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Delito de Opinião

Os nossos convidados (balanço)

Pedro Correia, 12.09.18

 

Em Março do ano passado, quando me lembrei de pedir textos a colegas da blogosfera, das mais diversas tendências políticas, nunca imaginei que esta iniciativa durasse tanto e ultrapassasse em muito o plano inicial. A ideia era termos um convidado por mês, depois um convidado por semana. Mas rapidamente percebi, pelas respostas prontas aos convites, que não fazia sentido haver intervalos tão longos de publicação.

A passadeira vermelha do DELITO DE OPINIÃO passou a desenrolar-se de segunda a sexta - adoptando, na recta final, um ritmo mais pausado e espaçado. Recebemos convidados das mais diversas tendências políticas e com os mais diversos estilos literários. Cada qual abordando temas à sua livre escolha, como aliás ficou desde logo estabelecido: a única regra era não haver regras. Houve quem optasse por textos enormes. Ou por textos muito curtos.

Lembro aqui, ao correr da pena, os nossos dez primeiros convidados: Luís RobaloCarlos NatálioCristina Nobre SoaresAlexandre BorgesJosé Meireles GraçaRicardo António AlvesRui Ângelo AraújoLuís MilheiroJosé Augusto Leite e Joana Lopes. Convidados com personalidades diferentes, com blogues de características muito diferentes. Como diferente era também a atitude de cada um deles: houve quem estabelecesse intenso diálogo com os leitores nas caixas de comentários, outros limitavam-se a uma sucinta referência. A piada destas coisas é também verificar estas diferenças. Quase todos reproduziram os textos nos seus blogues, o que multiplicou de alguma forma o intercâmbio entre nós. Era também isso que se pretendia.

E assim passou mais de um ano: as respostas surgiam quase sempre com uma nota suplementar de simpatia. Devo confessar que a qualidade da esmagadora maioria das colaborações excedeu as minhas expectativas, que já eram elevadas. E a quantidade de respostas afirmativas também surpreendeu: foram raras as recusas e quase todas bem justificadas.

Não posso deixar de destacar, com natural emoção, o texto que nos foi enviado pelo Pedro Rolo Duarte e aqui publicado a 5 de Outubro de 2017, escassas seis semanas antes da sua morte prematura. Nesta mesma série em que viria a comparecer o seu filho António, a 16 de Abril de 2018. 

Numa confirmação de que existem elos a ligar-nos, mais fortes do que as pequenas contingências do quotidiano. Enquanto muitas modas passam, enquanto muitas tendências chegam e partem sob o signo do efémero, há rastos que perduram. Este nosso blogue - vosso também - é prova disso.

 

Agora, que terminou, deixo aqui - por ordem alfabética - os nomes dos 131 convidados que desfilaram na passadeira do DELITO entre 29 de Março de 2017 e 31 de Julho de 2018. Agradecendo a todos, uma vez mais, a colaboração que nos prestaram.

 

A

Alexandra GAlexandra MachadoAlexandre BorgesAlexandre LuzAlice AlfazemaAnaAna CabeteAna C. BorgesAnamarAndré Abrantes AmaralAndré Azevedo AlvesAntónio AgostinhoAntónio CabralAntónio de AlmeidaAntónio Pinho CardãoAntónio Rolo DuarteArmando PalavrasArnaldo GonçalvesAugusto Moita de Deus.

 

B

Beatriz AlcobiaBruno Santos.

 

C

Carla Maia de AlmeidaCarla RomualdoCarlos FariaCarlos Guimarães PintoCarlos NatálioCarolina GuimarãesCatarina DuarteCátia MadeiraCátia SamoraCristina Nobre SoaresCristina Torrão.

 

D

Daniela MajorDavid MarinhoDiogo Ourique.

 

E

Eduardo LouroEduardo SaraivaEufrázio FilipeEugénia de Vasconcellos.

 

F

Fátima MouraFernando LopesFernando Penim RedondoFilipe MouraFilipe Nunes VicenteFrancisco Carita MataFrancisco FreimaFrancisco José ViegasFrancisco Miguel ValadaFrancisco Seixas da Costa.

 

G

GabrielaGraça Canto MonizGraça Sampaio.

 

H

Helena Ferro de GouveiaHenrique Pereira dos Santos.

 

I

Inês LopesIsabel A. FerreiraIsabel Pires.

 

J

JASGJ. J. AmaranteJoana LopesJoana MarquesJoana RitaJoão Afonso MachadoJoão BrancoJoão EspinhoJoão Ferreira DiasJoão Freitas FarinhaJoão LisboaJoão MarchanteJoão Paulo CraveiroJoão TávoraJoaquim Alexandre RodriguesJosé Augusto LeiteJosé Carlos PereiraJosé CatarinoJosé da XãJosé Manuel FariaJosé Maria MontenegroJosé Meireles GraçaJosé MilhazesJosé Pimentel TeixeiraJosé Ricardo Costa.

 

L

Laura Avelar FerreiraLeonel VicenteLuís Miguel RosaLuís MilheiroLuís MoreiraLuís Novaes TitoLuís RobaloLuísa Correia.

 

M

Magda L. PaisManuel S. FonsecaMarcelo Correia RibeiroMargarida Corrêa de AguiarMargarida MourãoMaria AraújoMaria Dulce FernandesMaria GraceMaria MadeiraMaurício BarraMiss X.

 

N

Nelson Reprezas.

 

O

Octávio dos SantosOlavo Rodrigues.

 

P

Paulo FerreroPaulo GuinotePaulo SousaPedro AzevedoPedro OliveiraPedro Rolo DuartePsicogata.

 

R

Raquel Santos SilvaRicardo António AlvesRicardo Campelo de MagalhãesRita MatildeRita I CarreiraRita PiresRobinson KanesRodrigo Moita de DeusRui AlbuquerqueRui Ângelo AraújoRui Monteiro.

 

S

Samuel de Paiva PiresSara BarrosSofia Gonçalves.

 

T

Tiago CabralTiago Nené.

 

V

Vânia CustódioVera GomesVítor Cunha.

 

Z

Zélia Parreira.

Convidada: MARGARIDA MOURÃO

Pedro Correia, 31.07.18

 

Crescer com as palavras

 

Desde muito pequenina fui incentivada a escrever, na escola e em casa pela minha mãe. Tive alguns diários durante uns anos valentes, houve inclusive uma altura em que achei que só conseguia desabafar a escrever. Os primeiros anos da adolescência trouxeram isso mesmo, a escrita biográfica, a escrita do “eu”, das primeiras aventuras e dos primeiros amores.

Fui crescendo e houve um dia em que me zanguei e destruí todas as páginas escritas durante anos, dessas guardei apenas as capas dos diários, que agora nem sei onde estão, se é que existem, depois das voltas da vida.
Numa parte da minha vida tive mais vontade e necessidade de escrever quando estava triste ou zangada. E tentava muitas vezes transcrever essas ideias e conversas em sujeitos inventados e em linhas invisíveis.
O conceito diário deixou de existir, começou a ser uma escrita descomprometida, hoje na folha do caderno, amanhã na capa de outro, depois num guardanapo, numa mensagem guardada num telemóvel, e sobre mim, acabei por desenvolver o hábito de falar com algumas pessoas sobre o que me apoquentava, fosse o assunto importante ou não.
Nessa altura tentei por várias vezes escrever uma história, reconhecendo agora que seria um conto-retrato.
Entre vontades, desabafos, sonhos e fantasias cheguei a escrever uma mini peça de teatro para uns pequeninos de um jardim infantil nos arredores da minha morada da altura.
As histórias são algo que ainda hoje me cativam, as histórias de vida, dos livros, dos sítios, das pessoas, reais ou não. É todo um mundo que me fascina. Como entre letras, espaços e pontuações ficamos a sonhar e a viajar em qualquer banco de jardim ou sofá de casa. A possibilidade de todas as histórias serem ou terem uma realidade e de haver esse cruzamento com o imaginário, entre o que é que “eu” vejo e escrevo e, o que é que “tu” lês e imaginas.
Entre este caminho de escritas e leituras apetecia-me escrever mais e fui à Escrever Escrever aprender a brincar com palavras. Aprender a escrever sempre, sem pensar e a deixar fluir. Aqui surpreendi-me com a facilidade com que as histórias aparecem, como os estímulos podem estar ao virar da esquina e como os desbloqueadores podem estar em perguntas e não em respostas.
O Escrescer é isto tudo, é ser o que sou, é escrever o que imagino, é crescer nas pontas dos dedos.

 

 

(Margarida Mourão
(blogue Escrescer)

Convidado: LEONEL VICENTE

Pedro Correia, 06.07.18

 

Optimista

 

Podia fazer aqui uma espécie de “pot-pourri” de temas que mais me interessam: desde a “Memória”, em termos gerais, a Tomar, mais em particular; do presente e futuro do jornalismo às perspectivas sombrias que assolam a Europa; da questão dos refugiados e das migrações às incertezas sobre as saídas profissionais dos nossos filhos (a tal geração mais qualificada de sempre); em termos pessoais, do indelével elo que, desde há cerca de quatro anos, estabeleci com a Bulgária, o país mais pobre da União, onde a extrema-direita racista chegou recentemente ao poder, tendo sob mira as minorias turca e cigana, segregadas e cada vez mais intoleradas.

Enquanto “coleccionador de histórias”, podia também recordar um episódio com contornos caricatos, que, em 1998, vivi em Bissau: o de, durante a semana, ver toda a gente a olhar para a lua, procurando antecipar o início do Ramadão – e consequente dia feriado –, que, tendo chegado precisamente na sexta-feira, me impediu de confirmar o voo de regresso, numa altura em que a ligação aérea Bissau-Lisboa estava completamente lotada e a duração da reserva no hotel tinha entretanto chegado ao fim, tal como o dinheiro de que dispunha para a missão...

Eu, que me vejo, não propriamente pessimista, mas, de forma geral, mais realista, optei, porém, por deixar aqui de lado as magnas preocupações que nos envolvem nestes dias cinzentos – por outros, bastante mais abalizados para versar estes assuntos, amiúde abordadas –, preferindo expressar, por um prisma positivo, uma outra grande paixão, como é a do desporto.

E, sobretudo, o exemplo que nos é apontado por aquele que será, porventura, o maior desportista mundial de todos os tempos, especialmente na medida em que é praticante de uma modalidade individual, em que um encontro pode chegar a durar até três ou mais horas.

Reunindo características únicas de carisma e virtuosidade, talento e versatilidade, combinando estética e técnica, empenho e profissionalismo, humildade e respeito (pelos adversários e pelo público), numa longeva carreira de mais de vinte anos, praticamente sempre ao mais alto nível – cumprem-se agora precisamente 15 anos sobre a primeira das suas vinte vitórias em torneios do “Grand Slam”, em Wimbledon –, Roger Federer conta quase uma centena de competições ganhas, com mais de 300 semanas como n.º 1 do ranking mundial, somando cinco estatuetas dos “Óscares do desporto”, os prémios Laureus, sendo, paralelamente, o atleta que maiores proventos alcançou em toda a história no decurso da sua actividade desportiva.

 

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 Roger Federer: a sua primeira grande vitória ocorreu faz hoje 15 anos

 

Logo em 2003 criou a “Roger Federer Foundation”, visando apoiar crianças carenciadas e promover o seu acesso à instrução e ao desporto, intervindo fundamentalmente na região da África Austral (África do Sul, Botswana, Malawi, Namíbia, Zâmbia e Zimbabwe), propondo-se agora abranger, num horizonte de curto prazo, um milhão de crianças!

