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Delito de Opinião

Há quatro anos

jpt, 04.03.24

toquei na minha mãe pela última vez. É certo que a, posteriormente consagrada, directora-geral da autoridade sanitária pública ainda nos viria convocar para visitarmos os nossos "mais-velhos", e que o nosso PR ainda andava, frenético país afora, em comemorações teatrais. Mas, face ao que já grassava na Itália e em Espanha, decidimos não visitar a mãe até que as coisas, que tão negras pareciam, viessem a serenar. Fui, fomos, à Ericeira dizer-lhe isso, afiançando-lhe a crença de que seria por pouco tempo, uma "maçada" apenas, algo a que ela, nonagenária lúcida, acedeu em acreditar.

Uma semana depois, a 13, a minha filha viajou de Inglaterra - no exacto dia em que Warwick, a sua universidade, encerrava por todo aquele ano lectivo (!) -, fui recebê-la ao aeroporto, ainda pejado de exultantes turistas nórdicos em busca de sol de Inverno, vinho barato e peixe grelhado, tal como no Tejo ainda aportavam os gigantes paquetes..., vil e incompetente coisa de país reduzido ao afã da "indústria turística". E, angustiados, seguimos directos para Sul do Tejo, onde amigos-verdadeiros irmãos abriram a levadiça do seu já confinamento para nos albergar. Dias depois o país confinou-se.

Algum tempo depois pude voltar, voltámos, a visitar a minha mãe, à distância sem beijos nem toques, no jardim frondoso da "Residência" onde vivia. E, em piores momentos, apartados por uma barreira de acrílico. Um dia, meses depois, ela, bastante enfraquecida por aquela clausura angustiante, disse-me e repetiu-me "és muito bonito, meu filho, és muito bonito", inédita hipérbole que atribuí a alguma anciã confusão intelectual e a um carinho saudoso. Era, afinal, uma despedida pois morreu poucos dias depois. Sem que eu a pudesse ver uma última vez, já no seu esquife, devido às exageradas restrições, nisso disparatadas, mesmo assarapantadas...

Andava eu acabrunhado, acabrunhadíssimo fiquei, entretanto talvez me tenha libertado do superlativo.               

E acabrunhados então andávamos, ainda que não desistentes: o meu amigo Miguel Valle de Figueiredo - que é não só um bom fotógrafo mas também um homem como deve ser (Homem com H grande, dizia-se) - logo se apartou das angústias e saiu à rua para fotografar a cidade confinada, tendo editado o seu "Cidade Suspensa", a Lisboa dessa inicial era Covid. E depois, meses a fio, continuou a fotografar-nos. Acabrunhados, nisso até exaustos. Deixo aqui alguns de nós por ele fotografados.

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sentada.jpgPara quem se possa interessar: um dia deixei um relato longo dos dois primeiros meses de Covid em Portugal, chamando-lhe "O Capitão MacWhirr e o Covid-19". E julgo que qualquer leitor de Conrad logo pressentirá o seu conteúdo...

O Almirante

jpt, 19.03.23

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(Gouveia e Melo, fotografado por Miguel Valle de Figueiredo)

O país estava exausto pelos efeitos do Covid-19, atrapalhado pelos normais constrangimentos e hesitações governamentais face àquele enorme desafio, tudo incrementado por alguns ziguezagues desnecessários. Após um ano de pressão pandémica o alívio da esperada vacinação começou embrulhado em confusão executiva e manchado por alguns casos de nepotismo, na apropriação de vacinas por membros da elite socialista, algo exasperante e incrementando dúvidas sobre a capacidade de uma competente vacinação universal. Neste caso não é necessário fazer o rescaldo das práticas então seguidas pelo Ministério da Saúde, e restante governo, pois nisso logo se dividem as opiniões devido a critérios advindos do viés partidário. Mas é pacífico constatar que após Gouveia e Melo ter sido colocado no topo da sua estrutura organizacional  - e de ter lhe reforçado a participação militar  - o processo nacional de vacinação foi um sucesso, até inesperado. Para tal contribuiu a credibilização dos serviços: explicitando a confiança nacional nos ditâmes dos agentes da Saúde (remetendo os "negacionistas" das vacinas a um minoria histriónica). Mas também na racionalidade e na rectidão dos processos, pois logo minguaram as atrapalhações executivas e, mais, desapareceram as notícias sobre autarcas e deputados a reservarem alguns lotes de vacinas para si, familiares, amigos e vizinhos. E contribuiu também, não o esquecer, a constante e ponderada disponibilidade comunicacional do coordenador-geral Gouveia e Melo, sossegando e mobilizando as hostes nacionais.

 

 

3 anos após o confinamento

jpt, 14.03.23

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(Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

Ontem, 13 de Março, passaram-se 3 anos exactos!: a minha filha chegou de Inglaterra, onde a sua universidade encerrava por todo aquele ano lectivo, eu recebi-a num misto de angústia - aquela que presumo todos os pais terem sentido nessa época, ainda desconhecedores dos efeitos que a nova doença teria entre os jovens - e de ira, pois acolhendo-a num aeroporto pejado de turistas ingleses que vinham ao Sol do Algarve, e sabendo que os paquetes apinhados ainda atracavam ao Tejo..., isto tudo entre as já trapalhadas da futura "Super-Marta" (que agora se anuncia "para Lisboa"!), sua dra. Graça ("visitai os lares de terceira idade", clamara ela nessa mesma semana) e restantes dignitários... Saímos da Portela logo rumo a Sul do Tejo, e confinámo-nos junto a um grupo de amigos que já se tinham encerrado há já uma semana, abrindo o portão apenas para que nós entrássemos - Amigos-Irmãos, verdadeiramente.
 
Era-me um momento importante, regressara há pouco da Bélgica, tinha ido ao Brasil, tinha sido convidado para regressar a Moçambique. Terminava um trabalho demasiado longo ("falta-me um mês, mês e meio, não mais do que isso..." augurava eu), reinventava-me como jovem, nisso homem com sentimentos, "isto" parecia que ia recomeçar. Logo um amigo brasileiro, também antropólogo, desafiou-me a escrever algo sobre o Covid-19 por cá, a publicar entre um colectivo de textos. Nas noites (de angústia, claro) fui ver o que os outros botavam: uns davam-se à demagogia anti-liberal, nisso julgando-se "intelectuais orgânicos" de uma qualquer "pós-modernidade". Outros, mais plácidos, actualizavam, talvez inconscientemente a velha e colonial "etnografia de varanda" fazendo "etnografia de Whatsapp" ou, pior ainda, "de marquise".
 
Por isso tudo, deixei-me nas noites (as tais de angústia, repito) na catarse de escrever este "O capitão MacWhirr e o Covid-19: os dois primeiros meses de pandemia". Julgo que o melhor texto que escrevi na vida - algo comprovado por ter colhido para aí 10 elogios de amigos, coisa inédita. Não foi publicado, talvez por eu não ter feito qualquer "etnografia de quinta", talvez por eu me ter dedicado a partir a loiça toda - que era o que me apetecia, ainda mais do que habitualmente... Ou talvez por ser extenso em demasia, 40 e tal páginas, disse depois, em dias mais serenos.
 
Entretanto o resto logo estancou, nem os sentimentos medraram nem o trabalho (longo) fluiu, ou vice-versa. O regresso ao Índico desabou. Atrapalhei-me, está visto e revisto. Depois morreu a minha mãe, enclausurada na sua "residência", e, parece-me agora, este ríspido heteronormativo tóxico desabou (mais?) um bocado. Há as alvoradas, bem matutinas, às vezes almoço, e as noites - já sem angústias. Uma salamandra e uma piscina vizinha, depende da época. Ficou-me, apenas, este "MacWhirr e o Covid-19", lido por um punhado de amigos. E um constante "I would prefer not to", feito que fui Bartleby...
 
O confinamento já acabou?

Aprendemos?

José Meireles Graça, 08.03.23

Conheci ao longo da vida alguns médicos estúpidos e alguns médicos inteligentes.

Os primeiros conheciam as regras da arte e daí deduziam que não há doentes, apenas doenças, e os segundos conheciam as regras da arte mas achavam que, por os doentes serem pessoas, cada caso era um caso; os primeiros não faziam diagnósticos sem recurso a uma bateria de meios auxiliares de diagnóstico e os segundos avaliavam o custo/benefício de tais exames e, se não houvesse risco de doença potencialmente séria, diagnosticavam com base na experiência; os primeiros fingiam ouvir e os segundos ouviam. Não há abissal diferença nos ganhos que uns e outros percebem porque o médico, hoje, é sobretudo um funcionário público ou privado que está num hospital ou num centro de saúde (há diferenças no preço que o cliente paga consoante o SNS está ou não envolvido – um outro assunto), nem aliás a diferença entre o bom e o mau médico é sempre facilmente perceptível para o doente.

