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Delito de Opinião

Maravilhas

Maria Dulce Fernandes, 26.09.23

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“Sabes Avó, queria fazer-te uma pergunta.” Quando a minha neta Alice entabula conversa cautelosa, fico logo preparada para o que der e vier. “Sabes que podes perguntar o que quiseres.” Doeu-te muito furar as orelhas?” Olha, não sei! É capaz. ”Como não sabes? Ou doeu, ou não doeu!” Tanto quanto sei, neta, por volta dos meus três meses, decidiram que chegara a altura de me furar as orelhas. Usava-se uma agulha já com linha, e meia batata pequena. Acendia-se uma vela para desinfectar a agulha, e assim que a ponteira estivesse ao rubro, espetava-se no lobo da orelha até enterrar na batata colocada por detrás. Puxando a batata, esta trazia a agulha e a linha por arrasto, deixando no local o buraco feito pela agulha, mas preenchido pela linha, na qual se dava um nó para não sair e não deixar fechar o buraco. Ficava assim como uma argola de linha. Sabendo agora tu tudo isto, pensas que me doeu? "Penso sim! E que choraste bastante também.” Também penso que sim. “Mas, avó, agora ainda se usa isso, essa técnica da batata?” Nada disso, neta! Agora há uma maquineta que parece um agrafador que fura e coloca o brinco que se escolheu em segundos e tudo ao mesmo tempo. “Mas dói?” Deve doer um bocadinho, afinal tem sempre de se fazer um buraquinho, mas eles põem um gel para deixar dormente e é tudo muito rápido. "Vou pensar nisso. Gostava de usar brincos, avó."

No dia D, enviou um vídeo em que estoicamente deixa furar os lobos, apenas com um apontamento de doloroso gemido. “Estás contente?” "Estou muito feliz. Gosto tanto! A minha vida é maravilhosa." Abençoados oito anos…

Conversas em família (8)

Maria Dulce Fernandes, 26.07.21

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Entretidas, cada uma a colorir um caderno com desenhos de animaizinhos de companhia riscados a preto e branco, tecíamos considerações sobre os bicos dos lápis de cor e os das canetas com ponta de feltro.  A diferença,  colossal em  textura, tonalidade e translucidez, era patente na diafaneidade que transparecia em cada folha acabada de pintar.

Íamos tagarelando disto e daquilo, contando piadas e dizendo disparates uma à outra de modo a arrancar cascatas de riso límpido e borbulhante, daquele bem trinado e de tal modo contagiante que nos deixava esfalfadas,  mas sem vontade de parar. 

Com o ambiente de alegre cumplicidade bem instalado, arrisquei a pergunta de introdução à conversa que pretendia encetar “ - Conta-me lá neta, como te sentes em relação à mudança de escola?” Continuou a pintar, com a cabeça meio de lado, apoiada na mão esquerda , sem levantar os olhos da obra prima"- Se queres saber, avó, estou bastante apreensiva". Rasguei um sorriso daqueles confundidos e fascinados, que apenas a minha neta me consegue desenhar. “ - E então porquê tanta apreensão?” “- Porque, sabes avó, não conheço a escola, nem o recreio, nem os professores, nem os coleguinhas” - E achas que esse desconhecimento é uma coisa má? Já pensaste que pode ser uma aventura fantástica?”- Como assim, avó? “- Ora, vai ser tudo novo para ti, neta, a escola, as pessoas, os novos amigos que irás sem dúvida fazer, o avô poder ir buscar-te todos os dias e irem passear ao parque. Fazeres os trabalhos de casa na mesa da avó, enquanto contas as tuas aventuras diárias. Vai ser fantástico,  vais ver.  Vai ser uma experiência tão gratificante e ilimitada… olha, como diz o Buzz Lightyear – para o infinito e mais além!” Sorriu travessa. “ - É que fico receosa – outro sorriso escancarado - porque sempre conheci apenas a minha escolinha.”- Ah! Mas mudanças são sempre salutares porque se aprende  bastante e têm muitas vantagens" - Por exemplo o quê, avó?” - Por exemplo o regulamento. “-  Hum? O regulamento? “  - Sim! Na tua escola, os meninos têm fardamento obrigatório, certo? Todos vestem de igual a farda da escola. Na escola nova, cada um veste a roupa que quiser.” – A sério? Posso vestir vestidos e saias? “- Claro que sim! “

Encetou um bailado louco, rodopiando e pulando feliz da vida. “ – Eu gosto tanto de poder vestir os meus vestidinhos ! “ – Vês? Vai ser bom!  Vá, vamos lanchar. Queres waffles? “ – Sim! Com gelado! “ – Já somos duas! “ – Avó! E a dieta para caberes no vestido? “ – Fica para amanhã! Sem falta! ‘Bora lá!”