Ora – sendo a publicidade a “força motriz” que faz girar o mundo –, depois de mais de vinte anos como rosto da Nike, prestes a completar 37 anos de idade, o suíço aceitou passar a ser o “embaixador”, a âncora maior de divulgação, da marca japonesa de roupa UNIQLO (acrónimo para a denominação inicial de Unique Clothing Warehouse), fundada em 1984 por Tadashi Yanai, no seu trilho para se tornar uma marca global – procurando desde já notabilizar-se, gerando “buzz” ainda antes que a maior montra desportiva do planeta, os Jogos Olímpicos de 2020, chegue ao Japão –, visando suplantar gigantes mundiais como a Inditex e a H&M, tendo como ambicioso objectivo atingir, já nesse ano de 2020, os 50.000 milhões de dólares de facturação!

Percebe-se, assim, como será possível pagar a Federer – o maior “avalista” de imagens de marca do mundo, representante, entre outras, das luxuosas Rolex, Mercedes-Benz ou Moët & Chandon (só Cristiano Ronaldo e LeBron James estarão, actualmente, na sua faixa de honorários) – cerca de 300 milhões de dólares, por um contrato de dez anos (independentemente do previsto termo de carreira a curto/médio prazo) – o qual, em termos comparativos, e para se percepcionar melhor o que está em causa, acumulou, ao longo de todo o seu trajecto profissional de mais de vinte anos, um montante global de cerca de 116 milhões de dólares em prémios.

Nas palavras de Tadashi Yanai, ao anunciar esta extraordinária parceria: «Compartilhamos uma meta de operar mudanças positivas no mundo, e espero que, juntos, possamos proporcionar a mais alta qualidade de vida para o maior número de pessoas».

Ao que o grande campeão retorquiu: «Estou profundamente implicado com o ténis e com o triunfo em competições. Mas, tal como a UNIQLO, também tenho grande amor pela vida, cultura e humanidade. Partilhamos uma forte paixão por ter um impacto positivo no mundo em nosso redor, ansiando por conjugar os nossos esforços criativos».

Sem ignorar que, para a empresa, antes de preocupações a nível da sua responsabilidade social, importará, em primeira instância, o lucro – aliás, como condição determinante para a sua própria perenidade –, quero crer que não terão sido em vão as palavras de Yanai, assim como, da parte de Federer – que nem sequer teria a possibilidade física de usar em “proveito próprio” o imenso pecúlio já antes angariado (estimado em mais de 500 milhões de dólares) –, os seus actos no passado constituirão um bom garante do compromisso agora novamente expresso.

Continuo optimista que, à nossa ínfima escala individual, procurando replicar o seu exemplo, seremos capazes, cada um, de dar também pequenos contributos para uma sociedade menos desequilibrada, e, principalmente, mais solidária.

 

 

Leonel Vicente

Convidada: MARIA GRACE

Pedro Correia, 14.06.18

 

De jornalista... a telefonista

 

Estávamos em Setembro de 2001. Uma jovem recém-licenciada em Comunicação Social acaba de sair de uma das melhores universidades, a nível internacional, com um sorriso no rosto. Acabara o seu curso. Tinha atingido mais uma meta, na sua ainda tão curta vida. Saía daquela, onde até aí tinha passado grande parte do seu tempo, trabalhando arduamente, com a esperança de vir a encontrar o seu lugar na sociedade.

 

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 Foto retirada de. www.pexels.com

 

Como jornalista, como escritora, como voz das notícias, fossem elas escritas ou faladas. Mas nem imaginava que o mundo real não ia ser tão colorido como idealizava. Mal sonhava que ia entrar na maior selva que existe. Uma selva agreste, cinzenta, tempestuosa. A selva do mercado de trabalho, onde a concorrência não perdoa.

E nem os cinco anos de noites mal dormidas, nem a experiência adquirida num jornal diário conceituado, lhe valeram de nada, pois a resposta ao rol de curriculuns enviados era sempre a mesma: «Agradecemos a sua comunicação, mas de momento não estamos a necessitar...» ou «...Procuramos alguém com mais experiência na área.»

Que decepção! Cinco anos fatigantes e uma formação que não ia ver tão cedo a sua realização. Vidas trocadas, destinos cruzados, cursos mal tirados. Os desgraçados estudam, iludindo-se com um futuro prometedor (pensam eles), para acabarem numa sala escura e fria, onde impera o som dos telefones. Pois é! O seu primeiro trabalho, porque não podia ficar sem nada fazer, foi num call-center de uma operadora de comunicação. E deixem-me dizer-vos,que muitas pessoas nem imaginam sequer o que lá se passa dentro. Como é o funcionamento destes trabalhos temporários. Durante sete horas consecutivas a jovem atendia centenas de clientes, com apenas uma hora de almoço, cronometrada, quinze minutos de pausa, de manhã e à tarde, e se lamentavelmente tivesse uma dor de barriga que a obrigasse a ir à casa de banho, e a demorar mais tempo, já estava a ser repreendida. Ah, pois é! Até para ir à casa de banho tinham que pedir... e esperar pela aprovação. E, claro, não posso deixar de referir a pressão que sofria continuamente, pois as chamadas tinham um tempo médio de três minutos e meio, e nem podia pensar em deixar o cliente a ouvir música mais de um minuto. Já se ouvia lá do fundo uma voz que gritava “ VAI À LINHA!”. E este pedido não era um “Vai à linha... por favor”, mas mais próximo de “Vai à linha... JÁ!!!!”

Se é que me estou a fazer entender!

E quando se lembravam de dizer “Despacha-me esse cliente”, nem sonham a vontade que a jovem tinha de desligar automaticamente a chamada, algo proibidíssimo, com direito a despedimento por justa causa. A sua revolta crescia a cada dia que passava, quando devia ser a sua satisfação. Até que caiu a última gota de água, que fez a jovem “peixinha” saltar fora do aquário, quando pediu a um cliente para aguardar, pois estava a analisar o problema colocado, e do outro lado apenas ouviu o indivíduo para outro, na gozação:

 

- Esta não percebe nada do que está a fazer! Ah! É só uma telefonistazinha.

 

Nem consegue bem descrever o que sentiu naquele momento. Uma espécie de bola que lhe ficou entalada na garganta. As lágrimas a quererem sair, e um desejo de responder, mas não podia.

TELEFONISTA? TELEFONISTA? E obstinada como era, fez questão de ir ver:

 

TELEFONISTA: Funcionário de determinada empresa ou instituição cuja função é atender telefonemas, estabelecendo as ligações externas ou internas pretendidas.

 

A rapariga estava a resolver uma situação. Não ia passar o cliente para ninguém!!! Não! Efectivamente, o senhor não sabia a diferença entre telefonista e assistente de apoio.

Nem sei como aguentou tanto tempo. Ainda lá esteve uns longos meses.

Infelizmente a realidade com que se deparou foi aquela, há uns anos atrás. A verdadeira sociedade revelou-se nas respostas das várias empresas à sua apresentação. Experiência... Experiência… Experiência… Mas afinal onde se encontrava a suposta assistência que poderiam e deveriam dar aos jovens ex-estudantes?

Com muita pena minha, constato que ainda continua a ser assim, pois se lermos os classificados dos jornais, ou mesmo nos sites de emprego, a maioria das empresas pede um ou mais anos de experiência, para fazer isto ou aquilo. E logo aí muitos jovens, e até mesmo graúdos, ficam bloqueados perante tal requisito. E possivelmente são possuidores de excelentes qualidades, mas vão continuar incógnitos, quem sabe a atender telefones, pois as entidades só pedem pessoas experientes.

 

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Foto retirada de Google Imagens

                                                          

Infelizmente, para muitos, a experiência tantas vezes pedida pode levar à desistência. Como não têm nenhuma, pois acabam de sair das universidades, e não encontram, muitas vezes quem lhes dê a mão, acabam por desistir de uma realização profissional que estava destinada a eles, e para a qual estudaram durante anos, acomodando-se a um trabalho fatigante e sem hipótese de subida, pois as despesas começam a ser uma prioridade, e nem pensam na possibilidade de lutar pelo seu lugar ao sol.

Hoje, não sou jornalista, por minha opção, mas sinto-me bem com com o trabalho que exerço, e considero isso o mais importante. O segredo? Acho que, mais do que lutar por um cargo ligado obrigatoriamente ao curso tirado, é lutar por uma profissão que nos faça sentir bem, profissionalmente e pessoalmente.

Mas, claro, continuo a gostar imenso de escrever e de descrever. O meu pai costumava dizer, ao ler as minhas histórias, que eu fazia música com as palavras, em qualquer texto escrito, fosse uma crónica, um conto, uma notícia. E eu nunca desisti de continuar a compor a minha música em forma de palavras.

 

 

Maria Grace

Convidada: ANA CABETE

Pedro Correia, 04.06.18

 

Cismar

 

Perdeu-se o cismar.

Activos, produtivos e exaustivos, deixámos de cismar para o céu, cismar à janela, cismar para um livro, cismar ao sol, cismar para dentro.

Ninguém se encarrapita; sofre-se de síndrome vertiginoso e não se olha o Alto; para conhecer os segredos da “máquina do mundo”, basta inclinar a cabeça para o ecrã que jaz nas mãos.

Desapareceram os esgrouviados; civilizadamente inconformados, já se pesquisou tudo e não é um verso que vai ensimesmar ou transviar a estrutura.

Não se cita Camões: “Bem céu fica a terra/ que tem tal estrela”; teme-se a rejeição e espreita-se a SMS da adolescente: “És bué a minha cena!”.

 

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 Imagem: fotógrafa Sofia Colvin

 

Chega de arrecadar; não há cartas de amor ridículas, postalinhos ou seixos do mar para os segredos do baú.

Macambúzios e com tanglomanglo, nunca mais; pílulas de todas as cores para resistir ao “desconcerto”.

Ao demo a cordialidade; esquece-se a origem “cor, cordis” e amarram-se as cordas do coração. O salamaleque, a saudação “a paz esteja convosco”, é para os balconistas das lojas chiques. Muita educação revela insegurança ou, pior, falta de personalidade.

Hoje, sofre-se de burnout, distúrbio psíquico resultante de vertigem, não daquela decorrente do cismar em cima do telhado, mas da vertigem que resulta da velocidade, da entrada abrupta no futuro, sem recolher o que é precioso e ficou retido no passado.

 

 

Ana Cabete

Convidada: ANA C. BORGES

Pedro Correia, 14.05.18

 

Viajar devagar

 

Aqui há tempos li um artigo sobre um casal que visitou 60 países num ano. 60 países??? Em 12 meses??? Isso dá uma média de 5 países por mês, o que significa menos de uma semana em cada um. É certo que o elemento feminino do casal refere no blogue que só esteve um dia no Cairo (aqui sobraram-lhes alguns dias para estarem mais tempo noutro lado…) – e eu até concordo que o Cairo não é das cidades mais agradáveis para uma estadia demorada mas… um dia??? E mais: conseguiram ver nesse dia os três locais que se propunham visitar: a Esfinge e as Pirâmides de Gizé, o Museu Egípcio e o mercado de Khan el-Khalili. A prová-lo lá está uma foto muito gira da jovem, lindamente vestida, com as Pirâmides em fundo – uma foto perfeita para o Instagram ou qualquer outra rede social.

Bom, eu acredito que só lá tenham estado um dia. Até acredito que tenham visitado o que dizem – mas terá sido certamente entrada por saída, com pouco mais de tempo do que o suficiente para tirarem umas fotos bonitinhas e “instagramáveis”. Para o Museu é preciso pelo menos meio dia, mesmo não vendo tudo ao pormenor; outro tanto gasta-se à vontade em Khan el-Khalili; e Gizé também não se visita em quinze minutos, mesmo sem contarmos com o tempo da deslocação.

