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Delito de Opinião

Elogio da crónica

Pedro Correia, 23.11.20

 

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Tenho pena que as crónicas estejam a desaparecer das páginas dos jornais. Habituei-me desde muito novo a ler alguns dos melhores cronistas da imprensa portuguesa – numa época em que a crónica era um género imprescindível.

Lia textos do Pedro Alvim, do Rodrigues Miguéis, do Baptista-Bastos, do Carlos Pinhão, do Abelaira, do O’Neill e da grande Alice Vieira sempre com uma ponta de deslumbramento. Era uma prosa diferente da escrita impessoal das notícias: paginada de modo especial e com um tom coloquial que não se vislumbrava noutros locais dos periódicos – estabelecendo um clima de convivência quase íntima com o leitor. Através dos anos, fui mantendo o meu interesse pela crónica, frequentando diversos autores – de Miguel Esteves Cardoso a Pedro Mexia, passando por Ferreira Fernandes e António Lobo Antunes.

Vou também praticando o género, sempre que posso: é a disciplina jornalística que mais se aproxima da literatura. Tenho pena de vê-la à beira da extinção, substituída pelo comentário anódino e sensaborão ou pela fatigante “análise” política que muitas vezes não é mais do que um mero piscar de olho a “fontes” de circunstância. Esquecendo por completo o leitor.

Ao menos no Brasil o género está bem vivo e recomenda-se. Há mesmo quem reclame por lá a paternidade brasileira da crónica, que gerou verdadeiros autores de culto – de Rubem Braga a Luís Fernando Veríssimo, de Carlos Drummond de Andrade a Arnaldo Jabor, de Nelson Rodrigues Millôr Fernandes, de Fernando Sabino a Roberto Pompeu de Toledo. É um prazer ler o português revigorado destas crónicas brasileiras, de ontem e de hoje.

 

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Nos anos 50 e 60, os cronistas no Brasil eram uma tribo calorosa e solidária, como relata Humberto Werneck, organizador da excelente colectânea Boa Companhia: Crónicas, editada em 2005 pela Companhia das Letras. A tal ponto que, quando chegava a crise de inspiração, a mesma ideia servia de mote a diferentes cronistas forçados à rotina diária. Fernando Sabino, que escrevia em O Jornal, do Rio de Janeiro, relata o episódio da queda de um edifício na cidade, que originou uma troca de impressões à mesa de um bar com Rubem Braga (cronista do Diário de Notícias, também do Rio) e Paulo Mendes Campos (que mantinha uma crónica no Diário Carioca). No dia seguinte, “por coincidência”, as três crónicas tinham estes títulos: “Mas não cai?”, “Vai cair” e “Caiu”.

Melhor ainda é outro episódio que dois deles protagonizaram. Rubem, com falta de ideias, solicitou sem cerimónia uma crónica “emprestada” a Fernando Sabino, que foi à gaveta e passou-lhe a história de um garoto que pedia esmola para comer uma sopa, por um cruzeiro, numa casa de pasto. Intitulava-se O preço da sopa. O outro publicou-a alterando três pormenores: o garoto foi a um restaurante, a sopa custou cinco cruzeiros e a crónica passou a chamar-se simplesmente A sopa. Uns tempos depois, chegou a vez de Sabino pedir idêntico favor a Rubem Braga, que entendeu devolver-lhe a história da sopa. Que lá voltou a ser impressa, com a assinatura de Fernando Sabino e dois novos ingredientes: a sopa já custava dez cruzeiros e o título era Esta sopa vai acabar. E acabou mesmo...

Fragmentos deliciosos de um tempo que parece tão irremediavelmente distante do nosso.

Quando Rodákino ofendeu Deméter - o mito que faltava

Paulo Sousa, 15.07.20

Há muitos muitos anos, no tempo em que os deuses gregos dividiam o seu tempo entre divinas companhias no Olimpo e os locais habitados pelos humanos, existiu um talentoso preparador de refeições chamado Rodákino.

A sua arte na elaboração de comida era de tal forma distinta que ele achava ser um desperdício cozinhar apenas para si próprio. Começou por isso a servir comida também para quem passava perto do seu casebre.

O seu talento começou a ser comentado nas redondezas e, com o tempo, o inseguro carreiro que levava os transeuntes até à sua mesa tornou-se num muito pisado caminho.

A satisfação e surpresa de todos quantos lá comiam era geral e Rodákino ruborescia com tantos elogios.

Um dia ao misturar ingredientes nunca antes experimentados criou algo que, se lhe desse a devida forma, podia parecer-se com um fruto. Começou por isso a ensaiar diferentes formas. Estava a ensaiar uma quase esférica, mas ainda não tinha chegado a algo que o satisfizesse, e estando já a imaginar qual seria o seu revestimento, pensou para si que nem Deméter, a deusa da fertilidade e das colheitas, filha de Cronos, irmã de Zeus, e mãe de Perséfone - a criadora das estações do ano - alguma vez conseguiria tal combinação.

