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Delito de Opinião

A inapagável palavra Liberdade

Pedro Correia, 08.11.24

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«Et par le pouvoir d'un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer

Liberté.»

 

Eu fui lá e vi.

Lembro-me como se fosse hoje. Foi numa manhã fria e cinzenta de Abril, por meados da década de 80. Tinha eu 21 anos e estava em Berlim com três colegas de profissão: a Isabel Stilwell, o Luís Marinho, o Jerónimo Pimentel. Nesse dia fomos ao outro lado. Cruzando o Muro da Vergonha que desde 1961, por imposição dos soviéticos, rasgava a meio a antiga capital do Reich. Como incisão de bisturi na pele, separando bairros da mesma cidade, fracturando ruas dos mesmos bairros, até fragmentando casas das mesmas ruas que permaneceram emparedadas durante aquelas tristes décadas em que Berlim-Ocidental, na certeira definição de John Kennedy, era a fronteira mais avançada do mundo livre.

Cruzámos a linha divisória por via ferroviária, na estação de metropolitano de Friedrichstrasse, após termos sido forçados a trocar marcos ocidentais por marcos orientais artificialmente cotados em paridade pelo regime comunista, à revelia do valor real das moedas, como condição para transpor aquela fronteira artificial na cidade dividida.

Éramos muito poucos a fazer aquele percurso. Quase todos vinham em sentido inverso, de lá para cá. E eram todos velhos, que marchavam num silêncio mais eloquente que mil discursos. A ditadura de Erich Honecker só permitia deslocações de 24 horas a cidadãos aposentados.

 

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Do lado de lá, tudo diferente. A começar pelo muro - na verdade, duas muralhas paralelas (a segunda foi erguida em 1962) separadas por uma extensão de 100 metros, denominada Faixa da Morte pelos berlinenses. Riscado e coberto de grafitos na face virada para Berlim Ocidental, imaculado na metade comunista da cidade, de onde aliás ninguém podia acercar-se dele. Rodeado de redes metálicas electrificadas, implacavelmente resguardado por soldados armados até aos dentes em 302 torres de vigilância dispersas por 66 quilómetros de extensão.

Símbolo sinistro da Guerra Fria.

Símbolo supremo da falência de um sistema que prometia libertar os homens e afinal só os mergulhou na escravidão.

 

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Arrepiava a escassez de transeuntes do lado de lá.

Arrepiava ver as majestosas Portas de Brandemburgo colocadas em terra de ninguém, no termo da Unter den Linden, a maior avenida de Berlim.

Arrepiava o silêncio dominante. Em perfeito contraste com o fervilhante bulício da Berlim ocidental, "burguesa" e "capitalista".

Atravessámos a pé uma larga avenida onde não passavam carros e logo fomos interceptados pelo apito de polícias que acorreram ao nosso encontro exigindo inspecção minuciosa de passaportes. Acabaram por nos deixar prosseguir, mas com um solene aviso: proibido atravessar fora das passadeiras. Mesmo numa avenida onde quase não víamos circular veículos, excepto uns decrépitos Trabants leste-alemães, fontes ambulantes de poluição.

Tínhamos de gastar os marcos orientais, que só ali eram aceites. Era hora de almoço, procurámos algum sítio onde pudéssemos matar a fome. Mas naquela imensidão desértica a oferta turística estava reduzida a quase nada. Depois de muito procurarmos, lá nos enfiámos num sell service na Alexanderplatz, de tabuleiro na mão, a comer umas salsichas envoltas em gordura a preços astronómicos. E sem mais nenhum cliente por perto.

Acabámos por gastar a maior parte do dinheiro num sucedâneo de táxi que nos conduziu pela zona mais monumental de Berlim - que devido a um capricho do destino permaneceu após a II Guerra Mundial sob a tutela soviética da cidade - e numa breve incursão aos arrabaldes, onde havia uns bairros operários de aspecto moderno e finalmente pessoas a circular na rua.

