Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Crónica de nove mortes anunciadas e uma ameaça de morte por cumprir

Patrícia Reis, 07.02.19

No dia 5 de Janeiro, uma mulher é encontrada morta na zona de Lagoa. O marido jazia ao lado. De acordo com a Polícia, tratou-se de um homicídio seguido de suicídio. Foi a primeira mulher a ser morta neste novo ano, em Portugal. Tinha entre os 50 e os 60 anos de idade. 

Um dia depois, era domingo, dia de Reis, uma mulher portuguesa é morta à facada pelo companheiro, em Toulouse, França. A vítima tinha 29 anos. Antes de morrer conseguiu telefonar ao irmão a pedir ajuda. O irmão não chegou a tempo, bateu à porta da casa da vítima e foi-lhe devolvido apenas silêncio. No dia seguinte, a porta foi arrombada, a filha da vítima, de seis anos, dormia no quarto. O alegado assassino pôs-se em fuga. 

No dia 11 de Janeiro, um homem de 83 anos de idade matou a mulher, com a mesma idade, e a cunhada, também ela octogenária. O homem disparou uma arma de fogo com o objectivo de se suicidar. Não conseguiu e acabou por morrer no bloco operatório num hospital lisboeta. 

No mesmo dia, foi encontrada Vera Silva, de 30 anos, no Pragal, Almada. Era empresária. De acordo com a autópsia, foi morta ao soco e pontapé, sem recurso a qualquer outro objecto. 

Sete dias depois, uma mulher de 70 anos foi morta no Dafundo, Oeiras. Mais uma vez, o acto é classificado como um caso de homicídio e suicídio: o marido, de 71 anos, estava ao seu lado. Ambos mortos por tiro de caçadeira. A filha encontrou o casal morto.

No dia 28 do mesmo mês, uma mulher de 48 anos de idade foi encontrada morta na sua casa, em Santarém. De acordo com a Polícia de Segurança Pública, a mulher foi agredida violentamente. Era brasileira. O caso está com a Polícia Judiciária.

No último dia do mês de Janeiro, uma mulher foi encontrada morta pela GNR em Moimenta da Beira. A mulher vivia com os dois filhos pequenos, de dois e cinco anos.

No dia 4 de Fevereiro foi encontrada uma mulher morta no Seixal. Tinha 60 anos.  O genro da vítima é o principal suspeito e leva consigo a filha. Mais tarde, o mesmo suspeito terá telefonado a indicar o local onde se encontrava a criança: no porta bagagens do seu carro, morta aparentemente por asfixia. A criança chamava-se Lara. A mãe de Lara fez tudo bem, perdeu a mãe e a filha. E agora?

Ontem, dia seis, um homem de 39 anos tentou matou a ex-mulher, da mesma idade. Passou-se tudo na zona industrial de Nelas. O homem disparou uma arma de fogo contra a cabeça da ex-mulher. O homem foi detido, ambos tiveram de ser assistidos no hospital Tondela-Viseu. A Polícia Judiciária de Coimbra tem com o caso nas mãos. 

Falemos em feminicídio. Falemos em moral. Em cultura. Não falemos em saúde mental, porque, nesse caso, estamos a desresponsabilizar e a dizer que há uma perturbação mental que afecta, maioritariamente, homens e cujo mote é a violência contra as mulheres, namoradas, mães, filhas. Falemos em Justiça. E, acima de tudo, falemos em exercício de poder. 

Na maioria dos casos, estes ou as dezenas de casos passados durante o ano de 2018, as histórias não se explicam racionalmente, mas existe sempre a ideia de poder, de subjugar a mulher, da humilhar, da deter à força. 

Feminicídio. Esta é uma palavra que nos deve envergonhar. Mais uma vez, a educação para a paridade, para as relações de respeito e consentimento mútuo, isentas de sentido de posse, é crucial. Os estudos que apontam para uma crescente violência no namoro são alarmantes, mas que fazemos nós para dizer aos mais jovens que a violência não é caminho? O Primeiro Ministro diz que reúne hoje com o ministério da Justiça, ministério Público, Procuradoria Geral e forças da autoridade. Que é uma vergonha vivermos num país onde as mulheres morrem assim. Muito bem, reúnam. Entretanto, talvez não morra mais nenhuma mulher. Entretanto, o juiz que cita a Bíblia e alega que as mulheres adúlteras, enfim, já se sabe, podem ser mortas em alguns países, levou uma reprimenda e, imagino, continuará a presidir a casos de violência doméstica. 

Seja qual for a sua intervenção, Senhor Primeiro Ministro, não se fique pela teoria, nem pela organização de mais uma comissão para discutir e analisar. É urgente travar a violência, o feminicídio a que assistimos dia após dia. A Lei tem de ser dura e eficaz, importa ter exemplos que possam atemorizar potenciais abusadores/assassinos, importa que as potenciais vítimas sintam que possuem mecanismo eficazes de defesa e meios de auxílio concretos. Se uma pessoa faz queixa, consegue dar esse passo, não pode ser ignorada. 

Ao longo da História, as mulheres têm sofrido de excesso de silêncio, de negligência por parte do Estado, de teorias absurdas de comportamento. Já chega. Hoje, se tudo correr bem, não lerei nenhuma notícia de mais uma morte. E amanhã?

contra o puritanismo, marchar, marchar

Patrícia Reis, 17.01.19

Censurar Fernando Pessoa a pretexto do público-alvo ser adolescente (ao nível do secundário) é um tiro no pé. Se me recordo da minha adolescência, e recordo bem, eu iria logo à cata do que me tivessem proibido de ler.

Bom, mas eu li Os Maias, parece que ainda se lê, e é sobre incesto, não é? E li Jorge Amado, li Marguerite Duras, O Amante, teria uns 15 anos. Li Anais Nin e Henry Miller, a loucura das Novas Cartas Portuguesas de Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno. Também tive a sorte de ter uma professora de português que achava os Lusíadas sexies e Bocage inspirador.

O mundo muda quando se tem bons professores. Os bons professores são os que abrem  caminhos, são os que nos incentivam, não são os que controlam a nossa moral.

No secundário, se me recordo, a malta já pensa em sexo. Diria mesmo que se pensa bastante em sexo, porque nada melhor do que o abordar através da poesia.

Li algures que a Ode Triunfal de Fernando Pessoa, na verdade Álvaro de Campos, para sermos correctos, incita à pedofilia. Ó por favor! Estamos a falar de miúdos com 16 ou 17 anos, miúdos que não são parvos, que usam as redes sociais e têm acesso a sexo gratuito online se assim o desejarem. Não é a falar que a malta se entende e desmistifica preconceitos e ideias falsas?

Ao manual escolar da Porto Editora, editora que recusa a acusação de censura, faltam três versos: "Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas". E ainda: "E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! - / Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada".

Na versão dos professores do mesmo manual o poema está na íntegra. Os docentes são livres de escolher discutir ou não os versos cortados? Parece que é essa a ideia. Dizem que há uma preocupação didáctica-pedagógica. Com o quê? Estamos a falar de miúdos crescidos, daqui a nada universitários ou no mercado de trabalho.

Ora, a obra de Fernando Pessoa e os respectivos heterónimos integra as chamadas “aprendizagens essenciais” definidas pelo Ministério da Educação. Acho bem. Como acho bem Os Maias ou Os Lusíadas com as suas sereias encantatórias.

O que não acho bem é o puritanismo e esta polícia do pensamento. Já a tivemos em Portugal, durou até 1974, vamos voltar atrás? Há um politicamente correcto e um sentido regulador que se impõe e que é tutelado por alguém. Não sei quem seja, mas as proibições e censuras cheiram sempre mal. Podem invocar o que quiserem, não tenho como entender.

Sexo aos 50 anos é melhor, cretino!