A pandemia covidesca veio baralhar este suave arranjo porque as regras da arte pertenciam a umas diminutas capelas da igreja da medicina, que eram as dos epidemiologistas e virologistas, e estes, infelizmente, emitiram sinais contraditórios, ainda que no geral encantados com a sua súbita importância. Os médicos estúpidos e inteligentes compraram o conto da tragédia porque, coitados, do assunto pouco entendiam mais do que os comuns mortais, mas, ao contrário destes, podiam reclamar-se da “ciência” dura que a medicina não é, em que pese recorrer crescentemente, para progredir, a várias disciplinas científicas. 

Das divergências a opinião pública praticamente não tomou conhecimento porque desvalorizar dramas não é exactamente do interesse da comunicação social, nas fases iniciais o vírus chinês parecia realmente ameaçador e rapidamente o pânico se instalou, ao qual os poderes públicos, em democracia, responderam com um variável (segundo os países) catálogo de regras e interditos, atropelando leis e direitos como num estado de guerra, e, em ditaduras, com o mesmo sortido de medidas mas aplicadas radicalmente e sem tergiversações.

A desvalorização não era do interesse da comunicação social nem da magistratura de opinião. A qual abraçou com entusiasmo a causa do “combate”, que tinha a interessante virtude de obliterar parcialmente a diferença entre direita e esquerda e o incentivo de classificar de transviados e “chalupas” aqueles raros cidadãos que tentaram ver no meio do nevoeiro, não aderindo ao estouro da boiada. O que dá sempre um grande conforto às maiorias que acreditam em tontices.

Tontices eram, como agora lentamente se vai sabendo, com estudos que têm a vantagem de disporem de dados acumulados e sem a pressão da histeria que rotulou de “negacionistas” todos os que não compraram acefalamente o discurso situacionista. Daqueles recolho este, que o New York Times divulga, destacando da entrevista que o principal responsável concedeu:

“What about the utility of masks in conjunction with other preventive measures, such as hand hygiene, physical distancing or air filtration?

There’s no evidence that many of these things make any difference.”

Agora a doença vive, como muitas outras, entre nós, causando as vítimas que muitas doenças causam, sem particular comoção. Sobre as quais vítimas há aliás um pesado silêncio porque ninguém quer lembrar a velha que em Guimarães foi enxotada arrogantemente para casa pela polícia, ou o tipo incomodado por estar a comer na rua, ou a praia que um autarca demente mandou desinfectar e as cidades que colegas seus isolaram, ou os infectados que a “autoridade” de saúde resolveu prender em casa ou em hotéis, ou as empresas que faliram por não terem resistido à quebra de negócios, ou os miúdos que perderam um tempo de aprendizagem que jamais recuperarão, ou os que morreram sós porque eram pestíferos, ou toda a casta de abusos e atropelos em que a Constituição foi suspensa, o seu principal garante se acoitou em casa tolhido de medo e os responsáveis se passearam mascarados de cirurgiões, para dar o exemplo, aliás entusiasticamente seguido.

Acaso os tribunais, chamados algumas vezes a intervir, se tivessem para aplicar uma Constituição castrada no elenco dos direitos cidadãos contra o poder (que são os que definem axiologicamente o Estado de Direito) teriam servido para alguma coisa? É que o risco daquela amputação, que ao que parece tanto o PS como o PSD subscrevem em sede de revisão constitucional, pode bem ficar como a principal sequela da doença. A classe política, esquecemos, tende a comportar-se como uma burocracia, e esta jamais deixa que uma crise seja desaproveitada para efeito do reforço dos seus poderes.

E então, aprendemos alguma coisa para a próxima crise? Gostava de acreditar que sim, e que o manto de silêncio é fruto do cansaço e da vontade de esquecer – os erros, as conivências, o maria-vai-com-as-outras, os abusos, a invocação escandalosa, ao princípio, do suposto exemplo das medidas que a China tomou (estes ouvidos que o fogo há-de consumir ouviram a um daqueles magistrados recomendar a aplicação stayawaycovid inspirando-se no exemplo da China, a mesma China que mais tarde viria a execrar por ter escaqueirado a sua economia com o seu radicalismo acéfalo e ditatorial), as mortes por falta de assistência, consequência da mobilização exclusiva do SNS contra o monstro, e um longo rosário de efeitos perversos dos quais ainda não recuperamos definitivamente e que permanecem insuficientemente medidos.

Culpados não há porque quando são quase todos ninguém é. Mas do asneirol generalizado deveríamos retirar algumas conclusões: i) É sadio desconfiar das autoridades políticas porque estas ou querem reforçar os seus poderes, ou satisfazer interesses, e tendem a seguir a opinião pública que lhes garanta popularidade; ii) É imprudente dar poderes a funcionários porque o mundo deles resulta da especialização que calha os seus serviços terem, que confundem com o interesse geral; iii) Não se pode confiar na comunicação social porque tende a amplificar desastres e sufocar a serenidade e com frequência defende interesses opacos por razões de financiamento e sobrevivência, a mesma cuja necessidade tolhe jornalistas funcionalizados e aliás com frequência analfabetos; iv) Não se pode confiar nos formadores de opinião se estiverem a fazer tirocínio para carreiras políticas, defenderem amigos, forem economistas ou, já agora, em qualquer outro caso; v) Convém adoptar pontos de vista consultando fontes contraditórias e partindo sempre do princípio que a nossa cabeça é melhor do que a dos entendidos, mesmo que não seja; e vi) Quem defende o cidadão é a Constituição e os tribunais, e não é menos assim por aquela ser prolixa e programática de esquerda e estes lentos e ineficientes.

Da próxima vaga histérica vamos reagir com mais fleuma? E aprendemos alguma coisa? Quem souber que responda.

Reciprocidades inconvenientes

Sérgio de Almeida Correia, 10.01.23

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Há dias, no noticiário da TDM-Rádio, ouvi que a "Liga dos Chineses em Portugal não vê razões para testes de COVID obrigatórios" para quem chega a Portugal. O seu presidente, o simpático e sempre solícito Y Ping Chow, veio logo dizer "que se trata de uma medida política, em muito má hora, nas vésperas das celebrações do Ano Novo Lunar". 

Como estava meio-ensonado àquela hora fiquei na dúvida se o sujeito estava a falar a sério ou a fazer humor.

Confesso que não percebo a sua indignação, tanto mais que não me recordo, ao longo de quase três anos, a ele em Portugal e a muitos outros patriotas, "patriotas" e mercenários acomodados, em Macau, de o ouvir, ainda que ao de leve, criticar as políticas do Governo da RAEM e do Governo Central em matéria de controlo da pandemia. Além do mais, depois de eu próprio ter ficado seriamente limitado na minha liberdade e nos meus direitos ao longo de mais de dois anos e meio.

Perante a situação catastrófica que se vive na China ["Hundreds of millions of people have been infected in the space of just a few weeks, and many experts now expect the death toll to exceed one million. Chinese social media are being flooded with harrowing accounts of personal loss and images of overwhelmed hospitals. While the exact infection and mortality figures are unclear, the big picture is undeniable: the Chinese people are fighting to survive."], com milhões de infectados, com aviões a chegarem à Europa com doentes de Covid e com eventuais variantes que se desconhecem no ar, aquela eminência da comunidade chinesa em Portugal veio a correr dizer que "se trata de uma medida política", quando é certo que a Organização Mundial de Saúde já se queixou da falta de informação das autoridades chinesas, cujos dados, como aliás se tem visto em inúmeras reportagens, não têm correspondência com a realidade.

Também em Macau, de acordo com os relatos da imprensa com base em informações prestadas pela Câmara de Comércio dos Negociantes Funerários de Macau (a morte e a doença sempre foram bons negócios para alguns), o número de mortos é 10 vezes superior ao normal. Curiosamente, com tantos mortos, o número dos que morrem de Covid é ridículo na China continental e em Macau, o que me leva a pensar que se um indivíduo tiver o azar de ir parar a um hospital com uma unha encravada, lá contrair a infecção e depois falecer, as estatísticas dirão que morreu por causa da unha.

No entanto, os países europeus, os Estados Unidos, o Japão, a Coreia do Sul e outros, estão, em geral, apenas a pedir a apresentação de testes negativos e a realizar testes, aleatoriamente, aos passageiros que chegam. Não me parece que isto seja uma medida política e discriminatória em função da nacionalidade ou da etnia. Bem ao contrário do que aconteceu anteriormente, em que os estrangeiros foram simplesmente banidos de entrar na China e em Macau, e os que entravam por aí serem residentes eram obrigados a longas e dispendiosas quarentenas, pagando séries de testes e alojamento em hotéis, durante dezenas de dias, ainda que vacinados e testando sempre negativo à doença, antes, durante e depois de saírem das quarentenas.