No regresso, ainda entrámos num Armazém do Povo, com vários pisos, na esperança de gastarmos parte do dinheiro que nos sobrara. Mas a esmagadora maioria das prateleiras estava vazia. Não havia clientes, só funcionárias que nos ignoraram olimpicamente.

Trouxe de lá uns postais manhosos. O meu único recuerdo palpável da Berlim comunista.

 

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Foi o meu baptismo do "socialismo real" no segmento oriental da maior cidade germânica, na então denominada República Democrática Alemã - que nada tinha de democrático e tudo tinha de repulsivo logo ao primeiro olhar.

No regresso, enquanto nos cruzávamos novamente no posto fronteiriço com os velhos agora de regresso a casa após fugazes visitas a familiares no Ocidente, sentimo-nos testemunhas privilegiadas da História, no tempo e no espaço.

Mil vezes a caótica, barulhenta, transgressora Berlim Ocidental do que a organizada, vigiada e silenciada Berlim-Leste - a cidade de maior progresso e com maior prosperidade económica do bloco socialista, como rezava a propaganda.

Nos dias imediatos, observei ainda com mais atenção o "muro de protecção antifascista" mandado erguer por Nikita Krutchov "a pedido" do ditador comunista alemão Walter Ulbricht em 13 de Agosto de 1961 para impedir a contínua sangria de alemães de Leste, sobretudo jovens, rumo ao Ocidente. Três milhões e meio tinham escapado nos 15 anos anteriores.

De tantos em tantos metros, levantava-se uma cruz branca em memória de cidadãos do Leste alvejados mortalmente pela implacável guarda fronteiriça comunista ao procurarem fugir da ditadura.

Morreram largas dezenas ou mesmo centenas entre 1962 e 1989.

O primeiro foi um operário de 18 anos chamado Peter Fechter. O último - escassos sete meses antes da queda do muro - foi um estudante de 20 anos chamado Chris Gueffroy.

Só por terem ousado ser livres.

 

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Às vezes não há como ver para descrer.

Eu fui lá e vi.

Faz amanhã 35 anos, festejei com irreprimível alegria a queda do Muro da Vergonha. Festejei-a com os magníficos versos de Paul Éluard com que saudei o fim de outras ditaduras: «E pelo poder de uma palavra / Recomeço a vida / Nasci para te conhecer / Para te chamar // Liberdade.»

Nessa noite inesquecível de 9 de Novembro de 1989, milhares de habitantes de Berlim puderam pela primeira vez transpor a fronteira livres da absurda ameaça de poderem morrer alvejados pelos agentes do Estado. E também com eles, embora a milhares de quilómetros de distância, celebrei essa palavra tantas vezes pervertida e conspurcada na boca e no gesto de ditadores de todos os matizes, de todos os quadrantes, de todas as ideologias.

Uma palavra que não tem fronteiras, barreiras, Muro em Berlim.

A incómoda, imprevisível, inapagável palavra Liberdade.

Palminhas do PCP à ditadura chinesa

Pedro Correia, 01.10.24

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Xi Jinping, o ditador de Pequim, promete fazer a China «grande outra vez»

 

A República Popular da China é governada desde 1 de Outubro de 1949, com mão de ferro, pelo partido único. 

Imaginemos Portugal ser governado nestes últimos 75 anos pela União Nacional, fundada por Salazar.

Em 1949, precisamente, Salazar governava Portugal. E a UN/ANP geriu o país durante mais 25 anos. Até 1974.

Somados a estes, outro meio século desde o 25 de Abril.

Imaginemos 75 anos de ditadura contínua em Portugal durante todo este tempo.

Pois os chineses continentais suportam a ditadura comunista - hoje comunocapitalista - há precisamente três quartos de século.

 

As frases que se seguem caracterizam a tirania de Pequim, sob o signo da foice e do martelo.

Partidos proibidos.

Eleições proibidas.

Imprensa livre proibida.

Sindicatos livres proibidos.

Greves proibidas.

Manifestações proibidas.

Trabalho escravo autorizado.

Trabalho infantil autorizado.