Patrícia Reis, 10.01.19

Esta coisa de ser mulher não é fácil, às tantas deveríamos fazer conferências de imprensa diárias para esclarecer sexistas e machistas, mas quem tem tempo para tanto?

Um escritor francês, premiado e presença regular na televisão do seu país, afirma que não conseguiria amar uma mulher com 50 anos de idade – a mesma idade do dito cujo senhor –, que os corpos das mulheres mais velhas não são extraordinários como os das mulheres de 25 anos de idade e que, cereja no topo do bolo, que as mulheres mais velhas se tornam invisíveis. Diz tudo isto em declarações à extraordinária Marie Claire francesa (que saudades que tenho da revista em versão portuguesa!).

E, é evidente, as declarações causaram furor nas redes sociais e afins. A minha pergunta, a primeira, é: quem é este senhor? E por que carga de água é que tem palco para tanto disparate? Porventura será muito famoso, ganhou um prémio literário com relevância no mundo das letras, mas quem é? É que malta a ganhar prémios há muita e nem todos são dignos da história da literatura universal. E como se atreve, este cretino? Será para criar soundbites?

Deduzo que possa dar-se ao atrevimento porque hoje é tudo possível. O dito cujo senhor acrescenta ainda que prefere mulheres orientais, porque o seu gosto apurado no que toca a mulheres asiáticas dá-lhe um certo... panache? Acrescenta ainda, este escritor cujo nome escolho não nomear, que pode ser triste e redutora a forma como classifica o aspecto desejável das mulheres asiáticas, mas é ele. Devemos dar-lhe pontos pela sinceridade?

Uma mulher de quase 50 anos, é o meu caso, tem de conviver com várias pressões da sociedade, pode escolher viver melhor ou pior, mas sabe que existem. É evidente que um corpo aos 25 anos não é comparável com um de 50, embora seja relativo, por existirem corpos em todas as idades que podem ser classificados como “pouco interessantes” do ponto de vista estético. O que me perturba nas declarações desta criatura tão versada nas coisas do mundo é – desculpem a repetição – o facto de dizer que as mulheres mais velhas são “invisíveis”. Não somos. As mulheres nunca são invisíveis, não importa a idade ou o corpo. Cada mulher é um ser humano que traz consigo uma experiência, uma história. Haja paciência!

O escritor, torturado por diversas personalidades nas redes sociais, diz que não tem culpa e que não pode ser julgado no “tribunal do gosto”. Há muitas mulheres mais velhas que se riem com tudo isto, eu não consigo. Uma amiga próxima, porém, arrancou-me uma gargalhada ao dizer que aos 50 o sexo é muito melhor, “o escritorzinho é que não sabe e talvez não queira ser confrontado com a sabedoria e experiência que nós, mulheres, acumulamos. Azarinho”. Que é como quem diz nous sommes désolées.

O mundo já se tornou uma ficção, agora vale tudo.

Patrícia Reis, 02.11.18
The House of Cards é ficção, e mostrou ao mundo uma perspectiva maléfica e esquematizada de poder que, no mundo real, parece estar a tomar proporções extraordinárias, escrevo extraordinárias no sentido de fora do “normal”.
 

Estreia esta sexta-feira, em Portugal e nos Estados Unidos da América, em simultâneo, a sexta temporada da série House of Cards. É a temporada final, constituída por oito episódios, e à frente temos Robin Wright no papel de Claire Underwood, agora presidente dos EUA. O retomar da série, depois de um ano de interrupção, levou também ao retomar das acusações feitas a Kevin Spacey. Robin Wright diz ter mantido uma relação profissional com o actor e que não conhecia o homem, apenas o artista incrível que ele era. Além da acusação de assédio feita por Anthony Roger, uma acusação face a um episódio com 30 anos de existência, Kevin Spacey tem sido, desde então, alvo de escrutínio e outras acusações foram surgindo. Sinal dos tempos.

Mas esta não é mais uma crónica sobre o assédio e a discriminação, embora a tentação possa ser grande. Ser-me-á permitido um ligeiro desvio? O jornal The Guardian publicou esta semana um artigo que garante que para as mulheres ganharem o mesmo que os homens, o mundo terá de rodar muitíssimas vezes e, mesmo assim, a perspectiva de demora é de mais de 200 anos. Não será, por isso, no meu tempo, no tempo dos meus filhos, dos meus netos, dos meus bisnetos e por aí adiante. Robin Wright, a magnífica actriz que contracenava com Kevin Spacey em The House of Cards, não era remunerada de forma igual e, além de ter tornado o facto público, lutou pela paridade salarial. Fim de desvio.

The House of Cards é ficção, já se sabe, mas mostrou ao mundo uma perspectiva maléfica e esquematizada de poder que, no mundo real, parece estar a tomar proporções extraordinárias, escrevo extraordinárias no sentido de fora do “normal”. Não é apenas o que assistimos na Europa com a extrema-direita a retomar assentos onde os já tinha perdido, ou o 45º presidente dos Estados Unidos da América a vociferar disparates. É o Brasil que elegeu democraticamente alguém cujo discurso é perigoso. Mete medo. Se o poder se exercer com fundamentalismo e na crença de que se é “escolhido”, mesmo não sendo o mais classificado, o abuso sobre as pessoas e instituições é uma inevitabilidade. Algo que na série norte-americana está espelhado de forma brilhante. Não consigo já entender a ficção como apenas isso, o exercício da imaginação. Revejo as temporadas anteriores de The House of Cards e acho que tudo aquilo é possível: manipulação, deturpação, mentira, corrupção, assassinato. A verdade é que, como Dorothy no Feiticeiro de Oz, já não estamos no Kansas e o irreal tornou-se negro, negro como todos os retrocessos civilizacionais são negros. Onde estaremos daqui a dez anos? Talvez a seguir a The House of Cards surja outra série que nos mostra a vida real e a cores.

Terá a igreja católica fé nas mulheres? Desprezo tem de certeza

Patrícia Reis, 26.10.18

As mulheres e a igreja católica é uma história longa, dura, tenebrosa até. Existem pesadelos mais suaves. Não depende do tempo, do contexto histórico, porque a sociedade evolui, mas o papel da mulher mantém-se: serve para servir, para ser perseguida ou discriminada ou viver dentro da instituição com a clareza das coisas invisíveis.

São o elo mais fraco. Leituras da Bíblia, de diversos estudiosos desta coisa da ciência das religiões, fazem interpretações várias do papel das mulheres nos evangelhos; alguns até se atrevem a questionar se Madalena seria considerada como uma discípula. Afinal, a quem aparece Jesus quando ressuscita? Pois. Para a instituição que é a igreja católica faz pouca diferença, é o mundo de homens, sempre foi. E continua a ser.

Li no Observador há dias um artigo de João Francisco Gomes – porventura um dos jornalistas da nova geração mais interessantes e ligado a estas coisas da igreja – que no Sínodo deste ano, dedicado à juventude, as resoluções contaram com votos de frades, mas não de freiras, apesar do estatuto eclesial ser o mesmo. Há sempre um certo desprezo, ou aquilo a que eu entendo como desprezo, no que toca às mulheres no centro da decisão. O Sínodo é o conselho consultivo do Papa, talvez se possa dizer que é um dos órgãos mais importantes. As sete freiras que participaram no Sínodo deste ano podem ter tido ideias, podem ter explicado cenários relevantes, podem ser possuidoras de um conhecimento elevadíssimo. Não faz diferença. Menina não vota.

Existem muitas frentes que procuram lutar por um protagonismo feminino dentro da Igreja, não são vozes de hoje, são vozes que se ouvem há muito. Não têm tido muito sucesso, apesar de 80% das pessoas, dentro da igreja católica, que consagram a sua vida à instituição serem mulheres. O superior dos frades dominicanos, o Padre Bruno Cadoré, é quem o afirma no citado artigo do Observador. Ora, 80% é uma percentagem altíssima, até para quem não aprecia a função dos números e da estatística. E o que é consagrar a vida à igreja? É, muitas vezes, abdicar de tudo em função da fé, a mesma fé que se faz representar por uma igreja que, tendo sempre sido activa no papel castrador face às mulheres, não pode continuar cega e surda no que diz respeito à luta das mulheres por mais protagonismo.

