos em pequeninos cúmplices dos carrascos. Nem é aceitável adoptarmos a atitude cínica de Estaline, que dizia que «a morte de um indivíduo é uma tragédia e a morte de um milhão de indivíduos é uma estatística».

Importa-me, isso sim, o olhar desprovido de considerandos políticos perante vítimas da violência primária, grotesca, aberrante. Elevámo-nos felizmente acima da condição do nosso antepassado mais remoto, o homem das cavernas, graças ao enorme passo civilizacional representado por esse olhar.

Estaline ressuscitado em Moscovo

Pedro Correia, 16.02.24

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Alexei Navalny (1976-2024): assassinado aos 47 anos por ter ousado enfrentar o tirano russo

 

Infelizmente, era uma má notícia previsível neste ano que promete trazer-nos várias outras muito funestas. Alexei Navalny, o mais destacado e corajoso opositor de Vladimir Putin, foi assassinado na prisão junto ao Círculo Polar Árctico, nos confins da Sibéria, para onde fora desterrado pelo sanguinário ex-oficial do KGB que detém o poder absoluto em Moscovo esmagando direitos, suprimindo liberdades, rasgando todas as garantias constitucionais.

«Foi homicídio», declarou à Reuters o jornalista russo Dmitri Murátov, galardoado em 2021 com o Prémio Nobel da Paz. Nenhuma dúvida.

Todos quantos ousam enfrentar o tirano moscovita têm aparecido mortos - das mais diversas formas. E até vários dos seus antigos aliados e amigos: basta lembrar o "falecimento acidental" de Prigójin quando se fartou de ser pau-mandado do Kremlin na carnificina ucraniana, iniciada há quase dois anos.

Outros, muitos outros, foram vítimas de morte abrupta. Ou caem de varandas, ou bebem chá envenenado, ou recebem balas homicidas na própria casa onde vivem, ao estilo mafioso (como aconteceu com a jornalista Anna Politkovskaya, mártir da liberdade de imprensa em 2006). Ou são até abatidos a tiro nas imediações da Praça Vermelha (como aconteceu em 2015  com Boris Nemtsov, outro desassombrado opositor).

 

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Ex-oficial do KGB, Putin tem reabilitado Estaline, que lhe serve de modelo

 

Navalny, com inegável robustez física e anímica, escapou uma vez à pena de morte extra-judicial que o carniceiro do Kremlin lhe decretara, ao mandar envenená-lo em pleno voo, em 2020.

A estrela da fortuna iluminou-o nesse instante. Mas ele teimou em desafiar o destino. No dia em que, por imperativo patriótico, decidiu regressar à Rússia, selou a sua condenação à pena capital. Detido, à margem de todas as regras civilizacionais. Torturado. Condenado a 19 anos de cárcere por delito de opinião. Tratado como lixo humano, partilhando cárcere com violadores e pedófilos. Empurrado para uma das cloacas do planeta, um local com 45 graus negativos para onde o czarismo e o estalinismo desterravam milhares de presos políticos. 

Assassinado pela ditadura putinista, apostada em ressuscitar Estaline - desde logo no implacável esmagamento e destruição de quem se atreve a confrontá-la.

A mesma ditadura que conta com públicos e notórios apoiantes em Portugal - tão repugnantes como ela. Alguns, daqui a dois meses, andarão de cravo ao peito e punho no ar, celebrando o 25 de Abril. Enquanto aplaudem a censura russa, os bufos russos, a PIDE russa, o tirano russo, os crimes políticos do totalitarismo russo. Com inaceitável e vergonhosa duplicidade moral.

 

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Comunistas russos veneram o busto de Estaline em Moscovo

Gritam «Alá é grande» e matam

Pedro Correia, 16.10.23

Vítimas, assassinos e jornalismo

Cristina Torrão, 02.04.23

Através do facebook, tive conhecimento de uma news-letter de Bárbara Reis, no Público, no passado dia 29. Dizia ela:

Li há anos, num ensaio sobre como os media devem noticiar os assassínios em massa, que uma técnica simples a usar – e o jornalismo é sobretudo técnica – é falar o mínimo sobre o assassino e o máximo sobre a vítima.

(...)

Os defensores desta técnica pedem para os media não publicarem sequer o nome do assassino, muito menos a sua fotografia. Por contraste, dizem que devemos falar sobre as vítimas, contar as suas histórias, prestar-lhes homenagem, celebrarmos as suas vidas.

Isto vem, claro, a propósito do ataque no Centro Ismaili, em Lisboa, no passado dia 28.

À primeira vista, esta parece ser a técnica ideal. Sabemos como o destaque dado, pela comunicação social, a assassinos deste tipo, causa fascínio em certas pessoas. Tanto fascínio, que o perigo de imitação é real, já por várias vezes aconteceu.

Por outro lado, não devemos aceitar a alternativa de ânimo leve. Pergunto-me quanto destaque dado às vítimas será legítimo. Contar as suas histórias? Muitos dos familiares não desejam ver as vidas dos parentes mortos devassadas. Causa-me bastante impressão os jornalistas irem pesquisar sobre as vítimas e publicarem os resultados, sem autorização dos familiares mais próximos. Ao mesmo tempo, pedir a autorização, num momento de luto pesado, não é sustentável, do ponto de vista ético. Pais e mães que acabam de perder um filho ou uma filha, por exemplo, não estão em condições de lidar com o assédio de jornalistas, tendo de decidir o que deve ser, ou não, publicado. Tenhamos em mente que o facto de se ser vítima de um crime hediondo não faz de ninguém santo, tão-pouco cidadão exemplar. Todos nós temos aspectos da nossa vida que não gostaríamos de ver expostos publicamente.