Liberdades amordaçadas - desde logo em Hong Kong, onde foram traídas as promessas feitas à população do território que em 1997 reverteu do Reino Unido para a soberania de Pequim.

 

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Movimento democrático esmagado em Hong Kong: promessas de liberdade foram traídas

 

Perante tudo isto, como reage o PCP? Bate palminhas ao comunocapitalismo selvagem chinês.

Basta ler o artigo do histórico Albano Nunes publicado na última edição do Avante!, sob o título "No 75.º aniversário da revolução chinesa".

Alguns excertos (com sublinhados meus):

«O PCP tem para Por­tugal a sua pró­pria con­cepção de so­ci­a­lismo, mas pro­cura aprender com a ex­pe­ri­ência de ou­tros par­tidos e é com o maior in­te­resse e es­pí­rito so­li­dário que acom­panha um em­pre­en­di­mento cujo su­cesso é da maior im­por­tância para as forças do pro­gresso so­cial, da paz e do so­ci­a­lismo.»

«"Servir o povo" foi e con­tinua a ser o lema que guiou o PCC à vi­tória no longo per­curso que passou por grandes lutas da classe ope­rária de Xangai, Cantão e ou­tras ci­dades.»

«O que glo­bal­mente ca­rac­te­riza a evo­lução da Re­pú­blica Po­pular da China, mesmo re­co­nhe­cendo de­sa­fios, pro­blemas e con­tra­di­ções que é ne­ces­sário vencer e su­perar, são os seus ex­tra­or­di­ná­rios avanços e re­a­li­za­ções

«Um sis­tema que, pas­sando por di­fe­rentes fases, co­nheceu um ex­tra­or­di­nário de­sen­vol­vi­mento das forças pro­du­tivas e está hoje na di­an­teira em nu­me­rosos ramos ci­en­tí­ficos e tec­no­ló­gicos, o que in­quieta so­bre­ma­neira o im­pe­ri­a­lismo.»

«O PCP acom­panha com o maior in­te­resse e es­pí­rito so­li­dário a acção dos ca­ma­radas chi­neses para a con­cre­ti­zação dos ele­vados ideais da sua re­vo­lução li­ber­ta­dora e a sua con­tri­buição para a causa do pro­gresso so­cial, da paz e do so­ci­a­lismo.»

 

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Brutal repressão durante a "Revolução Cultural" provocou mais de um milhão de mortos

 

Conclusão: os comunistas portugueses adoram ditaduras.

Entoam-lhes hossanas e loas sem a mais remota dúvida, sem o menor sobressalto de consciência.

Está tudo bem, desde que sejam as ditaduras do bando deles.

Regresso ao passado na Turíngia

Bisnetos de Goering e netos de Honecker fiéis às raízes totalitárias

Pedro Correia, 04.09.24

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Foto: Bodo Marks/DPA (via AP)

 

Nada de novo na Turíngia. Foi o primeiro estado alemão a votar em dimensão significativa no Partido Nazi, em 1930.

Depois, entre 1949 e 1989, esteve desgraduado como distrito na Alemanha comunista - a que alguns nostálgicos da Stasi, sem sombra de ironia, ainda chamam República "Democrática" Alemã (aspas minhas, naturalmente).

Os bisnetos de Goering, um dos cabecilhas das trevas hitlerianas, e os netos de Ulbricht e Honecker, patéticas marionetas de Moscovo, demonstraram na eleição estadual de domingo ser fiéis às origens

Crepúsculo preocupante? Cai a noite na Europa? Creio, mais simplesmente, que é má notícia para a Alemanha democrática (agora sem aspas). Além de péssima notícia para a Turíngia, onde no entanto os eleitores anti-totalitários ainda são muitos, entre dois milhões de habitantes. E estão activos: irão resistir.