O papa Francisco, que padece do mal que afecta os governos, instituiu uma “comissão” no vaticano, coisa ambígua no meu entender, para analisar as questões do diaconado das mulheres. (Nota: O feminino de diácono diz-se diaconisa. A igreja católica não concede o Sacramento da Ordem para mulheres, apenas para homens).  A dita comissão foi composta em 2015. Até agora não encontro nenhum documento da autoria dos membros da comissão. Talvez tenham começado a analisar os séculos para trás e, como tudo na igreja, lentamente lá chegarão ao século XXI.

Historicamente, a igreja trata as mulheres como mães e santas, como servidoras ou demoníacas, neste caso acusando-as da responsabilidade do pecado original. Diria que já chega, é tempo de mudar a agulha e de entender que a igreja beneficia do feminino, sempre beneficiou, e que as mulheres são uma mais-valia que precisa de ser visível. Mulheres só nos bastidores? Freiras a carregar chapéus de senhores bispos? Administrativas? Para a limpeza? Imaginam o que aconteceria se estas mulheres decidissem fazer greve? Pois, quer-me parecer que os senhores bispos e afins também não se deitam a imaginar essas coisas.

Somos jovens, autonomia pode esperar, os pais aguentam...

Patrícia Reis, 18.10.18

No estado do mundo, os mais jovens dedicam-se a pensar e a repensar na vida, são muitas horas condicionadas por cenários abstractos, catastróficos, reais ou irreais e que têm por base verdades do tempo que vivemos: os ordenados são baixos, o mercado é difícil e complexo, os estudos não garantem nada, a falta de estudos garante ainda menos, ter um projecto de autonomia, libertar âncora e sair de casa dos pais é cada vez mais complicado. Em casa até aos 30 anos? E em que circunstâncias? A verdade é que os jovens estão a começar os seus projectos de vida cada vez mais tarde, permanecendo em casa dos pais mais tempo do que gerações anteriores. Não há uma solução à vista.

Uma jovem, com licenciatura e mestrado (este com distinção) diz-me que recebe o ordenado mínimo nacional, gosta do que faz, não está na sua área de estudos, mas aceita a situação com bonomia. “O que me importa mesmo é trabalhar”, garante-me. Não sairá de casa da mãe tão cedo, acha mesmo uma missão impossível. “Tenho 25 anos, ganho o ordenado mínimo, como é que vou fazer? Como é que vou pagar renda, água, luz?” Pois, nos grandes centros urbanos não irá morar certamente, basta estar atento às notícias sobre o mercado imobiliário para percebermos que viver em Lisboa ou no Porto está muito longe de ser acessível.

Estando grata por ter conseguido estudar o que quis, mesmo que não exerça a profissão, esta jovem é o exemplo paradigmático da realidade de muitos outros jovens. Os pais, como acontece com os bons pais, empurram com a barriga e vão cuidando, pagando, fazendo o melhor que podem. No caso de terem condições, perguntarão? Pois, no caso de possuírem condições económicas para tanto.

Um estudo de investigadores do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas e publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos neste início de verão, intitulado a "Igualdade de género ao longo da vida: Portugal no contexto europeu", conclui que os portugueses são os que mais tarde abandonam o ninho dos pais. O estudo conclui que a idade média de saída de casa dos pais chega aos 29,7 para os homens e 28,2 para as mulheres. O estudo é claro: "muitas das mulheres e homens jovens que estão na casa dos pais podem já não ser dependentes economicamente destes, e estarem a trabalhar, sem terem ganhos suficientes para adquirirem autonomia residencial". Nos países nórdicos é diferente por existir um estado social mais forte e com políticas de autonomização dos mais jovens, ou seja, existem bolsas e empréstimos a longo prazo e uma realidade laboral mais estável.

Os projectos de vida, de autonomia, de abraçar a vida, a denominada vida de adulto, são adiados e trazem consequências, reflectem-se não só não só nos processos de auto-estima como na evolução individual de cada um. Um jovem licenciado, com ou sem mestrado, que ganhe o ordenado mínimo não pode viver satisfeito, mesmo que as contas sejam pagas parcial ou totalmente pelos pais. Leio que Portugal é o maior consumidor europeu de anti-depressivos. De repente, nada me admira.

Penso na reforma, faço cenários e caio na real

Patrícia Reis, 17.10.18
Aceita, Patrícia, que custa menos. Faltam-me 17 anos de labor.
 

Ciclicamente faço contas à vida. Mudo a minha imagem no mural do Facebook para um frame do filme da Disney "Branca de Neve e os Sete Anões". Alguém decidiu fazer do espaço Disney e das mil personagens uma plataforma de ironia, e, nesta imagem, a Branca de Neve surge de bruços (imagino que no escuro da floresta assustadora, depois de escapar às mãos terríveis da madrasta que a quer ver longe e, preferencialmente, morta) e a legenda reza assim: cansei, quero aposentar-me. É evidente que quem inventou a Disney irónica é uma alma brasileira e, muitas vezes, temos esse gosto suplementar da língua portuguesa recheada de musicalidade brasileira.

E então cá estou eu, em versão Branca de Neve, pronta para me retirar e este assalto emocional de contemplação da vidinha dá-se com uma regularidade matemática assustadora e cada vez menos espaçada. Ando a trabalhar há trinta anos, fui confrontada com isso – trinta anos! – este ano de 2018. Desconto para a segurança social há 29 anos, estive um ano a trabalhar à borla, por isso não tinha como descontar, mas não trabalhava menos por causa dessa manobra de exploração inerente ao então estatuto de “estagiário” da redacção de um jornal.

Como vou fazer 48 anos de idade não tarda nada, achei por bem fazer uma simulação da minha putativa reforma e, qual não foi o meu espanto, quando o senhor Google nem precisa que eu escreva na íntegra a palavra simulador, dá-me logo opções de simulador de IRS, IMT, crédito à habitação e de reforma. Percebo que, além do simulador de reforma disponibilizado pela segurança social (um pouco complicado, o que me levou a recorrer à minha contabilista do coração), temos companhias de seguro e instituições bancárias com o mesmo tipo de aplicação, imagino que tenham como objectivo promover ferramentas de poupança e outras coisas que tais, dando-nos a hipótese (ou será ilusão?) de que estamos a poupar para o futuro. Nós, na velha Europa, temos a tendência para pensar no futuro e planear. Na Índia, por exemplo, referir um Plano de Reforma ou algo assim faz tanto sentido como prever a mudança de tempo súbita.

Concluí então que não tenho como, mais ironia ou menos ironia, procurando auxílio nas personagens maravilhosas do imaginário infantil ou em outras, reclamar e anunciar a minha retirada do mercado de trabalho até aos 60 anos de idade. E, com essa possibilidade, tenho uma penalização imensa, mais de 50% do valor da reforma que terei se andar a batalhar até aos 65 anos. Conclusão? Aceita, Patrícia, que custa menos. Faltam-me 17 anos de labor. Não me incomoda se pensar no que tenho aprendido, nas pessoas com quem me tenho cruzado, na imensidão de projectos que ainda gostaria de ver por aí a vingar, a fazer caminho. Incomoda-me quando sou confrontada com a falta de ética, a velocidade extrema com que os clientes querem qualquer coisa, porque se é feito no computador (pois) não implica muito trabalho, pois não?, ou ainda quando percebo que aquela pessoa ali, com quem tenho de privar durante um tempo indeterminado, é um(a) sacana do pior, mal formado(a) e sem escrúpulos. Acabo por concluir que nestes trinta anos não mudei assim tanto: não é o trabalho que me maça, são as pessoas. Não é o que me custa fazer, é o pouco que se paga (e, nesse aspecto, posso assegurar que todos os orçamentos vieram por aí abaixo, cantando e rindo, cada vez mais irrisórios, cada vez mais infelizes).