Ao longo de todos estes anos, não obstante as medidas draconianas das autoridades de Macau e da China, nunca o senhor Y Ping Chow se manifestou contra as políticas discriminatórias do Governo central e das autoridades da RAEM, podendo até tê-lo feito em Portugal, esquecendo-se que as que agora estão a ser impostas só se devem à falta de transparência e/ou à ausência de informação que é prestada pelas autoridades chinesas.

Podia, igualmente, ter-se questionado sobre as razões – de saúde pública ou políticas – para que seja rejeitada a oferta de vacinas da Europa e dos EUA, quando se sabe que são bem mais eficazes do que as produzidas na sua pátria.

Já se percebeu, e é pena, que nestas alturas falte a algumas pessoas o discernimento – noutras alturas faltar-lhes-á a liberdade e a coragem, sobrando-lhes em hipocrisia, oportunismo e "patriotismo" – para dizerem aquilo que é correcto e justo, rapidamente esquecendo as verdadeiras razões (científicas) e os exemplos recentes, optando antes por se tornarem em megafones da propaganda oficial (que de um momento para outro descobriu que o vírus afinal já não era letal), em vez de adoptar idênticas regras, como a obrigatoriedade da realização de testes PCR antes da chegada ao destino, prefere retaliar suspendendo a emissão de vistos para quem se queira deslocar em turismo ou negócios, medida esta sim claramente desproprocional.

Talvez que se a Europa tivesse anteriormente usado da mesma bitola, ou imposto medidas retaliatórias, o senhor Y Ping Chow agora já não estranhasse a exigência de testes.

Uns pândegos

Sérgio de Almeida Correia, 30.12.22

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(créditos: Macau Daily Times)

Até há algumas semanas, os estrangeiros estavam impedidos de entrar na China, qualquer que fosse a porta e a razão para quererem entrar, mesmo não estando infectados com Covid e com todas as doses e reforços de vacinas que a Medicina colocou aos dispor das nações. Pais ficaram anos sem poder ver os filhos, casais foram separados, filhos impossibilitados de acompanharem os pais à sua última morada. Mesmo aos nacionais e residentes permanentes que se ausentassem para o estrangeiro foram impostas quarentenas de 28, 21, 14, 10 e 5 dias, códigos vermelhos e amarelos, e inúmeras despesas supérfluas para se garantir a política de tolerância zero ou "zero dinâmico".

Agora, perante uma vaga de infectados sem precedentes na China, com milhões doentes, sem qualquer controlo, e com vacinas de eficácia muito questionável, há dois aviões procedentes deste país que à chegada a Itália apresentam cerca de 50% de infectados. E que faz o país de destino? Impõe restrições à entrada de viajantes, sem discriminação de nacionalidade, exigindo que sejam feitos testes de despistagem. Os EUA fazem o mesmo, anunciando que a partir de 5 de Janeiro de 2023, quem quiser entrar nesse país, procedente da China,  de Hong Kong ou Macau, terá de apresentar um teste PCR negativo. E tal como estes, outros mais (Espanha, Malásia, Coreia do Sul, Japão) farão o mesmo.

Não me parece que seja algo de excessivo ou incompreensível perante a situação que actualmente se vive e que os próprios órgãos de comunicação chineses têm difundido. A TDM tem passado no seu Telejornal algumas reportagens bastante esclarecedoras, algumas da CCTV, como sucedeu, por exemplo, nos passados dias 26 (minuto 12:40), 28 (minuta 13:40) e 29 de Dezembro (minuto 07:50). Repare-se que apresentar testes com resultado negativo para se entrar num país não é o mesmo que fechar fronteiras aos estrangeiros e não-residentes permanentes, ou criar obstáculos à saída de nacionais e obrigar os residentes a fazerem quarentenas pagas em hotéis e baterias de testes PCR à sua custa e com pagamentos antecipados para se poder viajar.

Curiosamente, depois de tudo aquilo que as autoridades chinesas fizeram, e das limitações que impuseram às suas próprias populações, aos residentes estrangeiros e a todos os nacionais de outros países que queriam entrar no país, até por razões humanitárias, veio o porta-voz do MNE chinês, Wang Wenbin, naquele estilo e com o adorável tom a que já nos habituou, com a maior desfaçatez deste mundo, dizer que, "para todos os países, as medidas de resposta à COVID têm de ser baseadas na ciência e proporcionais, e aplicar-se igualmente às pessoas de todos os países sem afectar as viagens normais e o intercâmbio e cooperação entre as pessoas", esperando que "todas as partes sigam uma abordagem de resposta baseada na ciência e trabalhem em conjunto para assegurar viagens transfronteiriças seguras, manter estáveis as cadeias industriais e de fornecimento globais, e contribuir para a solidariedade global contra a COVID e a recuperação económica mundial".

Para quem fez exactamente o contrário daquilo que afirma, inclusive contra as recomendações da Organização Mundial de Saúde, e que ainda em Outubro, no XX Congresso do PCC, reafirmava a linha da tolerância zero, não deixa de ser curioso que perante uma situação de quase catástrofe interna haja quem queira, agora, que os outros países deixem entrar livremente os seus infectados, com todas as variantes e mais algumas, e que façam aquilo que a China não fez durante quase três anos: acreditar na ciência, respeitar a proporcionalidade das medidas de contenção do vírus e não discriminar.

É só olhar para os exemplos recentes de Macau e de Hong Kong e para os custos sociais e económicos que foram impostos a estas regiões e às suas populações.

Há coisas que, de facto, não lhes faltam. Mas hoje vou respeitar a quadra, e o Pelé, e poupar-vos a lê-las.

Bom Ano para todos. Sem Covid, com saúde.

Direitos em jogo

Sérgio de Almeida Correia, 25.07.22

Screenshot-2022-07-13-at-9.31.00-PM-1392x606.png(créditos: Macau Business)

Por esse  mundo fora, o clima anda a fazer das suas. As temperaturas estão altas por todo o lado. E há locais onde o calor é tão intenso que, não raro, acaba por ter consequências sobre as cabeças de alguns, inibindo aquele que seria o seu funcionamento normal.

O caso de Macau continua a ser sui generis e merece atenção internacional, como seu viu há menos de duas semanas no Comité dos Direitos Humanos da ONU.

É bom que assim seja porque todos temos responsabilidades sobre o que por ali se passa quando se assiste a um novo êxodo de profissionais e famílias, aliás à semelhança do que se passa em Hong Kong desde há mais de dois anos.

A pandemia explica muita coisa. Não explica tudo. E para que os leitores do Delito de Opinião não se sintam perdidos, nem inundados pela desinformação e a propaganda, importa facilitar-lhes a vida.

Sugiro-vos então a leitura de cinco textos, duas notícias e três artigos de opinião, saídos nos últimos dias: 

A “luta quixotesca” de Macau contra a covid-19, de Maria João Guimarães (19/07/2022)

Macau dá mais um passo para se “manter vigilante contra as forças anti-China”, de António Rodrigues (22/07/2022)

Direitos Humanos de Macau reprovam nas Nações Unidas, de Jorge Menezes (24/07/22)

De olhos bem fechados, de Isabel Santos (25/07/2022)

Azar de ser filipino, do autor deste post (24/07/2022)

Quanto a este último texto, importa dizer que no dia da sua publicação, pelas 17 horas locais, antes mesmo da medida atinente aos cidadãos filipinos entrar em vigor no dia seguinte, foi a mesma revogada, o que revela bem o desnorte e falta de sentido da decisão anunciada quarenta e oito horas antes e tão veementemente defendida na véspera pela mesma entidade que comunicou o seu abandono.

Tira a máscara, põe a máscara

Pedro Correia, 13.05.22

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O Governo, ansioso por dar enfim uma boa notícia aos portugueses, decretou um novo "Dia da Libertação" da pandemia, após um ensaio falhado, por ocasião das eleições autárquicas. Desta vez a quatro dias da celebração do 25 de Abril, o que se adequava à efeméride. E a reboque do que decidira na véspera o Executivo espanhol: fim aos testes gratuitos, fim ao uso obrigatório das máscaras em espaços fechados excepto em casos muito excepcionais, fim à exigência de preenchimento de formulários aos milhares de estrangeiros que diariamente entram no País. 

