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Delito de Opinião

Confissões antes da meia noite

Patrícia Reis, 04.09.12
Entre as várias coisas sobre as quais não falamos está a angústia tremenda de ter um livro à nossa frente que é apenas um documento no computador, sendo que as personagens andam atrás de nós como se fossem uma família de melgas, um sapato que teima em ficar sem salto, um buraco no bolso do casaco. O tempo passa - muito tempo - e revemos, lemos alto e, depois, como no bacalhau, colocamos de molho. À espera que a história nos largue, que o sal desapareça. Mas não: ali está ela, num pormenor do dia, numa frase de alguém, num outro livro, numa música pirosa... A construção de um livro é, dizem, um trabalho difícil. Diria, como Paul Auster, que é insano e que as pessoas que têm uma vida e a desfrutam nunca se sujeitariam a esta espécie de loucura. Perguntarão: pode ser uma boa loucura? Não faço ideia. Escrevo por necessidade. Tem de ser. Mais nada. E depois da história estar escrita, por vezes de rajada, lá ando meses, anos, para trás e para a frente, corto, tiro, acrescento, muda da terceira pessoa para a primeira, odeio o narrador, amo o anti-herói, não resisto a uma memória. A memória é, diz Santo Agostinho, o ventre da alma e os livros são estes depositários de almas. A minha, a existir, estará num livro qualquer, impressa ou por imprimir. Com este livro já não tenho alma, tenho as vísceras e a pele na luminosidade que me agride do computador. Sou a personagem A e B e sei o final e não quero lá chegar. A minha editora acarinha a ideia. As amigas dão empurrões. Os amigos reforçam a necessidade de criar. O meu marido diz-me que escreva e não pense nisso. Tem razão, pensar não é bom.

Confissões de uma mulher perdida

Leonor Barros, 14.11.11

Descobrimos que só pensamos no mesmo quando até nos momentos tranquilos do quotidiano encontramos marcas, indícios, evidências da nossa nova condição de depauperados e humilhados. E não, não se pense que foi quando passei por uma montra decorada de Natal cheia de bolas reluzentes e pais natais pachorrentos e me impus o treino forçado para combater o próximo Natal e o outro, talvez ainda o outro e quem sabe todos os Natais doravante. A recusa determinada em não ver, não entrar sequer, ignorar por completo e não ter a mínima das tentações. Assim como quando acabamos uma relação e cortamos com tudo o que faça lembrar o dito cujo, um vai morrer longe enérgico um chega pra lá catártico, quero mas é esquecer que existes, ó Natal. Nada disso. Foi quando num fim de tarde batido pela chuva e numa conversa em alemão sobre o Outono comecei a achar que o Rilke era um visionário e que aquele poema que se me entrava pela alma estava prenhe de referências a esta triste sina lusa. Enquanto a discussão decorria dei por mim a fazer associações ao encontro deste fado lusitano de desgraçados e enjeitados. Podem chamar-lhe intemporalidade, que sim, que quando um poema é lido vive outra vez, muito bem, apelar à estética da recepção e nomear-me como co-autora do texto, perfeito. Nada me convencerá. Quando num insuspeito poema de Rainer Maria Rilke sobre o Outono, o défice, a ajuda externa e a Troika  estão presentes já não me resta mais nada. Estou perdida.