Da defesa dos operários à protecção das focas: eis como Costa domou a esquerda

Legislativas 2024 (13)

Pedro Correia, 29.02.24

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Não sei se mais alguém pensa como eu. Mas achei louvável a intervenção do candidato do MRPP no debate organizado pela RTP com os representes dos pequenos partidos. Não pelas ideias, claro: são mais antigas do que o animatógrafo, a grafonola, o hidroavião e o zepelim. Mas pela sinceridade: vê-lo defender abertamente «uma sociedade comunista» revela-nos, por contraste, até que ponto o PCP se tornou reformista, longe de qualquer ideal revolucionário.

Há quanto tempo não ouvimos um secretário-geral deste partido advogar os dogmas do marxismo-leninismo? É possível um verdadeiro comunista votar seis orçamentos do Estado em estrita obediência às normas do pacto de estabilidade e aplaudir a maior contracção do investimento público registada na democracia portuguesa, como aconteceu durante a geringonça?

 

Há muito que o PCP deixou de amedrontar as "classes dominantes": tornou-se um partido fofo, respeitador da moral burguesa e dos bons costumes. Isto explica-se, em parte, por já não ser acossado pela defunta "esquerda radical" que se acoitava sob a bandeira do BE: Catarina Martins deu uma guinada ao Bloco, tornando-o num movimento "eco-socialista", quase pós-ideológico, new age. Chegou até a intitulá-lo «social-democrata». Por muito que isso incomode os professores Francisco Louçã e Fernando Rosas, a "renegociação da dívida" e a saída de Portugal do sistema monetário europeu deixaram de figurar entre as proclamações bloquistas, hoje mais embaladas por jazz de hotel do que pelos estridentes acordes d' A Internacional.

Música para os ouvidos do PS, que nestes oito anos reduziu os partidos à sua esquerda a caricaturas de si próprios. Enquanto seduzia a classe média com duas percepções dominantes: contas certas e ordem nas ruas.

 

Esquerda radical neutralizada: eis o grande contributo de António Costa para sedimentar o regime instaurado com a Constituição de 1976, alterando-lhe o eixo dominante ao leme de um partido socialista que há muito deixou de o ser.

Os antigos pregoeiros da revolução andam hoje mais preocupados com a extinção das focas do que com a extinção da classe operária. Quem ainda sonhar com a insurreição comunista pode sempre votar no MRPP.

Um democrata não é um dissidente

Pedro Correia, 19.12.23

Na oposição à ditadura de Salazar, distinguiram-se o comunista Álvaro Cunhal, o socialista Mário Soares, o monárquico Paiva Couceiro e o católico Pereira de Moura, entre muitos outros. Luis Corvalán era um opositor comunista à ditadura de Pinochet, José María Gil-Robles era um opositor democrata-cristão à ditadura de Franco.

Nenhum deles foi classificado de "dissidente". Chamar-lhes dessa forma teria algo de pejorativo, quase insultuoso. Mas na China todos os opositores são "dissidentes". Como hoje sucede também em Cuba ou antes sucedia na União Soviética. Ao opositor, nos países submetidos a ditaduras comunistas, os responsáveis por esses regimes não concedem sequer o direito a ter uma ideologia própria, diferente da ideologia oficial. Espantosamente, os órgãos de informação dos chamados países livres fazem coro com esses responsáveis, chamando "dissidentes" a quem ousa divergir da corrente dominante.

Um democrata é um democrata. Não é um dissidente.

O obsceno riso de Estaline

Pedro Correia, 05.09.23

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Só há pouco tempo, observando pela enésima vez as fotos do infame pacto Molotov-Ribbentrop (assinado em Moscovo a 23 de Agosto de 1939, dando carta branca a Berlim para abocanhar a metade ocidental da Polónia) percebi o que mais me choca nestas imagens. É o facto de Estaline, amável anfitrião, ser o mais risonho em todas elas. O tirano soviético sabia que aquele acordo entre a Rússia comunista e a Alemanha nazi era muito mais do que um pedaço de papel: ali tinha início a II Guerra Mundial - o maior cataclismo bélico registado na História, com cerca de 50 milhões de cadáveres.