Agiu assim incumprindo a própria meta que estabelecera. O termo das restrições ocorreu quando havia 28,8 óbitos por milhão de habitantes oficialmente registados como vítimas de covid-19 - e não 20, como fora antes fixado.

Entretanto já se fala em sexta vaga da pandemia. O famigerado "índice de transmissibilidade" situa-se agora nos 1,17. Nas últimas 24 horas registaram-se 26 mortes atribuídas ao coronavírus e 25 mil novas infecções confirmadas. Portugal é o único país da Europa com tendência crescente de novos contágios e novos óbitos. Enquanto aumenta a pressão nas urgências hospitalares na sequência da decisão do Governo de pôr fim aos testes gratuitos nas farmácias. 

 

Enfim, nova sucessão de trapalhadas.

Agora já se fala na reposição dos testes gratuitos, na antecipação da quarta dose da vacina para pessoas acima dos 60 anos e até se equaciona o regresso ao uso obrigatório de máscaras na generalidade dos espaços fechados. 

Voltamos ao mesmo: legisla-se ao sabor dos ventos dominantes, sem bases científicas irrefutáveis a fundamentar cada medida, talvez por falta de consenso entre os especialistas, deixando os cidadãos entregues ao seu próprio critério. Nenhum protocolo de segurança sanitária foi definido para as empresas, nomeadamente as que têm atendimento ao público e proporcionam escassas condições de arejamento, não faltando procedimentos diferentes até dentro do mesmo ramo.

 

Põe a máscara, tira a máscara? Cada um por si, Deus vela por todos. O Governo, nem por isso. Afinal já nos garantiram tudo e o seu contrário, passando do oito ao oitenta, e vice-versa. Desde a «falsa sensação de segurança» proporcionada pelas máscaras até à sua utilização obrigatória ao ar livre, mesmo nas situações mais absurdas. Com o Supremo Hipocondríaco da Nação em manifesto excesso de zelo, passando o tempo todo na praia de cara tapada. 

Populismo para vários gostos, com e sem máscara. E desorientação geral, à espera do que se decidir em Espanha. Enfim, nada de novo.

Covidices

Maria Dulce Fernandes, 28.04.22

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Comecei há dois dias com uma tosse seca, persistente e irritante, tal e qual aquela que me chega com os pólens e os pós e é a grande mentora das minhas alergias.

Ontem à tarde, o meu marido começou a tossir também. Ele, que não tem alergias, deixou-me de pé atrás. Fiz autoteste e os dois risquinhos não se fizeram esperar. 

Fiquei a olhar para aquela coisa branca como um burro para um palácio, com a minha bazófia da invulnerabilidade nas lonas. 

Passado o choque e depois de informar a família e os colegas com quem estive em contacto, sentei-me, respirei fundo e comecei com os procedimentos indicados, ligando o número da Saúde 24, que estranhamente respondeu de imediato. Depois de todas as perguntas de despiste, resolveu a simpática menina que eu tinha que ser avaliada por um médico, remetendo-me para o Centro de Saúde da minha área de residência durante o dia de hoje.

Eram 7:50h, porque a minha noção de pontualidade é um relógio suíço, estava à porta do dito centro. Munida do SMS da Saúde 24, dirigi-me ao segurança que me pediu o CC e me desterrou para uma cadeira longe de toda a acção, como manda a lei.

Passada cerca de hora e meia, chega uma senhora ao meio do corredor e pergunta alto e bom som, sem se aproximar sequer ao alcance de 2 metros, se eu era a senhora infectada. Anuí. Deu uns passos em frente, estendeu-me um papel e, depois de me informar que os médicos do centro não avaliam utentes infectados, informou que iria ser contactada durante o dia para uma video-consulta. Então e a pieira, a falta de ar e a auscultação? Pois, não pode ser. Se me sentir mal, devo dirigir-me ao hospital mais próximo. 

E eu, que andava tão necessitada de uma boa gargalhada, precisei de ficar infectada com Covid19 para a conseguir.

Dos putinófilos

jpt, 05.04.22

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O mais magnífico retrato de Corto é este, imediatamente após o fuzilamento de Slutter - condenado ao abrigo das leis de guerra.

Quero crer que o problema actual é a quantidade de trastes que não leram nem lêem banda desenhada.

(Rodapé: é de ler esta notícia, relatando o evidente, a fusão da contra-informação negacionista anti-vacinas e a putinista, que tanto apela a atenção daqueles da "esquerda" e da "direita")

Intelectuais comunistas e imprensa internacional

jpt, 03.04.22

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Quase sexagenário continuo a acreditar que de pequenos episódios se podem retirar conclusões sobre questões (ou posições) mais gerais, assim uma espécie de pensamento indutivo. Método de reflexão com muitos limites mas que, pelo menos, é uma muleta para mentes medianas, como esta que tecla. E lembro-me agora disto por causa desta guerra russo-ucraniana e de muitas reacções que fui vendo, dessas que enfatizam a maldade "ocidental". As quais começaram por ser bem explícitas e que foram sendo matizadas - "embrulhadas" - até pela evidente insuportabilidade intelectual desta "russofilia", a qual actualmente não passa de uma necrose da ideologia socialista.
 
Um dos tópicos deste omnicriticismo sobre o "mundo ocidental" é o sublinhar da putativa influência (causal) da indústria de armamento americana, o qual teve muito uso no início da guerra. O que é interessante, em particular quando os locutores são africanos, é que nunca referem que as actuais importações de armamento em África têm como fontes preponderantes as indústrias... russas e chinesas. É certo que este não é material mais sofisticado (e caro). Mas também nunca referem a veemente concorrência entre essas indústrias nacionais de armamento nesse tipo de material muito sofisticado, a qual vem tendo imensas implicações "geoestratégicas". Não é por falta de informação (que está bem disponível, via google ou mesmo em livros generalistas, p. ex. no célebre Frankopan). É apenas porque não lhes dá jeito à retórica...
 
Outro tópico dessa crítica ao "Ocidente" -. de facto, às democracias liberais - que vem agora ganhando proeminência, explicitando uma verdadeira "hierarquia de significações", incide sobre a cobertura que a imprensa dos países democráticos vem fazendo desta guerra. Esse afã analítico não incide sobre a imprensa russa, chinesa, iraniana, etc. (Nem mesmo sobre o tom da estatal TVM, como alguns me resmungam desde Moçambique). Nem numa análise sistémica de alguma imprensa "ocidental" de vulto - dita "de referência". Bem pelo contrário, centra-se na crítica à concorrencial miríade da imprensa europeia e americana (em particular portuguesa), num elencar de dislates (o célebre episódio do "porta-aviões voador" é um "must"), erros factuais, armamentos mal descritos, de abordagens histriónicas, especulações infundadas, etc.
 
Pouco importa a estes irredentistas anti-democratas de extracção comunista que num país democrático uma imprensa livre e concorrencial "é capaz de se pôr a si mesma sob julgamento" (como disse Eco, um sábio que não era da "extrema-direita"). O que lhes interessa é reproduzir a velha ideia de que a imprensa "ocidental" é apenas uma súmula de dislates propagandísticos, emitidos com o obscurantista objectivo de alienar as populações, fazendo-as apoiar causas ou acções indevidas e mesmo injustas. O corolário - por apenas implícito que surja - é óbvio: a justiça, mesmo que apenas relativa, reside no "Outro". Neste caso ali a Moscovo...
 
Então sobre esta imagem da imprensa "ocidental" e sobre esta (auto)percepção dos locutores como iluminados e racionais analistas, que se eximem à "alienação" propagandística da imprensa capitalista, eu lembro este episódio - o tal pensamento indutivo:
 
Em Abril de 2020, no cume da angústia covidiana, partilhei no meu mural de Facebook um artigo do britânico "The Guardian". Nesse referia-se que os dados recolhidos de tráfego telefónico apontavam que em meados de Janeiro (o ano novo chinês) cerca de 7 milhões de pessoas tinham saído de Wuhan (o anunciado berço do Covid-19). E que face a isso eram muitos suspeitas as estatísticas emitidas pelo governo chinês, que apontavam para apenas 8 mortos em Pequim e 10 em Shangai. E, correlativamente, seriam discutíveis as medidas iniciais de controlo sanitário que haviam sido tomadas. Um querido amigo em Maputo replicou essa minha partilha, encimando-a com qualquer coisa como "esta vem do professor Teixeira". Eu já não sou professor mas mesmo quando o fui nunca como tal me apresentei (em blogs, nas redes sociais e, mais importante, na vida), mas percebi a pequena nota como expressão do carinho (quantas vezes cáustico) que o Nuno me dedica. O que foi ele dizer!
 
