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Delito de Opinião

O trabalho

Belém em 1977 era uma confusão

Maria Dulce Fernandes, 14.06.24

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Aprendi o significado da palavra trabalho ainda não completara 18 anos, aceitando  o posto de “Menina da Caixa” num estabelecimento comercial, enquanto uma das meninas da caixa convalescia de uma cirurgia ao coração, a outra encetara os três meses da chamada “Baixa de Parto” e eu, aborrecida e sem ter o que fazer, lia, pintava, costurava, enfim, aguardava a chamada para um ano de Serviço Cívico, que nunca chegou a acontecer. Imediatamente a seguir à chegada da liberdade, chegou também o exagero. O grande prémio por ter queimado as pestanas anos a fio, para garantir média de entrada na Universidade, foi uma mancheia de nada. A média desceu para 9,5 valores e todos os detentores dessa média podiam entrar. Quando chegou a minha vez, as universidades, escolas e institutos superiores estavam a rebentar pelas costuras, e para que a educação não colapsasse totalmente surgiam peregrinas ideias para suster os acessos ao ensino superior. Tocou-me o Serviço Cívico e a seguir o Ano Propedêutico.

Foi durante o tempo do suposto Serviço Cívico que comecei a trabalhar. Era um serviço com grande responsabilidade, era bastante básico, mas era perto de casa, dava para passar o tempo ocupada e pagava bem, porque eu falava três línguas. Os meus colegas eram todos homens. As mulheres, que as havia aos molhos e muitas delas eram os elementos-chave do negócio, estavam bem escondidas das pessoas que nos visitavam. Só se viam pontualmente as senhoras que faziam a manutenção e higienização do estabelecimento.

Entrei, portanto, num mundo de homens, e de homens muito diferentes daqueles com quem estava habituada a conviver. Eram brutos e  essencialmente ignorantes. Não encontrei um único que tivesse lido um livro. Falavam mal, escreviam mal… mas já trabalhavam ali há uns anos. Tinham vindo directamente das aldeias que os viram nascer, assim que completavam a quarta classe. Eram crianças sem infância que chegavam, alguns apenas com a roupa do corpo e eram largadas numa plataforma em Sta. Apolónia, onde alguém da terra os esperava e encaminhava a um quarto com quatro ou cinco camas, que lhes dava direito a dormida e banho, liquidável no final de cada mês. Depois mostravam-lhes os locais de trabalho, onde um gerente com cara de poucos amigos lhes entregava a farda, explicava o que se esperava deles e lhes falava dos horários e ordenados. Depois das despedidas ao futuro chefe, com toda a reverência, o amigo conterrâneo indicava-lhes um restaurante onde, mediante o pagamento de uma quantia estipulada, liquidável no final de cada mês, poderiam comer almoço e jantar, e que constava num prato que não era à escolha, sopa água e pão. Mas era unânime ouvir dizer que serviam bem.

E pronto. O amigo conterrâneo ia à vida dele, e os miúdos de 13 e 14 anos, ficavam entregues a si próprios e aprendiam da vida, uns com os outros, para o bem e para o mal, e faziam-se homens. Sobrava-lhes cerca de metade do que recebiam líquido, e dessa metade, metade era para "mandar para a terra".

Tenho consciência de que foi ali que aprendi o que é ser diferente. Era mulher, privilegiada, inteligente, bonita e era amesquinhada sempre que possível, para o gáudio geral, só porque sim. Eram uns autênticos trogloditas, mas a vida não lhes ensinara outra coisa. Pensei desistir muitas vezes, mas como dos fracos não reza a história, lá fui bebendo o fel do meu cálice e continuei, com a ajuda dos patrões, que me deram horários para estudar. Completei o Ano Propedêutico, o Instituto Alemão e entrei em Direito já com quase 21 anos. Casei com 22 anos e não terminei o curso. Não lamento.