Como é de todos sabido, os deuses gregos não ficavam indiferentes perante afrontas que lhe ferissem o orgulho, especialmente vindas de meros humanos. Por mais talentoso que Rodákino fosse nunca impunemente se poderia atrever a achar que a sua arte ultrapassava as capacidades divinas da própria Deméter.

Estava Rodákino a ultimar a sua obra-prima quando ouviu passos a pisar o caminho. Alguém bateu à porta. Uma senhora com ar distinto perguntou-lhe se tinha alguma coisa que se comesse.

Ele, querendo agradar a tão distinta senhora e mesmo ainda não tendo terminado a sua maravilha, não resistiu e disse:

- Prove esta minha novidade. Nem Deméter no Olimpo conseguia um prodígio destes!

Nesse momento a distinta senhora transfigurou-se e Rodákino entendeu que a sua imodéstia tinha ofendido a própria deusa.

No seu último instante na forma humana, o prendado experimentador insistiu que ela provasse o petisco. Ela, irada, transformou-o numa bola de madeira.

Ainda furiosa, e antes de regressar ao Olimpo, Deméter foi vencida pela curiosidade e acabou por provar algumas das muito imperfeitas esferas que ali estavam na mesa.

Quando as trincou ficou algum tempo sem conseguir dizer nada. Era de facto algo maravilhoso. Nem se preocupou que as suas vestes tivessem ficado tingidas pelo sumo que espirrou de algo que por sua vontade passaria a ser um fruto de pleno direito.

Em homenagem ao seu criador, que nesse momento era apenas uma bola de madeira, Deméter fez com que no centro de tal fruto existisse para sempre uma bola de madeira.

Ainda levou alguns dos restantes consigo para o Olimpo. Com receio de os perder, abraçou-os com tal vigor que se tornaram aveludados como aveludada era a pele de Deméter.

O fruto, esse, passaria a chamar-se rodákino (ροδάκινο), que em grego quer dizer pêssego.

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Somos os sonhos que temos?

Paulo Sousa, 01.02.20

A cena passa-se de noite numa viagem para sul rumo a Lisboa feita no início de mais um fim-de-semana.

A A8 foi sempre um troço propício a incidentes, e isso repetiu-se connosco. A meio de uma ultrapassagem, uma sombra repentina apareceu pela esquerda baixa e sacudiu toda a viatura levando a que todas a luzes vermelhas do painel de instrumentos se acendessem. Entendemos de imediato que tínhamos acabado de enviar um cão para junto do criador e que com ele tinha seguido o nosso radiador.

É vulgar dizer que os portugueses têm sempre sorte e por isso, afortunadamente, ainda conseguimos chegar à estação de serviço umas centenas de metros depois.

Ligamos à assistência em viagem e ficamos a aguardar pelo socorro. O reboque chegou e levou carro de regresso a casa. Nós insistimos para sul, de táxi.

Não fosse o taxista que nos calhou e teria sido apenas mais um episódio rodoviário.

A viagem ainda demorou mais de meia hora e no início desta segunda etapa esgotamos rapidamente a conversa de circunstância. Logo depois, e foi isso que tornou esta viagem memorável, o nosso choffeur de praça, como se dizia na minha infância, lamentou-se do seu ofício e começou a falar-nos da sua paixão.

Tinha trabalhado durante algum tempo numa loja de tintas e aí descoberto que afinar cores era o que mais gostava de fazer na vida.

Perguntou-nos a cor do nosso carro. Cinzento, disse-lhe. Mas de que marca? Epá, essa marca tem dois cinzentos diferentes. Desconhecia... está bem.

Soubemos que sabia de memória a proporção dos corantes necessários para a maior parte das cores do nosso dia-a-dia. O antigo tejadilho verde dos táxis tinha sido um quebra cabeças revelado apenas uns dias antes da loja onde trabalhava ter fechado. Mas havia muitas mais. O laranja da Galp era diferente do do PSD, o verde da BP e o do SCP ficavam a quilómetros de distância e o preto dos táxis antigos era diferente do preto dos carros funerários. A cor dos táxis modernos era fácil de afinar e depressiva de ver. Quando conduzia durante a manhã entretinha-se a imaginar como afinaria, minuto após minuto, hora após hora, as mudanças da cor do céu. À tarde continuava a folhear mentalmente as páginas do pantone e mantinha o exercício até ao pôr do sol. E mesmo no breu da noite, em cada cruzamento, encontrava novos desafios.

Bom jornalismo

Pedro Correia, 27.04.19

A propósito de um vulgar carioca de limão (agora, pelos vistos, nada vulgar), pode nascer um boa crónica jornalística. Esta, de Marta Reis no jornal i, intitulada precisamente "Era um carioca de limão". Que nos conta uma história e nos apresenta ao mesmo tempo um quadro impressivo da realidade lisboeta. De um quotidiano onde uns hábitos se ganham e outros se perdem, onde umas tradições vão morrendo e um consumismo de importação vai ganhando raízes.