E como agir em casos de assassinatos em massa, como o foi o da Noruega, há vários anos, no qual foram mortas setenta e sete pessoas (e feridas 319) em Oslo e em Utøya? Contar as histórias de todas as vítimas tornar-se-ia fastidioso, o que acabaria por ter o efeito contrário, ou seja, causaria a indiferença do público. (A propósito deste caso, é interessante verificar que, na sua news-letter, Bárbara Reis, defensora desta técnica de nem sequer se publicar o nome do assassino, acaba por o fazer em relação ao norueguês).

Trata-se de uma questão polémica, quanto a mim, sem solução fácil. É verdade que não se devia dar tanto destaque aos assassinos, tornando-os famosos e aliciando mentes mais frágeis. Contudo, das vítimas, a meu ver, basta saber o nome, a idade e a profissão. Mais do que isso, só mesmo por iniciativa dos parentes próximos. Há quem goste de contar as histórias dos seus mortos (contra o qual nada tenho a apontar, pois pode ajudar no luto). Mas isso não se aplica a toda a gente. E, quando acontece, costuma ser mais tarde, não no momento do choque.

Maior massacre em Angola foi há 45 anos

Pedro Correia, 27.05.22

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Faz hoje 45 anos, iniciava-se uma das maiores atrocidades jamais ocorridas na África lusófona. Barbaridade que as narrativas dominantes tudo fazem para ocultar, como se nunca tivesse acontecido. O chamado "golpe do 27 de Maio", nunca devidamente esclarecido, que vitimou parte da jovem elite do Movimento Popular para a Libertação de Angola - o partido que se tem perpetuado no poder em Luanda desde a independência, em Novembro de 1975.

Nessa data e nas semanas imediatas, milhares de militantes foram chacinados. Historiadores independentes e organizações de direitos humanos calculam em 30 mil o número mínimo de vítimas provocadas pelo esmagamento de uma suposta rebelião contra Agostinho Neto, selvaticamente reprimida pelas forças cubanas que serviam de guarda pretoriana ao ditador marxista-leninista e pela DISA, a sinistra polícia política que fazia do homicídio extrajudicial prática corrente.

A violenta repressão dos «fraccionistas», como eram apelidados no jargão do poder da época, pode ter causado um total de 70 mil mortos. Prolongou-se por dois anos envolvendo torturas, deportações forçadas para campos de concentração e fuzilamentos sem julgamento. Com Neto a dar rédea livre aos esbirros da DISA quando proclamou: «Certamente não vamos perder muito tempo com julgamentos. Nós vamos ditar uma sentença.»

 

Famílias inteiras desapareceram e os corpos, atirados para valas comuns, nunca foram recuperados. Incluindo o de Bernardo Alves Baptista, conhecido por Nito Alves, que a 25 de Abril de 1974 era comandante militar do MPLA na estratégica região dos Dembos e fora ministro do Interior desde a independência até Outubro de 1976. E também de José Jacinto Van Dunem e Sita Valles, pais de um bebé de três meses que viria a ser criado pela tia Francisca, futura ministra da Justiça em Portugal.

«Amarrem-nos onde forem encontrados: Nito Alves, José Van Dunem, Bakalof, Pedro Fortunato, Betino»; «Todos os fraccionistas pagarão pelos seus crimes», gritava em títulos garrafais o repugnante Jornal de Angola, fiel serventuário do regime, na edição de 31 de Maio. A 18 de Maio, em comunicado, o MPLA concluíra, num macabro aviso para o que se passaria dias depois: «Todas as organizações se depuram.»

A purga, como também lhe chamaram, incluiu matanças a sangue-frio nos cárceres e em locais como a praia das Palmeirinhas. Os mais afortunados - incluindo o actual ministro português da Economia, António Costa Silva, foram apenas vítimas de simulação de fuzilamentos.

Grande parte dos mortos não tinha sequer vínculo ao MPLA: foram apanhados no local errado e à hora errada, a pretexto da "purificação" do partido governamental, como sublinhou a Amnistia Internacional em vários relatórios.

Só em 2021 o Presidente da República, João Lourenço, pediu desculpa em nome do Estado angolano aos familiares dos assassinados, prometendo toda a colaboração das autoridades para a exumação dos cadáveres, a identificação dos restos mortais por equipas forenses e a emissão das respectivas certidões de óbito. Então com apenas 20 anos, a sua mulher, Ana Dias Lourenço, foi uma das militantes aprisionadas na sequência do 27 de Maio. 

 

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Apesar do louvável pedido de desculpas, falta fazer quase tudo. Falta, desde logo, criar uma Comissão de Verdade para que o massacre não caia no esquecimento colectivo ditado por conveniências muito selectivas. As mesmas que ainda idolatram Agostinho Neto como poeta, virtuoso humanista e «libertador» do seu povo.

A 21 de Maio de 1977, seis dias antes de esmagar os opositores, o ditador incentivou a população a «fazer um combate contra todos os fraccionistas que encontrarmos no caminho». Espécie de senha para o que logo se seguiu.

Mesmo que nenhum dos torcionários venha a pagar pela participação nestes homicídios, a memória não prescreve. Há que pôr fim à desinformação, à autocensura e aos silêncios, como alerta a Associação 27 de Maio. Há que repetir, uma vez e outra, que isto aconteceu. Uma nódoa inapagável na história do MPLA e da Angola pós-colonial.

 

ADENDA de 28 de Maio: um leitor chamou-me a atenção para este documentário realizado por Margarida Cardoso e exibido há dois dias na RTP 2: Sita - a Vida e o Tempo de Sita Valles. Vi-o na noite de ontem. Verdadeiro serviço público.

Como perverter a Liberdade em demasiados actos

Maria Dulce Fernandes, 25.05.22

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A perversão da Segunda Emenda

Virgínia Tech University

Columbine Highschool

Clevland Elementary School

Marjory Stoneman Douglas High School

Thurston Highschool

Sandy Hook Elementary School 

Northern Illinois University

Santa Fe High School 

Califórnia University 

Robb Elementary School 

 

De entre centenas de tiroteios por ano que são notícia nos Estados Unidos, grande percentagem acontece em escolas e universidades. Em 2021, registaram-se 61 incidentes com armas de fogo, tendo os tiroteios causado 103 mortos e 140 feridos. Estes números referem-se a mass shootings, como os acima referidos.