Conversas em família (7)

Maria Dulce Fernandes, 05.11.20

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Avó, vamos brincar? Avó?! Presente! Estava a ver as notícias. Notícias de quê? Das eleições nos Estado Unidos. O que é eleições? E agora como é que se descalça esta bota? Chama-se eleição quando, neste caso por exemplo, as pessoas escolhem um chefe para mandar no país. Tu foste com os teus pais votar nas eleições do Presidente da República, lembras-te? Acho que não, Avó. Mas sabes quem é o Presidente da República? Sei. É um homem que tira selfies. Também, mas é assim a modos que quem manda no País. E tu estás a ver se um homem que tira selfies ganha nos Estados Unidos? O de lá não tira selfies, manda Tweets. E isso é o quê? Pois… olha, é uma maneira de se estar entretido com o telemóvel. Assim como os jogos ? Mais ou menos. É outro tipo de jogos, que nem por isso são importantes ou até interessantes. Jogos lúdicos, Avó? Eh lá, sorri, para ela, seguramente para ele são, neta. Avó, tu és quase presidenta! Estás sempre a tirar retratos e distraída a escrever no telefone e no tablet!

Conversas em família (6)

Maria Dulce Fernandes, 20.09.20

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Uma espreguiçadeira ao sol, calor, água fresquinha, o som das ondas a marulhar uns metros abaixo... O livro aberto em cima da barriga molhada era um excelente indicador de total relaxamento e de preguiça também.

Primeiro ouvi o grito. Depois o choro. Em seguida as vozes dos comentadores da insipiência que se avolumavam. Sentei-me meio arrelampada tentando focar a figura que corria na minha direcção com a criança nos braços, que chorava e gritava copiosa e desalmadamente.

Peixe-aranha, diz ele com a respiração entrecortada. Foi um peixe-aranha. Peguei-a no colo. O André do concessionário já tinha ido pelo nadador-salvador. Posso ver, neta? Não! Não mexas! Dói! Dói muito, conseguia perceber-se balbuciado por entre o pranto incontrolado.

O salva-vidas chegou rapidamente, já equipado com um recipiente com água muito quente. Falou-lhe mansamente e depois de uns goles de água fresca pela garganta e rosto, conseguiu que se acalmasse um pouco e explicou como seguir à risca as instruções de pé in - pé out. Estiveram neste preparo uns bons 20 minutos. Só depois conseguimos ver o arranhão e o inchaço. Parecia ter pegado de raspão!

A neta estava sentada no meu colo, embrulhadinha que nem um rebuçado mole e lambuzado, sequiosa e a recompor-se do SPT  de todas as emoções.

Já não dói tanto, neta? Dói um bocado, mas tenho mais é uma sensação esquisita no pé. É natural, todo aquele calor de escaldão para sair a toxina, deixaram-te o pé, que já estava inchado, um bocadinho dormente.

Sabes avó, não sei como o peixe-aranha me mordeu. Eu estava distraída a brincar com o avô à beira-mar e não o vi chegar, mas não percebo como é que me mordeu sem eu o ver. Por exemplo, se um cão ou um gato me mordessem o pé, eu tenho a certeza que via, a não ser que fossem invisíveis. Bem, o peixe-aranha não é invisível, mas engana a vista. Enterra-se na areia apenas com os olhos de fora… E com a boca também avó, senão como é que pode morder? Pois, a questão é assa mesmo. O peixe-aranha não morde. Olha, avó, a ti não sei, mas a mim mordeu-me bem. Sabes que os peixes têm barbatanas? Sei. A barbatana dorsal é aquela que abre em leque na costas. Esse peixe, que é um patifório da pior espécie e tem uma espécie de veneno chamado toxina na barbatana, enterra-se na areia com a dita cuja aberta de modo a poder ser facilmente pisado por um pezinho incauto que ande a cirandar pela beira-mar. Eu não andava a cirandar, andava a molhar o meu avô e não fiz mal ao peixe-aranha para ele me picar. Pois não, calhou. Estavas a passar pelo sítio em que ele estava escondido e pisaste-o na altura em que ele tinha a barbatana aberta. Então foi mesmo por acaso. Foi, foi mesmo coincidência. Mas sabes, avó, “essa coincidência foi mesmo muito dolorosa e causou uma estranha impressão”.