Isto numa linguagem acessível e escorreita, em que todas as palavras estão no seu lugar e em que nada fica por entender. Algo cada vez mais raro nos dias que correm. Pode parecer simples? Pode. Mas não é.

Da saudade

Joana Nave, 12.02.18

Saudade, não da dor que perdurou, até que o tempo a disfarçou com dias de sol e conversas animadas, onde os risos tomaram o lugar da amargura. Saudade de um dia ter tido o que hoje não volta, de ter sentido o que hoje é apenas fragmento de uma memória eterna. É um sentimento atroz este que nos persegue por toda uma vida, que é um rasto que deixamos e que nem os muitos ventos apagam, que se faz sombra para sempre e que reside naquele cantinho secreto da memória, onde guardamos as lembranças ténues da vida singular que sonhámos ter. Tudo o que nos marca profundamente reside em nós até deixarmos este mundo, e talvez até depois continue a acompanhar a nossa alma. Saudade de ter sonhado e hoje a realidade se apresentar tão distinta, tão mais cruel. Saudade da inocência que alimenta o desejo de sermos o que sonhamos, de acreditarmos que podemos mudar o mundo, concertando o que está mal. E agora que acordo para o dia que se me apresenta, invade-me um misto de raiva e desalento, por não ter forças para mudar nada do que está terrivelmente errado.

A vida dos outros

Joana Nave, 05.02.18

Quando olho pela janela imagino o que se passa do outro lado de cada vislumbre que avisto. As pessoas que passam apressadamente, os animais que vagueiam em busca de alimento, as luzes que revelam famílias reunidas em torno de uma mesa, os bancos de jardim onde alguém se senta a descansar, as esplanadas onde copos vazios se acumulam, depois de refrescarem as bocas sedentas que riem e aplaudem o sol de Inverno que os aquece. Vejo tanto coisa e prendo-me no instante que passa, no momento que capto por entre o vidro límpido, sem reflexo. São vidas comuns, singulares, com as suas pequenas vitórias, mediadas por alguns fracassos. Detenho-me um pouco mais num jovem casal, ambos com ar sisudo, parecem não ter grande prazer em estar juntos. Ela percorre o telemóvel com o dedo, ele fuma distraidamente. O empregado de mesa surpreende-os com dois cafés. Ele esboça um esgar de agradecimento, ela não tira os olhos do ecrã. Entretanto, o sinal muda para verde e o carro arranca, prosseguindo a sua marcha. Relembro aquele jovem casal... Ou são só amigos, ou estão fartos um do outro!

A nossa vida

Joana Nave, 29.01.18

Passamos a maior parte do nosso tempo a fazer coisas de que não gostamos. Trabalhos que não nos completam, um trânsito infernal, tarefas domésticas, e ainda temos de conviver com o cinismo dos que nos rodeiam, porque são seres amargurados pelas suas próprias vidas medíocres, e que encontram algum consolo em tornar a nossa vida num pequeno inferno. Para sair desta roda que gira enquanto o tempo passa é preciso, em primeiro lugar, entender que não somos o reflexo que vemos diariamente, que temos uma essência mais profunda, que anseia por uma existência justa, equilibrada e feliz. Temos de ir ao âmago do nosso ser e descobrir aquilo que nos caracteriza, o que realmente nos define, e que uma vez em marcha não dá lugar aos espaços mortos que tentamos preencher diariamente com os meros desabafos de uma vida miserável. Depois, é preciso ter coragem para mudar, para dar um basta ao que temos tido e ousar ter e ser mais. É um virar a página definitivo, escalar a montanha da nossa ousadia e, ao chegar ao topo, sentir a força do vento que nos faz fechar os olhos e inspirar o sopro da verdadeira mudança, da vida única para a qual fomos talhados, e sentirmos a liberdade de sermos nós próprios e isso bastar.

Há políticas que até fazem sentido

Joana Nave, 22.01.18

Quem me conhece sabe que sou uma espécie de anti-política. Não me interessa, tudo o que sei abomino e acho até que é uma perda de tempo. Se sei do que falo, sei. Para ter impacto na vida social, não precisamos de fazer parte de um grupo partidário, há tantas outras formas... Hoje em dia, existem milhares de movimentos activistas que têm mais impacto que a política, mas mais importante ainda, que fazem mais com menos recursos, que não necessitam de facções e politiquices, de caciquismo, e afins. Pessoas que fazem a diferença, que influenciam os outros e que têm um impacto positivo na sociedade.

No entanto, esta semana dei por mim a pensar que o meu alheamento não me está a permitir louvar algumas boas políticas que andam por aí. Fiquei surpreendida, no verdadeiros sentido da admiração, por saber que o Governo está a influenciar a redução do consumo de açúcar e sal. É certo que a mudança de comportamentos é cultural e hábitos enraizados não se alteram de ânimo leve, mas cada pequeno gesto conta, rumo a uma vida mais saudável. Já agora, devia haver incentivos para que as pessoas fizessem mais exercício físico, que não apenas a moda das corridas e os circuitos de manutenção.