Vinha aí um morticínio feroz. O carcereiro dos povos da União Soviética tornava-se, naquele momento, o maior colaboracionista de Hitler - «estrelas gémeas», como lhes chamou Trótski do seu exilio mexicano.

«Durante vários anos, todos os oposicionistas na Rússia foram perseguidos e executados como supostos agentes do nazismo. Depois disto, Estaline juntou-se a Hitler numa estreita aliança», denunciou o autor d' A Revolução Traída num longo artigo publicado em Dezembro de 1939 - admirával análise, a vários títulos.

 

Sabendo que iria sacrificar de imediato 23 milhões de polacos e rasgar avenidas para o avanço incendiário das hordas germânicas no continente europeu, o déspota do Kremlin ria-se.

É um riso obsceno, quase insuportável de ver tantos anos depois. Mas adequado a alguém que proclamava: «A morte de uma pessoa é uma tragédia, a morte de um milhão de pessoas é uma estatística.»

O que sobra do "socialismo real"

Pedro Correia, 30.08.23

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O chamado socialismo real não era uma ideologia, mas uma teologia alternativa que teve em Karl Marx o seu principal profeta: assim nos ensinaram pensadores como Raymond Aron e George Steiner.

Noutros tempos, dizia-se comunismo. Acontece que hoje ninguém fala em comunismo: eclipsou-se de vez. Começando pelos próprios comunistas que restam, cada vez menos. Estes só aludem ao «socialismo».

Nunca mais regressarão as ilusões do passado, quando multidões de fanáticos se proclamavam dispostas a dar a vida por Estaline, jurando-lhe fidelidade com devoção inquebrantável. Tempos de idolatria à solta, com a razão entorpecida, que desembocaram no pesadelo totalitário e nas vítimas do Arquipélago Gulag, dos campos da morte no Camboja, do "Grande Salto em Frente" e da pseudo-revolução cultural maoísta. Simon Leys contabiliza, só na China, 50 milhões de mortos.

Religião despótica, como a definiu Bertrand Russell. Irremediavelmente condenada ao caixote do lixo da História.

O socialismo nominal é o que resta deste catecismo doutrinário que se manchou de sangue sempre que passou da teoria à prática. Como teologia de substituição, fracassou. Por ter ambicionado não apenas refundar a sociedade, mas reconstruir a própria natureza humana - quimera condenada ao insucesso desde o primeiro instante. 

De Marx quase já não restam vestígios nos dirigentes socialistas do nosso tempo, tornados meros gestores do sistema capitalista, que não pretendem derrubar nem desfigurar. Proclamam-se interclassistas, sem a menor alusão ao velho dogma da luta de classes. Nenhuma sociedade alternativa têm para propor: só ligeiros retoques à que já existe. Sobram-lhes tautologias como esta, expressa por Felipe González: «O socialismo pode ser definido como o aprofundamento do conceito de democracia.»

A utopia sumiu-se pelo caminho. 

Curiosidades do Adriático: o Sagrado Coração da Refundação

João Pedro Pimenta, 27.06.23

Entre a foto de cima e a de baixo medeiam quase vinte anos mas poucas outras diferenças.
 
A de cima é de Dezembro de 2003. A de baixo é de Maio passado. Trata-se da esquina da secção da Refundação Comunista do "sestiere - ou bairro - de Castello, em Veneza, na realidade a única que o partido mantém na Sereníssima. A Refundação é o que resta do antigo (e outrora poderoso, com votações à roda dos 30%) Partido Comunista Italiano, que no fim dos anos oitenta, na sequência do "eurocomunismo" lançado pelo seu antigo líder Enrico Berlinger, decidiu reformar-se de alto a baixo, transformando-se no Partido Democrático de Esquerda e, entre outras metamorfoses, seria parte integrante do actual Partido Democrático, também ele a atravessar algumas convulsões. Uma minoria não aceitou a mudança e juntou-se na Refundação, mantendo o espírito comunista original, que, como na maior parte dos países da Europa, está inserida numa coligação com outras formações de esquerda e escassamente representada nos parlamentos.
 