Logo uma ex-colega e amiga surgiu irada com o artigo que o "dito professor" (sic) tivera o desplante de publicar, pois apoucar a legitimidade da versão oficial do governo do Partido Comunista Chinês era um inaceitável seguidismo à propaganda "ocidental" (eu registei Isabel). E logo um renomado professor - que agora se tornou versado no história do pensamento filosófico, e que no seu memorialismo demonstra continuar adepto de regimes de monopólio estatal da imprensa e de prevalência de censura e de indução de auto-censura - rematou que não há pior do que a propaganda da imprensa "ocidental", em particular "a que se diz de esquerda" (qual o "The Guardian"). Pois, friso, o que era relevante era denunciar as malevolências dos mass media "ocidentais" e salvaguardar a justeza das decisões (sanitárias) chinesas.
 
Passados alguns meses um outro renomado professor do mesmo núcleo ideológico publicou um texto frisando a capacidade executiva chinesa face ao Covid-19, pois tendo aquele regime recorrido a medidas autocráticas, e apenas a algumas dezenas de fuzilamentos (ainda que estes lamentáveis), tinha resolvido o problema pandémico no país. A isso contrapunha a incapacidade estrutural do decadente e degenerado sistema económico e político do capitalismo ocidental, cujas fragilidades impediam os países de resolver - a contento da necessidades dos trabalhadores - a crise sanitária. E nesse texto colheu o aplauso geral - "respect", como se diz agora, "laiques", "comentários", "partilhas", "assim é que é!", enfim o apreço pela análise ponderada e racional avessa à vil propaganda "ocidental" e "capitalista", "mesmo que se diga de esquerda".
 
Estamos em Abril de 2022. A malvada imprensa "ocidental" propagandística, a hidra "Voice of America", continua a sua falsificação do real inventando que Hong-Kong sofre confinamentos, províncias chinesas sofrem confinamentos, Shangai sofre confinamentos, dezenas de milhões de chineses sofrem confinamentos. Nós, os enganados ou desonestos, sabemos que os vírus não têm ideologia e que se devem discutir as medidas que os combatem. Mas estes ilustres professores continuam, impantes nas suas certezas ideológicas, uma arrogância que é cegueira epistemológica. Falam do Covid-19? Não. Botam que a imprensa "ocidental" falsifica a realidade na Ucrânia. E assim continuarão perorando sobre todos os outros assuntos. Até que a lei da morte os liberte, pois nada aprenderão sobre si mesmos.
 
E as pessoas não lhes recordam isto. E é por isso, por não serem confrontados com os arrogantes dislates próprios, que continuam com a impudicícia de "falar de alto"...

Um desastre chamado tolerância zero

Sérgio de Almeida Correia, 06.03.22

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Depois de há três semanas, numa carta aberta para o Executivo de Hong Kong, os médicos terem avisado que o sistema estava à beira do colapso, na passada quinta-feira foram registados mais de 56 mil casos de infectados da COVID-19 num só dia.

Elizabeth Cheung descrevia no South China Morning Post cenas horríveis nos hospitais, com falta de oxigénio, más condições de higiene, camas insuficientes e profissionais de saúde a queixarem-se da sua incapacidade para prestarem os cuidados devidos a muitos doentes. Enfim, um caos.

Há mais de quatro dias que o número de mortos diários ultrapassa a centena. Hong Kong atingiu a mais alta taxa de mortalidade mundial, na maior parte dos casos na população mais idosa e não vacinada.

E, no entanto, há dois anos que cessaram as ligações marítimas de e para Hong Kong, as fronteiras estão desde então, salvo raras excepções, fechadas ou com restrições severas à entrada de estrangeiros, muitas companhias aéreas deixaram de voar, há rígidas quarentenas para os residentes que chegam. As queixas multiplicam-se.

Há quem pergunte por que razão se falhou de forma tão crassa, de tal forma que foi pedido apoio às autoridades do outro lado da fronteira para fazer face à situação.

A CNN estabeleceu a comparação com outros países ou regiões que seguiram a mesma política numa fase inicial, mas que entretanto já reabriram, abandonando a tolerância zero. A resposta parece estar nas baixas taxas de vacinação, mas também na ineficácia das vacinas chinesas, que levou as próprias autoridades a recomendarem que a terceira dose fosse do tipo mRNA (BioNtech), e na incapacidade da Região em preparar-se atempadamente para o que aí vinha.

Carrie Lam, a Chefe do Executivo, comparou a situação com a de uma guerra, que neste caso só acontece por incapacidade das autoridades, advogando que se contornem as leis existentes e atirando para trás das costas o rule of law.

Em resposta, houve quem lhe dissesse que Hong Kong não é Kiev, e lhe recordasse que em 1942 Lord Atkins disse que durante as guerras as leis não são silenciosas, falam a mesma linguagem em tempo de paz e o direito internacional humanitário não se suspende.

Mas o que as autoridades de Hong Kong não dizem, e não têm maneira de justificar, é por que razão este desastre ocorre quando se tem todo o apoio de Pequim. Nem para que se querem contornar as leis, dois anos depois de começar a pandemia, numa altura em que a cidade já é governada exclusivamente por "patriotas", em que deixou de existir oposição interna, em que os líderes do movimento pró-democracia foram silenciados, estão exilados ou cumprem pena de prisão.

E tudo depois de ser aprovada uma lei draconiana de segurança interna, da liberdade de imprensa ser cerceada, de se fecharem jornais e se prenderem jornalistas, advogados e activistas, e do sistema eleitoral ter sido alterado para se garantir que a democracia "à ocidental" não funcionaria.

O Estado de Não-Direito*

José Meireles Graça, 21.01.22

Para as pessoas que, por estarem confinadas, não podem (!) ir votar, inventam-se engenhosas soluções e uma, ou mais, delas, será consagrada um dia destes (ainda não foi no momento em que isto escrevo), no meio de declarações solenes sobre a importância do voto, a majestade da democracia e outras grandiloquências. Costa enfatizará o seu pessoal empenho em encontrar uma solução, deixando implícito que aquelas vítimas do flagelo fariam bem em lhe agradecer, votando PS; as oposições felicitar-se-ão, cada uma salientando ter dado o seu parecer desfavorável ao que não foi feito, e favorável ao que acabou por ser, com excepção talvez do candidato Rui Tavares, que tinha outra solução ainda melhor, cozinhada no lado escuro da Lua, onde geralmente medita; e Marcelo, provavelmente, perdigotará as coisas pias que há muito tempo lhe garantem, e a Cristina Ferreira (no caso desta aos gritos) invejáveis índices de popularidade.

Se não fosse assim o caso seria ainda mais grave e justificaria um outro artigo digno da atenção dos fiscais do discurso do ódio.

Sucede que todas as pessoas confinadas o estão ilegalmente: O estado de calamidade é uma invencionice óbvia para contornar os condicionalismos que a Constituição estabelece (art.º 19º) à declaração dos estados de sítio ou emergência, e o instrumento para o conjunto de arbitrariedades de 27 de Novembro último é uma mera Resolução, que consagra absurdos como prisão domiciliária por decisão de uma qualquer “autoridade de saúde”. Pode ser que se encontrem dois constitucionalistas, dezassete juristas e quatro juízes que digam que assim não se deve entender. Mas os constitucionalistas, Deus os abençoe, são um conforto para qualquer iletrado incapaz de interpretar um texto porque tendem a ver na Constituição umas vezes o que lá não está, e outras o contrário do que lá esteja; os dezassete juristas são do poder do dia, uma doença que aflige muito a classe; e os juízes, conforme vêm demonstrando com sentenças recentes para crimes de colarinho branco, mormente a demencial de que foi vítima Rendeiro, têm evidenciado um medo abjecto da opinião pública, quando não são eles próprios vítimas do tsunami histérico que um dia se originou em Wuhan e não cessa de dar voltas ao mundo.

A qual opinião foi com tanto sucesso formatada por uma comunicação social que abandonou há muito o seu papel de contrapoder que nem se dá conta (a opinião)  do génio que deixou sair da caixa: pode-se tripudiar em cima de direitos, liberdades e garantias desde que haja uma maioria de cidadãos que acredite que os atropelos são feitos em nome de um bem maior, no caso a saúde pública.