 

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Cada vez me faz mais confusão esta forma de viajar. Percebo que se queira aproveitar ao máximo o tempo para ver tudo o que for possível – há tantos lugares para visitar, e as horas passam tão rápido… – sobretudo se temos apenas alguns dias ou semanas de férias até regressarmos à rotina diária. Mas quando se trata de pessoas que largaram o trabalho fixo para andarem pelo mundo, não consigo entender de maneira nenhuma esta necessidade de correria.

Vivemos demasiado depressa nos dias de hoje. Contra mim falo, que ando constantemente a tentar esticar as horas do dia para nelas caberem tudo aquilo que quero ver, ler, escrever, conversar, aproveitar, e ainda descansar. Também eu já fiz viagens de carro de 12 horas seguidas, circuitos turísticos com jornadas de percorrer 600 quilómetros em autocarro – com paragens pelo meio para ver isto ou aquilo durante meia hora, uma hora no máximo – cruzeiros em que se chega de manhã a uma cidade para de lá sair ao fim da tarde e acordar no dia seguinte num outro lugar. Já fiz, sei como é e, muito francamente, não é a forma de viajar de que eu mais gosto.

 

Quando comecei a viajar regularmente para fora de Portugal, ainda antes da era dos telemóveis e da internet, tudo era marcado através das agências de viagem. E, apesar de todas elas terem pacotes fixos de viagens pré-feitas, era perfeitamente possível organizarem-nos uma viagem por medida. Consegui por isso arranjar sempre viagens mais ou menos de acordo com as minhas preferências de tempo. No mínimo cinco dias para uma cidade grande, e nunca menos de duas semanas para umas férias de praia e passeio num qualquer país mais distante.

Quando as agências passaram a praticamente só oferecer pacotes de uma semana, comecei eu própria a organizar as minhas viagens, de forma a aproveitar ao máximo o (pouco, sempre pouco…) tempo que tenho disponível para viajar, mas ao ritmo a que eu gosto.

Viajar devagar tem outro sabor. Não é viajar sem destino, porque organizo previamente um roteiro com aquilo que não quero deixar de ver; e é claro que tenho de marcar passagens e fazer eventualmente algumas reservas – porque não me apetece chegar à meia-noite a uma cidade e ainda ter de ir procurar alojamento, por exemplo, ou querer alugar um carro e não ter porque é época alta e estou num sítio onde a oferta é reduzida. Mas na minha “organização” reservo sempre tempo para poder conhecer com calma os lugares que vou visitar, e deixo espaço para o imprevisto e para a vontade de ficar mais tempo aqui ou ali, para passear com calma, para alterar o percurso se me apetecer.

 

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Viajar devagar é também um estado de espírito. Gosto de andar sem grande rumo numa cidade, fazer uma caminhada de vários quilómetros em vez de ir de carro, descobrir uma praia fantástica numa qualquer aldeola ainda fora dos roteiros turísticos, olhar para um mapa e decidir que em vez de ir para sul vou para leste. Gosto sobretudo de ser surpreendida – dar por acaso com algum sítio de que nunca ouvi falar e pelo qual me apaixono a ponto de querer ficar mais tempo, conhecer os seus recantos, comer num qualquer restaurante despretensioso mas onde a comida é deliciosa, falar do meu país com quem me pergunta de onde sou, e em troca ficar a saber alguns segredos que só conhece quem ali vive.

Viajar devagar permite-me criar uma ligação maior ao lugar que visito. Ao terceiro dia em Londres já olho automaticamente primeiro para a direita antes de atravessar uma rua, ao terceiro dia em Veneza já me oriento nalgumas ruelas sem precisar do mapa, ao terceiro dia em Annecy já conheço dois restaurantes onde se come bem e os empregados são conversadores. Ao fim de alguns dias numa cidade ou numa região começa a instalar-se um sentimento de familiaridade que, longe de me entediar, faz-me sentir mais relaxada e confortável. Começo a reconhecer algumas palavras na língua e escrita locais, já sei onde é o frigorífico das bebidas frescas no supermercado e não preciso de perguntar novamente se um determinado prato típico local leva queijo ou é picante. Começo a sentir-me em casa, mas numa casa nova que estou excitantemente a descobrir aos poucos.

Viajar devagar consolida as minhas futuras memórias do que vivi em cada lugar onde estive. Na voragem da correria o cérebro só vai conseguindo reter uma coisa aqui, outra acolá. Tenho uma memória sobretudo visual e olfactiva, preciso de estar efectivamente num local para absorver o seu ambiente, observar os pormenores, sentir as emoções que ele me desperta – ou não! Só assim consigo mais tarde reviver as experiências que tive, e ao revivê-las transporto-me para lá, é quase como estar a viajar novamente.

 

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Embora nem sempre me seja possível viajar tão devagar quanto de facto gostaria – ah, esta incapacidade de multiplicar para o dobro os dias de férias e os fins-de semana…! – tenho vindo cada vez mais a escolher a qualidade em detrimento da quantidade. Não quero simplesmente coleccionar lugares, não quero vangloriar-me de que visitei quatro cidades numa semana, não quero chegar de uma viagem com a sensação de que vi muita coisa mas não conheci quase nada. Quero viver plenamente cada experiência, sentir o local onde estou, desacelerar, ter tempo, aproveitar o tempo.

E é por isso que, sempre que posso, viajo devagar.

 

 

Ana C. Borges

Convidado: RUI MONTEIRO

Pedro Correia, 24.04.18

 

Litoral é Lisboa e o resto é paisagem

 

Portugal é um país com fortes assimetrias territoriais de desenvolvimento económico e social, ponto final parágrafo. É assim que o tema da coesão nacional é apresentado: uma afirmação sem explicação. Há sempre um subtexto, o “vocês sabem do que estou falar”. O subtexto, o que todos damos como adquirido, é que o litoral se opõe ao interior, o urbano ao rural, as áreas metropolitanas às cidades médias, dando origem a diferentes jogos de soma nula. A dicotomia entre Lisboa e o resto do país também faz parte do subtexto, mas as razões são mais ideológicas do que de facto, resulta do centralismo para uns e da inveja dos caciques da província para outros, não existindo unanimidade ou a unanimidade é que tudo se resume a um Porto-Benfica.

Como os antecessores, este Governo também decretou que a dicotomia justa era entre o litoral e o interior e criou uma Unidade de Missão para o Interior para a dirimir.

 

Procura-se analisar essa dicotomia através do Produto Interno Bruto (PIB) por habitante. Parafraseando Winston Churchill, é o pior indicador de análise da convergência real, com excepção de todos os outros. Por razões compreensíveis, retiram-se os Açores e a Madeira desta análise. Por simplificação e dada a ausência de informação com outro recorte espacial, admite-se que o litoral é constituído por todas as regiões NUTS III que fazem fronteira com o Oceano Atlântico, por mais pequena que seja, e o interior pelas restantes. O litoral apresenta um PIB por habitante superior em 8 pontos percentuais (p.p.) à média do Continente, enquanto essa diferença relativamente ao interior ascende a -22 p.p.. Analisadas assim as assimetrias, este diferencial de 30 p.p. permite afirmar que o litoral e o interior apresentam níveis de desenvolvimento diferentes.

Se se retirar a região NUTS III da Área Metropolitana de Lisboa do litoral, as comparações permitem conclusões diferentes. O litoral e o interior apresentam um PIB por habitante inferior à média do Continente de, respectivamente -7 p.p. e -22 p.p., enquanto essa relação da Área Metropolitana de Lisboa é precisamente inversa de +31 p.p.. A diferença entre o interior e a Área Metropolitana de Lisboa (53 p.p.) é cerca de três vezes e meia superior à diferença entre o interior e o litoral (15 p.p.). Não parece que a dicotomia entre o interior e o litoral explique as assimetrias de desenvolvimento ou, se explica, como muitos afirmam, incluindo o Governo, então é porque só a Área Metropolitana de Lisboa faz fronteira com o Oceano Atlântico.

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Esta é uma análise positiva, do que é, não permitindo um juízo normativo, do que deve ser.

Depois da correcção dos principais desequilíbrios macroeconómicos decorrentes da negociação entre o Estado português, por um lado, o FMI, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu, por outro, do Programa de Assistência Económica e Financeira, a principal preocupação da política económica continua a ser a do endividamento externo globalmente e de cada um dos sectores institucionais (Estado, famílias e empresas). Qualquer juízo normativo deve ser efectuado tendo em consideração esta preocupação, procurando tirar lições de experiência para o futuro, dado que ninguém pretende regressar ao passado recente.  

A balança de mercadorias (exportações-importações) das diferentes regiões NUTS II do Continente expressa em percentagem do PIB é a seguinte: no Norte é de +11%, no Centro de +9%, no Alentejo de +6%, no Algarve de -1% e na Área Metropolitana de Lisboa de – 26%.

Um dos factos estilizados da economia portuguesa é o seu persistente défice da balança comercial. Embora não se disponha de informação regionalizada relativamente à balança de serviços e ao comércio inter-regional, pode-se afirmar, mesmo assim, que em termos absolutos e relativos a Área Metropolitana de Lisboa é o principal território responsável por esse défice persistente da economia portuguesa. Sendo a região mais rica do país, também se admite que apresente um défice da balança de rendimentos e transferências. Os dois défices só podem ser compensados por uma posição superavitária nas balanças de capitais e financeira. Estas posições têm o seu simétrico nas outras regiões do país e, em particular, nas suas regiões mais pobres (Norte e Centro).

Não se trata de qualquer juízo moral, de que os lisboetas vivem acima das suas possibilidades, mas tão-só de constatar que as necessidades de investimento da Área Metropolitana de Lisboa não são financiadas pelas poupanças dos seus residentes, sendo oriundas não só do exterior do país como das regiões mais pobres, minando o seu potencial de crescimento futuro e tornando a execução dos fundos europeus pouco eficaz na correção de assimetrias de desenvolvimento e na convergência real.

Esta é uma situação comum em países pouco desenvolvidos ou de desenvolvimento intermédio, mas não em países mais desenvolvidos com os quais nos queremos comparar no contexto da União Europeia.

 

O facto estilizado que marcou a economia portuguesa durante o processo de convergência nominal que antecedeu a criação do Euro e após a instituição da moeda única foi o excesso de investimento em sectores produtores de bens e serviços não transacionáveis, muito dele assente no simples rentismo (“rent-seeking”) e em rentistas (“rent-seekers”), aos quais não é indiferente a concentração em Lisboa e na sua área metropolitana do poder político. Este investimento inflacionou os respectivos preços dos bens e serviços, alterando a sua relação com os preços dos bens e serviços transacionáveis, apreciando a taxa de câmbio real, reduzindo a competitividade externa e aumentando o endividamento, público e privado.

Procurou-se explicar que as assimetrias de desenvolvimento estão associadas ao endividamento externo e vice-versa, num processo que se autoalimenta e se amplifica, gerando um círculo vicioso. A identificação e a caracterização de um problema não transportam em si mesmas a solução. Não há, nunca há uma só solução. Nos países mais desenvolvidos da OCDE uma parte da solução tem passado pela distribuição territorial do poder político de acordo com o princípio da subsidiariedade, sujeitando-o a maior escrutínio público e democrático, para se evitarem problemas do rentismo. A esta solução chama-se descentralização. É condição necessária mas não suficiente.