Isto é arte, pá, pornografia é outra coisa!

Patrícia Reis, 27.09.18

Bem vindo ao império do politicamente correcto. Uma higiene moral imposta por quem considera que o público em geral é apenas uma criança a precisar de orientação. O retrocesso civilizacional a que assistimos é tremendo. Não respeitamos a liberdade do Outro, impomos regras, moral e puritanismo. Em nome de quê? De uma teórica civilização.

Vamos censurar uma exposição de um artista cuja obra é abundantemente conhecida? Obra cujo teor polémico tem sido amiúde debatido pelo mundo? Vamos limitar a entrada, porque - Deus proíba - há quem vá ver uma exposição com crianças de seis anos a Serralves sem se informar sobre o que está exposto? Talvez existam famílias assim, claro. Num mundo de tecnologia em permanente vertigem de informação, sendo o sexo acessível com enorme facilidade (olá sites pornográficos gratuitos), como é que nos atrevemos a fiscalizar a arte? O que é a arte senão o derrubar da norma para ver o avesso das coisas? E se arte explora o sexo desde sempre - historicamente é fácil de comprovar - por que carga de água é que agora nos dá para oferecer vendas para os olhos e estipular que o visitante de um museu tem de ser “moralmente” guiado?  

A história da suposta censura em Serralves à exposição do artista norte-americano Robert Mapplethorpe (1946-1989) é uma trapalhada de todo o tamanho. Certamente que existem bastidores negros, pormenores que nunca chegarão ao grande público. O dito e o não dito: a entrevista da antiga ministra da cultura, Isabel Pires de Lima, ao Expresso; as declarações do director artístico e curador demissionário, João Ribas, ao Público. Acresce: pequena manif para destituir a administração composta por Ana Pinho (Presidente), Manuel Cavaleiro Brandão (Vice- Presidente), Manuel Ferreira da Silva (Vice-Presidente); Isabel Pires de Lima (Vice-Presidente); Vera Pires Coelho; Carlos Moreira da Silva; António Pires de Lima e José Pacheco Pereira.

A administração que começou por reagir laconicamente, a seguir corrige o tiro (ontem em conferência de imprensa, a mesma administração declara que nunca houve censura em Serralves e que as decisões foram todas da responsabilidade do curador). O curador e director artístico demissionário (então, o homem demite-se mas vai ao vernissage?!) apresenta a sua demissão por email. Porquê? Os membros do Conselho de Administração dizem que não sabem.

Também achei graça ao director do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, António Filipe Pimentel, que comentando a polémica achou por bem dizer-nos que a Fundação Serralves tem mais apoio do Estado que a maioria dos museus (“Só em Serralves [o ministério da Cultura] investe mais que em todos os museus públicos nacionais”), ou seja, 40% do financiamento da Fundação Serralves é proveniente do orçamento do Ministério da Cultura. Para quem não se recorde, o orçamento para a Cultura não chega sequer a um por cento do Orçamento de Estado. Sobre este facto – não tenho porque não acreditar nas declarações de António Pimentel – não me recordo de ler mais uma linha sequer. Mas não ficamos por aqui.

Lúcido, o director do Museu Nacional de Arte Antiga explicou que em Serralves, na exposição da Colecção Sonnabend, esteve exposta uma fotografia da artista porno Cicciolina. Não se tratava, como é bom de ver, de pornografia, era arte.

Conclusão? Uma telenovela para apimentar a nossa existência, é certo. No fim, o artista – exposto em Portugal várias vezes em anos anteriores, mesmo que não numa retrospectiva de obra – ganhou: as visitas a Serralves foram muitas, mais de seis mil pessoas em quatro dias. Vamos lá ver o que é isso de sexualmente explícito e chocante? Vamos, mas olhem que é arte, só isso, arte. O resto é politiquice e intriga.

estou farto de não fazer nada, disse ele

Patrícia Reis, 23.08.18
O desabafo deu origem a várias coisas, entre elas a constatação estranha de não sabermos desligar, de termos dificuldade em descansar.
 

Um grande amigo, uma das melhores pessoas que conheço, tinha um restaurante em Lisboa e vendeu-o. Era o princípio do Verão e estava livre, sem compromissos. Com mais de 50 anos, podia – finalmente – gozar uns dias de praia, a monotonia de quem está a viver em pleno a silly season. Acontece que ao fim de poucos dias, mais de dez, menos de trinta, o meu amigo suspirou e disse: “Estou farto de não fazer nada”.

O desabafo deu origem a várias coisas, entre elas a constatação estranha de não sabermos desligar, de termos dificuldade em descansar. “Dá-te tempo”, aconselhei eu já em stress com não sei quantas coisas, a invejar o potencial fare niente do meu amigo. Rimos e aproveitámos o que nos reúne, mas concluímos que nenhuma das pessoas à mesa conta reformar-se, todas estão mentalizadas para trabalhar até “ter de ser”. Não se trata de não acreditar, como acontece a muitas pessoas, na impossibilidade de ter uma reforma do Estado. Trata-se de saber que a mesma terá condicionantes e pode não chegar para as necessidades. Os que estavam à mesa têm todos filhos, alguns netos. Não éramos um grupo de gente nova, já se vê, somos todos crescidinhos e temos a noção de que filhos ou netos ainda precisam de nós. Importa correr atrás da bola. O meu amigo podia continuar a gozar o seu momento de descanso, refazer a sua vida com calma, mas está ansioso por ter coisas para fazer, por ter um rendimento.

A jovem que nos servia um lanche primoroso composto por queijo e chouriço assado vai este ano para a faculdade. Tem dezoito anos. Em vez de aproveitar a praia e o último Verão antes dessa coisa estranha que é passar a ser universitária, decidiu que queria trabalhar e está a ajudar num restaurante. Num momento de pausa, confessou-me: “Gosto de trabalhar, mas não queria fazer disto vida, é muito duro. São muitas horas de pé e num restaurante atura-se o melhor e o pior”. É com orgulho que a vejo afastar-se com um tabuleiro em perfeito equilíbrio. Talvez o orgulho seja maior por entender que há uma satisfação tremenda em ter o nosso dinheiro, fruto do nosso trabalho, e que esta jovem está a ter essa experiência. Com a idade dela, eu já trabalhava e nunca deixei de o fazer. Pergunto-me se conseguiria estar parada.

Uma vez, há muito, muito tempo, fui a uma aula de yoga. Foi a primeira e a última. E porquê? Os últimos minutos eram de relaxamento, de alheamento de tudo, “deixar a mente ir”, dizia o professor. Eu tive o meu momento Julia Roberts e acabei por abrir os olhos (odeio que me mandem fechar os olhos!), observar aquele grupo de pessoas que, aparentemente, estavam mergulhadas numa certa paz, deu-me um frenesim, levantei-me e saí. Seria eu capaz de resolver as minhas questões profissionais e abandonar-me a uma certa letargia? Não creio.

O meu amigo riu-se e acrescentou: “O drama é que a nossa geração gosta de trabalhar, fomos educados para isso. Passámos necessidades. Conquistámos com muito esforço. As novas gerações...” Olhei para a jovem a servir um casal que acabara de lamentar a inexistência de pratos de caracóis, e tive a certeza de que as novas gerações são como a nossa. Mais coisa, menos coisa.

Parabéns à Madonna, parabéns a todas as mulheres

Patrícia Reis, 16.08.18

O que é que aborrece na Madonna? Não me digam que são os 15 lugares de estacionamento, por favor. Se me disserem que são os 300 milhões que terá, fortuna estimada por revistas da especialidade, e que a inveja vos rói enquanto fazem o euromilhões desta semana, pois estou convosco.