Enquanto os lobbies das armas de fogo continuarem a lucrar milhões, as crianças assassinadas serão apenas apontamentos colaterais na tabela de vendas.

https://sicnoticias.pt/mundo/pelo-menos-14-criancas-mortas-em-tiroteio-numa-escola-primaria-no-texas-eua/

(Foto Google )

Prisões

jpt, 13.05.22

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Leio no Facebook várias pessoas - e até "doutores", "altos quadros" como se dizia - lamentando o destino de Rendeiro mas alinhavando que o homem pagou assim os seus crimes. Que gente hedionda, uns com Cristo na boca e nas teclas, outros sem o tal Cristo. Mas todos demoníacos. Pois Rendeiro terá sido trapaceiro, fraudulento. E decerto que arrogante e descuidado - ao sabê-lo preso em Durban logo me perguntei, sem saber dos trâmites que se seguiriam, e até julgando que seriam rápidos, "o que é que passou na cabeça ao mariola para se arriscar a ser prisioneiro na África do Sul?". Enfim, um criminoso antipático, sem sequer pitada de romantização possível, daquela com que tantos outros são aspergidos. Agora considerar que é expiação um velho enforcar-se - porventura porque "não aguento mais!" ou, e espero bem que assim fosse, um apenas "que se foda!" - depois de seis meses de inferno concentracionário?
 
Entretanto e porque já me cheira ao choradinho de que lá nas Áfricas as prisões são horríveis - e, grosso modo, são-no - quais as "selvas" dos "selvagens" que antes se diziam, recordo os dados a estes deslizes da ignorância o que se passa na pérfida Albion: o (meu) grande Boris Becker, ídolo da juventude, está preso por uma falência fraudulenta, mais um desportista campeão arruinado. Encarcerado numa prisão de Londres, onde penou Oscar Wilde, e que segue em regime qual romance de Dickens.
 
Os prisioneiros são todos iguais: nenhum deles expia crimes suicidando-se. E nenhum deles merece prisões execráveis. Das quais os "doutores" (de Cristo ou sem Cristo) só se lembram quando há um preso "notável".

A barbárie está no meio de nós

Pedro Correia, 22.04.22

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O Mal existe. Tem nome e rosto. Tem identidade própria. Tem alegadas «motivações», propaladas aos quatro ventos através da caixa de ressonância dos órgãos de informação. Tem até defensores - uns por razões políticas, porque interessa «destruir o sistema», outros simplesmente porque sim.

Não faltam aqueles que procuram negar a existência do Mal. Desde logo por crerem na bondade intrínseca à natureza humana: essas excelentes almas acreditam convictamente que não há rapazes maus. Ou por negarem validade às estruturas axiológicas: esses são os que argumentam pela irrelevância das fronteiras entre o Bem e o Mal, sobretudo porque as imaginam sempre contaminadas de conteúdo religioso. Sem repararem que tantas vezes, ao difundirem tal crença, assumem com frequência um fervor simétrico ao dos mais ortodoxos fiéis de uma determinada igreja.

E no entanto o Mal existe. Podemos vislumbrá-lo em múltiplas erupções quotidianas. No indivíduo que pela calada da noite, há poucos anos, punha uma bomba no carro de um autarca basco e encolhia indiferentemente os ombros quando a explosão desse veículo matava crianças que ignoravam o significado da palavra nacionalismo, considerando-as «danos colaterais» - o homicídio mais aleatório elevado à categoria de instrumento de acção política. O monstro de sorriso gélido que planeou friamente a execução sumária de algumas dezenas de adolescentes num acampamento de férias na Noruega e acabou classificado de inimputável por um colégio de psiquiatras. O fanático anti-semita que transforma o ódio étnico, cultural ou religioso em senha de identidade à margem de todos os considerandos de ordem moral, convertendo o massacre de seres humanos numa espécie de mandamento ditado pelo sectarismo mais irracional.

Foi preciso correr o sangue de inocentes para também a França republicana e laica reparar que albergava a semente do Mal no seu seio iluminista com atentados como o de 2016 em Nice ou o massacre na redacção do Charlie Hebdo.

 

Não adianta proclamar, como fazem saudosos discípulos de Sartre, que o inferno são os outros. Não tenhamos ilusões: a barbárie está no meio de nós. E ganha terreno quando tentamos justificá-la com indiferença cúmplice invocando argumentos de sociologia política para validar as cartilhas ideológicas que autorizam a dissolução da dignidade humana em benefício de impulsos liberticidas. Como se os fins justificassem todos os meios. Como se houvesse equivalência moral entre carrascos e vítimas. Não há, em absoluto: a tragédia na Ucrânia bem o demonstra.

«Observar um crime em silêncio é cometê-lo», ensinou-nos José Martí. Nada mais certo. Não podemos resignar-nos ao poder da barbárie. Nem tolerá-la. Nem «compreendê-la». Nem deixar que ela se banalize a tal ponto que comece até a ser encarada com indiferença. Enquanto os cadáveres se amontoam e mastigamos qualquer coisa à hora do telejornal.

 

Imagem: O Massacre dos Inocentes (1609-11), de Rubens

Uma carnificina é um «incidente»

Pedro Correia, 05.04.22

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«Eu não tenho elementos suficientes para corroborar [acusações de crimes de guerra praticados por militares russos contra civis ucranianos]. Poderão (sic) haver, mas de ambas as partes. Temos que analisar estas questões com muita cautela, com extremo cuidado, porque podemos cair nalguns engodos. Existem coisas que se chamam operações psicológicas, informações de operações... há que ter sempre muita cautela.»