Os poderes, como é da sua natureza, agarraram a oportunidade. E tal presidente da Câmara, aborrecido com as comezinhas ocupações do trânsito, do saneamento, da recolha do lixo, abraça com zelo a missão exaltante de patrulhar a vida do seu munícipe e superintender em funções policiais, estabelecendo-lhe regras e interditos sob o aplauso e admiração dos atemorizados bons cidadãos; tal presidente de governo regional decide quem entra e quem não entra no seu território e detém perigosos infectados, declarando coisas sonoras para a floresta solícita dos microfones, que chegam a ser ouvidos – ó abençoada Covid – no estrangeiro; tal médico, enjoado de tratar doenças porque não ganha mais por isso, dado que é um funcionário público da saúde, cumpre o sonho de regular manu militari a vida dos pacientes, com o meritório propósito de só lhe aparecerem com males da senectude, os únicos que não são culpa do estilo de vida; tal polícia recebe como um justo alargamento dos seus poderes o de meter o nariz nas casas dos infectados, que na sua insondável ignorância imagina leprosos e irresponsáveis contumazes; e todos rezam hossanas ao Estado que os faz importantes e seguram com determinação o cajado de pastores da grei.

Esta porta aberta, o caminho do abuso, da prepotência, do arbítrio, só precisa da próxima ameaça, real ou imaginária, à saúde ou outro bem que o cidadão preze, para se tornar o ordinário da missa.

E nem se pode contar com a análise retrospectiva do custo/benefício das medidas. Há demasiados responsáveis, demasiadas conivências, demasiado unanimismo: quando quase toda a gente defende asneiras não resta ninguém para as censurar porque as pessoas, salvo se forem da Opus Dei, não se autoflagelam.

Quem nos (a minoria covidocéptica, no caso) pode defender no futuro, os partidos? Ora, eles são máquinas de conquista e manutenção de poder, que não se ganha destratando os medos da massa dos aderentes. Os tribunais? Para efeito de habeas corpus sim, e no caso das multas terroristas talvez, mas isso é só para quem tem dinheiro, tempo e paciência. A opinião pública? Uma rameira volúvel, não é preciso ter uma visão conspirativa do mundo para perceber que se um qualquer conjunto de circunstâncias ou interesses levar a que o leitor/ouvinte seja bombardeado com o mesmo discurso sobre uma qualquer ameaça, a boiada estoura. A comunicação social? As redes sociais miserabilizaram os jornalistas, que passaram a ter concorrência gratuita, e não encontraram ainda a receita para oferecer algo melhor que implique investigação e contraditório mas gere recursos. De modo que papagueiam o que dizem as agências, os outros órgãos de comunicação e os responsáveis, num conúbio frequentemente pornográfico. Isto e a estranha evolução que os fez trocar a missão de informar pela de formar explica que quem quiser perceber o mundo tem de fazer mais do que apenas ler o seu jornal habitual e ouvir o seu canal preferido, sob pena de se alimentar provavelmente de esterco.

Em algum momento deixamos que a opinião pública fosse o alfa e o ómega de todas as coisas. E se no plano político ela se fracciona segundo correntes ideológicas, em assuntos onde a clivagem esquerda/direita é menos nítida já vivemos no regime de partido único.

Nestes regimes, as liberdades brilham no papel mas o governante ofende-as à medida das suas conveniências; os agentes do Estado entendem que a sua condição é a de servidor do cidadão em abstracto, e de seu superior em concreto; e os comportamentos são vigiados e regulamentados crescentemente porque o técnico sabe melhor do que cada qual o que convém à sociedade e, crescentemente, ao próprio cidadão, que aliás não é mais do que um utente.

Já era assim há bastante tempo no âmbito fiscal: teoricamente em nome da justiça e na prática da sofreguidão por receitas foi-se construindo o edifício do abuso, da prepotência e da inimputabilidade do Fisco, completo com a inversão do ónus da prova e um quadro próprio de pessoal que beneficia das suas exacções. E com isso criou-se um monstro que ninguém sabe bem como domar porque entretanto a receita se tornou essencial para alimentar o mecanismo de leilão de promessas que é o corpus da democracia como a esquerda a entende.

Solução? Talvez não haja. Não ficaríamos pior, porém, se da próxima vez que elegermos o mais alto magistrado da Nação escolhermos alguém consciente de que liderar não consiste em andar a correr atrás da multidão. Ah, e que não seja hipocondríaco.

 

* Publicado no Observador

Natal 2021

jpt, 25.12.21

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(Comunicado emitido nas redes sociais durante a tarde de ontem, 24.12.2021)

Mesmo que vá cultivando esta pose, empiricamente fundamentada, de envelhecido ogre ensimesmado, há dias acorri a um convite convivencial que me fora endereçado por uma beldade amiga - sei que esta expressão convocará a repulsa, quiçá denunciatória, daquel@s que nisto verão a pérfida objectivação das membras da sororidade global, bem como a indignação de todes que a compreenderão como uma vilania homo e transfóbica. Espero que a quadra natalícia propicie alguma distracção nos postos de vigia internética...

Ontem a referida beldade anunciou-me ter descoberto que é portadora do vírus Covid-19, de variante (ainda) desconhecida. Algo que me promoveu sinceras preces ateias em prol da sua delicada saúde. Mas também cuidados próprios, socialmente consagrados. Nesse sentido estreei-me, aos 23.12.21, na auto-vasculha nasal, fazendo-o com a competente intensidade que as feridas que mostro na foto anexa poderão comprovar.

O resultado do teste foi negativo e inexistem sintomas da maleita, ainda que isso não exclua a possibilidade de ser eu também portador viral. Como tal recolhi ao isolamento profiláctico, acantonado no meu quarto, rodeando-me de livros que não (re)lerei. E nisso libertando a família mais próxima do ónus da minha presença na consoada e subsequentes repastos.

Em conversa com a referida paciente referiu-me ela algo que eu já havia notado: a radical redução das mensagens de Boas Festas. Já nem nos referimos aos arqueológicos cartões. Mas ao fluxo no vetusto email, nas mensagens sms ou mesmo no fb. Aproveito assim para desejar, sem maçar ninguém em especial, umas pessoais "Boas Festas" aos meus amigos reais - sendo que a maioria deles não anda por aqui, e por um simples razão: as "redes sociais" são o oposto do consagrado "charme discreto da burguesia", e nelas botar coisas, ainda para mais de índole pessoal, é sentido como basto "popular". 

Ainda assim e também para esses meus amigos pessoais, e a alguns familiares a quem ainda não avisei, deixo nota não só do meu bem-estar físico, do meu regular estado psicológico (ou seja, a mesma merda de sempre) ainda que isolado. E esclareço que estou provido de uma boa consoada, pois decidi que será composta de uma Alheira de Mirandela marca "Pingo Doce", um ovo estrelado criado no solo, de similar origem, batatas cozidas debruadas com fio de azeite "Oliveira da Serra", acompanhado de cerveja "Argus" obtida no sempre simpático Lidl e um tinto "Guarda Rios", apresentado como "monovarietal" da casta Syrah produzido num terroir alentejano, que máscula mão amiga me ofertou.

Presumo que no final do repasto usarei um cálice do afamado "Queen Margot" para brindar à paz no mundo e para desejar aos meus amigos um Bem Hajam. Ou, em sinónimo, desejando-lhes Parabéns!

Um teste por dia, nem sabe o bem que lhe fazia!

Maria Dulce Fernandes, 22.12.21

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Alternando de quarentena em quarentena, esburacando continuamente o trato nasofaríngeo com as cotonetes xl dos testes hospitalares, atendendo a aulas e tempo de estudo em telescola, passou a ser este o dia a dia das nossas famílias com crianças em idade escolar e pré-escolar.

Hoje a Maria testou positivo e toda a turma recolheu ao isolamento profiláctico com um teste PCR marcado para daqui a cinco dias e um outro para daqui a dez dias. Há duas semanas, mais coisa, menos coisa, foi o Gonçalo a testar positivo e consequente isolamento e consequente testagem e consequente telescola… Depois de três dias de aulas in situ,  voltam todos para casa.

Vamos todos às vacinas para prevenir estas ocorrências? A ficção afinal é uma realidade.

Ou será paranóia?

Então e os pais? Não se testam? Não será melhor fazerem todos um teste rápido só para descargo de consciência?

Compram-se online! Fazem-se em casa! É sempre bom ter uma dotação razoável na nossa farmácia particular. Quem sabe se amanhã alguém que está positivo e assintomático não nos vem perguntar que horas são?

Então e os pais? Não trabalham? Quantos poderão deixar os empregos em suspenso ad eternum?

Sim, sim, a segurança social paga a cem porcento… bem, não é bem a cem por cento, mas a segurança social paga para as famílias estarem com os filhos em casa!

E quantas empresas terão capacidade para funcionar a meio gás durante semanas, senão meses, com os colaboradores em sucessivos e infindáveis isolamentos? É um facto que as dificuldades extrapolam o impensável, mas as empresas ainda podem pedir apoios ao estado para colmatar estes ditos contratempos.

E voltamos à pescadinha de rabo na boca.