O curioso aqui é o nicho mesmo ao lado da entrada. Consta que aquele Sagrado Coração de Jesus já lá estava antes, havia décadas, quando aquilo era um tasco, e o partido manteve-o e tratou dele. Mas, se olharem bem (e a foto de cima não ajuda), verão uma diferença: em 2003 era aquele Cristo mais loiro e de olhos azuis, que costumamos ver em pequenas imagens tradicionais; agora, é um Jesus mais moreno, com feições mais semitas. Parece que os detentores quiseram dar-lhe um cunho mais "palestiniano", menos europeu e provavelmente até mais próximo do real aspecto de Jesus. E assim, utilizando a arte popular religiosa para alguns fins políticos, podem ter ficado mais próximos da verdade.
 
De resto, a secção tem um bar polvilhado com imagens de Che Guevara e de antigos líderes comunistas italianos, e, à volta, junta-se um público claramente esquerdista mas heterogéneo, entre velhos militantes do "partido" com respectivo crachá e gente de rastas a fumar cigarros de enrolar. Tudo isto numa Veneza com menos turismo, que vai rareando cada vez que se caminha para Norte em direcção a San Pietro di Castello, e onde, se não se estiver rodeado do silêncio que já indicia a proximidade da laguna, até se pode encontrar uma coisa rara e em vias de extinção: venezianos autênticos.

O pódio da vergonha

Pedro Correia, 11.05.23

Consulto o Índice Mundial de Liberdade de Imprensa, da prestigiada organização não-governamental Repórteres Sem Fronteiras. Neste anuário, os três últimos lugares - autêntico pódio da vergonha - são ocupados por três países comunistas: Coreia do Norte, República Popular da China e Vietname.

Outra ditadura comunista, Cuba, figura nos dez piores entre 180 Estados analisados. Os restantes? Irão, Turcomenistão, Síria, Eritreia, Birmânia e Barém.

Não há coincidências. 

 

Nem escravos nem vassalos

Pedro Correia, 18.04.23

Os mesmos que se exaltam em defesa da suposta "independência" da Catalunha, reivindicando ali um referendo inexistente na Constituição espanhola, militam também aos gritos contra a independência de Taiwan, exigindo a sua "reintegração na República Popular da China" - falsidade histórica, pois a ilha Formosa nunca foi parte integrante da China comunista, submetida há 74 anos ao mando despótico do partido único.

Os mesmos. Indiferentes à vontade soberana do povo da grande ilha. Ali não é preciso fazer referendo algum - porque em Taiwan, ao contrário do que sucede na RPC, vigoram um Estado de Direito e uma das democracias mais sólidas do mundo. Todas as consultas populares têm deixado bem claro: em circunstância alguma o povo da Formosa aceitará ser escravo ou vassalo de Pequim.

 

Memória do grande exterminador

Estaline morreu há 70 anos após aniquilar 20 milhões de pessoas

Pedro Correia, 05.03.23

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«O maior dos prazeres é escolher a vítima, preparar o golpe, consumar a vingança e depois ir para a cama.»

Estaline

 

Faz hoje 70 anos, morria um dos tiranos mais execráveis que o mundo já conheceu. Estaline sucumbiu ao fim de quatro dias agonizante, vítima de trombose após um serão bem comido e bem regado na sua vasta mansão oficial, numa floresta a sul de Moscovo. Vivia ali como lobo solitário, protegido por uma bateria anti-aérea e um corpo de segurança pessoal composto por 300 homens.

Ninguém lhe valeu quando mais precisava.

 

Até ascender ao posto supremo do Estado soviético, onde se manteve durante quase três décadas, foi liquidando todos os rivais, um a um. Reza a lenda que na juventude, já como militante comunista, chegou a cometer homicídios. Na galeria de genocidas da História, poucos lhe disputarão a liderança: tem 20 milhões de cadáveres no cadastro. «A morte de um indivíduo é uma tragédia, a morte de um milhão é uma estatística», costumava dizer, no seu brutal cinismo.