 

É necessário canalizar também o investimento para sectores produtores de bens e serviços transacionáveis, que, por estarem expostos à concorrência internacional, apresentam maior potencial de aumento da produtividade e de transformação estrutural da economia portuguesa. Esta aposta não é neutra em termos territoriais e depende da orientação a dar aos fundos europeus no atual e no próximo período de programação. Não se alteram os perfis produtivos dos territórios do dia para a noite. Uma aposta desta natureza não pode dispensar as regiões com maior orientação exportadora e conhecimento dos mercados internacionais e que, simultaneamente, apresentam PIB por habitante mais reduzido (Norte e Centro).

Se foi em nome desta solução que recentemente o Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD) fizeram dois acordos, então estaremos em presença de um pacto de regime, porque o regime nunca mais será o mesmo.

 

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“Portugal é Lisboa e o resto é paisagem”, todos o dizemos e, aparentemente, teria sido o Eça de Queiroz a dizê-lo primeiro. Ao reler o capítulo VI de Os Maias não encontrei referência à paisagem que constitui o entorno de Lisboa e o resto do país, mas deliciei-me com o retrato irónico e cruel de uma elite decadente que sempre se considerou superior ao povo a que pertence. Esta frase permanece no nosso imaginário colectivo e dos principais decisores. A ideia que lhe subjaz é poderosa: o que é bom para Lisboa é bom para Portugal, dado que as duas realidades se confundem, um pouco à imagem da relação entre a General Motors e os Estados Unidos. É poderosa mas não é verdadeira. A correcção das desigualdades, isto é, o crescimento económico mais robusto das regiões mais pobres, permitirá um crescimento económico mais sustentável de Lisboa e de Portugal, um crescimento menos exposto a problemas de endividamento externo.

É necessário concentrar a atenção nas assimetrias que importam e não noutras que pouco ou nada importam nos termos em que são apresentadas, como se, num país com pouco mais de 200 km de largura e nas actuais condições de mobilidade de pessoas, de capitais, de bens, de conhecimento e de tecnologia, o desenvolvimento dependesse predominantemente do meridiano que ajuda a referenciar cada lugar.

 

 

Rui Monteiro

Convidada: ISABEL A. FERREIRA

Pedro Correia, 18.04.18

 

O mundo é um lugar sinistro

 

Vivemos num mundo onde a morte de seres humanos e de seres não-humanos (a destes muito mais) se banalizou a tal ponto que a essência da Humanidade se afundou no pântano da iniquidade.

 

Até onde nos levará esta loucura colectiva?

 

O mundo afunda-se num abismo imenso, e ainda há quem se divirta com a depravação de actos e de factos consumados por indivíduos sem dignidade, sem palavra, sem consciência, sem respeito por si próprios.

Impera uma ignorância obscura, assente numa mentalidade estagnada, que nos faz retroceder ao tempo em que dominavam os brutos, lançando o caos e espalhando a morte à sua passagem, pilhando, exterminando povos, violando mulheres, raptando crianças...

 

Isto soa a passado?

Não, não soa.

Ainda hoje vi, ouvi e li notícias tão semelhantes a estas de tempos idos... Hoje, precisamente ainda hoje, um dia do ano de 2018 depois de Cristo.

 

O que aconteceu?

Existirá uma idiotice congénita que é transmitida através do Poder, e a partir desse poder, essa idiotice rasteja até aos mais perversos indivíduos, e estes vão espalhando o terror, a morte e a miséria mental pelo mundo?

 

Vejamos o que temos:

Guerras “santas” e menos santas; terrorismo; fome; sede; doenças misteriosas; novas bactérias; novos vírus; poluição; tráfico de drogas; tráfico de armas; tráfico de seres humanos; tráfico de animais não-humanos; escravatura infantil; pedofilia; violações de mulheres novas, idosas e crianças; assassinatos; lutas fratricidas; mortes gratuitas; roubos; lapidações; condenações à morte; mutilações; massacres; prisões arbitrárias; tortura de seres não-humanos para divertimento “humano”…

 

Novas mentes velhas andam por aí.

 

Na verdade, este mundo é um lugar sinistro, cheio de gente sinistra que odeia e ri-se dos seres humanos que tentam semear girassóis nos campos onde jazem os que morreram às suas mãos.

São eles, os comedores de carne putrefacta e ossos, que se riem, mostrando uns dentes apodrecidos pelo tempo antigo que neles estagnou...

 

 

Isabel A. Ferreira

Convidado: ANTÓNIO ROLO DUARTE

Pedro Correia, 16.04.18

 

Herdar amigos

 

Existem heranças de toda a espécie. Há quem herde muito dinheiro. Há quem herde peças valiosas. Há quem herde cargos políticos ou administrativos. Felizmente, posso dizer que o meu Pai não me deixou nada disso. Eu só herdei a melhor coisa do mundo: amigos.

Com alguns deles, a amizade já estava reservada. Por exemplo, um amigo com quem o meu Pai tinha um almoço marcado para todas quartas-feiras, “quer estejamos, quer não”, passou a ser meu companheiro de almoços a que só podemos faltar “por força maior”. Com outros, foi amizade à primeira vista. Começou com um olá nervoso, um abraço a medo, e quando demos por ela... éramos amigos e não havia nada a fazer.

Certas amizades já existiam em segundo grau e foram promovidas. Por exemplo, herdei uma amiga que me passou a convidar para jantar em casa dela, ao domingo, de três em três semanas, garantindo assim matematicamente a subida de escalão. Mas outras vão fazendo o seu caminho, qual navegação à vista, por entre surreais coincidências. É o caso de uma amiga que, no dia de se processar a herança, estava a ler o mesmo livro que eu (mal sabe ela que esse livro me chegou às mãos através do meu Pai. É quase como se ele soubesse que íamos criar laços em volta dele).

Há amizades herdadas de um luxo fora do comum. Uma das amigas mais importantes que herdei foi herdada com amor, além de amizade. Essa é monumental e difícil de explicar. Mas outras são simples e igualmente boas. Por exemplo, herdei um amigo que atende sempre o telefone, responde sempre às mensagens e está sempre disponível para jantar um dia destes – e outro que não faz nada disso. Ambos já eram assim com o meu Pai, pelo que foi uma maravilhosa transferência directa de bens.

Não é nada complicado herdar amigos. Qualquer local serve: um restaurante, uma esplanada, uma biblioteca, uma casa acolhedora... Cada amizade pode ser herdada a seu tempo, sem preocupações e de maneiras diferentes. Não há obrigatoriedade de declarar os amigos herdados às Finanças. A pessoa pode mesmo tornar-se rica em amigos, todos eles herdados, sem ter de preencher nenhum formulário.

Herdar amigos é sempre uma surpresa. É impossível prever com antecedência quais os amigos que vamos herdar. Nenhuma amizade deve pressupor obrigações (muito menos para com os descendentes), pelo que até é comum nenhum amigo ser herdado. É preciso ser muito sortudo, como eu, para herdar vários.

É uma sorte do tamanho do mundo, porque herdar amigos é mesmo bom. Não se pense que os amigos herdados não estão à altura daqueles que são nossos por aquisição própria. É verdade que só se tornaram nossos por amizade à pessoa que nos deixou, mas são ainda melhores por causa disso, pois têm, nas suas memórias, partes dela que mais ninguém tem. Os amigos que herdei não substituem o meu Pai. Mas acrescentam. E de que maneira.

Sempre soube que é muito bom fazer amigos. Agora sei que também é óptimo herdá-los. Há até amigos que se herdam via blogue. Haverá coisa mais bonita?

 

 

 António Rolo Duarte

(blogue DORMINHOCO)

Convidado: JOSÉ MILHAZES

Pedro Correia, 11.04.18

 

Putin, Trump e a crise no Sporting

 

A situação em torno da Síria agrava-se de hora a hora. Os Estados Unidos parecem mesmo dispostos a bombardear lugares estratégicos, incluindo Damasco. Moscovo ameaça responder, mas, por enquanto, ressalva que só no caso de serem atingidos alvos e militares russos.

A situação poderá atingir o nível de perigo da Crise das Caraíbas, em 1962, mas com uma nova interrogação. Serão os dirigentes dos EUA e da Rússia sensatos ao ponto de travarem a tempo a escalada? Há linhas vermelhas que já foram ultrapassadas, mas falta a fundamental: a continuação da existência do ser humano. Ambos os países têm armas suficientes para rebentar com o globo terrestre.

 

P.S. Ironia à parte, espero que a crise no Sporting termine o mais rápido possível, pois, em termos de tempo de antena, Bruno de Carvalho está claramente a bater Putin e Trump. Talvez, no futuro, os livros de história universal venham a rezar: "A crise na Síria, que ocorreu no tempo em que BC era Presidente do Sporting, em 2018, terminou com uma cimeira russo-americana."

 

 

José Milhazes

(blogue DA RÚSSIA)

Convidada: RITA MATILDE

Pedro Correia, 09.04.18

 

A forma como (não) lemos

 

"Não tenho tempo" é o que dizemos quando confrontados com hábitos de leitura. No entanto arranjamos sempre um tempinho para navegar nas inúmeras redes sociais disponíveis, para fazer scroll, ver séries ou para fazer zapping apenas para nos mantermos "ocupados". A internet e a televisão são as principais justificações para a "falta de tempo para ler", mas são antes disso as principais culpadas pela forma como lemos ou, devo antes dizer, como não lemos.

A massiva quantidade de informação com que somos diariamente confrontados leva-nos a simplesmente passar os olhos pelas palavras, o que vulgarmente chamamos de ler na diagonal. Estudos concluem que só lemos 20% do conteúdo que visualizamos, passamos os olhos, ignoramos parágrafos, saltamos de uma página para outra sem realmente mergulharmos na leitura. 

Os investigadores afirmam que o cérebro humano, em particular o daqueles que pertencem à geração millennials da qual também faço parte, está a perder as "ligações" que levaram centenas de anos a ser construídas, ligações essas fomentadas por actividades que estimulam a abstracção e imaginação. Há quem diga que a internet está a tornar-nos estúpidos, não acho que assim seja, no entanto estou certa de que a internet está a afastar-nos de uma das pouquíssimas actividades que nos levam simultaneamente a relaxar, abstrair da realidade e dar azo à imaginação.

No contexto europeu, Portugal surge no fim da lista quando se fala em hábitos de leitura, no entanto o número de portugueses que procura e utiliza apps de meditação e relaxamento aumenta exponencialmente, palavras como mindfulness, ansiedade e depressão fazem parte do vocabulário diário e adquirem lugar cativo nos media. Coincidência?

 

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Desde criança que oiço a expressão ler faz bem, mas só durante a adolescência consegui reflectir sobre o que significa fazer bem. Ler é talvez um dos melhores e mais benéficos hobbies, não importa se lemos ficção, não-ficção, poesia, o jornal ou artigos técnicos, ler é simultaneamente estimulante e relaxante. Vários estudos publicados nas últimas décadas confirmam que tem inúmeros benefícios. Ler reduz o stress, abranda o ritmo cardíaco e a pressão arterial. Está provado que ler estimula a memória e a concentração, cria ligações cerebrais e aumenta o nível de empatia, torna-nos melhores seres humanos.

Ora, se todos sabemos que ler faz bem, então porque é que não lemos? A resposta está na primeira frase deste artigo (leia-se reflexão): porque não temos tempo. Será realmente assim?