Para muitas outras pessoas o que aborrece na Madonna é o facto de ser dona e senhora do seu nariz desde que surgiu na cena musical. Não aprendeu a dizer que não e a rebelar-se contra o sistema com a idade. Surgiu com "Like a Virgin", já a dizer que não aturaria muito do lixo machista que por aí singra. Fez uma carreira sem grande voz mas com imenso talento para parcerias e mega produções.

Tornou-se incontornável, assumiu-se como um porta-estandarte da causa feminista e fez um pouco mais: disse alto e bom som que gosta de sexo, de prazer, de fazer o que lhe dá na real gana e que não deve explicações a ninguém. Incómoda? Faz-me lembrar um marido a dizer à mulher que ela precisa de aprender a não ser tão acintosa. Madonna grita-nos há mais de trinta anos que o podemos ser: acintosas, barulhentas, refilonas, capazes, poderosas, livres.

 

A artista expôs a sua vidinha muito tempo antes de andarmos a brincar às vedetas e as vidas felizes nas redes sociais. Expôs o bom e o mau, o corpo e as emoções, os desgostos de amor e esta mania terrível de dizer que ser mãe é ser também feliz (embora seja a profissão mais difícil do mundo).

Devemos à Madonna - como a tantas outras, bradarão para aí e com razão - uma ideia de mulher mais livre e isso faz de nós, mulheres, parte integrante desta chegada aos 60 anos da cantora. Sim, ela que não se importa de não pintar as raízes do cabelo, que deve ter feito um ou outro ajuste à cara e que tem o corpo pelo qual muitas mulheres (e homens) suspiram, também é condenada pela passagem do tempo.

Não há nada de simpático nessa inevitabilidade biológica - tudo a cair, tudo a enrugar -, mas o que importa verdadeiramente? Talvez seja o dia de hoje, o momento. Madonna parece estar bem consigo, com os filhos pequenos que adoptou, com a cidade onde escolheu viver, esta Lisboa que será impressa obrigatoriamente no próximo disco da super mega estrela.

Ela vende mais discos do que qualquer outra mulher e tem vários recordes. Chateia muita gente o facto de ainda cá estar, já o disse publicamente em diferentes situações, mas não creio que seja a idade a vergar a vontade absoluta de engolir o mundo, percebê-lo antes de tempo e reinventar-se a si mesma para pasmar o mundo e a todos nós.

Inscrever na faculdade... Para quê?, perguntam eles

Patrícia Reis, 26.07.18
Fui à faculdade entregar um papel e falar com o meu orientador de mestrado tendo ficado dentro de uma maré de estudantes ávidos de apresentarem as suas candidaturas ou apenas impacientes para ter respostas às mil perguntas. Sentei-me na cafetaria, lugar genial para quem gosta do exercício observação sociológica. Sim, sentei-me a ouvir as conversas dos miúdos à minha volta, sem qualquer pudor, dirão, e eu concordo.
 

“Eu nem sei se vale a pena...”, suspira uma jovem de telemóvel em punho, naquela atitude semi distraída em que anda meio mundo, entre a realidade e as redes sociais. “Eu safava-me se fosse trabalhar”. E a amiga, cabelo comprido, sorriso meigo, responde-lhe com rapidez: “Sim, sim, vais parar a uma loja, trabalhas que nem uma escrava e ganhas uma miséria para todo o sempre”. E a partir deste mote, os outros rapazes sentados à mesma mesa, três miúdos com 18 ou 19 anos de idade, fungam e explicam que trabalhar não deve ser tão mau assim, pior mesmo é pensar que em outubro voltam aos estudos. “Eu cá dispensava ter mais professores e mais livros”, diz o moço à direita, chupando um cigarro com afinco. E a conversa mantém-se neste tom, sem grande entusiasmo, sem alegrias excessivas. Uma das raparigas interroga-se: “Inscrever na faculdade... Para quê?”

O meu lado maternal podia entrar em acção e contar-lhes como a vida é dura e tal, como o mercado de trabalho é cada vez mais árduo e a importância extrema de uma formação digna desse nome. Podia, mas fiquei calada. Um dos rapazes apanhou um livro que deixei cair, sorri, agradecendo. “Vida de estudante...”, comento, pegando em mais livros para abandonar a mesa do café.

Ficaram a olhar para mim, a ver-me ir à vidinha. Terão ficado a pensar que já não tenho idade para estas andanças e eu a pensar que não sabem a sorte que têm. Podem ainda desfrutar deste tempo. Muitos dos novos universitários terão o entusiasmo que faltava a estes com quem me cruzei. E terão trabalhado muito para chegar a este momento de inscrições. Ainda bem. Conheço adolescentes que roeram unhas à espera da nota dos exames nacionais, que fizeram melhoria de nota, que querem muito – com empenho e compromisso – estudar, fazer uma licenciatura e a seguir mestrado (muitos sabem que não irão a lado algum somente com uma licenciatura). É o tempo deles, de se prepararem, de perceber que o futuro se constrói com estratégia e que tomar decisões nesse sentido é o maior acto de inteligência que existe.

Bem-vindos ao fascismo. O que tenciona fazer? Acatar ou resistir?

Patrícia Reis, 21.06.18
Não basta comentar o estado do mundo. Importa saber como organizar uma resistência eficaz e combativa face ao início desta realidade drástica: existem países cujo modelo político adoptado é fascista. Não existe outra palavra: fascismo. Não podemos assistir em transe, como se estivéssemos numa máquina de viajar no tempo, o reviver de situações similares às que vivemos nas décadas de 30 e 40 do século XX.
 

Os Estados Unidos da América, na sua política de tolerância zero à imigração, é um país que coloca crianças em jaulas, separa-as dos pais, algumas são dadas como desaparecidas. Tal como nos campos nazis, esses contra-monumentos, como lhes chamou Vergílio Ferreira depois de visitar Dachau, os funcionários são instruídos para se absterem de contacto físico com as crianças. Não há espaço para o afecto. O que os move não é o consolo e a rápida solução para estas crianças, com dignidade, é o racismo. Não há outra forma de entender.

Jornalistas como Raquel Maddow choram em directo na televisão ao receber notícias sobre estas crianças enjauladas e ficam incapazes de continuar a ler o que lhes acabou de chegar. Os comentários nas redes sociais sobem de tom. A mulher de Donald Trump reclama como se tivesse espaço ou credibilidade para o fazer e o seu marido, tão amigo do senhor Putin, assobia para o lado e manda retirar os Estados Unidos do Conselho dos Direitos Humanos a pretexto de não fazerem justiça àquilo que deveriam representar. A sério?

A resistência durante a segunda guerra mundial fez-se em vários palcos, mais ou menos organizados. Importa que a Europa possa fazer resistência ao que se passa do outro lado do Atlântico? Importaria se a Europa fosse forte, consolidada nos mesmos princípios e valores, unida e coesa, como foi o sonho dos fundadores da união europeia. Não é.

Infelizmente, alguns países europeus caminham para o mesmo tipo de política que se pratica sob a batuta do senhor Trump. Racismo, xenofobia, discriminação. Itália, Hungria e quais serão os países que se seguem?

Portugal, no seu esquema eterno de brandos costumes, não tem voz política para liderar qualquer resistência, bem sei, mas é pena. Não creio que a diplomacia seja a chave para resolver o nosso futuro. A pergunta impõe-se: que futuro queremos? Um futuro de gente branca para um lado e o resto em jaulas? Não vimos já o resultado destas políticas?

Numa entrevista ao Jornal de Negócios, Franco Berardi, o filósofo italiano, afirma: “A solidariedade é a maior ameaça para o capitalismo financeiro. A solidariedade é o lado político da empatia, do prazer de estarmos juntos. E quando as pessoas gostam mais de estar juntas do que de competir entre si, isso significa que o capitalismo financeiro está condenado. Daí que a dimensão da empatia, da amizade, esteja a ser destruída pelo capitalismo financeiro”.