Quando aprendi o significado da palavra trabalho, os trabalhadores eram rapazes e raparigas que compunham a mão-de-obra nos grandes centros urbanos no nosso país, antes e depois do 25 de Abril, não nos chegavam de fora do país, mas teria sido praticamente o mesmo se tivessem vindo da Indochina, numa jangada. A procura de mão de obra trouxe crianças impreparadas para a vida, do Portugal ignoto para a cidade que desconheciam e onde perdiam toda a inocência e ingenuidade da infância para poder sustentar as famílias. E isto, com outros intervenientes, é tão igual a hoje...

Leituras

Paulo Sousa, 12.05.21

AS CRIANÇAS

E uma mulher que trazia um menino ao colo disse:
- Fala-nos das Crianças.

E ele respondeu:
- Os vossos filhos não são vossos filhos,
são filhos e filhas da própria Vida.

Vêm por vosso meio, mas não de vós;
e apesar de estarem convosco, não vos pertencem.
Podeis dar-lhes o vosso amor; mas não os vossos pensamentos
porque eles têm os seus.

Podeis acolher os seus corpos
mas não as suas almas:
porque as suas almas habitam a casa do futuro
que vós não podeis visitar nem em sonhos. 

Deveis esforçar-vos por ser como eles,
mas não tenteis que sejam como vós.
Pois a vida não anda para trás,
nem se detêm no passado.

Sois os arcos e os vossos filhos
as setas vivas projectadas.

O Arqueiro vê o alvo no caminho infinito
e retém-vos com o seu poder
para que as setas possam voar depressa para longe

Que a vossa tensão na mão do Arqueiro,
seja a da Alegria.

Porque assim como Ele gosta da seta que voa,
também gosta do arco que fica.

 

Khalil Gibran

Sobre a adopção de crianças

Paulo Sousa, 07.12.19

Uma vez no Anti Atlas marroquino vi no chão, a poucos metros de um açougue, uma cabeça de vaca aberta com os miolos destapados. Só após alguns momentos é que deu para entender a origem daquela peça de carne. Se fosse em Serralves seria com certeza uma instalação artística, mas ali à beira de uma estrada empoeirada a dezenas de quilómetros do alcatrão, a explicação teria de ser outra. A minha curiosidade acabou por desencadear uma animada conversa com dois bem dispostos bérberes. Apontaram para os quartos de borrego ali pendurados do lado de fora do estabelecimento e explicaram que a imensidão de moscas das redondezas não resistia aos miolos da vaca e assim deixavam o resto da carne exposta em paz.

Foi exactamente isso que nos aconteceu em 2010. Enquanto o país debatia acaloradamente o casamento gay, o governo acelerava para mais uma falência.

A adopção de crianças por casais do mesmo sexo era, nesse tempo, apenas um assunto no horizonte. Durante a vigência da Troika e enquanto lidávamos com mais uma falência das finanças do Estado, o assunto ficou encostado e só em 2016 é que acabou por ser aprovado.

Há dias o Público noticiou que apesar de nos últimos anos ter aumentado o número de crianças com Necessidades Adoptivas Particulares (NAP) isso não se traduziu num aumento de adopções. E essa é a prova que a alteração à lei de 2016 não foi motivada pela preocupação em dar um lar a quem não o tem, mas apenas por fazer parte de uma check-list de reivindicações dos defensores do direitos LGBT.

Ao mesmo tempo é recorrente ouvir as queixas dos casais candidatos à adopção pela demora de vários anos e pelo cansaço que todo o processo lhes cria, levando a que alguns acabem por desistir. É estranho, e até perturbador, que existam tantas crianças que esperam, desejam e merecem ter um lar e a pertencer a uma família quando, ao mesmo tempo, são tantos os casais que, sem sucesso, as anseiam receber.

No caso Casa Pia vimos até que ponto é razoável desconfiar do Estado, das suas instituições, da suas regras e a que ponto pode chegar a sua aversão ao escrutínio, assim como as suas consequências.

Há dias ouvi numa entrevista radiofónica a alguém que acompanhou de perto esse caso mediático, que os alunos da Casa Pia continuam expostos às mesmas ameaças e que apesar da normal indignação pública que o escândalo gerou na época, a realidade não melhorou significativamente.