Parece-me claramente que o mundo está a evoluir em termos de expansão da consciência, estamos a tornar-nos mais atentos à forma como o nosso comportamento afecta o planeta. Ainda assim, há muita falta de civismo, muita cegueira face aos problemas ambientais, e será importante que haja políticas cada vez mais interventivas para mudar o que é necessário.

A política não me fascina, mas devo louvar o que de bom se faz.

A importância da consistência

Joana Nave, 15.01.18

Sermos consistentes é das coisas mais importantes da nossa vida. A consistência dá-nos um rumo, mas também nos dá credibilidade. Se formos consistentes fidelizamos os nossos seguidores, as pessoas começam a confiar e a esperar por nós. Por outro lado, a inconsistência gera desinteresse a até esquecimento. Por isso, temos de nos focar na consistência, se queremos crescer com sustentabilidade, se queremos inspirar confiança em quem nos segue. Temos de ser persistentes, metódicos, pragmáticos, fiéis e verdadeiros. No entanto, não podemos ser cegos às adversidades, aos contratempos e às surpresas. A palavra de ordem é flexibilidade. Pessoas consistentes e flexíveis conquistam o mundo e inspiram os que as rodeiam. É por tudo isto que escrevo hoje, para me manter fiel ao que me propus para este novo ano, para que a escrita seja uma prioridade e uma constante da minha vida, e para que mesmo com sono eu não deixe que o meu objectivo perca força, deixando de publicar esta crónica no início de mais uma semana. Ainda que a flexibilidade seja uma força maior, a consistência, pelo menos hoje, venceu.

Já não sou dona do meu tempo

Joana Nave, 08.01.18

O tempo, esse hiato que medeia entre o que é e não é, que foi calendarizado para que pudessemos organizá-lo, tem-me fugido por entre os dedos. De manhã acordo e já estou atrasada, já tenho pouco tempo para todas as coisas que me propus fazer. As horas sobrepõem-se umas nas outras e quando me apercebo, são 22h00 e ainda nem sequer jantei! Dizem-nos que somos donos do nosso tempo, que podemos fazer com ele o que quisermos, que é tudo uma questão de organização e gestão de prioridades, mas e quando tudo o que fazemos são prioridades?  A palavra urgente torna-se banal quando dita de forma tão constante, apenas para chamar a nossa atenção de que temos mesmo de tratar daquele assunto.

Há quem diga que as mulheres têm a vantagem do multitasking, mas hoje em dia esta prática é reconhecida como uma forma de distracção e ineficiência, porque somos mais produtivos se nos concentrarmos numa tarefa de cada vez. O verdadeiro desafio consiste em preencher as 24 horas de um dia completo com descanso, trabalho, tarefas domésticas, pausas para comer, lazer, exercício físico, amigos e família. Não importa a ordem, importa dedicar um pouco do nosso tempo a cada uma destas áreas.

A minha sugestão passa por parar e pensar em como estamos a gastar o nosso tempo, se há alguma área que esteja a ser negligenciada, se podemos sobrepor algumas para tornarmos o nosso tempo mais proveitoso. No fim do dia, antes do merecido descanso, importa analisar se foi um dia bem passado e se estamos alinhados com os nossos objectivos. Contudo, quando dou por mim é quase meia noite, não fiz metade do que queria e, de olhos cansados e desilusão no rosto, reconheço que já não sou dona do meu tempo...

Ser mãe é ter vários corações que não se controlam

Patrícia Reis, 07.05.17
 

Ser mãe é ter vários corações que não se controlam. Cuidamos, perdemos o sono, sentimos uma alegria imensa, morremos de aflição. Em pequenos tentamos perceber quem são, mas é muito cedo que os filhos nos conhecem como conhecem a palma da mão, porque os adultos são previsíveis, repetem-se muito e esta fatalidade é letal quando se chega à adolescência.

Já o escrevi muitas vezes, a adolescência é a fase mais triste da vida de uma mãe. Há uma guerrilha permanente, a comunicação falha – falar com um adolescente é o mesmo que dar banho a um peixe -, alguém encolhe os ombros, revira os olhos, o espelho de quem fomos na nossa adolescência.

E uma mãe tem e não tem memória do que foi. Diz “no meu tempo” quando é favorável, mas tende a esquecer-se do que fez, do que disse, quem foi na adolescência.

A guerrilha dura uma época e, de repente, parece quase esfumar-se.

Muitas vezes, a reaproximação faz-se mais tarde e surgem os sentimentos justos de frustração: o meu filho já não quer saber de mim. Ora, os filhos têm de ir à sua vida, como as mães antes de serem mães também optaram por fazer. É a vida que o exige, são os tempos, é o mais saudável.