E eu tenho a impressão que a minha neta nunca irá parar de me surpreender, coincidência ou não.

Amanhã acaba o Verão.

Conversas em família (5)

Maria Dulce Fernandes, 02.09.20

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Estou, mãe? Diz. A tua neta quer falar contigo. Tem uma aventura para te contar. Ah sim? Deve ser uma grande aventura, pois se saiu daqui faz pouco tempo, mas que venha de lá a aventura. Estou, avó? Então neta, conta lá as tuas façanhas. Não é azenhas, avó, é mesmo uma peripécia. Não consigo deixar de sorrir quando ela joga estes ases vocabulares. Estou à espera, podes começar. Então… conheces aquele parque ao pé da minha casa, aquele que tem muitos espaços com água? Conheço. Então,  hoje fomos até lá para distrair o mano e sentámo-nos na beira da água. A água estava morninha e eu disse à minha mãe que me apetecia mesmo dar um mergulho. Então comecei a borrifar o meu pai e cheguei mais para dentro para alcançar mais água. Silêncio. E então? Então, não sei como, splash! Caí dentro de água! Com a minha roupa e os meus sapatos e tudo. Não acredito! É verdade, avó. Tive que voltar para casa embrulhada naquele cobertor branco com um ursinho que costuma estar por baixo, no carro do mano. Que maluquice, neta! Isso é que foi uma aventura, mas só prova que foste pouco cuidadosa e que tens que ter mais atenção durante as brincadeiras. Estás enganada, avó. Prova é que os nossos desejos se podem realizar!
Pois é… será que ver o copo meio vazio é sinal de maturidade ou apenas pessimismo?

 

Foto de Paulo Oliveira retirada do Google

Conversas em família (3)

Maria Dulce Fernandes, 13.08.20

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Agosto de 2019, Lourinhã, Dino Parque.


Avó, sei que hoje é o teu aniversário, mas será que posso ter também um presente? E que presente seria esse? Um "Pequenodaclet" em esqueleto dentro de um tijolo. Queres dizer um Pterodáctilo não é? Não. Esse não conheço. Queria mesmo um Pequenodaclet. Acho que é mais pequeno e engraçado. Deve ser bem fofinho, não achas, avó? Então não acho!

Conversas em família (2)

Maria Dulce Fernandes, 05.08.20

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Depois de alguma leitura e muitas séries de TV, o sentimento de inutilidade instalou-se-me pesadamente no espírito e no corpo . Quanto menos fazia, menos me apetecia fazer. Comer , surfar o sofá e ver a família no tablet… farniente começava a não fazer qualquer sentido.

A casa de brincar da neta deu o mote e a partir daí demos largas à imaginação; fizemos 50 postais, uns a raiar o kitsh, outros mais compostos, qualquer coisa de BD, caricatura Burtoniana, loucura canastrona, sei lá , quase um por dia, exceptuando aos fins de semana.

Foi muito engraçado. Muita gente riu e chorou a rir. Amigos, amigos de amigos, conhecidos e estranhos enviavam mensagens com sugestões no género de “ discos pedidos", muitos quadros eram exequíveis e realizados, outros nem por isso, mas a sua louca idealização foi motivo de muitas gargalhadas.

Eis-nos então chegados ao vigésimo sexto dia do mês de Maio de 2020, 71° dia de confinamento. Pela primeira vez desde que foi declarado o estado de calamidade iríamos ter a neta , a fã número um das nossas produções, a passar o fim de semana connosco e a ter uma participação especial- a actriz convidada - nos projectos.

Chegou. Estava excitadíssima e apesar de confidenciar que gostava mais de papeis femininos, acedeu a representar o meu guerreiro gaulês favorito.

Sabes avó, tenho receio de não fazer bem esse personagem. Eu nem sei quem é o Asterix! Anda lá então aprender um bocadinho, que um bom actor tem que conhecer bem quem vai representar.

Sentámo-nos com o último livro no colo. Então… o Asterix é um valente guerreiro de uma aldeia situada numa terra chamada Gália ( que agora se chama França, já ouviste falar de França. Já!). Ele e os outros habitantes protegem a aldeia e não deixam que os palermas malvados dos romanos os conquistem. O Asterix é um homem pequenino… Um homem pequenino? Sim, mais pequeno do que a maioria dos homens. Assim como o Mateus? Maior do que Mateus. O teu colega Mateus é um menino. Percebi-lhe alguma confusão. Por muito pequeno que um homem possa ser, é sempre enorme na perspetiva de uma criança de cinco anos. Então… o Asterix é um baixinho muito valente e forte e tem um grande amigo , que é o Obelix, o gordo comilão . Como o mano? Mais ou menos, ele é comilão, mas este é grande , forte e barrigudo. Consegue comer um javali inteiro com duas dentadas. Riu com gosto enquanto folheava o livro e fazia perguntas sobre os personagens conforme iam aparecendo. E depois há o Panoramix, o druida, que é uma espécie de mágico e que faz caldeirões com poção mágica para dar força aos aldeões e os tornar invencíveis. Quando souberes ler, havemos de ler todas as aventuras de Asterix, queres? Está bem! Resumindo , o Asterix é o gaulês mais importante de todos e és tu quem vai representá-lo. Achas que consegues? Acho! Então vamos lá.