 

Desejo um excelente Natal ou tele-Natal a todos os autores, comentadores e leitores do Delito de Opinião. Paz, Saúde e muita paciência.

Deus vos abençoe.  Beijinhos.

A lista dos patifes

José Meireles Graça, 08.12.21

Enunciar o óbvio (também tenho direito a começar uma frase pelo infinitivo, e hoje foi o dia): As crianças não correm qualquer risco credível de morrerem da doença, a vacina nem sequer garante que deixem de poder contaminar e as pessoas que poderiam ser contaminadas e correr riscos já têm a protecção possível, dada a sua quase totalidade estar vacinada. Na parte em que ainda não estejam, em particular porque as vacinas, coitadinhas, enfraqueceram, e porque já se percebeu que a imunidade de grupo é inatingível por o vírus sofrer mutações para viver tranquilamente entre nós, o que os poderes públicos têm a fazer é disponibilizar, para quem queira, versões mais recentes que as farmacêuticas, a quem saiu a sorte grande, vão disponibilizando.

Portanto, do que se trata aqui é de uma experimentação social para a escumalha infecta que pastoreia a grei impingir a ideia de que merece ser conservada nos seus poleiros, por estar a fazer tudo o que é possível. A multidão crédula vai provavelmente levar os seus rebentos à pica, na dúvida, porque mal não fará. E a DGS fica confirmada como um organismo essencial nas nossas vidas – mais do que a AT, a ASAE e as outras autoridades que se asseguram de que andamos na linha, sendo esta o que elas decidem para nosso bem.

A classe médica está nas suas sete quintas: Isto significa que o vírus, que nunca provocou baixas sérias, lhe deu o inimaginável poder de transformar opiniões e conselhos em normas de vida imperativas. Com dois preços: aqueles médicos que se afastem do consenso (isto é, da opinião médica maioritária) devem ser silenciados até onde for possível porque, se do que se trata é de levar as pessoas a adoptar comportamentos, a dúvida estraga o suave arranjo; e o reforço da importância implica um acordo com o poder político porque este não pode dispensar a cobertura da ciência, a qual, na sua declinação de organismos oficiais, não pode dispensar o poder político porque, sem ele, se condena a uma relativa irrelevância e não à gostosa visibilidade que o pânico lhe conferiu.

Os matemáticos estão nas suas sete quintas: Alguém alguma vez soube ou quis saber o que são modelos epidemiológicos, o R(t), as curvas que era preciso achatar? Pois bem, Buescu, Antunes e outros foram subitamente catapultados para o estrelato, e é provável que lá fiquem ainda mais tempo do que o José Maria da Casa dos Segredos.

Os jornalistas estão nas suas sete quintas: Não precisam de investigar, nem de ouvir versões contraditórias, nem de acolher dúvidas. São o quarto poder, não são? E haverá actividade mais nobre do que utilizá-lo para difundir o Bem, a Lucidez, a Saúde e a Ciência, tudo maçarocando notícias das agências ou doutros órgãos, num abençoado copiar/colar, ao mesmo tempo que se esfregam com pessoas de representação que os encaram com os olhos ternurentos da cumplicidade?

O Governo está nas suas sete quintas: O SNS está em ruínas porque assenta no pressuposto constitucional, arnautiano, socialista e demencial de que a saúde pode ser universalmente gratuita, ainda por cima com a maior parte dela assentando em estabelecimentos de propriedade e gestão públicas, sem que um dia esbarre na parede das boas contas. A abençoada Covid esconde o desastre: morre muita gente, é? Pois, maldita Covid, o que nos havia de suceder.

O pequeno ditador que a maior parte de nós traz dentro de si está nas suas sete quintas: Há por aí uns cidadãos meio dementes que fazem gala do seu desrespeito pelos outros passeando-se sem máscara, ou fugindo da prisão domiciliária, ou que duvidam dos senhores padres e da Santa Madre Igreja (perdão: dos cientistas Antunes e D. Graça e da DGS)? São inimigos da comunidade dos fiéis, fogueira (credo, que exagero, uma multa basta) com eles.

Ora, que discurso descabelado: é só uma recomendação. Não, não é. Porque já com as vacinas para adultos e os certificados que se descarregam da Internet estávamos a falar de recomendações, não de obrigatoriedades. Mas como para viajar, ou ir a um restaurante (já não sei se em todos os dias se apenas naqueles em que o vírus ataca com mais ferocidade, por não serem úteis), e para numerosas outras situações comezinhas, era necessária mostrar, como dizem os franceses, patte blanche (a pata aqui compreende-se, e branca também), na prática a vacina era, e é, obrigatória, e agora até com o requinte de um palito gigante esburacando as narinas frementes de ansiedade para saber se se pode ir à discoteca. Com as crianças também será: são perfeitamente livres (não elas, exactamente, mas quem tem a responsabilidade delas para o efeito de as sustentar, que para o mais o Estado reconhece perfeitamente os direitos dos pais desde que os esvazie) de não se vacinarem – desde que não ponham os pés na escola.

E é aqui que aparece outra categoria de pessoas que também está nas sete quintas: Os hipócritas. Porque há duas razões pelas quais a vacina não é obrigatória: uma é que não é uma vacina – se fosse impedia a contracção da doença, ao menos durante um certo tempo, e portanto a sua difusão; e a outra é que, em todo o nebuloso processo, entre nós e entre os outros (ainda que com graus diferentes de insânia, cada país tem o seu conjunto próprio de medidas) convém associar os cidadãos às decisões para que a responsabilidade fique diluída. Já hoje se ouve à boca pequena que a razão porque se tomam tantas medidas irracionais e contraditórias (para além da natural inépcia de alguns funcionários superiores, como a Dra. Graça e a nuvem de apparatchiks que enxundia os serviços de saúde) é a necessidade de sossegar as pessoas fazendo coisas, seja o que for. O que quer dizer que o salvo-conduto futuro para o ajuste de contas retrospectivo com os responsáveis por males muito maiores dos que a própria doença já está feito: foi assim porque as pessoas o exigiam.

Um anúncio no âmbito da prevenção rodoviária dizia há anos, para evitar que as crianças fossem transportadas nos bancos da frente dos automóveis: Comigo a criança vai sempre atrás!

Agora vai à frente connosco, ainda que com isso não corra riscos acrescidos, mas porque convém associá-la ao nosso estampanço. E quem isto decidiu pertence a uma lista pouco edificante, mas infelizmente numerosa: a dos patifes.

Declaração de interesses: Estou vacinado por escolha própria, baseado no cálculo de que é provável que isso diminua potencialmente a gravidade da doença, se e quando a contrair; cumpro algumas regras a que resolvi aderir e nada tenho a dizer sobre as que os outros devem seguir.

Ômicron e África Austral: o gemebundismo

jpt, 08.12.21

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(Postal que deixei no meu Nenhures. Dado o seu conteúdo presumo que seja menos interessante aos visitantes do DO. Mas como é feriado, dia de leituras mais distendidas, aqui o replico).

Há dias países europeus vedaram o acesso a voos comerciais vindos da África Austral, na sequência do anúncio da variante Ômicron da Covid-19. Entretanto quatro escritores renomados, residentes em Moçambique, publicaram críticas contundentes dessa decisão, e do que consideram ser a mundivisão que a promoveu, os quais muito se têm repercutido e, também, induzido uma miríade de posicionamentos similares nas redes sociais dominantes: o angolano José Eduardo Agualusa e o moçambicano Mia Couto publicaram o manifesto  "Duas Pandemias", o português António Cabrita o ditirambo "A Vergonha, ou do Diabo à Entropia", e o moçambicano Armando Artur deixou agora o poema "Ómicron e os Outros".

Sobre este assunto vou botar um postal que (me) é antipático. Pois concordo com muito do que os autores referem - sendo que essa medida logo foi criticada pela Organização Mundial de Saúde, e pelo próprio secretário-geral da ONU, ainda que este tendo expressado a sua oposição em termos infelizes e até inaceitáveis (o "apartheid" foi uma política demasiado violenta para servir agora de material para analogias superficiais e mesmo provocatórias, como escorregou Guterres). E porque tenho apreço pessoal por três destes escritores, os que conheço pessoalmente, e por vários daqueles que os secundam e aplaudem. Mas discordo, e imenso, do sub-texto que perpassa estas proclamações, o feixe de mundivisão que os habita.

Dado esse conteúdo antipático do texto começo por uma ressalva (aquilo a que os ignorantes chamam agora, por pirosice arrivista, "disclaimer"), explicitando o que penso (mais do que tudo, o que intuo) sobre a situação. Em primeiro lugar, e ainda que sendo leigo nestas matérias, desde o anúncio da nova variante Ômicron esperei (perspectivei; tive esperança) que, à imagem de outras variantes que foram surgindo (a "brasileira", a "sul-africana"), não tivesse repercussões muito gravosas - mesmo que tenha efeitos preocupantes em nichos populacionais -, uma relativa amenidade que se vem confirmando, ainda que pareça ser mais contagiosa do que as variantes vigentes.