A família funciona para muitos como um fantasma permanente e nem sempre simpático. A mãe tem de se despedir da função de ser mãe a tempo inteiro (sim, até uma mãe a trabalhar permanece mãe todos os minutos do dia). Não se desliga dos filhos anos e anos a fio e, de repente, parece que é obrigatório o dar espaço, o gerir do silêncio.

Quem faz dos filhos o seu projecto de vida atravessa então um momento de redefinição que nem sempre é feliz. Quem sou eu depois de ser mãe? Não é que exista uma total perda de identidade, mas corremos o risco de nos perder nos mil e um afazeres da educação e do amor.

Custa perceber que os filhos já não precisam tanto de nós; dói quando há informação que não partilharam connosco, quem sabe se emoções, os momentos menos felizes.

Nunca se deixa de ser mãe e, fatalmente numa sociedade marcada pela palavra tremenda que é a “culpa”, nunca deixamos de pensar no que falhámos, como falhámos.

Depois a montanha russa da vida dá um piparote e os filhos regressam com aflições sobre os próprios filhos, deixam-se estar mais tempo, fazem confidências, precisam de colo. E há outra mudança na relação, volta-se a um estado de compreensão e a partilha faz-se de uma outra maneira.

Ser mãe é um estado feliz, é um estado de alerta, é querer que os filhos nos superem, sejam mais e melhores do que somos. Quando se consegue vislumbrar o sucesso dos filhos no seu comportamento, na sua vida, temos de sorrir.

São sempre os nossos meninos, o nosso coração fora do corpo.

Crónica da região saloia

Leonor Barros, 05.09.15

Entram dois homens que entabulam de imediato conversa: "E tu estás com quantos anos? 86?" O outro diz que sim. Começa também a fazer contas sobre a idade do companheiro. "Ah pois atão". E eis que salta um terceiro ausente à conversa, um tal de João que é um ano mais novo, mas, que, segundo os dois está muito pior que ambos. 'Na faz nada' argumentam. O de 86 tece uma série de comentários sobre a importância de se manter activo e sai-se com uma máxima que me me fez sorrir "Rir é viver. Chorar é morrer" disse peremptório e atirou-me quando me viu sorrir "É ou não é verdade?" Concordei claro. Além de ser verdade e de descrever na perfeição o que sinto em relação à vida, que os deuses me livrassem de discordar de tão assertiva personalidade num corpo alto e ágil que não deixava adivinhar as décadas percorridas. Daí até desfilar argumentos em defesa da vida activa foi um pulinho "Ficam aí parados e depois vão à 'fisoterapia'. Sabes qual é a minha 'fisoterapia'? É assim ó, para cima e para baixo na horta. Essa é que é a minha 'fisoterapia'." E já que veio a horta ao barulho discutiram fervorosamente o andamento da de cada um, O mais baixo reclamava que a batata doce estava muito funda, uma 'trabalhera', claro que a culpa era dele 'puseste-a muito fundo',  atirou-lhe o alto, 'na foi nada. Ela é que cresceu pra baixo e ficou funda' discordou o baixo. Os saloios jamais concordarão enquanto tiverem voz para teimar. E têm uma voz de duração longa e convicções férreas no que se trata a não dar razão ao outro, seja lá qual e quem for esse 'outro'. Finda a querela da batata doce, mudámos dos tubérculos para os cereais. O mais alto vangloriava-se de ter o melhor milho 'daqui até as Caldas da Rainha' e o pomo da discórdia foi a razão da exuberância do milho. E ó se discutiram. Era da água. 'Na é nada!' Era da terra? 'Né nada da terra!' Vim-me embora entretanto. Como dizem os alemães e se não morreram, são vivos ainda, que é como quem diz, se não se calaram entretanto, ainda lá estarão a discutir o milho entre o Dulcolax e o Paracetamol, o Aminoxil e o Trifene 200. Deve ser também isto a que chamam 'vida activa'

Crónica no DN

Patrícia Reis, 22.07.15

A avó de Schäuble sabia muito sobre os gregos

por ANA SOUSA DIAS

 

"A minha avó costumava dizer: a benevolência vem antes da devassidão." Isto disse Wolfgang Schäuble e, vinda de quem vinha, a frase tinha tudo para me irritar. A bondade como primeiro passo para a bandalheira, ora aí está o que as minhas avós não me transmitiram e eu nunca ensinarei aos meus netos. Não é que as minhas avós fossem de complacências, nada disso. Ambas foram grandes disciplinadoras, ambas justas, uma católica, a outra mais interessada na leitura do que no Além. Mas confundir benevolência com devassidão, ui, nunca.

Vamos aos clássicos, já que falamos de frases do tempo das avós. Estar morto é o contrário de estar vivo, disse um dia Lili Caneças. Ser bom é o contrário de ser mau, digo eu à boleia do raciocínio. Os rebuçados de mentol que as minhas avós me deram ou o fechar os olhos às tropelias infantis não me levaram ao mundo do crime. Estou mesmo convencida de que a avó Filipa percebia de ginjeira que a casa se esvaziava mal se aproximavam as seis da tarde e o terço da Rádio Renascença, que ela tanto queria partilhar connosco. Não nos ralhava por preferirmos ir para a rua brincar. Fingia que não percebia. Era benevolente.