Após o debate de 2010 concluí que um dos problemas que impede a agilização dos processos de adopção resulta da necessidade das instituições em terem crianças à sua guarda. Sem crianças deixaria de fazer sentido existirem, e com muito menos crianças muitas delas seriam encerradas. A sua existência, assim como o modo de vida e o emprego de quem lá trabalha seria profundamente abalado. No ponto de vista estritamente pessoal de quem tem o seu ordenado e modo de vida dependente da existência de crianças à sua guarda, uma lei centrada nas necessidades dessas crianças reduziria a população destas instituições e isso seria uma ameaça. Os seus responsáveis quando se manifestam não conseguem ocultar o ar de quem é dono de uma certa realidade. Eles são os entendidos e quem está por fora não sabe do que fala, como será o meu caso.

Este é mais um caso em que o Estado para resolver uma necessidade construiu uma constelação de regras e uma infinidade de procedimentos que, em vez de resolverem, no fundo apenas a ocultaram da opinião pública por via institucional.

Cobardia

Cristina Torrão, 18.08.19

Uma média de 22 crianças e jovens por mês foram vítimas de violência sexual, durante os últimos três anos.

80% das vítimas de violência sexual são meninas.

Mais de metade destes crimes aconteceu no seio da própria família.

Mãe ou pai (19,8%), padrasto ou madrasta (11,7%), avós (5,8%), tios (5,2%), irmãos (2,3%) ou ainda outros familiares (9,3%).

Quando deixaremos de fechar os olhos a estes números assustadores?

Quando serão feitas campanhas de sensibilização e de competência para lidar com a situação, junto de professores, treinadores desportivos, ou outras pessoas que lidam com crianças, incluindo médicos? Porque é esse o grande problema: o fechar os olhos, o ignorar, o não se querer meter em chatices. Na verdade, os adultos que se apercebem ou desconfiam, sentem-se incapazes de lidar com a situação e deixam a criança sem ajuda. Isto é igualmente válido para pediatras! São necessárias campanhas que ensinem a reconhecer os sinais, a saber como agir e a quem se dirigir.

Agredir os mais fracos, ou abusar deles, seja de que maneira for, tem um nome: cobardia.

 

Nota: O artigo citado refere que os casos dispararam nos últimos três anos - pode ter a ver com o facto de que, hoje em dia, se denuncia mais facilmente (digo eu).

Mas as crianças, Senhor

Maria Dulce Fernandes, 04.07.19
Pelo estudo fundamentado dos valores morais que conduzem o comportamento humano em sociedade, diz-nos a ética que a liberdade, igualdade e fraternidade são extrínsecas a todos os homens independentemente da cor, raça ou credo. Já a moral, mais orientada na vertente do cumprimento de regras, tabus e convenções , direcciona a conduta dos indivíduos , determinando no fundo o seu comportamento em sociedade.

 
Se é aceite que todos os homens nascem iguais aos olhos de Deus, não quer por vezes a fortuna que alguns nasçam iguais aos olhos dos homens. Em alguns recém nascidos o reconhecimento das deficiências é imediato, noutros casos as imperfeições ou insuficiências só se revelam com o passar dos anos. O avanço da medicina muito tem contribuído para  a aceitação e integração na sociedade das pessoas que se encontram em desvantagem ; têm novos tratamentos, mais apoios, aprendem ofícios, arranjam empregos , tornam-se parte integrante do meio social.
 
Este intróito serve para contar a história do Gonçalo.
À primeira vista o Gonçalo é um homem catita, nos seus vinte e poucos anos, de altura acima da média, olhos de água,  bem constituído e desembaraçado. A ilusão acaba quando abre a boca escurecida do negro-de-fumo,  e escancara aquele sorriso  cândido  que lhe ficou da Terra do Nunca.

 

O Gonçalo é um menino no corpo de um homem feito e como todos os seres humanos, o Gonçalo tem necessidades, impulsos que não consegue reprimir, dos quais já resultaram duas crianças, cada de sua mãe, e  uma terceira a caminho.
 
Passa a vida em bolandas com processos no Tribunal de Família e Menores pelas exigências contínuas das progenitoras quanto aos montantes das pensões de alimentos,  e sonha um dia o ganhar o poder paternal.
 