Suponhamos que um leitor assíduo é aquele que lê um livro por mês. Suponhamos agora que uma pessoa lê à velocidade média de uma página por minuto e que os livros que lê têm em média 300 páginas. Estimamos que essa pessoa terá dedicado cerca de 300 minutos do seu mês à leitura. Parece muito? Aqui ficam alguns exemplos que nos ajudarão a compreender o que esse tempo representa: 3 jogos de futebol completos e ainda 30 minutos de um outro jogo, caminhadas numa extensão total de 25 kim, 3 filmes ou 2 maços de tabaco. Tudo isto num só mês!

 

 

Então como poderemos “arranjar tempo” para ler? Os truques são mais do que conhecidos: definir um objectivo diário ao nível do número de páginas ou tempo de leitura, escolher um tema e/ou estilo que nos agrade, começar por ler livros com poucas páginas, manter a motivação através de leituras em grupo ou com o parceiro. Ler é relaxante, é sonhar, é como uma viagem pela abstracção e tão poucos de nós o fazem realmente. Em vez de mergulhar na leitura e saborear as palavras, passamos os olhos, não por não termos tempo mas antes por já não controlarmos o nosso tempo.

 

 

Rita Matilde

(blogue CLARO COMO ÁGUA)

Convidado: JOSÉ MILHAZES

Pedro Correia, 23.03.18

 

Um bom exemplo para Portugal

 

Um jovem de 28 anos foi condenado por um tribunal da distante Sacalina, península no Extremo Oriente russo, a 300 horas de trabalho obrigatório por ter dado aulas de História sem ter competências para isso.  

Segundo a página Astv.ru, o jovem foi condenado por “falsificação de documentos” e teria comprado o diploma de “historiador” pela Internet.

Se a justiça portuguesa seguisse o mesmo caminho, não haveria dúvida de que Portugal arranjaria mão de obra suficiente para limpar as matas e, desse modo, prevenir incêndios.

Mas, tal como no nosso país, a justiça na Rússia não é igual para todos. Vladimir Medinski, actual ministro russo da Cultura, foi acusado de plagiar parte da sua tese de doutoramento, mas, até agora, sem consequências na sua carreira.

 

José Milhazes

(blogue DA RÚSSIA)

Convidada: INÊS LOPES

Pedro Correia, 16.03.18

 

Em defesa das livrarias de rua

 

Nas últimas semanas têm-se multiplicado as notícias sobre o fecho de livrarias independentes, como a Pó dos Livros, em Lisboa, a livraria Leitura, no Porto e a Miguel de Carvalho, na cidade de Coimbra. Se não é segredo para ninguém que estas livrarias não têm como competir com grandes livrarias como a fnac e a Bertrand, também é certo que nos últimos anos têm ganhado ainda mais concorrência, com a venda de livros em hipermercados, as vendas online em sites como a wook e até os livros em segunda mão à venda no olx e na bibliofeira. Também é difícil não associar a estas livrarias o caso da Lello que, apesar de ser uma das livrarias mais visitadas do país, optou por criar uma taxa de entrada para continuar de porta aberta.

Para quem gosta destas livrarias, há uma cultura que se está a perder e que vai muito além dos livros. Quando vivia em Benfica, descia todos os dias a Avenida do Uruguai e espreitava a montra da livraria Ulmeiro (que fechou no final do ano passado). Quando ia à baixa passava invariavelmente na livraria Aillaud e Lellos na rua do Carmo (que fechou em Janeiro). E quantas vezes lá comprei livros? Muito poucas, para ser sincera. Porque é mais barato aproveitar as promoções dos grandes espaços e mais cómodo comprar os livros online.

O que me leva a crer que ter pena que estas livrarias fechem não chega, escrever este texto também não chega. Se queremos continuar a ter espaços que se dedicam exclusivamente aos livros e que permanecem inalterados com o passar dos anos, onde encontramos livros que já não estão à venda, onde podemos pedir opiniões sinceras, ou simplesmente percorrer as estantes, entre o cheiro de livros novos e velhos, organizados de forma independente, e não a favor das tabelas de venda, então temos de fazer um esforço para entrar mais vezes nas livrarias de rua e sair de lá com um livro na mão.

 

Inês Lopes

(blogue MAR DE MAIO)

Convidada: FÁTIMA MOURA

Pedro Correia, 14.03.18

 

Cozinha e criação - imitar, adaptar e criar

 

Ao longo da história de algumas culturas encontramos sempre determinados períodos em que a cozinha é espectáculo para as elites e resulta de um verdadeiro processo criativo, quer a nível de técnicas quer de conceitos.

Na Roma clássica, as aves que, quais matrioskas, saíam a voar de dentro umas das outras para, no final, comerem ao vivo, e para gáudio dos banqueteadores, uma enguia-eléctrica, ou a vitela que encerrava um porco, um cordeiro, uma galinha, um coelho e um rato, os de fora devidamente cozinhados, os de dentro ainda vivos. Uns séculos mais tarde, foi a vez da pastelaria produzir verdadeiras instalações pelas mãos de Carême, cujas pièces montées eram obras de arte que pareceria iconoclasta destruir para comer.

No fim do século XX, assistimos a nova emergência da cozinha como processo criativo artístico com o aparecimento da cozinha tecno-emocional, pela mão de Ferran Adrià e da escola espanhola. O espectáculo torna-se experiência, aproxima-se do comedor e populariza-se. A criatividade situa-se ao mais elevado nível, o da criação de novos conceitos e de técnicas originais. Esta cozinha influenciou a emergência da cozinha portuguesa contemporânea e, como passou a ser ensinada nas escolas de hotelaria, continua ainda hoje a influenciá-la. A semelhança dos produtos portugueses e espanhóis, e até de inúmeros pratos e formas de confecção, terá sido relevante nessa influência, facilitando o trabalho aos cozinheiros lusos, mas embaçando-lhes também a criatividade.

Podemos considerar a existência de vários níveis de criatividade na cozinha.

As cozinhas regionais e tradicionais, áreas em que os cozinheiros se limitam a reproduzir as receitas, são as consideradas menos criativas e os únicos cambiantes que as podem elevar são os elementos de amor e paixão usados pelo cozinheiro na sua produção. No início do século XXI, os cozinheiros reproduziam frequentemente o estribilho da cozinha feita com paixão como o «segredo» do seu trabalho.

 

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 Bacalhau à Brás recriado

 

Em Portugal, podemos marcar o início da vontade de uma cozinha contemporânea criativa nos princípios de 1990, com quatro cozinheiros: Joaquim Figueiredo, Vítor Sobral, Fausto Airoldi e Miguel Castro e Silva. Os portugueses seguiram de perto o movimento da cozinha espanhola, por exemplo na introdução de algumas modificações estéticas ou a nível das texturas em pratos tradicionais. No restaurante Cais da Avenida, actual Adlib, Vítor Sobral trouxe-nos uma nova aproximação à cozinha tradicional portuguesa dando-lhe o estatuto de fine dining. Assim, a cabidela era apresentada em porções individuais, no interior de pequenos embrulhos individuais. Airoldi fez uma cabidela de pato com geleia de moscatel e serviu-a num copo de Martini. O «à Brás» do bacalhau transformou-se num modo de confecção, sendo o peixe substituído, por exemplo, por frango ou por legumes (Fausto Airoldi). A alheira ganhou um recheio de bacalhau ou de vegetais. Estas micro-adaptações dos pratos tradicionais transportam-nos para um nível mais elevado da reflexão através da introdução de um qualquer twist, seja na apresentação, seja na confeção. Estes twists ainda continuam a praticar-se largamente nos dias de hoje: ao rissol junta-se-lhe o ingrediente que estiver na moda, seja malagueta, ou melhor ainda, sriracha, o recheio de sapateira ganha algas, e a salada de polvo adorna-se de kimchi (exemplos retirados da actual ementa do Bairro do Avillez). Estamos num nível de criatividade ainda básico, mas que já implica reflexão.

 

Num terceiro nível deste processo situa-se a criação de uma receita, seja ela baseada noutra já existente na cozinha tradicional ou contemporânea, seja ela original. No exemplo do primeiro caso, a receita diz-se desconstruída, uma vez que se pretende manter os sabores, mas recorrendo a outras técnicas e até a outros produtos. O inventor da desconstrução foi Adrià com a sua tortilha, processo que aplicou também ao gaspacho e a inúmeros pratos clássicos. Como pressuposto da eficácia deste método, o comedor tem de conhecer o prato original, caso contrário perde-se o objectivo. Exemplo do primeiro caso, temos o “bacalhau à Brás do Flores”, do chef Bruno Rocha (2016), em que o bacalhau surge em posta com batata palha, azeitona desidratada, ou o de João Rodrigues (2016), o mesmo bacalhau apresentado como uma emulsão de sames e línguas de bacalhau, com a gema panada com pó de azeitona, mais uma vez a batata palha a surgir na versão original. «Bica, cheirinho, guardanapo e sombrinha» é um exemplo do segundo caso, uma receita original e irreverente para o fim da refeição. O seu autor é Aimé Barroyer (Tavares, 2011): a bica como parfait de café, a aguardente em espuma, o guardanapo como bolo com este nome e um cone de chocolate a relembrar a sombrinha da Regina.

 

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 Sound of the Sea: visão, ouvido, paladar e tacto

 

Num nível superior de criatividade, encontra-se o processo que implica a criação de novas técnicas, ou a apropriação de técnicas só usadas noutras áreas, e de novos conceitos. A cozinha tecno-emocional criou uma parafernália de aparelhos (ver aqui) que, por sua vez, possibilitaram a aplicação de conceitos originais, que permitem abrir o caminho a uma infinidade de pratos, revolucionando a cozinha. Entre estes, surgiu, por exemplo, o conceito de que a cozinha é uma experiência completa para todos os sentidos (o prato Sound of The Sea, do inglês Heston Blummenthal, foi, em 2007, no Fat Duck, um dos primeiros a contemplar a visão, o ouvido, o paladar, e, se quisermos, o tacto).

Algumas dessas técnicas e desses aparelhos continuarão a ser usados durante muito tempo, assim como permanecerá a ânsia de conceptualizar a cozinha.

Entretanto, no princípio do século XXI, parte do mundo, onde se incluía Portugal, limitava-se a adaptar ou simplesmente a copiar a cozinha espanhola.

Da cozinha tecno-emocional ficou-nos na massa do sangue o conceito da refeição enquanto experiência e a sua vocação de surpreender. Anteriormente, frequentávamos os restaurantes em função dos pratos que já conhecíamos e de que nos tornáramos apreciadores, ansiando por que não houvesse surpresas, que significariam a supressão desses pratos ou a sua alteração, sempre uma péssima ideia.

Ainda me lembro com grande desgosto do dia em que, no restaurante onde eu comia as minhas costeletas de borrego favoritas, me «surpreenderam» substituindo o esparregado por salada.

Hoje, a ideia da cozinha-espectáculo tem vindo a desvanecer-se com a perda de força da cozinha tecno-emocional, substituída pelo minimalismo naturalista da cozinha nórdica. Contudo, permanece a necessidade que o comensal tem de continuar a ser surpreendido, apesar de hoje, por influência desse minimalismo, os pratos terem menos ingredientes, serem mais simples em termos de técnicas e com menos «efeitos especiais». Continuamos a querer cozinhas e ingredientes exóticos e passam pela moda os peruanos e os coreanos. Entregamo-nos nas mãos do chef, para que este escolha por nós e nos surpreenda. Queremos menus de degustação, em que tudo está escolhido por outros, até a conjugação com os vinhos. O cliente não tem escolha senão comer e falar. Falar do que se comeu, colocar fotos no Instagram, comer pratos que possam originar bons momentos instagramáveis, razão que leva a que o processo criativo, mesmo o mais básico, continue a virar-se para a estética do prato.

