Elogio da crónica
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Tenho pena que as crónicas estejam a desaparecer das páginas dos jornais. Habituei-me desde muito novo a ler alguns dos melhores cronistas da imprensa portuguesa – numa época em que a crónica era um género imprescindível.
Lia textos do Pedro Alvim, do Rodrigues Miguéis, do Baptista-Bastos, do Carlos Pinhão, do Abelaira, do O’Neill e da grande Alice Vieira sempre com uma ponta de deslumbramento. Era uma prosa diferente da escrita impessoal das notícias: paginada de modo especial e com um tom coloquial que não se vislumbrava noutros locais dos periódicos – estabelecendo um clima de convivência quase íntima com o leitor. Através dos anos, fui mantendo o meu interesse pela crónica, frequentando diversos autores – de Miguel Esteves Cardoso a Pedro Mexia, passando por Ferreira Fernandes e António Lobo Antunes.
Vou também praticando o género, sempre que posso: é a disciplina jornalística que mais se aproxima da literatura. Tenho pena de vê-la à beira da extinção, substituída pelo comentário anódino e sensaborão ou pela fatigante “análise” política que muitas vezes não é mais do que um mero piscar de olho a “fontes” de circunstância. Esquecendo por completo o leitor.
Ao menos no Brasil o género está bem vivo e recomenda-se. Há mesmo quem reclame por lá a paternidade brasileira da crónica, que gerou verdadeiros autores de culto – de Rubem Braga a Luís Fernando Veríssimo, de Carlos Drummond de Andrade a Arnaldo Jabor, de Nelson Rodrigues a Millôr Fernandes, de Fernando Sabino a Roberto Pompeu de Toledo. É um prazer ler o português revigorado destas crónicas brasileiras, de ontem e de hoje.
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Nos anos 50 e 60, os cronistas no Brasil eram uma tribo calorosa e solidária, como relata Humberto Werneck, organizador da excelente colectânea Boa Companhia: Crónicas, editada em 2005 pela Companhia das Letras. A tal ponto que, quando chegava a crise de inspiração, a mesma ideia servia de mote a diferentes cronistas forçados à rotina diária. Fernando Sabino, que escrevia em O Jornal, do Rio de Janeiro, relata o episódio da queda de um edifício na cidade, que originou uma troca de impressões à mesa de um bar com Rubem Braga (cronista do Diário de Notícias, também do Rio) e Paulo Mendes Campos (que mantinha uma crónica no Diário Carioca). No dia seguinte, “por coincidência”, as três crónicas tinham estes títulos: “Mas não cai?”, “Vai cair” e “Caiu”.
Melhor ainda é outro episódio que dois deles protagonizaram. Rubem, com falta de ideias, solicitou sem cerimónia uma crónica “emprestada” a Fernando Sabino, que foi à gaveta e passou-lhe a história de um garoto que pedia esmola para comer uma sopa, por um cruzeiro, numa casa de pasto. Intitulava-se O preço da sopa. O outro publicou-a alterando três pormenores: o garoto foi a um restaurante, a sopa custou cinco cruzeiros e a crónica passou a chamar-se simplesmente A sopa. Uns tempos depois, chegou a vez de Sabino pedir idêntico favor a Rubem Braga, que entendeu devolver-lhe a história da sopa. Que lá voltou a ser impressa, com a assinatura de Fernando Sabino e dois novos ingredientes: a sopa já custava dez cruzeiros e o título era Esta sopa vai acabar. E acabou mesmo...
Fragmentos deliciosos de um tempo que parece tão irremediavelmente distante do nosso.