Qual é a justiça, para as crianças, fruto deste tipo de relações ? Nada sabem do Génesis nem da multiplicação, não pediram para nascer ! Vão sofrer misérias sem um lar, sem uma família, sem qualquer normalidade na vida.
Para já, são três, mas pelo visto, o número tende aumentar exponencialmente.
 
Não precisa o Gonçalo de mais explicações sobre os métodos de prevenção da natalidade, porque é coisa que ouve todos os dias. Diz-se-lhe, ralha-se ... Ouve, baixa os olhos e sorri travesso e brincalhão como se fosse um catraio apanhado a fazer uma grande tropelia....

Chip Chip

Maria Dulce Fernandes, 01.07.19

 

Chipar ou não, eis a questão

 

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Este ano, vou de férias levando pela primeira vez a minha neta comigo.

Dizer que vou com o credo na boca e já estou a sofrer por antecipação é pouco.

O meu marido, com todo o pragmatismo que sempre lhe assistiu, retorquiu meio ironicamente que poderia chipar a criança, à semelhança do que brevemente terei que fazer aos gatos, que sempre estiveram em casa e que servirá para rigorosamente nada, mas que parece que vai ser legislado em conformidade.

Esta situação traz-me à ideia uma outra, há muito, bem, há algum tempo atrás, tanto quanto cerca de 33 anos, não numa galáxia muito distante, mas já ali ao lado na Rua Duarte Pacheco Pereira, quando me escondi  por detrás de umas árvores a aguardar a partida da carrinha com destino à praia de Sto. Amaro de Oeiras no âmbito da acção escolar Praia e Campo, partindo seguidamente numa corrida desenfreada para a estação da CP de Algés, onde apanhei o comboio para a mesma localidade, apenas com o intuito de espiar.

Espiar, por Deus! Eu a espiar se a minha filha estava bem! Perguntam-me, e bem, se eu não tinha confiança nas educadoras, porque é que a deixei ir?

Porque iam todos. A garota ficaria destroçada se lhe negasse a Praia e Campo! E claro que tinha plena confiança nas educadoras, mas eram apenas três e uma auxiliar para 27 crianças!

Será isto o chamado instinto de maternidade levado ao exagero, ou apenas práticas controladoras de uma mente doentia?

É claro que a auxiliar deu comigo por detrás da banca que vendia panamás e fiquei de cara no chão. Tenho a vaga ideia de me ter furtado em ir ao colégio até ao fim das actividades lúdicas ou seja, até ao final do ano lectivo, não que isso esponjasse o sentimento de vergonha que me assolou.

Não tendo a minha neta idade para telemóveis e não é animalzinho de companhia para o dito chip, tem seguramente idade para uma pulseira GPS infantil.

Por outro lado, mesmo sendo o livre arbítrio coisa que não a assiste com esta idade, mesmo sendo muito opinativa e mais teimosa do que eu, não deixo de pensar que lhe estou a aplicar uma medida de coacção apenas porque quero estar mais sossegada e poder ter tempo de férias para mim também.

Uma questão de amor

Helena Sacadura Cabral, 20.11.15
Não serei muito ortodoxa nas questões de natureza familiar. Chamo de família a uma multiplicidade de formas de vida que não assentam no tripé pai, mãe, filhos. Sempre assumi essa posição e ainda há bem poucos dias escrevi para a EGOISTA um artigo sobre o assunto. 

Hoje foi aprovada na Assembleia da Republica a adopção de crianças por parte de casais do mesmo sexo. Ela já era possível para apenas um dos membros do casal, o que constituia algo de manifestamente estranho.

Se vivemos num país em que o casamento de pessoas do mesmo sexo é permitido, julgo que será muito mais importante do ponto de vista afectivo que uma criança possa estar rodeada do amor de dois pais ou de duas mães, do que viver institucionalizada sem o amor de ninguém.

Sei que esta posição não é politicamente correcta. Sei, também, que essas crianças irão, eventualmente, afrontar a maldade e a discriminação de outras crianças e, até, dos seus pais. Mas prefiro tudo isso - que um dia elas irão compreender - a uma criança reduzida a um número da Segurança Social a viver num orfanato, ou o que lhe queiram chamar, sem um beijo, um abraço, um colo que a ajudem a sentir-se amada!