 

«Reparei que algumas pessoas que estavam no chão tinham uma faixa branca no braço. Essa faixa branca era utilizada pelos civis de Butcha que eram pró-russos ou coniventes com os russos e são esses indivíduos que estão no chão. Eu tenho algumas dúvidas sobre a razoabilidade dos russos matarem os indivíduos que estavam com eles.»

 

«A situação é extremamente sensível e precisa de ser analisada de forma extremamente profissional, neutral e com moderação. E fora de grandes ansiedades e de grandes excitações, de paixões. Tem de ser analisado por profissionais tecnicamente habilitados para o fazer.»

 

«Temos de ver a credibilidade dessas testemunhas. Isto é uma coisa extremamente sensível, extremamente complicada. Estamos a jogar não só no domínio das emoções como no domínio das percepções, no domínio comunicacional. Por isso aconselho muita ponderação, muita moderação, quando somos confrontados com este tipo de incidentes.»

 

Declarações do major-general Carlos Branco, apresentado como «especialista em temas militares da CNNP», neste canal televisivo (3 de Abril de 2022)

 

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Leitura complementar:

El País -- La matanza de Bucha muestra la barbarie de la guerra de Putin

The Guardian -- The bodies of Bucha have set a difficult test for the west

Libération -- Guerre en Ukraine: Boutcha, ville meurtrie et jonchée de cadavres après le retrait russe

O assassinato nunca prescreve (2)

Cristina Torrão, 17.06.21

Servindo-me de um policial, já aqui tinha referido a importância de não haver prescrição, em caso de assassinato, aproveitando as técnicas hoje possíveis. Desta vez, não se trata de ficção.

Um homem foi detido e acusado hoje pelos assassínios da mulher e filha, que também foi violada, ambas encontradas mortas e degoladas em 1993 perto de Grenoble, no sudeste de França.

Vinte e oito anos depois faz-se justiça. Em Portugal, isto seria possível? O facto de o suspeito ter já 72 anos é-me indiferente. Até podia ter noventa! Crimes destes não podem ficar impunes. Não sou a favor da pena de morte, nem da castração química. Mas encontrar um assassino e responsabilizá-lo é essencial.

A glamorização dos assassinos

Pedro Correia, 03.05.21

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Se há coisa que me repugna, entre os péssimos hábitos que começam a instalar-se na indústria mediática portuguesa, é a glamorização dos assassinos. 

Não há crime mais repugnante e hediondo sem que os protagonistas mereçam todos os holofotes jornalísticos, com ampla revelação dos seus nomes e rostos. Agora tornou-se moda picar fotografias nas redes sociais - e eis, portanto, as imagens de duas mulheres que assassinaram um homem, desmembraram o corpo e andaram a espalhar pedaços do cadáver por todo o Algarve difundidas com poses suaves e requintadas. Imitando actrizes de cinema, imortalizadas em jornais e televisões.

Mulheres, repito. Mas nas notícias recebem tratamento adocicado: chamam-lhes "jovens" enquanto repetem uma vez e outra os nomes, como se fosse gente íntima cá da casa. Algumas notícias emprestam até uma aura romântica à coisa, sublinhando que as criminosas andavam muito apaixonadas. Possuídas pelo fogo que arde sem se ver.

 

Um youtuber que "espanca namorada até à morte em directo por dinheiro" vê a sua foto estampada nos jornais, com nome associado. Foto de rede social, não da polícia: tem ares de artista em voga, não faltará quem o ache simpático. É "jovem" também, sublinham as notícias. Matar a namorada em directo talvez seja um inócuo pecadilho de juventude. E ela - sabe-se lá - pôs a jeito...

Um dia destes o assassino vai ao "confesso-me", num programa de telelixo qualquer, e obtém absolvição do respeitável público ali reunido. Também em directo. 

E siga o baile: este espectáculo alimenta-se de sessões contínuas.

O assassinato nunca prescreve ("Mord verjährt nie")

Cristina Torrão, 30.04.21

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No passado dia 17 de Abril, o canal alemão ZDF transmitiu um policial sobre a tentativa de resolução de um assassinato acontecido há trinta anos ("30 Jahre", no texto em baixo).

 

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Tratava-se de um telefilme, mas, na Alemanha, investigações deste tipo não são ficcionais. O assassinato nunca prescreve. Sobretudo, quando existem meios de identificar um assassino, mesmo passada uma eternidade sobre o crime (como a descodificação do ADN). Já em Portugal, não se investiga um assassinato que tenha ocorrido há quinze anos ou mais. Porque, se os crimes não prescrevem, a possibilidade de instauração ou continuação de um processo penal ou ainda, noutros casos, a execução da sanção aplicada, prescrevem.

 

Vem isto a propósito de mais um policial de Mario Lima, o pseudónimo de um escritor alemão que vive em Portugal e do qual já aqui falei. Neste seu terceiro livro, cujo título Die Mauern von Porto é um pouco difícil de traduzir (talvez “Emparedadas no Porto”), ele ocupa-se precisamente com a prescrição de um assassinato.

 

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Um incêndio num prédio do Bairro da Sé, mais precisamente, na Rua da Bainharia, provoca estragos numa casa ao lado, vazia há várias décadas. Bombeiros e polícia penetram na casa, a fim de melhor avaliarem os estragos e, na mansarda, deparam com uma parede que, tudo indica, foi levantada à pressa e não tem qualquer passagem para o resto da divisão. Resolve-se mandar deitar a parede abaixo e surgem dois esqueletos, um deles ainda com restos de roupa.

 

A PJ é accionada e os exames de peritagem revelam tratar-se dos restos mortais de duas mulheres, mais precisamente, de uma adulta e de uma jovem de treze ou catorze anos. Porém, quando a equipa do inspector Fonseca se prepara para investigar o caso, a peritagem revela ainda que, apesar de os restos mortais indiciarem morte violenta, o crime terá acontecido há cerca de vinte anos. É um duro golpe, principalmente, para as duas investigadoras da equipa, que logo suspeitam que se trataria de mãe e filha e são firmes no pressuposto de que a culpa nunca prescreve.