Schäuble conta que lá em casa eram três irmãos e, quando lutavam, o pai dizia-lhes que o mais forte devia recuar. Isto para dizer que aplicou esse princípio nas negociações com a Grécia. Vejam bem o que está implícito e explícito nesta conversa. Primeiro, "o mais forte", leia-se, a Alemanha, leia-se, ele próprio. Segundo, "recuou", quer dizer, foi ele quem recuou naquela longa noite e não o grego que voltou para casa com um saco de exigências em tudo opostas ao mandato que levava.

Destas coisas de lutas infantis tenho o dobro da experiência do ministro alemão. Lá em casa éramos seis irmãos e o mais forte não era sempre o mesmo. Entre derrotas, vitórias e nem uma coisa nem outra, aprendi muito e serviu-me para a vida. Recuava-se e avançava-se conforme as circunstâncias, a presença das diferentes autoridades, o sistema interno de alianças, a capacidade de persuasão e até as malfadadas botas para o pé chato, armas poderosas nos pés dos mais pequenos. Não saberemos nunca qual de nós foi o mais forte, nem isso interessa para nada.

No livro As Benevolentes (2006), Jonathan Littell faz e desfaz os circuitos sinuosos do poder militar na Alemanha de Hitler, numa extensa narração seca e de cortar a respiração. É uma autópsia do mal destituída de emoções. O autor foi buscar o título aos gregos, os antigos: deusas impiedosas e vingativas a quem chamavam Benevolentes por puro medo de dizer o verdadeiro nome. Ah, talvez seja isso. A avó de Schäuble era perita em mitos gregos.

Vestida para Matar

Francisca Prieto, 20.06.15

"Vestida para Matar" era o título de um filme de Brian de Palma que passou no grande ecrã lá por inícios dos anos 80, cujo título nunca me convenceu, uma vez que é a esplendorosa protagonista quem acaba esventrada à navalhada. Dressed to be Killed teria sido inequivocamente um tiro mais certeiro, mas deduzo que o Brian de Palma não tenha querido desvendar, assim à priori, que a boazona batia a bota a meio da fita sem apelo nem agravo.

 

É certo que, no cenário terrorista dos nossos dias, a expressão “Vestida para Matar” atiraria facilmente para conotações iraquianas e que, face a um título destes, em vez de uma giraça de mini-saia e botas altas, imaginaríamos imediatamente uma película protagonizada por uma Mata Hari de tez escura, enrolada em TNT debaixo da burka. 

 

Ora esta história de haver quem se vista para matar, quem se traje para morrer ou quem se dispa para chocar, faz-me pensar nas razões que levam cada um de nós a escolher determinado conjunto de peças para vestir. Haverá certamente quem se cubra apenas para evitar a nudez mas, na maior parte dos casos, escolhemos a roupa em função do nosso estado de espírito ou da imagem que queremos projectar.

 

Diz a minha mãe que a Agatha Christie conta, na sua biografia, que seguindo o sábio conselho da sua progenitora, nunca viajou que não fosse com roupa interior imaculada. Temia ter um acidente e queria garantir não vir a passar vergonhas no hospital.

Não sei se a história é verídica, nem tão pouco se é relativa a Agatha Christie (conhecendo a minha mãe, seria bastante verosímil enganar-se na fonte de informação), mas é certo que, depois de ouvir isto, sempre que viajo e não vá o diabo tecê-las, deixo conscientemente em terra o underware “da guerra da Coreia”. Quanto ao resto, estou em mágica sintonia com a Emma Bull que, no seu romance War for the Oaks, descreve sabiamente a psicologia que está por detrás desta questão: "Sometimes, she reflected, she dressed for courage, sometimes for success, and sometimes for the consolation of knowing that whatever else went wrong, at least she liked her clothes".

Ou seja, mesmo que não me apresente em trajes que me fiquem a  matar, quando a coisa começa a ficar preta, ao menos gosto dos meus trapos.

Escolhas Sabáticas

Francisca Prieto, 18.06.15

Em Maio de 66, Lisboa foi brindada com uma actuação de Morte e Vida Severina: uma peça de teatro brasileira que casava o belíssimo texto de João Cabral de Melo Neto com as notas cristalinas de Chico Buarque que na altura não passava de um anónimo estudante da Faculdade de Arquitectura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

A peça tinha tido um sucesso estrondoso no Brasil e a repercussão junto do público e da crítica foi tal que o espectáculo viajou para a França, onde recebeu o grande prémio do Festival Universitário de Nancy.

À boleia do festival gaulês, o elenco aproveitou para fazer uma paragem por Lisboa e apaixonou assolapadamente o público alfacinha, conseguindo a proeza de se fazer ouvir em eco progressivo para além das paredes do Teatro Avenida por muito e muito tempo.