Só entre Julho de 1937 e Novembro de 1938, ordenou pessoalmente a execução de 800 mil pessoas - num infame morticínio que passou à história como a Grande Purga. No seu delírio compulsivo, o tirano culpava aqueles que mandou liquidar a tiro de serem "inimigos do povo", "espiões a soldo de potências estrangeiras", "contra-revolucionários", "burgueses cosmopolitas" e outras imaginativas expressões da escolástica marxista-leninista.

 

Era o terror estalinista no expoente máximo: naqueles 17 fatídicos meses, o Estado soviético executou 1500 vítimas por dia, ao ritmo de um assassínio a cada 57 segundos. Adolescentes de 14 e 15 anos também recebiam a bala fatal. Dizia-se em Moscovo que a Lubyanka - sede da sinistra polícia política - «escorria sangue».

Dois terços dos 139 membros do Comité Central do PCUS - eleito no congresso de 1934, o chamado "congresso dos fuzilados" - desapareceram nesta voragem homicida. Em 1940, apenas sobreviviam dois dirigentes que figuravam com Lenine no Comité Central contemporâneo da revolução soviética de 1917: Alexandra Kollontai, na prática exilada como embaixadora na Suécia, e o próprio Estaline.

Lenine avisara no seu testamento político, em Janeiro de 1923: «Estaline é brutal, deve ser impedido de tomar o poder.» O fundador da URSS - eminente teórico do Estado como instrumento de repressão - conhecia bem o discípulo que se tornou seu sucessor. Sabia que o ex-seminarista georgiano jamais hesitaria em aniquilar quem pudesse ameaçar a sua obsessão pelo poder absoluto.

 

Desde a morte da segunda mulher, em 1932, Estaline foi-se isolando cada vez mais. Considerou uma "traição" aquele inesperado suicídio de Nádia, com um tiro no coração. Vingou-se na sua familia - e no povo soviético. Enviando milhões de perseguidos políticos para os campos de extermínio na Sibéria - o tristemente célebre "Arquipélago Gulag" onde se trabalhava 12 horas por dia, às vezes com 50 graus negativos, e se sucumbia de frio, fome, exaustão, doença e desespero.

Estaline mandou envenenar um cunhado em 1938 e enviou uma cunhada para o Gulag, acompanhada de uma sobrinha. Em 1941, deu ordem de execução a outro cunhado, irmão da primeira mulher.

Nada disto impedia que fosse glorificado por parte da intelligentsia ocidental da sua época, incensado por alguns basbaques diplomáticos (Joseph E. Davis, embaixador norte-americano em Moscovo, dizia que ele era o género de homem em cujos joelhos «uma criança gostaria de se sentar») e até por muitos imbecis já nascidos após a sua morte. No Portugal revolucionário de 1975 eram frequentes os comícios de partidos da extrema-esquerda em que se exibiam grandes retratos deste déspota, enaltecido como «libertador dos povos».

 

Encerrado em ambiente palaciano como os imperadores da era antiga, este autoproclamado "revolucionário" morreu como viveu quase sempre: mergulhado na solidão. E foi vítima dela. O escasso pessoal com acesso aos seus aposentos privados tinha estritas indicações para não perturbar o amo. Daí ter passado longas horas em agonia, sem que ninguém o socorresse naquela madrugada de 1 de Março.

Dos médicos que costumavam tratá-lo, todos haviam sido removidos pouco antes: o tirano, num delírio paranóico, convencera-se que tinham urdido uma conspiração para o liquidar aos poucos. Mandou prendê-los e alguns só escaparam à execução porque o sucessor de Lenine se finou primeiro.

Todos os ditadores, por mais cruéis que sejam, têm pequenas fragilidades. A de Estaline era o Concerto para piano n.º 23 de Mozart, sua peça musical favorita. Dizia-se que, ao escutá-la, se comovia até às lágrimas. Talvez a tivesse ouvido naquela noite em que tombou de vez no chão do quarto, condenado à fatal pena a que ninguém escapa, partilhando o destino com todos quantos mandou matar.