 

Porém, hoje começam a surgir em Portugal dois movimentos fortes. Um, de reforço das cozinhas regionais, enriquecidas com ingredientes de melhor qualidade. Outro, nas grandes cidades, capitaneado pelos novos chefs que trabalham sobre os nossos melhores produtos, tentando afastar-se o menos possível deles e construindo pratos com os nossos sabores, não copiando o que vem de fora, mas usando a sua criatividade. Penso que o caminho está nestas duas tendências.

 

Fátima Moura

(blogue CONVERSAS À MESA)

Convidado: FRANCISCO CARITA MATA

Pedro Correia, 12.03.18

 

Portalegre, Cidade da Poesia

 

“Portalegre, porto ou porta / Na encosta, ridente alegria…”, escrevi, há alguns anos, sobre a Cidade de Régio.

 

E, nem de propósito, “Momentos de Poesia”, evento já com foros de Cidadania, da responsabilidade de Drª Deolinda Milhano, subordina-se no próximo Dia 21 de Março a uma visita guiada e poética sobre as “Portas da Cidade”.

Sendo Portalegre um burgo de raiz medieval, ainda mantém parte da sua estrutura muralhada e algumas das portas que lhe davam acesso, estruturadas sob a forma de arcos de volta inteira, com maiores ou menores alterações epocais.

 

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 Cidade de Portalegre, vista do "Passadiço"

 

Para sabermos se Portalegre é uma Cidade de Poesia, nada como palmilhar as ruas do povoado.

Mas eu atrevia-me a sugerir algo mais inusual… Um passeio, a pé, subindo pela “Estrada da Serra”, até ao miradouro (estrutura que me atrevi a baptizar de “Passadiço”.) Pouco a pouco, contemplando a urbe, o seu enquadramento paisagístico, o seu casco construtivo, não tenho dúvidas de que ali proporciona uma visão muito mais poetizada da sua mole urbana, num soberbo cenário, englobando serra e campina alentejana… Perdendo-se nas lonjuras, quase se confundindo céu e terra. Sempre sem se perder o recorte da Cidade e de alguns dos seus monumentos mais icónicos.

Retornando à Poesia. É sintomático que, na Cidade, logo duas escolas tenham escolhido, como patronos, dois Poetas: Cristóvão Falcão e José Régio. É indubitavelmente uma prova da estima de Portalegre pelos seus Poetas, não querendo esta afirmação dizer que eles são, em contexto natural, devidamente apreciados e lembrados pela sua Poesia. Que não são!

 

Mas em Portalegre há grupos de resistentes que não esquecem a Poesia. Há “Momentos de Poesia”, evento pioneiro, a que tive o grato prazer de assistir e constatado o trabalho altamente meritório já desenvolvido.

Existe na Cidade um outro grupo, designado “Amigos da Poesia”!

Haverá assim tantas cidades no País, na dimensão e com as características de Portalegre, em que a Poesia seja celebrada regularmente em eventos poéticos?

Não sei, não.

Voltando ao périplo pelas “Portas da Cidade”, irão ser calcorreadas as vetustas ruas, iniciando-se a ronda pela Porta da Devesa, Portas do Crato, ainda existentes; pelas de Elvas e Évora, de que só já resta a memória. Pela de Alegrete, terminando na Porta do Postigo, hoje desestruturada do seu local primitivo e encastrada na antiga muralha, alguns metros mais a sul.

 

Irei voltar a “Momentos de Poesia”, após a concretização do evento.

E, nem a propósito: porque não institucionalizar “Portalegre como Cidade de Poesia”?

 

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 Carvalho negral em Portalegre

 

Já agora… calcorreando a Cidade. Metem dó, tantos prédios, pelo casco antigo, ameaçando ruína. (Algo tristemente comum a muitas aldeias, vilas e cidades deste nosso Portugal.)

Paralelamente construiu-se, na Rua 1º de Maio, um “business center”, só o nome(!), entaipando-nos, da Cidade, a vista espantosa da Serra da Penha; e a partir do IP2, a visão das muralhas. (E tão perto, quase se esboroando, o prédio da antiga loja do Sr. Hermínio, prestes a implodir!)

E que tanques, aqueles da Corredoura?! Saudosa, a lembrança do antigo lago e do cisne.

Para quando replantar de árvores autóctones, carvalhais, aquele espaço? E umas manchas de amendoeiras, como embelezariam aquelas encostas desprovidas de coberto arbóreo!

 

Francisco Carita Mata

(blogue AQUÉM TEJO)

Convidado: LUÍS MIGUEL ROSA

Pedro Correia, 07.03.18

 

Silêncio, solidão

 

Na leitura sinto a carícia do silêncio. O livro torna-me toupeira: escavo, entoco-me na solidão da concentração. Milénios após a sua invenção, e por mais que o suporte mude, a leitura continua a ser um dos maiores produtores de silêncio no mundo. Nem sequer a transformação do livro em aparelho electrónico lhe acrescentou um decibel: o ebook é mudo e discreto como um mordomo; haver alguém ao meu lado a usá-lo é como não haver. O livro, mudem-lhe o formato, não abdica deste temperamento basilar: ele é sempre algo que ajuda a combater o ruído.

 

Se o livro nunca contribuiu para o triunfo do ruído, já a tecnologia prossegue sádica em sabotar o silêncio. Começou aos poucos: comboios atravessando paisagens onde antes havia só o chilreio de aves e o gorgolejar de ribeiros; mas não fez mal porque os comboios começaram a levar todos para a cidade ao seu encontro. O ruído veio ter connosco, mas no fundo éramos nós que andávamos à coca dele. Entretanto foram chegando carros, autocarros, eléctricos, o metropolitano. Pelo menos parecia haver paz em casa; depois ouviu-se a grafonola, a telefonia, o televisor, o subwoofer do vizinho. Em tempos, para se ouvir música, ia-se a salas de concerto; agora, para meu desconcerto, a música é ouvida a tempo inteiro. Na rua estrondeiam altifalantes, que tocam quer eu queira ouvi-los quer não; e os condutores, motivados por uma fátua afirmação de estatuto, competem para adquirir colunas cada vez mais potentes que alcançam todas as ruas: som para ser visto. Nos transportes públicos zangarreiam telemóveis, iPads, iPhones e leitores de MP3, muitos sem fones porque esses melómanos julgam que tenho o dever de lhes conhecer os gostos ou falências musicais. (Eis um enigma: porque é que o pissitar do estorninho no galho não me incomoda tanto como o kuduro ou o Beethoven no piso de cima?) Aos outros, que não a mim, pois procuro cantos e esconsos nas traseiras do progresso, o centro do ruído seduz. Em vão procuro os calmos subúrbios do ruído; ele já chegou a todo o lado: há, no meio de Lisboa, uma Biblioteca Nacional exactamente por baixo da rota que os aviões, uma avenida acima, usam para descolar e aterrar. É um lugar privilegiado para se testemunhar o efeito Doppler.

 

A leitura compraz-se de solidão e silêncio, dois estados em extinção. Outrora, podia-se estar entre estranhos, numa carruagem de comboio, e sorver a solidão sadia. Tornou-se lugar-comum dizer que a literatura serve para nos sentirmos menos sozinhos. Talvez essa propriedade comunal realmente exista, mas quando leio estou na presença de pessoas mortas que amavam o silêncio ainda mais do que eu. Não, a leitura nem me arrasta para a multidão nem me torna tolerante dela; pelo contrário, deixa-me quezilento, sensível como as orelhas de um gato: rabujo a cada barulhinho. O livro foi uma maneira que o silêncio inventou para domesticar os humanos e pô-los a trabalhar para ele. O livro é o esqueleto do silêncio, é ao longo dele que cresce e se adensa e ganha existência plena de sentido.

 

O silêncio, a custo, sem subsídios, vai subsistindo hoje em dia. Os que não o apreciam associam-no a ideias desagradáveis: a igreja, o velório, o cemitério, em suma a morte. O que é mais solitário do que a cama de hospital após a hora de visitas? Nós deitados nela com medo de gemicar porque, afinal de contas, é um hospital e não se deve falar alto. E depois aquele caixão feito à nossa medida, monolugar. Numa mesa de café cabem sempre dois. Portanto as pessoas ajuntam-se e cavaqueiam, pensando que por isso provam que estão vivas. O silêncio não é algo que dê para associar ao hedonismo, é o oposto do divertimento, e por isso os Departamentos de Marketing das grandes multinacionais não sabem o que fazer com ele senão exterminá-lo. Quer dizer, conseguirias tu vender carros e álcool com silêncio?

 

O silêncio, qualquer animal o sabe, significa que não queremos ser vistos. O silêncio é anónimo, mas agora odeia-se o anonimato; busca-se em vez disso a performance, o estrelato, os aplausos. Por isso o silêncio e a solidão adquirem conotação negativa, anti-social, secretista, elitista. Lugares pedantes como a casa de ópera e o museu exigem-no. A tirania, diz-se, gosta de calar as pessoas. Pelo contrário, as ditaduras desdenham o silêncio: nelas há marchas, megafones, discursos, palavras de ordem, operáticos rituais de auto-engrandecimento público, testes de mísseis estrondosos que ribombam pelos media fora. Nem sequer as câmaras de tortura se calam. Numa ditadura nunca se está dentro do silêncio, embora, valha a verdade, vivamos na ditadura do ruído.

 

A sociedade agora dá bastante valor à expressão artística; isso é óptimo, não me sinto ameaçado como outros artistas se sentem por todos agora quererem pintar, escrever, filmar, cantar. Só pode ser um bom sinal que hoje em dia sejamos, desde cedo, encorajados a expressar a nossa criatividade. Mas como a sociedade também sobrevaloriza a fama e a popularidade, e porque a solidão não parece conducente à fama, essa expressão far-se-á comunitariamente, será ruidosa porque ruído e popularidade forjaram uma aliança. Se queres ser famoso, cantas no Youtube, não escreves poesia num bloco quadriculado.

 

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Procurar livros, lê-los, não expressa nada porque não o estás a expressar a ninguém. Ler, sei-o muito bem, nunca foi uma das expressões artísticas predilectas dos outros; enchem-se teatros, coliseus, cinemas, discotecas, óperas, mas não bibliotecas. Há visitas de grupo a museus e monumentos, mas quem é que quer ter alguém a reboque numa livraria? Esse é o mal dos livros, tornam-me rude: diante das estantes, perco noção dos outros, deixo de me preocupar que alguém esteja à minha espera. Eis um paradoxo: ler requer concentração, mas não há nada mais casual do que navegar pela livraria; o museu segue um plano, o filme tem uma duração, fotografar um retábulo tem de ser rápido porque há outro turista à espera de uma aberta, mas os leitores adoram perder tempo a tirar e arrumar livros; essas multidões parecem coesas, mas cada um está ocupado demais para reparar no outro, ao passo que o leitor sozinho na livraria nunca se sente solitário.

 

O silêncio tem má reputação, porém é um grande amigo meu, não porque eu seja um ludita, mas porque sou um leitor. Hoje em dia, o silêncio é uma decisão importante; requer megalomania heróica porque diz que somos bons o suficiente para falarmos connosco próprios, que nos bastamos a nós mesmos, que não buscamos aceitação ou validação. Se calhar buscamos, mas mais devagar, com menos espalhafato. O lugar-comum talvez seja verdadeiro, o livro talvez nos faça sentir menos sozinhos; mas, para mim, o que o livro faz é dizer-me que eu não tenho de ter medo de estar sozinho comigo próprio, por mais que isso desagrade aos Departamentos de Marketing que me querem convencer que só sou normal se estiver a vomitar vodka já pago numa noitada ‘divertida’ em que estarei bêbado demais para fazer dela uma recordação importante. Ainda me lembro de frases de livros que li há 20 anos.