 

Nunca me tinha ocupado do assunto e confesso que não sabia que um assassinato prescreve ao fim de quinze anos. O que são quinze anos? Nada! Neste livro, através de uma agente que é inserida na equipa do inspector Fonseca depois de ter trabalhado no departamento de combate à corrupção, o autor aflora ainda a prescrição de crimes de corrupção, alguns já ao fim de dois anos, assim como o enriquecimento ilícito de pessoas à frente de uma Fundação. E não é esquecido o facto de estas leis favorecerem os poderosos e os ricos, que, além de terem influência, estão em condições de contratarem advogados capazes de protelarem a investigação, até que os crimes prescrevam. Como se vê, Mario Lima aborda um tema bem actual. Já por isso, se aconselha a tradução deste seu livro.

 

A equipa do inspector Fonseca vai ser dada enfim a possibilidade de encontrar o culpado, pois um crime perpetrado há um tempo não tão longo assim despoleta acontecimentos fatais. O assassino fica nervoso com a descoberta dos esqueletos das suas vítimas. E há quem ainda não tenha digerido o desaparecimento de duas familiares, embora lhe tenha sido dada uma explicação plausível para a ausência delas. Porém, há sempre dúvidas que não se esclarecem, causando discussões, chantagens. E, numa hora de aperto, um assassino bem pode cometer novo crime...

 

Excelente policial de Mario Lima, que criou uma bela equipa de investigadores da PJ e que, como de costume, descreve na perfeição a atmosfera da cidade do Porto.

 

 

Adenda: o post estava programado há alguns dias e soube hoje, dia 30/04, que o ZDF vai transmitir um documentário, às 00:30 horas, sobre novas técnicas de investigação criminal, apresentando o exemplo de um especialista em ADN que ajudou a localizar o assassino de um rapazinho desaparecido em 1996.

Os méritos da comunicação social

João Pedro Pimenta, 22.12.20

Tenho lido por aí que só agora é que a comunicação social tem dado atenção ao caso Homenyuk, que durante nove meses não se ouviu nada, etc, etc. Lê-se isso nas redes sociais mas também de outras paragens inesperadas, como alguns jornalistas em guerra autofágica contra a própria classe. Nada mais injusto, nesta ocasião.

Pegando nas palavras de um dos responsáveis do que sucedeu, houve quem não ouvisse nada. Porque desde fins de Março que se conhecia o casos e os seus contornos, que se sabia que algo de muito errado se tinha passado com o ucraniano e os agentes do SEF, e tudo isto porque a comunicação social o divulgou. Se o caso não teve mais repercussões é porque as pessoas até agora tinham ligado pouco.

Em lugar de bater sempre na imprensa, que tantas vezes e ao contrário do que se passou agora não cumpre as suas funções, seria bom pensar que talvez as redes sociais não sejam assim tão informativas ou eficazes. Afinal de contas, soube-se disto em fins de Março, quando a pandemia tinha repentinamente surgido e estava tudo em casa. Lembro-me aliás de ter sido o primeiro caso que não o covid-19 a abrir os noticiários em muitos dias. E não foram com certeza os "jornalistas" de smartphone que divulgaram a situação. Algumas pessoas ligaram mais, de certa forma para se libertar do totalitarismo informativo covidiano, mas outras pouco terão ligado. Até agora, quando a viúva do pobre Homenyuk disse "odiar Portugal"(e poderemos nós censurá-la, por muito que nos custe?). Através da comunicação social, claro.

Por isso, culpe-se o SEF, a ANA, o governo que só agora é que resolveu dar uma compensação à família, o ministro Cabrita, o presidente ou outros, mas deixem de se atirar à comunicação social. Há imensas razões e oportunidades para criticá-la. Eu próprio já o fiz, aqui no Delito. Mas ao menos, e ao contrário do que acontece com inumeras páginas manhosas da net, que atraem sempre alguns discípulos hipnotizados, os artigos vêm sempre assinados e podemos saber quem foram os seus autores. Aqui é manifestamente injusto que assaquem as culpas à CS, porque é graças a esta que sabemos os contornos do caso.

Indignação e revolta

Pedro Correia, 17.12.20

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Num aeroporto chamado Humberto Delgado, assassinado por esbirros da polícia política de outrora, verdugos contemporâneos seviciaram e sovaram até à morte um homem chamado Ihor Homeniuk. Condenado a pena capital extrajudicial, em instalações do Estado português, pelo "crime" de querer entrar em Portugal. Precisamente num país que ainda se orgulha de ter sido um dos primeiros no mundo a abolir a pena de morte.

Indigna e revolta saber que nesse aeroporto com o nome do general sem medo existe uma alcateia à solta. E também um bando de hienas a proteger as bestas - umas e outras pagas por todos nós. Perante o inaceitável silêncio do Presidente da República, que se apressou a verter uma mensagem de condolências na sua página oficial à família de uma jovem falecida num desastre rodoviário enquanto ignorou durante nove meses a viúva e os filhos de Ihor Homeniuk.

Mas também indigna e revolta o tratamento post mortem atribuído ao assassinado pelo fluxo mediático dominante, que foi assobiando para o lado enquanto pôde. Com milhares de horas de emissão televisiva dedicadas a um putativo "reforço do Benfica" e silenciamento total do homicídio no aeroporto. Ihor Homeniuk é nome que a Wikipédia omite e os motores de busca na ocidental praia ignoram: um tal Cavani foi o mais procurado no Google pelos portugueses ao longo deste ano de pesadelo, o que diz quase tudo sobre a sociedade que temos.

Também indigna e revolta a hipocrisia cada vez mais selectiva das indignações em voga, à mercê não de louváveis impulsos humanitários mas de cartilhas ideológicas, discriminando vítimas em função de etnias, cor de pele e proveniência geográfica. Como se uns cadáveres fossem "mais iguais" que outros.

