O trabalho
Belém em 1977 era uma confusão
Aprendi o significado da palavra trabalho ainda não completara 18 anos, aceitando o posto de “Menina da Caixa” num estabelecimento comercial, enquanto uma das meninas da caixa convalescia de uma cirurgia ao coração, a outra encetara os três meses da chamada “Baixa de Parto” e eu, aborrecida e sem ter o que fazer, lia, pintava, costurava, enfim, aguardava a chamada para um ano de Serviço Cívico, que nunca chegou a acontecer. Imediatamente a seguir à chegada da liberdade, chegou também o exagero. O grande prémio por ter queimado as pestanas anos a fio, para garantir média de entrada na Universidade, foi uma mancheia de nada. A média desceu para 9,5 valores e todos os detentores dessa média podiam entrar. Quando chegou a minha vez, as universidades, escolas e institutos superiores estavam a rebentar pelas costuras, e para que a educação não colapsasse totalmente surgiam peregrinas ideias para suster os acessos ao ensino superior. Tocou-me o Serviço Cívico e a seguir o Ano Propedêutico.
Foi durante o tempo do suposto Serviço Cívico que comecei a trabalhar. Era um serviço com grande responsabilidade, era bastante básico, mas era perto de casa, dava para passar o tempo ocupada e pagava bem, porque eu falava três línguas. Os meus colegas eram todos homens. As mulheres, que as havia aos molhos e muitas delas eram os elementos-chave do negócio, estavam bem escondidas das pessoas que nos visitavam. Só se viam pontualmente as senhoras que faziam a manutenção e higienização do estabelecimento.
Entrei, portanto, num mundo de homens, e de homens muito diferentes daqueles com quem estava habituada a conviver. Eram brutos e essencialmente ignorantes. Não encontrei um único que tivesse lido um livro. Falavam mal, escreviam mal… mas já trabalhavam ali há uns anos. Tinham vindo directamente das aldeias que os viram nascer, assim que completavam a quarta classe. Eram crianças sem infância que chegavam, alguns apenas com a roupa do corpo e eram largadas numa plataforma em Sta. Apolónia, onde alguém da terra os esperava e encaminhava a um quarto com quatro ou cinco camas, que lhes dava direito a dormida e banho, liquidável no final de cada mês. Depois mostravam-lhes os locais de trabalho, onde um gerente com cara de poucos amigos lhes entregava a farda, explicava o que se esperava deles e lhes falava dos horários e ordenados. Depois das despedidas ao futuro chefe, com toda a reverência, o amigo conterrâneo indicava-lhes um restaurante onde, mediante o pagamento de uma quantia estipulada, liquidável no final de cada mês, poderiam comer almoço e jantar, e que constava num prato que não era à escolha, sopa água e pão. Mas era unânime ouvir dizer que serviam bem.
E pronto. O amigo conterrâneo ia à vida dele, e os miúdos de 13 e 14 anos, ficavam entregues a si próprios e aprendiam da vida, uns com os outros, para o bem e para o mal, e faziam-se homens. Sobrava-lhes cerca de metade do que recebiam líquido, e dessa metade, metade era para "mandar para a terra".
Tenho consciência de que foi ali que aprendi o que é ser diferente. Era mulher, privilegiada, inteligente, bonita e era amesquinhada sempre que possível, para o gáudio geral, só porque sim. Eram uns autênticos trogloditas, mas a vida não lhes ensinara outra coisa. Pensei desistir muitas vezes, mas como dos fracos não reza a história, lá fui bebendo o fel do meu cálice e continuei, com a ajuda dos patrões, que me deram horários para estudar. Completei o Ano Propedêutico, o Instituto Alemão e entrei em Direito já com quase 21 anos. Casei com 22 anos e não terminei o curso. Não lamento.
Quando aprendi o significado da palavra trabalho, os trabalhadores eram rapazes e raparigas que compunham a mão-de-obra nos grandes centros urbanos no nosso país, antes e depois do 25 de Abril, não nos chegavam de fora do país, mas teria sido praticamente o mesmo se tivessem vindo da Indochina, numa jangada. A procura de mão de obra trouxe crianças impreparadas para a vida, do Portugal ignoto para a cidade que desconheciam e onde perdiam toda a inocência e ingenuidade da infância para poder sustentar as famílias. E isto, com outros intervenientes, é tão igual a hoje...