Passados uns anos, a minha mãe, que na altura era professora da cadeira opcional de teatro no Liceu D. Filipa de Lencastre, tendo à sua frente uma data de raparigas de enfadados dezasseis anos, lembrou-se do fulgor da brisa trazida do lado de lá do Atlântico e propôs-lhes levar a cena uma versão nacional deste grande êxito do Chico.

Logo se juntaram várias alunas que entusiasticamente trataram de dar o seu melhor para que a empreitada fosse levada a bom porto. De entre todas, havia uma rapariga especialmente empenhada. Não havendo na altura forma de conseguir registos das composições musicais, muito menos site de internet de onde se fossem sacar as letras, a Ana, conhecida por ser um às da viola, levou a coisa a peito e, durante tardes a fio, tratou de passar repetidas vezes uma velha cassete no leitor e assim, só de ouvido, conseguiu reconstruir na íntegra toda a banda sonora da peça.

 Por alturas do segundo período, quando os ensaios andavam ao rubro e pelos corredores do liceu não se ouvia outra coisa que não fossem as canções da Morte e Vida Severina, a Ana foi chamada à reitora do liceu. Era excelente aluna, mas nos últimos meses as notas tinham caído a pique. A reitora avisou-a que, ou se aplicava, ou ia perder o ano. Que era melhor deixar-se de teatrices.

 A Ana, com uma serenidade pouco comum à sua idade, respondeu: “Minha senhora, perder um ano não tem qualquer importância. Anos há muitos. Mortes e Vidas Severinas é que há só uma”, e continuou a participar animadamente em todos os ensaios.

O ano lectivo acabou e a peça subiu ao palco com um sucesso equiparável ao da versão original brasileira. Os pais choraram, abraçaram-se, cantaram da plateia para o palco, as alunas retribuiram do palco para a plateia, enfim, uma emoção sem igual à conta das desventuras do retirante nordestino Severino.

A Ana teve realmente aproveitamento insatisfatório, pelo que foi obrigada a repetir o último ano do liceu.

Passada uma década, estava a minha mãe numa estação de metro quando repara numa rapariga que se aproxima com um grande sorriso. Cumprimentou-a, adivinhando tratar-se de uma antiga aluna (foram tantas que lhes perdeu a conta). Ela, percebendo que não estava ser reconhecida, apresentou-se pelo nome e remeteu a minha mãe para o contexto da Morte e Vida Severina. Contente por a ter reencontrado e curiosa por saber o que tinha sido feito daquela rapariga, a minha mãe perguntou-lhe se tinha seguido a carreira musical.

Ao invés da previsível réplica de perdição, ouviu-a, numa voz de mulher e em tom seguro, anunciar que agora era médica, que depois de ter repetido o sétimo ano tinha conseguido entrar na faculdade de medicina e formar-se com distinção. E fez questão de sublinhar que o ano da Morte e Vida Severina tinha sido a coisa mais extraordinária que lhe tinha acontecido na vida.

Dos que sofrem com pouco / Dos que se alegram com muito

Joana Nave, 15.06.15

Das muitas manias que existem há uma que é comum a muitas pessoas, nomeadamente a mania de preencher o tempo com muitas actividades. O excesso de actividades pode ser um problema na vida destas pessoas e, por ser uma mania com queda para a obsessão, acaba por se tornar numa patologia do foro psicológico, que mais cedo ou mais tarde pode ter consequências nefastas para os que dela sofrem.

A mania surge por força de vários factores, sendo um deles a hiperactividade e outro a sede de conhecimento. As pessoas ávidas de conhecimento são tidas como perigosas, porque movem o mundo na busca de algo que preencha o vazio que sentem, querendo sempre aprender mais e sobre vários temas.

Um dos problemas de se fazer muitas coisas em simultâneo é que não nos dedicamos a nada em particular. O tempo parece nunca ser suficiente para tudo o que tem de se fazer e o descanso acaba por ser relativo, uma vez que não se pode dormir muito para não roubar tempo útil.

Fazer apenas uma coisa o tempo todo poderia tornar-se monótono e desinteressante. Fazer uma coisa de cada vez seria eficiente. Porém, o desafio reside no que torna a tarefa difícil e isso só acontece porque esta não é o único foco de atenção. Eu defendo que as pessoas que fazem muitas coisas ao mesmo tempo aprendem a priorizar, a relativizar, e regozijam quando efectivamente conseguem terminar algo a que se propuseram. Acredito plenamente que a busca pela felicidade varia de pessoa para pessoa e que algumas serão felizes com as banalidade que encontram em cada dia, com uma vida pacata, serena, com um ou outro pico de entusiasmo. No entanto, há aquelas que não se contentam com o trivial e que só se realizam no emaranhado de ideias que as atormentam, para que nunca deixem de ter a ambição de ser e fazer cada vez mais.

