Ser Família
A minha tia Xita, na carreirinha dos nove irmãos, ocupava o terceiro lugar na cronologia dos nascimentos, logo a seguir à minha mãe. Nos nossos corações concorria claramente a um lugar cimeiro no pódio. Porque nos oferecia enormes caixas de chocolates, envoltas em farfalhudos laços dourados selados com o timbre inconfundível da Casa Pereira, porque no Natal era quem se encarregava de arranjar um bolo-rei do tamanho de uma roda de autocarro e porque nunca se esquecia de meter no correio um cartão por ocasião dos nossos anos.
Por tudo isto e, sobretudo, porque era uma tia solteira. Nós gostávamos dela porque ela gostava muito de nós e não tinha mais ninguém.
Ao longo dos anos, e à medida que o tempo a foi deixando mais roliça, não havia Natal em que o prato forte não fosse observar meticulosamente a sua indumentária. Ora porque aparecia com um vestido amarelo-canário com um folho transversal que acentuava os quilos acumulados no ano transacto, ora porque se lembrava de cobrir os ombros com lenços cheios de ilustrações de ramagens e espingardas antigas (sussurrávamos nós que era a mais fina expressão do seu lado bélico). Batom sempre muito, e em cores garridas, a deixar marcas duradouras nas bochechas dos sobrinhos.
Quando fui viver para os Estados Unidos, a primeira carta que recebi foi sua. E, à medida que fomos trocando correspondência (do lado dela, com farto uso dos cartões de artistas amputados que pintam com a boca), descobri que aquela tia solteirona tinha um extraordinário sentido de humor e uma visão muito perspicaz sobre os assuntos mundanos.
Ás tantas, lá por alturas de ficar adulta, com tristeza percebi que as gargalhadinhas estridentes desta tia, que nos entravam pela porta de casa num laivo de suprema alegria, não eram um simples traço de personalidade. Umas vezes eram consequência de uma medicação mal doseada, outras vezes eram sinal de falta de medicação. Descobri, nem sei bem quando, que a tia Xita não era simplesmente um bocadinho pílulas, era mesmo doente. Mas nós continuámos a gostar dela. Porque ela gostava muito de nós e não tinha mais ninguém.
Aqui há uns anos a sua saúde foi-se deteriorando a acabou por ter de ir viver para um lar. Continuámos, no entanto, a receber regulares cartões na caixa do correio. Ás vezes com uma letra muito trémula.
Um dia a minha prima Filipa, que vive na Covilhã, veio a Lisboa e foi visitá-la. Como não a via há algum tempo ficou muito impressionada com o seu estado e perguntou no lar se não seria melhor chamar um padre para lhe administrar os últimos sacramentos. Responderam-lhe que achavam excessivo, que a tia ainda ali estava para lavar e durar. Suponho que tenha ficado incomodada porque no dia seguinte, voltou lá e, mediante a falta de alguém mais qualificado, resolveu rezar um terço ao seu lado.
A tia morreu na noite seguinte, a dormir, com setenta e qualquer-coisa anos. Acredito piamente que esperava apenas que alguém lhe oferecesse um momento de oração para se despedir.
Não foi muito conveniente para os sobrinhos, já que isto se passou em pleno Agosto e todos gozávamos dias de férias pelos quatro cantos de Portugal. Mas viemos todos, porque gostávamos dela, porque ela gostava de nós e porque somos tudo o que teve. E isso é ser família.
Querida tia Xita.