 

Já basta o que basta*

José Meireles Graça, 21.11.21

A tolerância não é natural, a intolerância sim. Nos 200 ou 300 mil anos que levamos a calcorrear a Terra, mais vezes sim do que não, o diferente foi uma ameaça.

O crescimento económico, pilotado pelo progresso da ciência e da tecnologia, foi sobretudo uma invenção do séc. XVIII, antes disso tendo-se arrastado penosamente durante milénios. Daí que sempre a maneira de resolver problemas de subsistência, ou de excessos populacionais, ou de simplesmente viver melhor, tenha sido ir por aí fora a dar pranchadas no semelhante, à boleia de uma qualquer superioridade no armamento, ou na organização, ou no meio de transporte, ou na quantidade e experiência dos guerreiros, e noutros ous.

Na noite dos tempos vagas sucessivas de invasores se instalaram no meio de populações que dominaram, quando o espaço não estava deserto, e com elas se misturaram até que novas vagas vieram escaqueirar as sociedades entretanto formadas, fornecendo novas elites.

Com a agricultura e a sedentarização veio a escrita e a civilização (em sentido estrito; não estou agora para entrar em muitos considerandos), e quando civilizações floresceram que puderam construir impérios os benefícios foram derramados pelos conquistados sobreviventes, mesmo que às vezes por métodos um tanto, hum, expeditos (v.g. o exemplo de Júlio César, que mandou cortar as mãos a gauleses derrotados para inculcar convincentemente a ideia de que toda a resistência era impossível).

Gostamos de pensar que, como nas nossas sociedades do Ocidente há um conjunto de liberdades que foram consagradas na lei para todos, e que aliás nem saíram de graça nem existem, ainda, na maior parte do mundo, carregamos o farol da civilização. E é sem dúvida assim, ainda que o país líder desta maneira  de estar no mundo tenha recorrido ocasionalmente à noção, nem sempre bem-sucedida, de converter países à democracia pelo expediente de lhes despejar bombas em cima.

O passado projecta sombras compridas, porém; e a crença de que estamos de tal modo polidos, tolerantes e civilizados que somos capazes de avaliar as ameaças que as outras pessoas representam, pela sua plausibilidade, é um delírio de autocongratulação – não somos. O nazismo e a ameaça judaica foi anteontem; e qualquer guerra moderna, incluindo as civis, mostra, para quem precise de que se lhe mostre, que selvagens continuamos a ser.

O quê, guerras, nazismo, intolerância, não sei quê… isso vem a propósito de quê, é aquela coisa dos atentados de crentes da religião da paz, que gente com inclinação para a piada foleira, assim como eu, acha que é mais a religião da pás-catrapás enquanto o clero não for obrigado a recolher às mesquitas, coisa que não está perto de acontecer? Não, é coisa menos séria.

Menos séria mas mais incomodativa, por mais próxima. Temos agora um inimigo público declarado, a Covid. Espreita-nos no restaurante, não nas mesas porque em comendo o bicho que o não é fica desactivado, mas sempre que alguém se ponha de pé; no transporte público, salvo se toda a gente estiver açaimada ou se for um avião; no estabelecimento comercial, excepto se tiver menos de xis metros quadrados; e nas escolas, na rua, até mesmo dentro dos automóveis, e em todos os lugares ou situações em que as autoridades suspeitem que o Demo pode passar dos possessos para os crentes. Alguns objectos, indispensáveis embora, são particularmente ominosos, de que são exemplo as maçanetas das portas; e além do açaimo, a retirar unicamente para comer e lavar os dentes (neste último caso apenas para quem tiver esse hábito salutar), é de rigueur passar as mãos por líquidos de composição suspeita várias vezes ao dia, ainda que com riscos não menosprezáveis para a epiderme.

Que este inimigo internacional é uma ameaça não oferece dúvidas, e que tem causado grandes estragos também: por todo o lado os governos têm tomado medidas, com graus diferentes de intensidade, imaginação e empenho, o que prova o perigo; mas com o ponto em comum de terem dado cabo das economias, o que ilustra o estrago. E o inimigo é como as bruxas na Idade Média: sabe-se lá o que teria sucedido se não as tivessem queimado, a Fé hoje com certeza não seria tão sólida.

Pois bem: sucessivas vagas deste sopro dos infernos da imaginação têm varrido o mundo, deixando na esteira um número ridículo de mortos (por comparação com outras patologias, cujo tratamento entrou em descaso pela mobilização obsessiva com esta); encontram-se exemplos, de relativo sucesso e de relativo insucesso, para ilustrar todas as teses do bem-fundado das medidas, e o seu contrário; e de líquido sabe-se apenas que achatamos a curva, primeiro, depois vacinamos toda a gente, mesmo a que não pertencia a nenhum grupo de risco, para descobrir que a vacina não protege da doença, senão talvez na sua gravidade, nem impede a propagação (ou seja, não é uma vacina), que há aí uns medicamentos que talvez resolvam o problema ou talvez não, mas que o vírus é benigno, salvo em certas idades e, sobretudo, com comorbilidades, e mesmo assim nem para os velhos é uma sentença de morte.

Isto sabe-se, e deveria ser suficiente para os poderes públicos terem a lucidez de não continuarem a fazer asneiras e a praticar abusos para apagar o medo da populaça da qual se imaginam líderes, cujas brasas de cagaço a comunicação social assopra. Mas não: Marcelo, o timoneiro sem carta de marear, já veio confessar os seus medos infantis e doentios. E o régulo da Madeira, digno herdeiro do soba que por lá pontificou durante mais de três décadas, ambos, juntamente com a maior parte dos autarcas que enxundiam o país, claríssimos exemplos de que de descentralização é que não precisamos, veio pôr-se em bicos de pés e informar que vai pontapear a Constituição, as leis e o senso porque ele é el Cid das doenças infectocontagiosas.

O homem legisla, promulga e manda aplicar uma série de diktats que incluem vacinação obrigatória (passa a sê-lo na prática porque sem ela o cidadão é considerado pestífero, tendo toda a liberdade de não ir a lado nenhum), testes semanais obrigatórios mesmo para quem está vacinado, uso da máscara em quase todas as situações (incluindo, embora a “legislação” não esclareça especificamente esse ponto, enlaces íntimos com pessoas com as quais não se coabite) e uma série impressionante de minúcias. Tudo isto, supõe-se, com uma guarda pretoriana para aplicar as leis albuquérquicas e a certeza de que, se houver um maduro que recorra aos tribunais, terá a satisfação, como outros já tiveram noutras ilhas, de lhe ser dada razão sem que os autores dos abusos oficiais sejam minimamente beliscados.

Suponho que a maioria dos madeirenses, que não são nem mais nem menos portugueses que os do contenente, aplaudirá este homem de aço. Mas os direitos do cidadão nunca são mais assegurados do que quando a menor das minorias, que é o indivíduo, desafia o Estado abusador, prepotente e, no caso (mas isso é o menos), ridículo. E é por isso que o que recomendo, com a autoridade que não tenho, é a desobediência civil. Já basta o que basta.

*Publicado no Observador

O fim das medidas sanitárias excepcionais

jpt, 02.11.21

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[Adenda: muito agradeço ao comentador anónimo que deixou explícito que esta preocupação era infundamentada ao deixar ligação para o DR que explicita a continuação do estado de alerta]

Telefona-me uma amiga jurista e diz-me "este país está louco!". Não duvido disso mas pergunto-lhe da razão do diagnóstico: "ouves alguém falar de que deixámos de estar em estado de alerta? Desde 31 de Outubro". E continua ela, "decerto que se esqueceram do assunto". Logo respondo "mas isso é o fim das restrições sanitárias? não terei que usar máscara no metro, no centro comercial?". "Claro", diz ela. "Acabou", pois já não há enquadramento legal para tal, vai explicando entre risadas. 

Calamidade, emergência, contingência, alerta, etc. Foram os "estados" em que vivemos. Acabaram, entrámos finalmente em "estado de normalidade". O que tem implicações jurídicas quanto às atitudes sanitárias, diz-me a amiga (que vinha de encontro entre juristas, já agora, onde todos comentavam o assunto). 

Estão correctos os ilustres causídicos a que aludo? E se assim é alguém fala do assunto? Será mesmo que "este país está louco"? E nisso seguem adormecidos governo, administração pública e imprensa?