Sobre a "arte" de criticar

Joana Nave, 26.05.15

Estive mesmo para intitular este post como "Sobre a mania de criticar". Porém, considero que não é uma mania mas sim uma arte.

A crítica está-nos no sangue, precisamos dela como do ar que respiramos. Não tem grande importância o alvo da nossa crítica, desde que a prática da mesma possa ser efectuada. Criticamos tudo e mais alguma coisa, os dias cinzentos, o calor excessivo, as filas de trânsito, tanto se vamos para o trabalho como para a praia, os impostos, o Governo, os políticos, a polícia, os bombeiros, os médicos, os advogados, os professores, os comentadores, os padres, os vizinhos, a família e tudo o que se cruzar no nosso caminho. A mania ou arte de criticar são uma forma de expressão, até porque existe mesmo a profissão dos críticos, que se desdobra em inúmeras vertentes normalmente ligadas às artes, como a literatura, a pintura e o cinema, o que enaltece a actividade.

De certo modo, todos nós de uma maneira ou doutra, temos este dom da crítica mesmo que não o usemos como profissão. É mais como um hobby, um veículo que nos distrai dos verdadeiros problemas para nos ocupar a mente com a panóplia de pensamentos vãos e ligeiros, que nos divertem os neurónios enquanto passamos por tempo precioso das nossas vidas.

É o que estou a fazer neste momento, a criticar a própria crítica, na tentativa de eu mesma reflectir sobre a real pertinência desta tarefa, que ao invés de me elevar só me faz mergulhar no lodo dos tormentos que afligem a alma dos pobres de espírito. Pelo menos, enquanto o faço, treino o músculo criativo e faço o meu exercício diário de escrita.

Que tudo o que façamos tenha um propósito. É simples, poderoso e cria mudanças significativas ao nível do bem estar. Da próxima vez que quiser criticar algo ou alguém responda a esta questão: "- O que é eu ganho com isto?"

Sobre o que nos move

Joana Nave, 21.05.15

Passam séculos, décadas, anos, semestres, meses, dias, horas, minutos, segundos... O tempo passa por nós e é como areia que se desvanece entre os dedos. Toca-nos ao de leve e escapa-se logo de seguida. Não temos tempo para uma série de coisas e, principalmente, para as que nos fazem mais felizes. A correria desenfreada em que nos movemos cansa-nos, agasta-nos, corrói-nos e envelhece. É pois mais do que natural que haja cada vez mais pessoas deprimidas e infelizes, pois passam mais de metade das suas vidas a desempenhar tarefas que não lhes trazem qualquer sentimento de prazer.

Claro que não podemos passar a vida a lamentar-nos, a criticar o Estado, os chefes e a má sorte de não termos nascido ricos. Temos acima de tudo de encontrar aquilo que nos move, o que nos faz acordar a cada dia com vontade de viver, ser mais, aprender e ensinar. Depois de encontrarmos esse bem precioso que é a motivação, resta-nos serenar. Enfrentar as obrigações diárias como deveres necessários para alcançar os nossos objectivos. Como dizem, nada de grande foi ou jamais será realizado sem esforço. Se soubermos qual é a meta, todos conseguiremos lá chegar. Uns mais depressa, outros mais devagar, mas com a certeza de que todos temos a nossa oportunidade.

O amor não tem idade

Joana Nave, 04.03.15

O título poderá sugerir o amor entre duas pessoas de idades distintas. Claro que o fosso geracional também é um tema muito interessante, até porque a idade que é declarada na nossa certidão de nascimento pouco ou nada tem a ver com a idade da nossa alma, e essa sim evolui a diferentes ritmos e pode afastar ou aproximar pessoas da mesma ou diferente idade. Porém, hoje estou centrada nas pessoas da mesma geração, da mesma idade, ou próxima, vá, que passeiam num centro comercial qualquer.

São um casal, não resta qualquer dúvida. São de estatura baixa, os cabelos brancos como a neve, usam óculos com lentes de fundo de garrafa, vestem-se de cores sóbrias, com tecidos quentinhos. Movem-se devagar, gestos lentos, susurros.

No entanto, o que me faz reparar neles é o braço do homem que torneia as costas da mulher, segurando-a com firmeza, ainda que as mãos estejam fracas, engelhadas e deformadas pela artrite. O braço do homem envolve a mulher e fá-la caminhar. Não são efusivos, não se fazem notar, quase que passariam despercebidos no frenesim que os rodeia, entre pessoas sempre apressadas para encher as suas vidas com mais coisas, que nunca hão-de ser suficientes para lhes trazer uma felicidade plena.

E o casal de velhinhos de cabelo branco destaca-se no meio da multidão. Neles detenho o meu olhar, abrandando o meu passo apressado, próprio dos outros, dos que não são o casal de velhinhos, que avança com doçura, como se caminhassem sobre nuvens fofas. E é neste momento que dou por mim a esticar o canto dos lábios para constatar, com uma imensa alegria, que o amor não tem idade.