Na vertigem do mundo, é urgente parar, pensar e agir para nos salvar, para nos restituir a dignidade, para que o século XXI não seja mais um século de horror na História.

engana-me que eu gosto

Patrícia Reis, 14.06.18

Esta semana deparei-me, numa rede social, com uma publicação patrocinada de mais uma aplicação de localização de pessoas. A mesma é vendida com a palavrinha “safe” associada. Ora, bem sei que vivemos tempos negros e que as questões de segurança são hoje mais pesadas do que em tempos idos, mas há algo de imoral e pouco ético nesta ideia de que possuímos o direito de “seguir” as pessoas de quem gostamos.

Seguir por amor? Não, por controlo. E controlar o outro, localizá-lo minuto a minuto no seu dia-a-dia, ter acesso ao histórico dos seus movimento (promessa da dita cuja aplicação) é uma forma de censura e não um princípio saudável. Confiar no outro é crucial? Para alguns de nós sim, para outros nem tanto.

Se fizermos um bom exercício de memória e formos honestos, sabemos que todos temos, filhos ou parceiros(as), certas coisas que são só nossas. Precisamos de autonomia, de silêncio, de privacidade e de certos segredos, por ser inerente à nossa condição humana. Quem não mentiu aos pais? Quem não omitiu? Esse processo de conquista de autonomia fez-se sempre, creio, destes caminhos, porventura menos “limpinhos”, mas urgentes para alcançarmos o outro lado da vida. Chama-se crescer.

Andar atrás de saber o que os filhos fazem, a toda a hora, muitas vezes sem o conhecimento dos mesmos, controlando com uma ferramenta digital que garante que é para a sua segurança é uma bizarria e é desonesto. O mesmo se aplica aos maridos e mulheres que, em vez de praticarem de forma veemente a confiança, vão para o outro lado das coisas.

Há uns anos, uma mulher que era idiotamente controlada pelo marido (ele via os seus sms, lia os seus emails, controlava os seus gastos tendo acesso à sua conta bancária) disse-me: “Como ele não confia em mim, vou arranjando outras formas de fazer as minhas coisas. O princípio de funcionamento do nosso casamento é o 'engana-me que eu gosto'. Se ele não gostasse de ser enganado não fazia estas coisas”. O casamento terminou há uns meses. Eu não me surpreendi.

Que moral existe na perseguição do outro? Como se pode legitimar essa perseguição e controlo invocando conceitos amorosos, palavrinhas que derivam do tal “safe”, de amor e cuidados constantes? Não se pode.

Parece que a dita aplicação, que se apregoa como sendo muito melhor do que um sistema sinistro de invasão e espionagem, é um sucesso de vendas. Perante estes dados, admito que fico surpreendida. Talvez seja ingenuidade minha, aceito que o seja.

Que mundo é este? Não o reconheço. E quando os discursos se inflamam sobre a privacidade, a intimidade, os direitos básicos de cada um, pelo menos por padrões ocidentais, parece que vivemos numa bipolaridade ou numa esquizofrenia: queremos liberdade para nós, não damos liberdade aos outros. Que é como quem diz: não faças o que eu faço, faz o que eu digo, porque a teoria que se apregoa é lindinha e sustentada em bons princípios. A prática? Ah, muito haveria a dizer sobre isso mas não há tempo.

eu sei que vou te amar

Patrícia Reis, 12.06.18

Não é uma música do Chico Buarque, tão pouco este a cantou nos concertos de há dias em Lisboa e no Porto, mas foi assim, a cantarolar a canção de Tom Jobim, que saí do Coliseu dos Recreios depois de duas horas da melhor música do mundo. Passaram-se dias, e não me sai da cabeça.

Em vez de nos esmagar com canções que sabemos cantar menos bem, aquelas que compõem o novo disco ou o seu percurso mais longínquo, o artista optou por um alinhamento musical tecido com inteligência e cuidado. E houve tempo para as novidades, para os clássicos, para os ultra clássicos e para a homenagem ao grande Wilson das Neves, a quem o concerto é dedicado.

Houve alegria e comoção de Chico Buarque que foi também a nossa alegria e comoção.

É preciso amar um artista que nos dá o seu melhor e, nesse aspecto, Chico chegou inteiro para se entregar.

E o público português aplaudiu, assobiou, elogiou, atirou cravos para o palco e bateu com os pés nos estrados de madeira, provocando aquele som único que só o Coliseu permite. Sim, o público português quando é generoso é muitíssimo generoso.

Amamos o Chico. Por parecer pouco vedeta, por ser o homem que compõe canções que enriquecem a nossa banda sonora de vida, por escrever aqueles versos que, de repente, são nossos, contam a nossa história, ou nos fazem pensar que talvez seja possível cair “na contramão atrapalhando o tráfego".

Não é possível viver sem música. E a música brasileira tem - sempre teve - um lugar especial para nós. Não é só país irmão, a aproximação da língua (até porque a riqueza do português do Brasil é, tantas vezes, surpreendente), é por termos assim o condão de garantir um gingado que, naturalmente, não possuímos e que a música popular brasileira nos oferece sem regras. Mexemos o corpo (sim, não chegamos a sambar, mas mexemos o corpo), cantamos a plenos pulmões mesmo que seja ingrato acompanhar alguém como o Chico.

Para mim, a música brasileira é a minha mãe, ela que ouvia o disco em vinil do concerto ao vivo do Chico com o Caetano, de 1972, como quem respira, sempre em loop; ela que sabe as letras todas; ela que não desafina; ela que pede emprestado às letras pequenas graças que aplica no dia a dia. Há uns anos, num outro concerto, a minha mãe desatou a chorar. A minha mãe chora pouco, portanto a minha aflição foi imensa. Não chorava de tristeza, chorava de alegria pela música, por estar ali, por aplaudir vários músicos absolutamente excelentes.

No concerto do Chico Buarque, no fim de semana passado, chorámos as duas um bocadinho. Creio que a maioria das pessoas no Coliseu chorou um bocadinho e, nessa união, quase que pedimos para que o Chico não "deixe em paz meu coração", porque é todo dele.

assim vale a pena ser deputado

Patrícia Reis, 08.06.18

No início de maio, a RTP, numa reportagem exclusiva, confrontou alguns deputados (de partidos à esquerda e à direita) sobre o facto de terem residência em Lisboa, viverem na capital, mas terem como morada oficial uma outra, longe bem longe de Lisboa, possibilitando incorporar no seu rendimento um subsídio de deslocação. Pese o escândalo da situação e da pouca ética demonstrada, a verdade é que não se ouviu dizer mais nada sobre o assunto. Esta questão dos deputados e das respectivas deslocações já tinha estado em debate por causa de viagens de avião.

O que a reportagem da RTP provou é que existem 159 deputados com subsídios de deslocação e, muitos deles, moram em Lisboa. Há mesmo quem more a 500 metros da Assembleia da República. Os subsídios dão, nos casos abordados pela reportagem, uns confortáveis, decerto bem vindos, dois mil e tal euros de acréscimo ao salário. Portanto, os deputados, com esta manobra, ganham mais, muito mais, do que seria de esperar e, pior ainda, os ditos subsídios não estão sujeitos a tributação.

Sempre defendi que os deputados, como representantes eleitos, deveriam ganhar o melhor possível. Uma das razões que leva a que algumas pessoas se afastem da política é precisamente a questão financeira. Mudei de ideias. Porque uma coisa são os salários e outra, completamente diferente, é a realidade que se reflecte em cada recibo de vencimento do deputado ou deputada que considera que ainda vive no norte do país, porque tem aí uma mãe com 95 anos e é aí que se desloca quando a agenda permite.

