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Delito de Opinião

contos ínfimos (18)

Ana Vidal, 15.05.12

SÍSIFO


Depois da notícia arrasadora, o homem obrigou-se a subir, sem uma única paragem, os dezanove lanços da escada de serviço. Foi aumentando o ritmo da escalada até ficar sem fôlego. Precisava de se aturdir, de dar ao coração uma outra razão para bater como uma bomba em contagem decrescente. Mas não bastou. Chegou ao topo com vontade de recomeçar tudo, uma e outra vez. Espreitou o elevador. Desceria nele e retomaria a penosa marcha da subida tantas vezes quantas fossem precisas para que o cansaço vencesse a angústia que o esmagava. Havia de conseguir ter paz. O elevador estava no rés-do-chão, podia ver-lhe o tecto sujo no fundo do fosso imenso, escuro. Hesitou um segundo, não mais. Não premiu o botão. E foi por ali mesmo que desceu, afinal.

Contos (nem sempre assim tão) ínfimos (17)

Ana Vidal, 08.05.12

LONG SHOT

 

A mulher olhou o homem demoradamente. Escorria pelo sofá abaixo, descomposto, de comando na mão e olhos fixos no écran da televisão. "Se algum dia deixar de te amar, é porque morri". Afirmara ele um dia, pomposo, ainda príncipe encantado. Quantos anos passados? Tantos, tantos. Não sabia porque se lembrara agora daquilo. Olhou-o de novo, quase condoída, mas não resistiu ao masoquismo do teste. Sentou-se ao lado dele e abriu o baile, com voz doce:

- Qual é a minha cor preferida?

- O quê? - nem a surpresa da pergunta o fez desviar os olhos da televisão.

- A minha cor preferida. Perguntei-te qual era.

- Hummm... branco?

- Não. Azul. E o meu prato preferido?

- Ah, deixa-te disso. Sei lá.

- Qual é o perfume que eu uso? - continuou, impiedosa.

- Mas o que é que tu queres com essas perguntas idiotas? - ele começava a impacientar-se.

- Nada de especial. Sabes qual é o nome do perfume ou não?

- Não me lembro.

- E qual é... -  a pergunta foi serrada ao meio por um grito dele.

- Mas tu deixas-me em paz com essas merdas?? Diz o que queres, de uma vez por todas. É dinheiro?

- Pronto, já acabei. Não te maço mais. E não, não quero dinheiro. Queria só ter a confirmação de uma suspeita.

- Qual suspeita?

- A de que vivo há anos sem fim com um morto.

Contos ínfimos (14)

Ana Vidal, 10.04.12

FACELIFE

 

Fez as malas e foi viver para o facebook. Encontrou mil novos amigos de infância, o amor virtual da sua vida, gente famosa para conviver tu-cá-tu-lá. Povoou quintas, cidades e castelos, deixou likes e smiles em timelines alheios, cuscou o que os amigos andavam a fazer. Partilhou músicas, poemas e citações, aderiu a eventos e causas, assinou petições, postou fotografias de poentes sobre o mar e lolou muito com piadas em inglês. Uma vida em grande, sempre em festa. Um dia, o telefone tocou. Surpreendida, levantou o auscultador, abriu a boca com esforço e tentou articular um "sim?". Nada. Forçou as cordas vocais, uma e outra vez, mas não emitiram um único som. Tinha emudecido.

Contos ínfimos (13)

Ana Vidal, 03.04.12

LIVE AND LET

 

Com o tempo, as bravatas foram dando lugar à acalmia. Praticante de muitos anos de um live and let die que aplicava a torto e a direito e lhe trouxera muitos dissabores, foi passando placidamente ao live and let live e por fim, já pacificado e feliz no conforto do seu promontório, rendeu-se ao leave and let live. Até que chegou a hora do seu próprio die and let live.

Contos ínfimos (12)

Ana Vidal, 27.03.12

BATALHA NAVAL


Durante anos a fio ele foi um imponente porta-aviões. Poderoso, exibia-se pelos mares em que navegava, e eram muitos. Disparava a eito certeiros tiros de canhão, atirando-a mil vezes para um naufrágio triste de que só ela acreditava poder salvar-se.
Ela era tímida, doce, ingénua. Tudo o que queria era tocá-lo, mas, por mais que tentasse, o seu alvo era sempre e só a água. Não lhe aflorava sequer o convés.
Um dia, vá lá saber-se porquê, amotinou-se e afinou a pontaria. E quando tudo acabou, surpreendeu-se com o som da sua própria voz, com uma frieza que desconhecia ter: submarino ao fundo.