Depois de um almoço ligeiro, começamos a preparar o set e a caracterização, alinhavou-se o guião, Acção! Depois fomos editar a foto com a bonecada que se impunha, enquanto a curiosidade esvoaçava à solta como um pé de vento doido e as perguntas choviam loucas como um aguaceiro tropical. Avó, fico tão estranha com o bigode e a peruca!

Olhava sorridente para a foto. Se calhar devia ter tomada poção mágica , avó. Estás óptima, neta! Olha, ajuda o avô a tirar a barba! Avô, quase que pareces o Pai Natal, mas sem presentes! Gostaste, neta? Gostei! Mas, sabes, avó, estou aqui a pensar que era muito engraçado fazermos o Per Pan e eu ser a Sininho. Também acho ; fazemos da próxima vez, está bem? A próxima vez pode ser amanhã? Amanhã? Mas a avó não preparou esse filme neta, nem sei se temos adereços. Vá lá, eu ajudo, vai ser tão divertido!

Como dizer que não?

Conversas em família (1)

Maria Dulce Fernandes, 01.08.20

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Primeiro veio a desilusão. A ideia acalentada da piscina na cozinha não era de todo exequível e fora substituída por dois borrifadores meios de água. Acatou e adaptou-se, com aquele dom tão cândido que os pequenos possuem, para lidar com as questões existenciais. Borrifo, portanto existo, é quase tão bom como chapinho, portanto existo, e ainda posso dar uma abada na avó.


E foi assim que começaram as hostilidades ao som do jingle do Intermarché. Entre risos, borrifos e escorregadelas passámos vinte minutos deliciosos e acabámos que nem uns pintos, cansadas mas satisfeitas. Roupa enxuta, waffles com agave e uma caneca de leite, bem enroscada e com um sorriso de orelha a orelha, pediu-me para ir buscar a lata velha e lhe contar as histórias dos retratos, principalmente aqueles em que eu estou em bebé ou criança novinha. Calculo-lhe o espanto e a confusão e sorrio, tentando explicar cada foto o mais descomplicado possível, de modo que lhe seja possível entender a evolução que resultou na pessoa  que ela conhece desde sempre, mas não se produziu do éter na forma em que hoje se apresenta. A avó, como todas as pessoas que conheces, já foi bebé. Mais pequenas do que o mano? Muitas delas sim! Ri-se divertida à ideia de eu, o avô, a mãe e o pai termos usado fraldas. Antigamente eram de pano. De pano!? Sim, fechavam-se à altura da barriga com alfinetes de ama e usavam-se com uma cuequinha de plástico por cima para conter os molhados. E depois, jogavam-se fora, os panos? Não! Sabes o que quer dizer descartável? É que se pode deitar fora? É isso mesmo. Mas antigamente não havia descartáveis. As garrafas devolviam-se, as latas lavavam-se e davam-se ao funileiro. Não havia sacos de plástico, por exemplo, a avó velhinha ia às compras com uma alcofa. De bebé? Não neta, de palha. Era a alcofa de ir à praça.


Tínhamos frigorífico, fogão, esquentador, televisão, telefone e aquecedores a gás. E mais nada.
Nada de máquinas de lavar, secar, microondas, computadores, tablets, telefones… sei lá.


Olha as fraldas, por exemplo, eram lavadas num tanque com sabão azul e branco ou sabão Clarim, que é meio amarelado. O que é um tanque? É para peixes? Também há tanques para peixes, mas estes eram tanques da roupa. Todas as casas tinham um tanque de cimento para lavar à mão, isto muito antes das máquinas de lavar. Enchia-se com água, punha-se lá a roupa, ensaboava-se e esfregava-se na “tábua" que neste caso era de pedra. E porque é que nas casas já não há tanques? Porque deixaram de ser funcionais e eram muito grandes e pesados.