Qual é ordenado de um deputado? Tomem nota: 3.624, 42 euros. A este valor acresce uma maquia se não trabalharem em mais lado algum, outra por serem deputados, só porque sim, e ainda o tal subsídio de deslocação se, claro, tiverem mandado dizer que moram em Viseu, em Braga, em Faro e outro abono ainda por estarem eventualmente longe de casa, da família.

 

 

O subsídio de deslocação não é igual, calcula-se ao quilómetro. São 69,19 euros por dia para quem more fora de Lisboa; 23,05 euros para quem more na capital. A mim não me pagam para ir da minha residência para o meu emprego, mas claro que eu não fui eleita e tal e não conto para este campeonato.

Além da remuneração principal que recebem por serem eleitos, os deputados recebem também uma quantia para exercerem essa função na Assembleia da República, em Lisboa (a ver se não desmoralizam, coitados, um incentivo para um entusiasmo extra, será?); recebem outra parcela caso não trabalhem em mais nenhum sítio (o regime de exclusividade vale um abono fixo de 370,32 euros mensais) e ainda recebem outra parcela fixa simplesmente por serem deputados da Nação e “representarem todo o país”. A tudo isto acrescem subsídios com deslocações que variam consoante o local de residência e a sua distância até ao Parlamento e por se deslocarem ao respectivo círculo eleitoral. Estes valores somados estão isentos de impostos. Um deputado ou deputada, assim, pode ter um salário e cinco abonos? Pois pode.

Querem-me explicar como se fosse mesmo muito burra ou temos aqui um problema? Talvez seja de pedir ao Presidente da Assembleia da República que tome os deputados como alunos na escola e faça o favor de fiscalizar quem é que tem mais dinheiro por mês por morar ficcionalmente numa outra ponta do país, embora mantenha residência em Lisboa, faça aqui a sua vida, tenha família com vínculos vários a empresas, a escolas, a instituições. De resto, lamento, um esquema é um esquema, a falta de ética comportamental não atinge apenas o comum dos mortais, é praticada pelos grandes da nação.

Quanto tempo o tempo tem

Patrícia Reis, 24.05.18
Vivemos na absurda velocidade furiosa, não temos tempo. Não temos para a família, para os amigos, para pensar em estratégias, não temos tempo para nós. A vertigem das redes sociais, do estar permanentemente ligado, incapazes da solidão, é um dos maiores males do século XXI. Porquê? Porque tudo é feito pela rama, num esquema superficial que garante a sobrevivência, mas não dá felicidade, mergulhando em ilusão de sabedoria, sem ler com concentração, sem espaço de debate construtivo.

Enchemos os horários das crianças. Creio que a maioria já não brinca o que eu brinquei. Outros tempos, dizem-me. Não são tempos para as coisas básicas, sendo que uma delas é a leitura. Diz-se que os jovens lêem, não deixaram de ler. Lêem com o dedo a deslizar pelos ecrãs, a luz branca a garantir ligação ao universo. Não lêem "O Jogador" de Fiódor Dostoiévski, não mergulham com entusiasmo na "Tragédia da Rua das Flores" ou nos "Maias". Os Maias podem ser entendidos através de um pequeno livro de apoio à leitura que resume a história e personagens. Como ninguém entende o que quer dizer “apoio à leitura”, por isso serve perfeitamente.

Não temos tempo para ler, porque não temos condições para aguentar o silêncio. Precisamos de barulho. Precisamos de verificar o nosso smartphone com frequência, talvez tenhamos perdido alguma coisa. Como aquelas pessoas que abrem o frigorífico sabendo que não foram ao supermercado, mas na esperança de que alguma coisa se materialize. E, por isso, estamos atentos a esta ligação constante ao mundo, lemos as gordas, conseguimos a proeza de ver pequenos vídeos já sem som. E o som é crucial por ser o maior condutor emocional que temos, mas também isso parece não importar muito. Diz-se que os livros são caros. São menos caros que jogos, que bilhetes de festivais e, para mais, encontram-se verdadeiras pechinchas em alfarrabistas e há ainda livros à borla nas bibliotecas. É difícil promover a leitura. Existe um pretexto permanente que diz sim-importa-mas-agora-não-dá.

Se considera que a educação é cara, experimente a ignorância, afirmou Derek Bok, antigo presidente da universidade de Harvard. Ora, tentem substituir a palavrinha educação por cultura e o resultado é o mesmo.

Isaac Asimov, um dos mais importantes escritores de ficção científica de sempre, escreveu: “Se o conhecimento pode criar problemas, não é através da ignorância que podemos solucioná-los”. Não conseguir ler, não ter tempo, é uma forma de não conhecimento, logo de fracas soluções. Tudo isto vem a propósito do quê? Vem aí a feira do livro de Lisboa, em Setembro teremos a do Porto.

Vá lá comer uma fartura, pois é a tradição, mas vá também comprar livros para si, para as suas crianças, para oferecer no natal. Para ler. Com tempo. Desligado do resto, na certeza de que os livros são o melhor bilhete de viagem que existe. Podemos ir ao espaço, ao século XIX, à lua, andar de submarino, subir às pirâmides, enfrentar uma guerra. O livro é a melhor forma de entendermos o mundo e de reflectirmos. Para reflectir, lá está, é preciso tempo. E quanto tempo tem o tempo que temos nos dias que correm? Parece que é curto. Demasiado curto para o que é manifestamente urgente.

Um ataque terrorista, foi isto que aconteceu na academia do Sporting

Patrícia Reis, 17.05.18
Um grupo de homens armados com objectos que causam danos concretos entraram num local onde estão homens sem os mesmos objectos. Foi isto, não foi? Chama-se terrorismo. E não vale a pena dourar a pílula. O infeliz episódio na academia do Sporting não tem outra classificação.
 

A minha avó, que tem 85 anos e sempre foi leoa no seu coração, não merecia isto. Nenhum adepto merecia. Mas sobretudo a equipa técnica e os jogadores, de que clube forem, não merecem nada disto, porque ninguém merece um acto de terrorismo.

Não faço ideia se a equipa terá condições psicológicas para jogar este fim-de-semana, um jogo importante que, afinal, será assombrado por esta violência e pela controvérsia em volta do presidente. Mesmo que o dito cujo presidente seja uma espécie de ditador – há quem lhe chame o Kim Jon-un-Carvalho – o clube não tem condições para manter esta situação e polémica.

O clube não é apenas um clube, é uma instituição, são mais de cem anos de história. Isso exige respeito de qualquer um. Podem dizer-me que o senhor foi eleito, que ninguém pode garantir que os terroristas tenham sido mandatados para aquele ataque, sim, sim, ataque, leram bem, mas continua a ser insustentável ter um presidente que diz e faz o que diz e faz.

Sou insuspeita nesta matéria, quem me conhece sabe que não aprecio futebol, digo que sou do Belenenses por me parecer um clube simpático, ter um estádio bonito e um logótipo invencível. Dito isto, não sou imune aos ataques de terrorismo e não consigo dizer que a minha vida seja isenta de futebol, tenho marido, filhos, amigos e uma avó adepta do desporto-rei.

O que aconteceu deve ser denunciado, deve ser punido e alvo de muita reflexão. O futebol, como outros desportos, serve muitas vezes de exemplo aos mais novos. Estes terroristas podem dizer às famílias que fizeram o que fizeram pelo clube, pelo amor à camisola, para mim será o mesmo que o Estado Islâmico dizer que fazem o que fazem porque têm uma religião que sustenta as suas acções.

"Não faz mal, este mês tomas tu os comprimidos. Para o próximo mês tomo eu."

Patrícia Reis, 10.05.18

São quase 2,4 milhões de pessoas em risco de pobreza, assim o atesta o Inquérito às Condições de Vida realizado pelo Instituto Nacional de Estatística. Menos 196 mil pessoas que em 2016. Eu nunca gostei de números por não terem, na minha opinião, sensações, caras, olhares. São uma espécie de coro de vozes, mas vozes invisíveis.