O direito ao nome do assassinado

Pedro Correia, 16.12.20

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Qualquer indivíduo alvo de violência policial num país como os EUA - e nem precisa de ser espancado e deixado esvair-se até à morte, em arrepiante sessão de tortura - é logo tratado nos media portugueses como alguém com nome e apelido, como se fosse figura do nosso convívio. Há até manifestações públicas, convocadas por redes sociais, enchendo ruas e praças em período de "confinamento", como no início de Junho sucedeu com o norte-americano George Floyd em várias cidades do País. O combate ao racismo sobrepôs-se ao combate ao coronavírus.

Dois meses antes desse crime cometido em Minneapolis, um ucraniano tinha sido violentamente agredido, torturado e enfim assassinado à pancada em Lisboa por presumíveis "servidores públicos", pagos com o dinheiro de todos nós, num departamento oficial supostamente regido por normas de legalidade, transparência, urbanidade e cidadania. No fundo, a tal "ética republicana" com que alguns enchem a boca.

Ao contrário do que ocorreu no continente americano, este crime - que terá contado com cumplicidades várias, numa teia muito mais abrangente do que a do reduto inicial de esbirros homicidas - não comoveu ninguém. Nenhuma manifestação foi convocada, apesar dos óbvios contornos xenófobos do assassínio, nenhuma organização trombeteou em exaltada defesa dos direitos humanos selvaticamente violentados por funcionários públicos. As notícias foram esparsas, acolhidas entre bocejos. Como se toda a indignação doméstica se esgotasse nos protestos por crimes policiais cometidos além-fronteiras.

 

Pior: a vítima não teve sequer direito ao nome. Casado, pai de dois filhos, trabalhador que procurava encontrar em Portugal o sustento que lhe era negado no país de origem, Ihor Homeniuk acabou alvo de novo crime, desta vez de carácter político, social e mediático: o crime da omissão.

Tratado como anónimo, nas semanas e nos meses que se seguiram ao seu brutal homicídio, pelos militantes da indignação selectiva.

Tratado com impiedosa indiferença pelos poderes públicos - designadamente pelo Governo, que só há cinco dias se lembrou de dirigir uma carta de condolências à viúva e de a indemnizar pela trasladação do cadáver há muito efectuada, e pelo Presidente da República, por uma vez recolhido ao silêncio precisamente numa situação em que teria sido imperioso escutar uma palavra sua. Aqui Marcelo Rebelo de Sousa foi o último a falar, quando devia ter sido um dos primeiros.

 

Ihor Homeniuk não tem verbete na Wikipédia, não viu o rosto reproduzido em T-shirts, não leva ninguém a proclamar que "todas as vidas contam" - seja qual for a cor dos cabelos do agredido e violentado, seja qual for a pigmentação da sua pele. E raros são os que escrevem ou pronunciam o seu nome, ao contrário do que aqui fizeram o José Teixeira a 2 de Junho, expressando uma indignação que na altura tornaria redundantes outros textos de teor semelhante, ou o José Meireles Graça a 1 de Outubro, muito antes de os justiceiros de turno acordarem para o facto nas pantalhas cá da terra.

Ontem mesmo, na comissão parlamentar convocada para debater este crime na presença do ainda titular da pasta da Administração Interna, o nome de Ihor Homeniuk raras vezes foi pronunciado: vários deputados, quando muito, acederam em designá-lo por «cidadão ucraniano». E ficaram-se por aí.

 

Já me insurgi no DELITO contra a glória póstuma dos assassinos, que transforma qualquer celerado numa espécie de pop star em televisões e jornais. Já clamei contra os mecanismos comunicacionais, que em horas de barbárie surgem mais preocupados em desvendar o "rosto humano" dos homicidas do que em evocar as vítimas dos seus actos. Hoje venho reivindicar o mais elementar e singelo mandamento humano: o direito a sermos tratados pelo nosso nome, sem sermos reduzidos a uma etnia, uma profissão, uma nacionalidade, um emblema, uma afinidade tribal.

O  homem assassinado a 12 de Março nas instalações do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras no Aeroporto Humberto Delgado (cruel ironia, tão repugnante crime ter ocorrido num local assim baptizado) chamava-se Ihor Homeniuk.

É pelo nome que esta malograda vítima do Estado português deve ser conhecida - e não de qualquer outra maneira.

Que denunciantes queremos?

Sérgio de Almeida Correia, 29.01.20

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Ultimamente são muitos os que têm saído em defesa do hacker Rui Pinto. De Ana Gomes a Miguel Sousa Tavares, de Pacheco Pereira a Manuel Carvalho, já sem falar nos seus advogados, em Portugal e no estrangeiro, que aliás mais não cumprem do que o seu papel, são muitas as vozes que querem elevar o estatuto do fulano a um herói, um quase semideus, à espera de ser condecorado pelo Presidente da República e venerado pelos portugueses.

Se há coisa em que os portugueses perdem com facilidade o sentido do equilíbrio, das proporções e do bom senso é quando vêem a turba aos gritos e aos empurrões, altura em que tendem a alinhar com ela, esquecendo o básico.

Gostaria, no entanto, antes de avançar de fazer a minha declaração de interesses, e já agora de simpatias e antipatias, para que as pessoas possam analisar o assunto com a atenção que entendam dar-lhe.

E quanto a este ponto, em poucas linhas direi que desde que me conheço que combato no meu dia-a-dia, pessoal e profissional, a corrupção, o compadrio, o clientelismo, o tráfico de influências, e que desde sempre procurei denunciá-los, existindo algumas largas centenas de textos em que o fiz, independentemente dos riscos e do custo que isso iria ter. E algumas vezes teve. Disso não me queixo. Cumpri. Quero, apenas, acrescentar que não conheço o hacker Pinto de lado nenhum e que tenho estima, simpatia pessoal e até admiração e amizade por alguns dos que agora saíram em sua defesa.