Por isto tudo, posso perceber que muita gente que eu conheço possa estar muito feliz, não ignorando que muitos outros se possam sentir indignados. É a vida!

Olhares

José António Abreu, 26.07.15

Pode ser apenas a minha leitura (uma distorção que, adiantada a ressalva, julgo coerente com o meu tipo de pessimismo) mas as crianças parecem-me ter um olhar cada vez mais adulto. Ou antes: cada vez mais parecido com o de muitos adultos actuais, começando pelo dos progenitores. Um olhar onde o desejo se cristaliza, se torna permanente em vez de intermitente, e a ameaça da tristeza é submergida pelo pânico do aborrecimento.

 

Adenda: Leiam esta entrevista a Carlos Neto, professor da Faculdade de Motricidade Humana, no Observador; não tem directamente a ver com o olhar das crianças mas, ainda assim, tem tudo a ver.

IPO. Pediatria. Falemos disto (agora já) sem medos

Marta Spínola, 04.02.15

Em dia de luta contra, deixo isto. E um abraço a todos, não só a quem luta, a quem tem alguém próximo que luta, não só aos mais pequenos, a todos, porque todos o tememos de uma forma ou outra e devemos luitar contra o cancro.

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Eu - como tanta gente - pensei muitas vezes o que seria a pediatria num sítio como o IPO. Todos queremos distância de tal sítio - do IPO todo, não só da pediatria - por todos os motivos e mais algum, se a pudermos ter. Nunca tinha lá entrado, nunca tive de lá ir. 

Ouvi muitas vezes e provavelmente também o terei dito que a ala pediátrica devia ser dura, que voluntariado sim mas ali não. Falamos muito, nós. 

O ano passado dei comigo a ir ao IPO com uma criança de pouco mais de um ano, a Carlota. Acompanhei dias de análises, consultas e exames e várias horas de espera de resultados, quer no Hospital de Dia quer no piso do Serviço de Pediatria. Vi crianças em tratamento, umas pacientemente à espera do fim, outras mais agitadas. Vi pais mais resistentes que outros, vi pais permitirem-se um desabafo lá fora para aguentar mais um pouco junto dos filhos. 

Testemunhei como o pessoal é dedicado e orientado para as crianças, vi os doutores palhaços acocorados cantar para a Carlota enquanto ela comia e não sabiamos se a sopa ía ficar ou voar no minuto a seguir. Não é um mundo de que se queira fazer parte, mas estando lá as coisas são feitas para que seja o nosso mundinho enquanto for necessário. E bem. E é.

Não, nunca me "fez impressão", no dia em que entrei pela primeira vez no Hospital de Dia o drama da minha cabeça foi-se. Não por não ser dramático o que lá se passa, naturalmente que é, mas o meu drama e o de tanta gente estava deslocado, não era por ali.

Vi muitas crianças, muitas. Uma que fosse já era demais, mas vi várias. E foi ao ver estas crianças que percebi como quando dizemos que não éramos capazes não podíamos estar mais longe da verdade. Eu acredito que muita gente não fosse capaz de ali estar, respeito a resistência de cada um. Mas passa-se a porta e não é sobre nós, passa a ser sobre eles. Comigo foi automático, sem esforço. Entrei e ali contavam só aquelas crianças, eu não, não as impressões, não os dramas de conversas ditas sem saber na pele sobre as coisas. Eu poderia eventualmente ajudar no que pudesse e não atrapalhar. A Carlota e os outros meninos é que importavam ali dentro.

Outra coisa de que as pessoas têm receio é de ver crianças em sofrimento. É claro que haverá níveis e casos para tudo, é claro que em pediatria há pré-adolescentes e é bem diferente com eles, sentem tudo de outra forma e torna-se mais duro nesses casos, admito. Mas muitas das crianças que vi temiam as "picas" - viam um enfermeiro e de beicinho queixavam-se "não... tu dás pica" (e o meu coração desfazia-se mais um bocadinho) ou de tirar adesivos, do repelão na pele. Isto comoveu-me de uma maneira que não sei explicar, problemas tão piores as levavam ali mas os medos delas são muitas vezes estes. A verdadeira e mais pura inocência. A mesmo inocência que as faz pedir aos pais para irem mais cedo e poderem ir brincar no Lions antes das análises, exames e tratamentos. 