O ditado diz que olhos que não vêem, coração que não sofre, e a estatística toma esta verdade por boa, quase que nos protege de entendermos a realidade.

Este número - 2,4 milhões - é esmagador e inadmissível e conta histórias reais. Deste número, 18,8% refere-se a crianças ou jovens, menores. Quantos são? 451 mil, diz quem sabe de números. Quase meio milhão de menores que vivem sem o básico.

Ninguém se pode orgulhar destes números e tão pouco das histórias envolvidas: pessoas que não conseguem emprego, que perderam o emprego, que abdicaram dos estudos para ajudar os agregados familiares. Sim, Mário Centeno diz-nos todas as semanas que estamos muito melhores.

Uma das coisas boas dos números é que podem ser interpretados e virados ao contrário. Podem mesmo ser atirados como areia para os olhos. Estes números, de um inquérito que começou em 2004 com entrevistas pessoais, prova que temos muito para andar, porque, caramba, não podemos ser festa e glamour, não podemos ser cumpridores face à Europa e as suas regras, e depois descartar esta informação concreta sobre a forma como as pessoas vivem. Pessoas para quem o rendimento de inserção social chega? Não chega? Encaixam nos critérios, não encaixam?

Com esta realidade bem viva na minha cabeça, fui hoje à farmácia e assisti a uma cena de partir o coração. Um casal já com alguma idade não tem como pagar a medicação toda e a senhora, vestida de forma muito modesta, diz: "Não faz mal, este mês tomas tu, para o próximo mês tomo eu".

Saíram dali com a dignidade de quem enfrenta todos os dias um limiar de indignidade. Podia escrever mais vinte linhas sobre isto, mas não adianta. Este mês, a saúde do marido é a que vale. No próximo mês é a dela.

Fala-se muito de acção e responsabilidade social. Fazem-se muitos inquéritos, até se fazem comissões parlamentares todas as semanas, parece-me. Há uma queixa constante face ao sensacionalismo de alguns órgãos de comunicação social que, afinal, espelham o que é o país, para o bem e para o mal. A pobreza e a exclusão social são questões apartidárias, e precisam de ser combatidas. Com eficácia. Não através de um quadro com curvas ascendentes e descendentes que provam que estamos muito melhor.

Podemos estar muito melhor, mas não estamos bem.

"dou-te liberdade", disse ele. O tanas, deveria dizer ela

Patrícia Reis, 03.05.18
A violência no namoro não é uma ficção espelhada pela sétima arte em filmes e afins, com contornos mais ou menos perversos. É uma realidade e portuguesa. A ideia de que a pessoa com quem se namora é propriedade, logo está presa a padrões de comportamento e de discurso que devem, obrigatoriamente, cumprir os desejos do outro é, dir-se-á, retrógrada, não se discute. Temos de discutir e de formar pessoas para o futuro das relações que serão, não só familiares e profissionais, mas também amorosas.
 

Um rapaz que tenha visto a mãe submeter-se ao pai talvez vá replicar o comportamento e exija da namorada o que nenhum ser humano deve exigir seja a quem for.

“Eu dou-te a liberdade para fazeres...” Há frases que são mortais e esta é reveladora do posicionamento face ao outro/a. Significa que aquela pessoa considera que, por estar envolvida numa relação amorosa, pode aprisionar e condicionar comportamentos, “certas liberdades”. Neste discurso cabe muitas vezes a palavra respeito e, como se sabe, o respeito implica liberdade, a tal que não se dá a ninguém e tão pouco se autoriza.

Ainda hoje conheço casais cuja relação não é paritária. Na maioria dos casos que conheço, são as mulheres que são desfavorecidas. Conheço maridos que controlam o smartphone da sua cara metade ou até mesmo a conta bancária. Conheço jovens que entendem que o namoro implica obrigações e até um dress code. “Vais assim à rua? Comigo não”. Também existe a variante do amuo que se presta muito a esta afirmação: “Tu é que sabes”.

Assim ​se fragiliza alguém, assim se destrói a auto-estima, assim se desvaloriza e diminui uma pessoa.

Uma relação amorosa digna desse nome impõe a ideia de compromisso, mas isso não significa deixar de se fazer o que se gosta e, muito menos, limitar a outra pessoa. Podia citar a tal canção do Sting, mas não vale a pena. Parece uma coisa óbvia. Insisto: não é.

“Tu não percebes que estás errada?” Talvez em tempos alguém entendesse a frase com candura. Não tenho como.

Importa educar os jovens na forma como se relacionam amorosamente. Importa dizer que o ciúme não é prova de amor, mas sim de posse.​ Que um namoro não é um ferro em fogo quente queimado no braço, como uma marca. Um casamento também não​. As pessoas que se amam, confiam.

campeão português precisa de tapete com 10x 10 metros, alguém tomou nota?

Patrícia Reis, 19.04.18
Esta é uma crónica para quem gosta de desporto. Para quem, perante uma vitória, grita Portugal, divulga nas redes, diz-se orgulhoso, não se cansa de ver o feito.
 

É uma crónica sobre um menino açoriano que subiu ao pódio da Taça do Mundo no Open Internacional de Ginástica no escalão juvenil. Ganhou a competição com 19.250 pontos. Ao lado de Tomás estavam Damir Manacof da Rússia, com 19.200 pontos e Leonor Manta da Roménia com 18.600 pontos.

O sorriso de Tomás Amaral na vitória é quase comovente, diz tudo. Está ali o seu momento, é grande, é imenso, é o seu nome, o hino do seu país, os pais a morrer de orgulho, de certeza, a treinadora, Alexandra Barroso, de lágrimas nos olhos, os amigos a torcer para que tudo tenha valido a pena. Um corpo de rapazinho, pequeno e esguio, a voar num tapete de dez por dez metros. Vence o ouro para Portugal e deveríamos estar histéricos de felicidade, deveríamos abençoar o século XXI e a evolução dos nossos atletas e respectivas condições de trabalho.

Tomás Amaral só pode treinar duas vezes por semana, porque não há condições em Ponta Delgada para este ou outros campeões e, apesar disso, como a estrada em tempos para Rosa Mota, os atletas persistem. O Tomás Amaral treina no Clube de Actividades Gímnicas de Ponta Delgada. A treinadora diz que as condições que têm são más, que precisa de uma área oficial de 10 metros por 10 metros mais do que duas vezes por semana.

Quem nasceu a ver Nadia Comăneci e afins a voar nos tapetes, com o arco, a bola, a fita, nas paralelas assimétricas, só pode dizer: incrível, ganhámos, ganhámos aos russos, aos outros, aos do costume. Nós, o povo de feitos incríveis em tantas áreas, sim, nós, mas caramba na ginástica e sem condições.

O sorriso de Tomás Amaral fez o meu dia, fez o dia de muita gente, mas não de um país. Há modalidade e modalidades, já se sabe. As atenções estavam no futebol, dizem-me. Vão dizer isso ao Tomás, sim? Talvez até seja do adepto ferrenho de futebol este o nosso campeão, mas isso nem interessa para nada.

O que importa mesmo dizer é que precisamos de dar condições aos nossos atletas, jovens ou menos jovens, olímpicos ou paralímpicos (e se formos para o universo dos paralímpicos, pois devíamos ter vergonha como país, porque as medalhas chegam-nos em barda, mas esses são os atletas do não-apoio). E em Ponta Delgada estas condições não existem. O que existe é uma enorme vontade de vencer, de ser melhor.

Depois de escrever estas linhas, soube que Diogo Ganchinho é campeão da Europa de Trampolim. Ok, não tem o glamour de outras coisas, pois, mas parabéns Diogo, parabéns Tomás! E parabéns Portugal.