Sabes, avó, tenho pena que já não tenhas um tanque em casa. Punha-se na cozinha, enchia-se com água e fazíamos uma mini-piscina. Havia de ser muito giro, havia.

 

Imagem do Google

da dificuldade de se ser adolescente (ou adulto)

Patrícia Reis, 07.08.16

Não tenho muito jeito, nunca tive, para ficar calada. É um defeito e uma virtude. Por vezes gostaria de voltar a engolir as palavras. Outras, seria magnífico deixar que o chorrilho de disparates na minha cabeça encontrasse eco no exterior. É que, apesar da fama, ainda vou engolindo uns sapos. E sobre isto e mais estive eu à conversa ontem à noite com duas adolescentes. O que as magoa, o que lhes faz confusão - elas com 15 anos - é muito parecido com aquilo que me magoa e me faz confusão, no entanto concluí que ser crescido tem inúmeras vantagens e uma delas é aceitar que é preciso fazer rupturas, chamar os bois pelos nomes. Durante a nossa conversa, ouvindo o mais atentamente possível, voltei a sentir o mesmo que sentia na minha adolescência: incompreensão. Caramba, ser jovem não é um posto, nunca foi, mas é muito difícil. Será sempre muito difícil. E, talvez por isso, acabei por mandar para a outra parte um adulto que teve a infelicidade de dizer: ah, o que eu dava para ter a vossa idade. As minha interlocutoras olharam para o senhor com incompreensão. Eu também.

Da importância de ser amizade

Patrícia Reis, 21.07.14

A melhor forma de amor é a amizade, é quase banal dizer ou escrever, mas talvez não seja tanto assim.

Quantas vezes pensamos nós nos amigos? Quantas vezes telefonamos para saber deles e não contar a nossa vidinha?

Quantas vezes é que somos mesmo amigos: sentados à mesa, a partilhar uma refeição, a rir, perdidos no tempo, sem noção das horas, petiscando pedaços de pão (ou, muito melhor, pedras de Santiago)?

Este sábado, com o miúdo-quase-homem, uma amiga e apenas nós, o meu marido e eu, corremos tudo: política, sexualidade, direitos e deveres, histórias mal contadas, acontecimentos de vida marcantes.

E, quando a nossa amiga falou da avó Joana, os olhos ficaram do tom mais profundo do mar e o nosso coração encolheu, viemos à superfície e sobrevivemos na conversa. Por amor. Por amizade. Por estarmos todos com os telemóveis desligados. Sem preocupações de monta. Das oito da noite até quase às quatro conversámos.

Caramba, uma conversa é tão importante!

E tudo foi recíproco. Nada foi dito a medo, com formalidade.

Quando é assim, posso garantir, é um privilégio.

Deixa lá isso

Patrícia Reis, 06.06.14

Os filhos podem ser mais intrusos ou mais íntimos. Depende de cada um, da personalidades da fase em que estão (na adolescência é para esquecer). Hoje, o meu filho mais novo disse-me que a vida seria diferente se as pessoas fossem diferentes. Menos auto-centradas, foi o que ele disse e respondi Deixa lá isso. Depois compreendi que o meu adolescente é um quase-homem, o mundo roda, a vida atrapalha, o tempo corre. E tudo passa.

Pouco barulho

Gui Abreu de Lima, 12.04.13

Há dias falava de palavras, do estardalhaço ininterrupto que fazem dentro de nós, dos estragos capazes de provocar. Há-de ser assim com todos, fazendo menos mossa a uns, que as gerem melhor, mais a outros, que sufocam se lhes não dão primazia, andamento e caminho visível. Tempos houve em que me acalorava a conversa, a comunicação, a fala, o desabafo, as ideias. Hoje, nada disso me interessa como outrora. Chego a ter saudades do silêncio. Palavras leva-as o vento, estrebucha o ditado em mim. Estafam-me conversas sérias, cansam-me as opiniões sobre tudo e mais alguma coisa. Os porquês disto e daquilo, que se exigem a ferro e fogo, servindo umas poucas de inverdades e de loucuras. Encantam-me os que sem abrir boca dizem tudo. E vou à lua com os que teimam fazer com o gesto o seu discurso, a sua declaração de amor. Hoje, percebo uma série de homens calados que havia antigamente. E as mulheres que agora me dizem “fazes-me rir”. Conversas, de facto, só para rir. Para chorar, para ensinar, para guardar, escrevam. Mergulhem no silêncio, oiçam-se e escrevam como souberem. Nas mãos, nas paredes, nos panos da loiça. De resto, poupem-se. Senão um dia ninguém vos ouve.