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Delito de Opinião

Mandar vir

Maria Dulce Fernandes, 17.06.21

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Levar a vida a correr ou pertencer ao culto do menor esforço?

Antigamente… bem, sejamos realistas, antigamente era um massacre!

Alvorada às cinco e meia, prepararmo-nos, preparar as crianças, preparar papas, engolir um café, mala à tiracolo, saco ao ombro, marsúpio ao peito.

Apresentar… filhos!!! E toca a correr avenida abaixo para o comboio, ansiando pelas folgas semanais. Ansiando? Porquê? Ou eram compras no super, ou cozinhados, ou manobrando aquele instrumento de tortura, criado para escravizar o belo sexo, chamado ferro de engomar.

Um massacre diário. Uma tortura semanal.

Chegadas em casa, pelas oito da noite, cozinhar era a última vontade, aquela que passamos em testamento para quem vier depois. Ah pois! Depois, não vem seja quem for, por isso se queres comer, olha… cozinha!

Está claro que todas estas arestas se vão limando com o tempo e passa muito por cultivar no cara-metade o gosto pelo malabarismo dos tachos e panelas, mesmo sabendo que não sabe fritar, ou cozer, ou mexer um simples ovo.

Mandar vir significava chegar a casa e ter tudo por fazer porque, por exemplo, estava a dar o Sporting na TV, e não conseguir ficar calada sentida que era a injustiça.

Mandar vir tem  presentemente todo um novo significado.

O que é o jantar? Não sei! O que te apetece? Olha… Mandamos vir!!

A oferta e a procura são muito equiparadas e há preços que compensam o tempo e o trabalho.

Se a qualidade e a quantidade não são importantes  porque não mandar vir?

É comida? É sim. É variada? É sim. É boa? Meh… no máximo escapatória.

E cozinhar? A arte da culinária, a 12.ª arte?

Muito provavelmente entrará em desuso, sendo apenas praticada na clandestinidade por um punhado de resistentes que se recusam a mandar vir.

Na Sopa (6) - Júlia & Juliana

Maria Dulce Fernandes, 14.03.21

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A facilidade que as crianças têm em fazer associações de ideias remete-me sempre para a Sopa Juliana. O eu da minha infância nunca teve a mínima dúvida de que o nome de Sopa Juliana se devia ao facto de a mesma ser confeccionada pela Avó (bisavó)Júlia.  Lá vinha ela às 2as feiras, nos tempos em que a “praça" apenas encerrava ao Domingo, com a alcofa de palha cheia de embrulhos de papel de jornal em forma de cartucho de tremoços, com meio quilo dos mesmos e uma quarta de pevides para os meninos, couve e cenoura picadinhas naquela maquineta redonda de dar à manivela que a tia Adelaide tinha na banca da praça, uma quarta de feijão encarnado e batatas, cebolas, cenouras e abóbora a granel lá mais no fundo da alcofa.

Tirava o xaile castanho, guardava ciosamente a caixinha do rapé, arregaçava as mangas, botava  um avental cinzento com frente e verso sobre a saia comprida, atava o lenço preto na nuca e começava a preparar a base da sopa, com batata, cebola, cenoura, abóbora e alho e cozia  à parte o feijão encarnado previamente demolhado.

A Avó Júlia, a única verdadeira cozinheira da família, trabalhara na cozinha do Palácio das Necessidades antes da República e sabia cozinhar como ninguém,  apesar de os seus conhecimentos gastronómicos não poderem ser aplicados em casa com frequência,  porque o custo de vida e a família numerosa não lhe permitiam preparar na modesta cozinha com fogão a lenha, os acepipes que cozinhava para a realeza. Contava ela  com aquele meio sorriso de pessoa sofrida, que também tinham que ser inventivas e algo malabaristas com o orçamento na cozinha do palácio,  porque a Rainha D. Amélia era muito rígida com as contas,  bastante forreta e muito exigente.

“ D. Amélia de Orleães,  que em Portugal foi Rainha, tinha coração de fera e julgava ser santinha", cantarolava a Avó Júlia, a título de pregão explicativo das coisas que tinham sido.

Sopa havia sempre e em boa quantidade, por isso a “entrada" era invariavelmente sopa , que tinha que ser consumida a todas as refeições e até acabar o panelão.

Por estranho que possa parecer, a criançada comia o que comiam os adultos e se a sopa tinha couves e feijões,  pois que era o que havia para comer e com fita ou sem fita a sopa era uma instituição.

Eu não gostava de sopas com “couves”. Qualquer legume que obrigasse a um processo de mastigação mais demorado, era um tormento. De todas as sopas de“ couves", o meu ódio de eleição recaía na sopa de feijão verde. Ainda agora a minha relação com as judias verdes é bastante tensa. Já a couve branca curiosamente comia bem, enrolada tipo esparguete e feijãozinho, sempre.

Depois de cozinhados os legumes eram passados pelo enorme passe-vite de folha, acrescentados de água, azeite , sal e da Juliana de couve e cenoura e por último do feijão encarnado já cozido.

Se era boa a sopa, nem vale a pena perguntar. Por muito que  tente reproduzir os sabores de antigamente, nunca consegui alcançar o sabor que emanava da paixão pela cozinha e pela família que a Avó Júlia acrescentava aos condimentos de  todas  as suas sopas e de  todos os seus cozinhados.

Biscoitos

Leonor Barros, 15.08.11

E hoje apetece-me biscoitos. Chegar à cozinha e o pôr em prática as inúmeras receitas de biscoitos que me entretive a recolher. Chegar à cozinha e entregar-me sem culpas à indulgência de algo tão simples mas sempre tão alquímico, tão acolhedoramente intimo, tão primitivo e feminino, essa coisa de amar alimentando, nutrindo, envolvendo com beijos de açúcar e nuvens perfumadas que pairam invisíveis como um manto pela casa, reminiscência de memórias gratas de infâncias longínquas. E o processo depois. Juntar ingredientes, tanto que serão um só. Envolver, mexer, amassar. Exercer o meu direito de liberdade transgressora, nunca aberto à discussão, e acrescentar algo mais: canela, cardamomo, gengibre, limão ou laranja, raspas de chocolate talvez. Cozinhar é sempre transgressão. Transgressão e liberdade. E amor. Apetecia-me biscoitos, dizia eu.

 

Também n' A Curva da Estrada

Hoje há crepes, mas não para mim

Cláudia Köver, 07.08.11

Assimilado o cheiro a esgoto, que infelizmente se entranha nesta passagem bem próxima dos Armazéns do Chiado, escolhi o tão desejado lanche: crepe com queijo brie, mel e noz.

 

Mas, “não há crepes”, dizem-me. Pelo menos não para mim.

 

Assim tive de fazer recuar a saliva que se amontoava na expectativa de saborear um queijo derretido e contentar-me com um scone com doce de framboesa. Um scone, sim. Antigamente (como quem diz, há uns meses), vinham dois ou três. Hoje, veio só um, que chegou atrasado e de formato entristecido, como se algo no seu interior o tivesse feito encolher-se em solidão.

 

“Foi feito na hora”, desculpa-se a figura atrapalhada.

 

Já mastigava eu o scone - lamuriando ainda o meu desejo de comer o tal crepe - quando me recordei que muitas das poucas coisas que sei cozinhar são compostas por: farinha, açúcar, manteiga, leite e ovos. E se eu tinha dúvidas na receita, o crepe que chegou à mesa da alegre família da mesa do lado deixou-me esclarecida e, enfim, faminta de inveja.  

 

Entretanto, se por lá passarem, comam o tal crepe por mim.