 

A reclusão diz também que temos pensamentos que não precisamos de partilhar, que realizamos tarefas obscuras de que não temos de nos gabar. Não sei se o silêncio, uma das facetas do recato, pode sobreviver. Artistas recatados, introvertidos, não gostam de dar entrevistas, de falar de si, de criar espectáculo. Mas o recato tornou-se desacato ilegal, e o silêncio anátema, condenado à amnésia. Os aprendizes de solidão, por falta de aptidão, escassearão no futuro. Concentração requer abnegação, ler solicita silêncio, mas o rádio ronca, o motor tosse, o carro chocalha, as colunas ladram, o telemóvel de peões dinamita os ouvidos, invade-os com conversas vácuas, varre para a sombra a concentração. O silêncio tem clemência; o ruído não respeita. O silêncio convive com o mistério, mas queremos tudo revelado, partilhado e discutido no programa de opinião.

 

De certa forma admiro o ruído: na sua sede de normalização, multiplicou-se por novos aparelhos, colonizou estilos de vida. Não há abismos nem píncaros onde me possa esconder; o ruído nivelou tudo como uma vasta planície, ao longo da qual o som se propaga ledo e livre. Sim, provavelmente é hoje a entidade mais livre do mundo: criam-lhe tecnologias, dão-lhe direitos, gastam fortunas nele; é intocável, invencível; fracassam em legislar contra ele porque é difícil fiscalizar a transgressão de leis que o limitam. Tem todas as qualidades que oxalá os livros em Portugal tivessem: é leve, é barato, é portátil, é bem distribuído.

 

Pouco ou nada posso contra os artesões do ruído. Resigno-me, aturo; não mudarei o mundo, luto por que ele me não mude. Apesar de tudo, acredito que um livro ainda consegue escavar novos veios de silêncio, descobrir jazigos de solidão contemplativa e enriquecer-nos, se formos receptivos. Continua a ser o melhor remédio contra o ruído. Hoje em dia vivo grato pela inesperada, efémera aparição do silêncio. É difícil programá-lo como se põe um alarme para tocar, pelo que o valorizo muito, como sangue nas veias.

 

Esta jeremiada fará cada vez menos sentido para os outros. Na sociedade de consumo simplificadora, moedora de nuances, vai-se perdendo noção de que há vários tipos de silêncio. Os essenciais estão misturados nos que o culto da euforia colectiva quer extirpar com toda a vitalidade de um tirano. Alguns silêncios são bastante alegres, mais do que multidões. Mas o espalhafato venerando não quer saber; há que escoar todo o ruído das prateleiras. Resta-nos preparar um funeral para a solidão. Dela ainda teremos saudades.

 

Luís Miguel Rosa

(blogue HOMEM-DE-LIVRO)

Convidado: JASG

Pedro Correia, 05.03.18

 

Abaixo a popularidade

 

Qualquer indivíduo sem pretensões a um cargo público está mais livre de criticar as idiossincrasias dos tugas. O que revela logo uma fragilidade grande, porque o tuga tem a singularidade de não aceitar a crítica sem o contra-ataque ad hominem. Esquece rapidamente a mensagem filando o mensageiro. 

Com frequência o tuga exige de imediato algo muito urgente, servindo-se do predicado de cliente e como tal da autoridade, para o dia seguinte que irá levantar decorrida uma ou mais semanas desse dia seguinte. Mesquinho, não há espectáculo de borla que não aproveite, reclamando depois dos magotes de gente que partilham com ele o espaço. 

 

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Ainda recentemente houve um exemplo notório — ao mais alto nível — de como um tuga justifica a incompetência com a dedicação: quando a ex-ministra da Administração Interna revelou publicamente que não tinha gozado férias em plena tragédia dos incêndios.
O tuga também não reclama por convicção, reclama por interesse. Censura, critica, mas se for beneficiado também se cala com o argumento de que todos fazem o mesmo. Mesquinho, entope as urgências à segunda-feira para não estragar o fim-de-semana. Confunde confiança com vaidade, presunção, prepotência ou arrogância.
 
Enquanto para um nórdico o bem comum é considerado de todos, para o típico tuga o bem comum não é de ninguém. É pessoa para estar quinze minutos numa fila a soprar de impaciência e, quando chega finalmente a sua vez, gasta vários minutos à procura dos documentos necessários à resolução do assunto que o trouxe ali. 
 
Um dia, ao chegar à sede da Nokia, ainda de madrugada, à boleia de um finlandês, estranhou o carro ter ficado estacionado tão longe da porta da entrada com o parque de estacionamento completamente vazio. Retorquiu o anfitrião que os lugares mais próximos da porta da entrada eram propositadamente deixados livres para os que se possam atrasar. 
 
De consciência se evitou de falar na inveja tuga neste texto, já cliché. Está bem, o tuga também tem muitas virtudes. Mas essas o professor Marcelo, actual Presidente da República, com popularidade recorde, já as descobriu todas.
 

JASG

(blogue QUEM OUSA, VENCE)

Convidado: RICARDO C. MAGALHÃES

Pedro Correia, 02.03.18

 

A questão mais importante

 

1. A catástrofe

Imaginemos que todos os meses, no dia 1, colocamos 100€ num mealheiro.

Imaginemos também que todos os meses, no dia 25, retiramos 100€ do mealheiro e deixamos no seu lugar um papel com a mensagem: “Título de Dívida. Valor: 100€.”

Pergunta: Quanto teríamos no mealheiro ao fim de 30 anos?

 

A questão pode parecer trivial, mas quando Vítor Gaspar autorizou a que 50% do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) estivesse “investido” em dívida do próprio Estado, e Teixeira dos Santos depois aumentou esse valor para 90% (!), torna-se preceptível a sua relevância.

Caro leitor, se eu lhe devesse dinheiro, isso para mim era um passivo e para si um activo. Se eu dever dinheiro a mim próprio, isso anula e não vale nada. Alternativamente, eu passava um cheque de 1 milhão a mim próprio e tornava-me milionário – o que como bem compreende não acontece.

 

Quando o Ministro das Finanças ordenou a venda de activos com valor e a sua troca por dívida comandada pelo próprio ministro, isso foi uma catástrofe. À beira destes negócios de quase 10 biliões, os 30 milhões alegadamente oferecidos a Sócrates são um detalhe, irrelevante no grande esquema da sociedade. Para mim, os grandes crimes da última década em Portugal, maiores ainda que os do sector bancário, foram aqueles dois aumentos ordenados pelos ministros e mal noticiados.

O FEFSS está assim quase vazio. Mais: o Relatório OE2017, na sua página 248, diz textualmente: “Ainda que se projetem saldos negativos do sistema previdencial em meados da década de 2020 sendo nessa altura simulada a utilização anual do FEFSS para fazer face a esses défices, o esgotamento do FEFSS projecta-se para o início da década de 2040.” Isto mesmo com o factor de sustentabilidade e o aumento faseado da idade de reforma já previsto na lei.

 

 

2. O porquê

Marcelo Caetano criou a Segurança Social numa época (1970) em que a Esperança Média de Vida (EMV) era cerca de 67,1 anos. Com uma idade de reforma de 65, isto significava que muitos portugueses nunca iriam receber a reforma – cerca de metade da população “abrangida”. E refiro “abrangida” porque na altura quem não contribuía não recebia, o que excluía grupos na altura numerosos como domésticas, agricultores e pescadores.

Hoje, a idade de reforma subiu de 65 para 66 e 6 meses. Mas a EMV subiu de 67,1 para 80,6 anos (continuando a usar dados PorData). O número de anos na reforma passou assim de 2,1 para 14,1. Inversamente, em 1970, 14 pessoas activas pagavam 1 pensão – hoje 2,15 activos pagam 1 reforma (4 379 000 a pagar, 2 036 000 a receber reforma). Isto para já não contar pensões de invalidez (238 000) e sobrevivência (720 000), senão o rácio seria 1,46 (!) activos a pagar cada pensão (4 379 000/2 994 000).

 

Para se chegar aqui, a demografia teve algum “apoio” da classe política. Depois de nacionalizar diversas caixas de pensões no pós-25/Abril, o Estado resolveu atribuir pensões aos não-contributivos (como já referido, domésticas, agricultores e pescadores) – sem lá colocar um cêntimo. Sucessivos governos criaram diversos subsídios (doença, abono de família, desemprego...) – sem lá colocar um cêntimo. Estes subsídios culminaram em 1997 na criação do RSI – sem lá colocar um cêntimo.

Devo também sublinhar que muitos funcionários públicos estavam na expectativa de pagar 34,75% durante 32 anos e receber 100% durante quase 30 anos.

 

Quanto é o buraco? Ou seja, se o fundo fosse vendido com as suas obrigações actuais, quanto teria o Estado de entregar, para além do constante no FEFSS, ao novo proprietário? O livro branco de 1998 colocava o valor em 7 300 milhões de contos/ 36 500 milhões de euros. Hoje há quem fale num défice de 70 000 milhões de euros. Mas uma coisa é certa: existe e é na ordem de grandeza de dezenas de biliões (na numeração americana).

Mas o pior nem é isso: devido à baixíssima natalidade (caiu para quase 1/3 desde 1970), a evolução futura é para pior, quer nos rácios contribuintes/beneficiários, quer a nível do saldo negativo.

 

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3. A solução

A minha maior surpresa quando falo de política com qualquer pessoa não é o seu posicionamento ideológico, a sua opinião sobre os temas da actualidade, ou o tema político que para ela é mais importante e portanto define o seu voto. É a irrelevância que a população confere a este tema. Consecutivamente, como o tema não é importante, se me perguntarem a solução em termos políticos, é simples: não há.

 

As soluções preconizadas pela classe politica genericamente passam por colocar um limite máximo às reformas (possivelmente entregando a outros a gestão do excedente, obrigando o estado a contrair dívida imediatamente para fazer essa transferência, o que torna esta solução politicamente impossível).

Outra solução seria estabelecer a teoria dos três pilares: público, empresarial (fundo de pensões) e pessoal (previdência privada) – quem quiser uma reforma digna terá de poupar por si junto de uma seguradora.

Uma última solução consistia simplesmente em aumentar impostos especificamente para este fim – situação que prefiro nem desenvolver, dada a já elevadíssima carga fiscal em Portugal.

Nenhuma das soluções é fácil de implementar politicamente e assim a paralisia deverá imperar até a situação se degradar até ao limite. Por isso dificilmente a solução nas próximas décadas será política.

 

Ora, se em termos de policy makers nada há a fazer nesta fase, a nossa acção deve ser por agora confinada aos policy takers. Ou seja, como não há peso político para alterar a trajectória do estado neste tema, adaptemo-nos nós os dois (eu e o leitor). David Ricardo propôs a Equivalência Ricardiana (grande nome, se me é permitido) segundo a qual a despesa pública exagerada apenas gera impostos futuros e, portanto, as famílias responderão a este exagero com aumento da poupança.

E a solução passa exactamente por aqui: poupar.

 

Imaginemos que o leitor se reforma aos 70. Quanto anos vai estar reformado? Ora, se a EMV for subindo até aos 85, isso quer dizer que estará reformado 15 anos ou 180 meses. Se quiser ter 1000 euros de complemento à parca reforma estatal (que será cada vez menor e com mais tectos máximos), terá, portanto, de ter de lado 180 000 euros. O que pode parecer muito dinheiro hoje, mas recordo que na data da sua reforma o dinheiro valerá bem menos do que vale agora.