Posto isto, quero deixar bem claro que, em primeiro lugar, a Constituição da República define Portugal como um Estado de direito democrático, subordinado à Constituição e que se funda na legalidade democrática, que o sigilo da correspondência, dos meios de comunicação privada e das telecomunicações é um direito fundamental, e que as autoridades públicas só podem interferir nesses meios se para tal estiverem autorizadas em matéria criminal, sendo “nulas todas as provas obtidas mediante (...) abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.

Sublinho que estes são, até à data, os princípios que nos regem, os que vinculam o Estado, os órgãos de soberania, os seus titulares, e que foram por todos nós reconhecidos, democraticamente, com ou sem o apoio de cada um de nós enquanto indivíduos, como aqueles em que nos revemos e fundamos a nossa comunidade.

A compatibilização do que aqui temos — não sendo pertinente neste momento estar a aprofundar o mais que consta da legislação vigente, até porque este debate deve ser aberto, acessível e compreensível por todos em termos absolutamente inequívocos, e não restrito a juristas, meia dúzia de entendidos e políticos em geral — com a imperiosa, e desde sempre inadiável necessidade de combate à corrupção e crimes conexos e associados, é o que nos deve mobilizar, mas tal deverá acontecer em termos racionais, deixando de lado a emotividade, a hipocrisia e o populismo em que normalmente os nossos predestinados cavalgam.

Querer transformar quem, primeiro, entrou ilicitamente em redes de comunicações privadas, espiolhou, copiou e guardou o que muito bem entendeu para uso futuro; depois distribuiu como quis parte dessa informação, a coberto do anonimato, a qual entretanto serviu para denunciar e julgar em praça pública quem não se pôde defender; e a seguir aproveitou para tentar, está por apurar se directa ou indirectamente, obter dividendos financeiros dos actos ilegais que cometeu, não me parece que seja suficiente para lhe lavar a alma e transformar um vilão num impoluto campeão do combate à corrupção.

Não está em causa, importa frisá-lo, a gravidade dos factos apurados ou a importância dos documentos divulgados, nem as consequências da sua divulgação pública por parte de quem criteriosamente os investigou para apurar da sua veracidade e actualidade. Há muito que se suspeitava do que foi divulgado, há muito que muita gente desconfiava de tudo o que se veio a revelar através dos documentos, e não poucos foram os que alertaram o Estado português e seus responsáveis, de Cavaco Silva a Passos Coelho, de Durão Barroso a Paulo Portas, de José Sócrates a António Costa, da necessidade de não nos colocarmos de cócoras de cada vez que falávamos com a família dos Santos, respectiva prol e criadagem empresarial, política, militar ou civil, de cá ou de lá.

Também há muitos anos que muita gente assumiu a denúncia e o combate às sociedades offshore como prioritário, e há muito que esses instrumentos deviam ter sido banidos e sujeitos a pesadas sanções. Em Portugal não só não foram banidos como depois disso ainda se alinhou numa política de criação de vistos gold que se nalguns casos correspondeu a verdadeiro investimento, noutros só serviu para ajudar a lavar,  branquear, pagar comissões a quem nada fez e enganar compradores que pagaram preços exorbitantes por imóveis que valeriam um terço do que foi pago.

A propósito das offshore recordo-me, inclusivamente, de ter estado num debate, em Braga, num congresso do PS aí realizado, em que também participaram Ana Gomes, Filipe Brandão Rodrigues, Luís de Sousa, autarcas e muitos outros, em que foram feitas denúncias vigorosas contra as offshore e a inacção do próprio PS sobre essa matéria, tendo havido inclusivamente alguém que lá estava na assistência que desenvolveu explicações sobre o funcionamento em concreto de alguns esquemas em jurisdições offshore, perante o espanto de Ana Gomes, que uma vez mais se interrogou, sem que até hoje tenha havido qualquer mudança ou vaga de fundo para se acabar com essas entidades que servem para dar guarida à bandidagem nacional e internacional que usa colarinhos de todas as cores, formas e feitios, comendo à mesa de reis, presidentes e chefes de governo para parecerem sérios.  

Pelo meio, ao longo de décadas, tivemos em Portugal dezenas de processos em que em causa estava a realização de escuta telefónicas não autorizadas por ordem judicial. Do que me recordo, não houve um único em que, por exemplo, Miguel Sousa Tavares considerasse, e com razão, que se devesse dar crédito a essas escutas atenta a forma invasiva, arbitrária e ilegal como foram obtidas; fosse nos célebres casos em que o Presidente do FCP andou envolvido, nos da Casa Pia ou do ex-primeiro-ministro Sócrates.

Curiosamente, o que hoje se vê é que toda essa gente que se manifestou contra a utilização das escutas, de Pinto da Costa ou de Sócrates, algumas até mandadas destruir por um antigo presidente do STJ, sem que outros conhecessem o respectivo conteúdo e apenas porque embora recolhidas legalmente excederiam o objectivo da recolha, venha agora manifestar-se em defesa do hacker Rui Pinto, como se este não fosse efectivamente um criminoso.

É evidente que não deixa de o ser, sendo certo que isso não coloca em causa a importância do que, num segundo momento, e, em minha opinião, apenas para se safar e criar um ambiente favorável à sua pessoa junto da opinião pública e da comunicação social, divulgou junto de um consórcio de jornalistas independentes aparentemente, digo eu, sem exigir contrapartidas.

Idêntico procedimento não foi seguido com os documentos obtidos do Sport Lisboa e Benfica, que foram directamente parar ao Futebol Clube do Porto, certamente que aos olhos do hacker Pinto a entidade mais isenta, imparcial e idónea para proceder à sua divulgação aos bochechos, alimentando as noites televisivas de alguns canais e enchendo as páginas da imprensa que vive da escandaleira, da devassa e da intromissão na vida dos outros.