O meu fantasma de fazer voluntariado num lugar assim foi-se. Não seria fácil, não tenho essa ilusão, mas hoje sei que teria a força que um dia achei não ter. Eles não choram o que lhes aconteceu, quem sou eu para me sentir fraca perante isso?

 

Originalmente publicado aqui.

E as crianças, Senhor?

Ana Vidal, 27.10.13

Teletrauma

Ana Vidal, 07.05.13

 

Há coisas que não percebo. Em vez de proibirem as suas criancinhas de levar telemóveis para um exame - por iniciativa própria e sem que sejam precisas recomendações exteriores, como seria lógico e natural - os pais dos alunos que fizeram hoje o exame do 4º ano vêm para a televisão insurgir-se contra o terrivelmente traumatizante pedido de assinatura de um papel que garante que os meninos não estão a conversar com os amigos em vez de estarem concentrados no exame. Insurgir-se, no fundo, contra a introdução das primeiras e utilíssimas noções de responsabilidade, ética e compromisso nas mentes dos filhos.

 

Esta nova forma de educar (ou de não educar, mais precisamente) com base no pressuposto de que tudo traumatiza as crianças, deixa-me seriamente preocupada. Primeiro, porque cria gerações sucessivas de florzinhas de estufa que não podem ser contrariadas nem suportam qualquer espécie de autoridade, o que as deixa totalmente impreparadas para o que vão enfrentar na vida real. Depois, porque torna quase insuportável o trabalho dos professores, desautorizados por um muro acusatório constituído por alunos mal educados e pais incapazes de autoridade que os apoiam incondicionalmente, tenham ou não razão. Finalmente, porque não vejo este excesso de protecção aplicado depois a outras frentes, como por exemplo à enorme exposição a que essas mesmas crianças estão sujeitas com a net, a televisão, a "noite" precoce, etc. Seria bom que estes pais pensassem um pouco mais em tudo isto, em vez de saltarem escandalizados, com acusações que não têm pés nem cabeça, para o microfone que a voraz media lhes estende à porta da escola.

 

A explicação

Patrícia Reis, 24.03.12

A pergunta era a de sempre: se estamos em crise, como é que vamos fazer?

Os miúdos não são parvos. Não se deixam enganar por anúncios ou coisas dessas.

Querem saber as razões das coisas e, para isso, precisam de respostas que não sejam, passo a expressão, da treta. Não vale a pena mentir.

Vivemos em democracia há menos tempo do que vivemos num regime totalitário. A democracia, sendo o melhor dos regimes como dizia o outro (que também foi jornalista e levou pancada, há muitos anos), é hoje um conceito altamente questionável. Quem nos governa são os mercados, não são os 200 mil que podem ser eleitos por estar integrados numa estrutura partidária ou os outros - poucos - que se dizem independentes mas que encaixam nas mesmas estruturas. Basta isto para que se perceba que a democracia é mesmo muito relativa. Adiante, para não meter na cabeça dos miúdos coisas que podem levar a mais perguntas, a ideia foi a de dizer que temos de fazer o melhor possível sem abdicar dos nossos sonhos, já que estão na idade para isso. E que ninguém sabe o que é o futuro, logo podem escolher a área que quiserem, o curso que entenderem, ou não. Ir para a universidade não é uma obrigação, não está na lei como um dever. Há outras possibilidades. Dirão que este é um discurso que as mães não devem ter. Quero lá saber. Sei que mais de 50 mil licenciados saem directos para o desemprego ou - pior - para um call center qualquer a ganhar o ordenado mínimo. Por isto e outras coisas, se um dos meus filhos quiser ser carpinteiro, pois faça o favor. Ou palhaço, ou canalizador ou outra coisa qualquer incluíndo limpa-chaminês ou limpa aquários.  Nenhum disse uma palavra. Até ao momento em que o mais pequeno quis saber se eu ficaria triste se ele trouxer para casa, agora no fim do período lectivo, uma negativa a ginástica por não saber fazer o pino, a roda ou a cambalhota para a frente ou para trás com saída perfeita, sem mãos. Sorri. O outro disse: esquece isso, meu, nem no Governo ou na Troika há um tipo que saiba fazer isso e não lêem o que tu lês. Boa resposta? Belíssima. Venha a negativa que a malta fará dela uma medida de riso em vez de austeridade.