 

Para conseguir isso, há várias soluções: rendimentos passivos (ex: tirar fotografias ou escrever pequenos livros para gerar dinheiro passivamente), viver numa casa que se possa pagar em metade da carreira (para aos 50 estar livre para se focar na poupança), evitar comprar passivos cuja compra só trazem novas despesas (melhor exemplo: um carro caro), e de forma geral evitar ter um nível de vida muito próximo – ou acima! – dos seus rendimentos.

A este propósito, recomendo o livro Rich Dad, Poor Dad, de Robert T. Kiyosaki.

 

Deixe-me sublinhar isto porque é importante: se o leitor neste momento não tem dívidas - ou tem uma dívida muito pequena à banca por conta da casa e, portanto, acredita estar quase no equilíbrio financeiro – tem na verdade uma grande dívida implícita ao seu alter ego futuro e é importante começar logo que possível a poupar para essa dívida.

Falhar em poupar é cair num tipo especial de invalidez, em que a impossibilidade de sair de casa não é por motivos físicos (como na invalidez física), mas por motivos financeiros: a invalidez financeira. E ao contrário da primeira, esta é evitável.

 

 

4. Conclusão

Eu não vejo televisão. E não vejo quer porque nada do que lá se fala é muito relevante, quer porque não vejo muito interesse em mudar isso. Nada contra Fátima, Futebol e Fado. Nada contra Prós & Contras enviesados à partida a favor do campo preferido pela RTP. Nada contra uma RTP2 supostamente mais cultural, mas fixada em artes performativas cujo significado profundo é inexistente ou então há muito esquecido – sendo assim ocas na sua essência.

 

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Sou contra é a falta de reflexão sobre os temas mais importantes da contemporaneidade. E a literacia financeira em geral e esta análise de ciclo de vida em particular creio ser um deles.

 

Deixo aqui a referência a um estudo noticiado aqui, e disponível aqui, em que participei, precisamente no capítulo III sobre a Segurança Social, e em que Luís Paes Antunes sugere algumas vias possíveis para ultrapassar este imbróglio.

 

Caríssimo leitor, estamos tramados é o que lhe digo. Garanta rendimentos passivos e poupe: o seu eu futuro agradecerá.

 

 

Ricardo Campelo de Magalhães

(blogue O INSURGENTE)

 

Convidada: SOFIA GONÇALVES

Pedro Correia, 16.02.18

 

Sai um crime ambiental para a mesa 6!

 

Aquele ditado, “mais vale prevenir que remediar”, é mais um “olha para o que te digo e não para o que faço”. Embora exista a intenção de minimizar problemas, a política ambiental em Portugal não existe. Existem obrigatoriedades e preceitos europeus e internacionais impostos, mas também existem umas quantas sub-leis, entrelinhas, e outras entidades em que essas mesmas directrizes não se aplicam. Somos um povo de excepções.
A economia verde foi criada por capitalistas. Foi só uma forma de embelezar um capitalismo, com um mote mais carismático para o povo que agora já não é tão ignorante e começa a preocupar-se com o fim da vida como a conhecemos. As lâmpadas que poluem menos, o combustível que tem menos impacto, o filtro de água para evitar comprar garrafas de plástico e toda uma panóplia de objectos e acções do dia a dia que nos foram sendo incutidas com o intuito de contribuir para um planeta mais limpo e salvar o mundo no final do dia. Comprar um filtro de mês em mês não deixa de ser uma forma de consumismo? Gastamos menos plástico, mas não deixamos de produzir resíduos se pensarmos em todo o processo que está na criação daqueles filtros desde o plástico, como o próprio filtro interior, como o revestimento de plástico e cartão para estar nas prateleiras do supermercado, como o transporte que foi necessário até chegar à nossa mão. E depois, quando queremos separar e dar um final correcto a esses materiais? Já tentaram ir a um local de recolha de resíduos vender “lixo”? Recebem dinheiro por cartão, e plástico mole, e aço, e ferro, e sucata, etc. Mas também têm de pagar para ficarem com entulho de obras, por exemplo, para ficarem com plástico duro, e outras formas. Ou seja: no final, temos de pagar para ficarem com o nosso lixo (isto como se já não pagássemos nas facturas da água). Na minha humilde opinião, o nosso problema não está em arranjar soluções para destruir o nosso lixo, mas arranjar formas de deixar de criar tanto material.
Mas onde cabia aí o capitalismo?
Posso falar-vos noutra forma de capitalismo ambiental, que já todos conhecíamos, mas foram precisos anos de incêndios e a perda de vidas de vários portugueses para abrirmos os olhos: o nosso ordenamento territorial.

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Ainda era eu uma estudante universitária de biologia, em 2013, quando a agora líder de um dos maiores partidos portugueses, Assunção Cristas, criou uma lei sobre a plantação do eucalipto. Diziam os defensores desta lei que a ideia não era estragar a floresta portuguesa, mas sim acabar com a burocracia da florestação. Pois é, só faltou mencionar que é permitido plantar livremente um eucalipto praticamente em qualquer lado, mas é necessário notificar as autoridades caso queiram plantar um carvalho, que seria o mais normal, tendo em conta toda a história e evolução biogeográfica do nosso país.

É possível que tais directivas sejam impostas, quando já ouvi profissionais da área mencionarem que em áreas desflorestadas, para evitar a erosão, o melhor era plantar eucaliptos e acácias, mesmo depois de contrapostos por colegas meus a sugerir que a melhor opção seria plantar arbustos autóctones, como ericas, ou azinheiras.
O eucalipto é uma planta exótica. Como várias outras espécies exóticas, que se adaptaram ao nosso ambiente, proliferaram e podem tornar-se espécies oportunistas, galgando terreno facilmente. O eucalipto foi um bom oportunista porque parasitou o melhor vector que podia encontrar: humanos. Dá-nos jeito, cresce rápido e fornece madeira. E quando uma coisa faz o mesmo efeito em menos tempo isso geralmente é sempre mais dinheiro para a carteira de uns. Neste caso, falamos do interessado final: os madeireiros. As percentagens de eucaliptos e pinheiro bravo em Portugal são muito próximas. Estas duas espécies são das mais usadas pelas principais madeireiras. Numa discussão com um técnico desse tipo de indústria, afirmei que o problema dos incêndios em Portugal não reside só nos eucaliptos, mas também nas monoculturas, na inexistência de barreiras, nas extensões de um só tipo de matéria-prima. Ele contrapôs que não era esse o problema e questionou como é que eu resolvia a diferença de crescimento entre espécies diferentes e a falta de espaço para cortar uma árvore sem cortar a do lado. Eu admiti que é um problema, mas quilómetros e quilómetros de terrenos queimados e pragas difíceis de controlar, como acontece agora no eucalipto, não são melhores escolhas.
A liberalização do eucalipto foi uma grande ajuda para a industria madeireira, como os OGM foram uma ajuda para empresas como Monsanto. Assim vamos deixando na mão de alguns o que é de todos, deixando-os estragar o pouco de bom que ainda sobra deste mundo. O Tejo é só mais um reflexo disso: um bem público passa a ser usufruto de entidades privadas, que passam intactas pois as entidades que deviam gerir e punir estão compradas. Acham mesmo que o Estado não faz ideia da qualidade das águas? Acham mesmo que os estudos são feitos como deve ser? Basta eu dizer que tenho X por cento deste elemento químico na água, que aparece uma empresa que pertence a alguém muito importante primo de outro alguém importante no Governo que mostra que com as directivas delas esse X por cento do elemento não faz mal. E já nem disserto acerca do impacte ambiental que tem uma só barragem numa comunidade.

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Gosto de pensar, na minha mente sonhadora “hippie”, que os biólogos um dia ainda vão ser os super-heróis deste mundo: tantos agora sem trabalho e daqui a uns anos não vão chegar para os problemas ambientais. Gosto de pensar que ainda vamos conseguir colocar a mão na consciência e, como chegou a moda das vidas zen e hygge, chegará a onda da consciência ambiental forte. Gosto de pensar que vamos desacelerar a nossa forma de viver, que vamos usar o bom conhecimento que temos para realizar o verdadeiro BEM. Que a energia renovável vai ser melhor e que o que é de todos passará a ser respeitado e conservado.
O meu medo é que um dia, ao acordarmos, todos os nossos rios sejam o Tejo e todas as nossas florestas sejam Pedrógão.

 

Sofia Gonçalves

(blogue THE DAILY MIACIS)

Convidada: GRAÇA SAMPAIO

Pedro Correia, 14.02.18

 

Exageros e fundamentalismos

 

O último quartel do século XX deixou a marca de que aquele foi o século da imagem. Para quem não é historiador – que é o nosso caso – o século não se vai medindo pelo tempo cronológico, ou seja, os cem anos, mas tão-somente por aquele em que nos movemos, aquele que mais nos marcou.

Há e sempre houve o ser e o parecer. Ora, pelo menos que me lembre, as pessoas de bem que antecederam o tempo da ditadura da imagem, sempre sobrepuseram o ser ao parecer. [esqueçamos agora o ter, que esse daria para escrever mais um ror de linhas..] Porém, desde que os fazedores (ou manipuladores?) de ideias descobriram a imagem e começaram a vendê-la – e não estou a falar do cinema ou da televisão – o parecer sobrepôs-se e nunca mais deixou o ser respirar livre.

Como fiquei chocada quando ouvi da boca de um professor de uma universidade de renome onde andava a fazer uma pós-graduação nos idos de 90 que «atualmente mais vale parecer que ser.»

Mas se o século passado terminou subjugado à tirania da imagem, já o atual, que está agora a entrar na maioridade, não se livra da canga dos fundamentalismos e dos enormes exageros. Culpa desta comunicação inculta, oca e falha de pensamento e de leituras, ou das redes sociais que pululam e se multiplicam em opiniões ignaras? Culpa nossa que nos deixamos arrastar e subverter pelas primeiras frases sem erros de sintaxe que se nos deparam.

Nem é preciso chegarmos ao exemplo terrível dos fundamentalismos religiosos que nos têm entrado pela casa dentro com as guerras decorrentes das ditas «primaveras árabes» com que o ocidente se deixou deslumbrar. Se quisermos pensar em exemplos de fundamentalismo religiosos nem precisamos de sair do país. De Lisboa. Basta atentarmos nos dislates que o seu inclemente cardeal tem bolçado.

Fundamentalismos políticos de uma direita fechada e ressentida contra governantes mais visionários que mostram ou mostraram preocupações sociais. Fundamentalismos de quem tem obrigações constitucionais e institucionais de defesa dos cidadãos contra os mais fracos, os menos poderosos, contra as mulheres ou simplesmente – o que é pior – contra quem não milita nos seus cânones da moral, da política, da visão do mundo, da religião (meu deus!). Fundamentalismos facciosos.

Não menos inquietantes os exageros que mostram, esses sim, como somos seguidistas e nem sempre pensamos pelas nossas cabeças. Quem já não se lembra do exagero que foi a importância dada aos livrinhos azuis e rosa da Porto que “menorizavam” – diziam – as meninas “e constituíam uma enorme ofensa à igualdade de género”? E o exagero acerca dos piropos? E o exagerado sururu em torno das posições da Catherine Deneuve e da Brigitte Bardot sobre o caso dos assédios trazidos a lume pelas atrizes hollywoodescas – em que também se tem exagerado…

Já para não falarmos do «politicamente correto»…

 

 

Graça Sampaio

(blogue PICOS DE ROSEIRA BRAVA)