Pergunto, por isso mesmo, se a forma como o hacker Pinto acedeu aos conteúdos que divulgou é menos intrusiva do que as escutas telefónicas abusivas, e se estas devem ser consideradas mais ou menos abusivas em função do juízo que se venha a fazer da importância do conteúdo divulgado?

É por isso de grande hipocrisia querer desvalorizar a ilicitude dos actos de intromissão em redes e computadores privados, quaisquer que eles sejam, face às regras vigentes.

Convém não confundir a atitude de Rui Pinto, o hacker, com a de gente como Snowden ou Frederic Whitehurst, ou seja, com verdadeiros whistleblowers, lista da qual Pinto não faz parte, embora para si se esforce em agora reclamar tal estatuto.

Considero ser necessária a criação de um estatuto, que já devia existir, destinado à protecção dos verdadeiros denunciantes. Isto é, daqueles que o fazem no cumprimento de deveres de cidadania, e não dos que só se lembram da cidadania quando são apanhados a fazer exactamente aquilo que um cidadão sério, consciente e responsável não faria. Sim, porque ninguém vai entrar em redes privadas e em computadores de terceiros, devidamente seleccionados, seja de Estados, empresas ou particulares, incluindo magistrados e advogados, apenas porque está a navegar pela Internet, a ver a paisagem.

A questão coloca-se a meu ver de forma pertinente não em relação aos que procuram aceder, e acedem, à informação de forma absolutamente ilícita, entrando abusivamente em redes, devassando e muitas vezes destruindo informação, apropriando-se da que lhes convém, mas no que diz respeito a todos os que, designadamente em razão do seu desempenho profissional, acedem legitimamente à informação e sobre os quais é discutível se têm ou não um dever de denúncia, por um lado, ou de bufaria, melhor dizendo, e se o tendo, quando confrontados com a sua obrigação de confidencialidade e preservação do sigilo, o devem exercer e fazer prevalecer sobre as outras obrigações que sobre si recaiam.

A solução não é simples e coloca muitas vezes problemas que estão muito para além da mera denúncia, envolvendo juízos éticos e morais que não são fáceis. Acontece que, em regra, quanto a este tipo de profissionais importa saber até que ponto é que aquelas são compatíveis com as necessidades de combate ao crime e à corrupção. E quando estas devem prevalecer sobre aquelas. E em que momento.

Abreviando, direi tão só que estou de acordo com a criação do estatuto de denunciante, de maneira a que esta condição confira protecção efectiva a quem se coloca em risco para cumprir deveres de cidadania, levando-se em consideração que na outorga desse estatuto  deverá ser feita uma separação clara entre aqueles que abusiva e totalmente à margem da lei circulam, devassam e pirateiam redes de comunicações, muitas vezes apenas com o propósito de destruírem, de se divertirem ou de chantagearem, daqueles outros que licitamente ou por mero fortuito têm acesso à informação e por a considerarem de interesse público a entender divulgar e remeter às autoridades competentes.

Uma coisa é certa: não poderá haver dois pesos e duas medidas. E o que vier a ser decidido não deverá ter carácter retroactivo, independentemente de poder haver um regime mais leniente para aqueles casos em que quer a informação não fosse acessível por outra forma, quer à acção criminosa se tenham sucedido actos inequívocos de arrependimento — o que não parece ser o caso de quem se recusa a divulgar as passwords de acesso aos discos rígidos contendo informação que foi obtida ilegalmente sem obtenção de contrapartidas — que levassem à divulgação dos conteúdos imprescindíveis para a investigação dos factos pelas autoridades e à punição dos criminosos.

Quero, ainda, acrescentar que considero absolutamente humilhante e procedimento indigno do nosso sistema judicial que se passeiem e divulguem imagens de arguidos, como no caso do hacker Rui Pinto, algemados e exibidos nas televisões e jornais como troféus de caça. Se as polícias o fazem, os magistrados deviam ser os primeiros a impedi-lo, pois que por aí não nos distinguimos em nada das imagens que os canais de televisão chineses apresentam em relação aos que do outro lado do mundo aguardam que se faça justiça. 

Combata-se a corrupção, sim, de forma clara e transparente, mas sem hipocrisias, partidarites e clubites, e acima de tudo respeitando o Estado de direito.

Como ainda ontem escrevia no Público a procuradora Maria José Fernandes, “porque não rever princípios no âmbito da doutrina constitucional e na jurisprudência, sem o objectivo de abastardar valores do Estado de direito, que tanto custaram a consagrar, mas sim para introduzir modulações de equilíbrio nas novas realidades da vida social? Uma possibilidade, a consagração de exce[p]ções baseadas na proporcionalidade, adequação, hierarquia de valores, por forma a que a realização da Justiça acompanhe as profundas modificações valorativas da sociedade de hoje, resultantes da evolução tecnológica, económica e ambiental.”.  

Mudem-se as regras do jogo, não se mudem os princípios de acordo com as circunstâncias e as conveniências do momento.

Faça-se isso sem populismo e sem a habitual demagogia retórica destinada a manipular a turba ignorante, visando a punição de alguns criminosos caídos em desgraça para se satisfazer o desejo de vingança das massas e do voyeurismo televisivo, enquanto ao mesmo tempo se heroicizam outros para se desvalorizar a gravidade dos crimes por estes cometidos, e assim se lhes permitir que, saindo impunes, continuem a praticar outros.

Porque é isto o que está verdadeiramente em discussão. Saber se queremos bandidos-denunciantes ou cidadãos-denunciantes.

Protejam-se os cidadãos que denunciam, não os bandidos que disso procuram tirar partido. Pelo menos até que se chegue à conclusão de que os fins justificam os meios, coisa contra a qual houve quem se indignasse quando se tratou das escutas telefónicas de outros processos que acabaram em nada.