Mundo cruel

Helena Sacadura Cabral, 13.01.12
 
"...Na Grécia, há cada vez mais famílias a abandonar os filhos. Deixam-nas à porta de igrejas, na escola, em instituições de solidariedade, entregam-nas para adopção. Dizem que não as podem sustentar. Não estamos a falar de cães abandonados por famílias que já não conseguem pagar a ração (o que também é uma dor). Não. Estamos a falar de crianças. Crianças a serem abandonadas. Famílias desfeitas, empobrecidas, a desfazerem-se das suas crianças.
Crianças abandonadas com um papel da mãe a pedir desculpa, a pedir que tratem bem da sua cria, a justificar que já não tem como continuar com ela.
Doloroso, doloroso.
Que desespero não está por trás de um gesto destes?
Nem consigo pensar numa coisa assim. Eu morria.
 
(foto e texto aqui)

Na na na, vocês não estão a fazer isto bem

Rui Rocha, 31.08.11

Ontem anunciaram que o aumento do número de crianças por sala permitirá criar 20 mil novas vagas nas creches. É, claro, uma má medida. Todos sabemos que as crianças precisam de espaço e vistas largas. Para estreitezas bem basta o pouco tempo que passam em casa, confinados à cadeirinha, enquanto o pai vê o Benfica, assim o nevoeiro o permita, a mãe actualiza conhecimentos no Facebook e o irmão de seis anos estuda com a profundidade necessária todas as potencialidades da Wii. Por isso, não admira que os corações dos progenitores se apertem em sofrimento perante a antevisão de pilhas de crianças amontoadas, partilhando, com evidente falta de privacidade, babas, ranhos e, tremam os pilares da psicologia infantil, os arrotos que se seguem à sopa passada. E que o pequeno Rúben se desfaça em pranto. Na verdade, só não chora quem não tem coração. Vocês tentam, mas ainda não estão lá, é o que é. Falta a essas almas empedernidas uma fina capa de sensibilidade social. Um polimento final em esmerado eduquês. Uns ornamentos de destreza estatística. Um certo amor pelo estado social. Explico-vos como se faz (atentos, que não duro sempre):

Lucrécia Algodãodoce, Presidente da Comissão do Livro Arco-íris para a Compreensão dos Estados de Alma da Primeira Idade e Promoção da Felicidade Infantil, apresentou as conclusões preliminares do trabalho desenvolvido nos últimos meses a pedido do governo. A Investigadora, licenciada em Estudos da Criança pela Escola Superior de Educação de Cabeça Gorda e doutorada em Serviço Social e Geriatria (isto dá jeito, porque podem usar a mesma pessoa quando tiverem que tratar da questão dos velhotes) pela Universidade de Wayne Bridge, afirmou que o estudo permitirá adoptar, a curtíssimo prazo, um conjunto de best practices educativas que colocarão Portugal na vanguarda dos sistemas e equipamentos sociais de apoio às famílias e às crianças, bilu bilu bilu. Avançando algumas conclusões do trabalho efectuado, a investigadora afirmou que todos os estudos recentes apontam no sentido da necessidade de uma maior proximidade entre as crianças e que esta deve ser assegurada logo a partir do berçário. O contacto físico e visual entre os bebés, cuchi cuchi cuchi, promove e reforça laços de afectividade e  promove uma socialização precoce, potenciando estratégias e abordagens educativas ricas e diferenciadas de estruturação da socio-afectividade infantil, quem é lindo quem é. Face a estas conclusões, Lucrécia Algodãodoce acrescentou que a Comissão a que preside formulará uma forte recomendação ao governo no sentido de aumentar significativamente o número de crianças em cada sala: "a sociedade deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance para assegurar um desenvolvimento saudável, harmonioso e equilibrado aos nossos filhos".

Uma medida muito diferente, como se vê. E que, por isso, não provocaria choro e ranger de dentes, mas Catarinas e Franciscos sorridentes e confiantes no futuro.

  

Blogue ou vala comum?

João Carvalho, 15.06.10

Usar isto não é apenas distorção, porque prova coisa nenhuma sobre as obscuras intenções de um autor qualquer. É deformação, porque uma criança não é o mesmo que um soldado. Fica-se sem saber se naquele blogue os direitos das crianças da nossa rua devem ou não ser iguais aos das crianças lá longe.

Parece que não, porque naquele sítio também se cantam louvores reverentes a Estaline e Mao, que nunca foram de perder tempo com as crianças destinadas às valas comuns.

Panteras ao ataque

João Carvalho, 07.06.10

«Neste momento, a lei da adopção é uma questão fundamental. É incrível como a nível familiar não são reconhecidas as duas mães a uma criança» – diz Sérgio Vitorino, das "Panteras Rosa", e transcreve aqui o Sérgio de Almeida Correia. Não sei quem são as "Panteras Rosa" e o Sérgio Vitorino, mas posso imaginar. E vou fazer uma coisa que não é muito meu hábito, que é ajudar o Pantera Rosa a guardar os disparates na sua privacidade.

A nível familiar – para usar as palavras do Pantera – não são reconhecidas as duas mães porque ninguém tem duas mães. Tal como foi reconhecido o casamento homossexual, até pode ser que venha a ser consagrada institucionalmente a adopção de crianças por casais do mesmo sexo. Pode ser. Mas é institucionalmente, legalmente; não é «a nível familiar», como o Rosa quer. A nível familiar, uma criança tem sempre um pai e uma mãe, perto ou longe, vivos ou mortos. E tem o supremo direito de saber quem são.

Portanto, se é duvidoso chamar "casamento" à união de duas pessoas do mesmo sexo, é muito mais melindroso educar uma criança, cujos direitos devem merecer protecção especial, no erro impossível de que tem duas mães ou dois pais, deixando-a descobrir mais tarde que andou a ser enganada «a nível familiar».

É imperdoável centrar o assunto deste modo, é inacreditável vir à praça pública declará-lo e é inaceitável manifestar tanto egoísmo, quando o foco de todas as atenções tem de continuar a estar nas crianças. Felizmente, com abordagens como a do Rosa, o debate destas coisas mantém-se longe do fim. Por isso é que eu digo ao Sérgio Vitorino, seja ele quem for:

— Ó Pantera, um passo de cada vez, sim? Até porque pode ser conveniente dar um passo atrás, de vez em quando.

Crianças quê?

João Carvalho, 29.10.09

Espero não estragar a bem apanhada série do Pedro Correia sobre expressões intragáveis, mas não resisto a dar conta de uma que mexe comigo e que se ouve cada vez mais: «crianças institucionalizadas». Deve ser outro tique que entrou no 'linguajar da moda' – e, como se sabe, há palavras e expressões que, ditas hoje em dia por meia dúzia de cabecinhas com direito a tempo de antena, passam a ser ditas pela carneirada toda.

Chamar «crianças institucionalizadas» às crianças que a vida largou ao abrigo do Estado e de instituições de protecção de menores é mais do que consagrar uma chancela estúpida: é recorrer a uma definição execrável e espalhar um estigma de muito mau gosto. Ainda pior quando é usada tantas vezes por mulheres, até por mulheres que são mães e que também são responsáveis por instituições dessas. Será que estas também são "mulheres institucionalizadas"? E os velhos que acabam colocados em lares e instituições do género também são "idosos institucionalizados"? E os pobres que se lavam, se vestem, comem e dormem em instituições de apoio à pobreza chamam-se "carentes institucionalizados"?

Passo-me com esta gente, que devia ser afastada e reenviada para o anonimato. Não o dizem por mal? Então parem um momento e habituem-se a pensar, antes de abrir a boca para debitar o mesmo que ouviram aos outros geniozinhos bacocos.