Ler

Sérgio de Almeida Correia, 31.10.22

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"(...) Depois de mais de setenta anos no exercício do poder, o PCC logrou constituir-se como uma dinastia orgânica – a primeira dinastia orgânica da história da China. Essa osmose com a cultura política tradicional viu-se fortalecida com a adopção de uma institucionalidade própria que assegura uma série de regras para evitar que os processos de sucessão, tão delicados nestes sistemas, gerem lutas fratricidas." (p.373) 

O que ali se escreveu já perdeu, entretanto, actualidade com a revogação da regra da limitação de mandatos ou a incerteza da idade de aposentação em relação a alguns dirigentes, mas o nome de Xulio Ríos é suficientemente importante entre os estudiosos e analistas do fenómeno chinês actual para não poder passar despercebido.

Natural seria, por isso mesmo, que o seu último trabalho merecesse a devida atenção, tanto mais que foi traduzido e publicado em português. Não havia desculpa para não estar incluído na minha lista de prioridades.

Tivesse aguardado mais uns meses e o autor poderia ter alargado a sua análise ao XX Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC). Seria interessante conhecer a sua interpretação do episódio Hu Jintao.

Não obstante, e pese embora uma incorrecção e uma ligeireza na parte que diz respeito à geografia de Macau e a Luís de Camões (vd. p. 149), trata-se de um trabalho de fôlego, produzido com isenção e independência, embora nem sempre possa estar de acordo com o autor.

Xulio Ríos passa em revista toda a história do PCC, nos seus momentos mais marcantes, desde a sua fundação, congresso a congresso; sem esquecer as influências externas, o conflito com o KMT, a fundação da RPC, até chegar à situação de Hong Kong, aos problemas do Tibete, de Xinjiang e Taiwan, a reaproximação ao confucionismo e ao legismo, e o processo de sinização do marxismo até ao neo-mandarinato actual e ao xiismo.

Irrepreensível divisão histórica, capítulos bem alinhados, conclusões pertinentes e a merecerem discussão. No final, possui uma interessante bibliografia, alguns números relativos aos congressos e um índice onomástico para ajudar os leitores menos comprometidos com a realidade chinesa e as dinâmicas do PCC a compreenderem os papéis de alguns dos protagonistas.

Valeu a leitura, recomendo-a, e agradeço à minha amiga F. a generosa oferta que me fez.

Menina não entra

Pedro Correia, 25.10.22

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Entre os 205 membros do Comité Central do Partido Comunista Chinês (PCC) agora "eleitos", reforçando a férrea ditadura de Xi Jinping em Pequim, há só 11 mulheres. Sublinho, por extenso: onze em duzentos e cinco membros. Apenas 5,4 por cento. E na Comissão Política do Comité Central - órgão supremo do partido único, na segunda economia mundial - não existe uma só mulher, entre os 24 vultos ali com assento. O partido-irmão do PCP parece o selecto Clube do Bolinha: menina não entra.

Em 2001, previu-se uma "quota informal", com reserva mínima de um posto feminino em todos os escalões dirigentes da agremiação comunista (incluindo o Governo, sucursal do PCC), excepto na Comissão Política. A que restava - Sun Chunlan, a quem chamavam "Dama de Ferro" - acaba de ser removida.

Tudo isto deveria merecer fervorosos brados de indignação das feministas cá do burgo. Irei esperar por tal coisa. Mas sentado.

Иосиф Виссарионович Сталин

Pedro Correia, 23.06.22

 

«As ideias são muito mais poderosas do que as armas. Nós não permitimos que os nossos inimigos tenham armas, porque deveríamos permitir que tenham ideias?»

Estaline

 

Quase 70 anos depois de morto, Estaline revive de boa saúde nas redes sociais, onde encontrarmos quem lhe teça loas com o mesmo fulgor orgástico de uma Mariana Alcoforado suspirando na cela do Convento de Nossa Senhora da Conceição pelo conde de Saint-Léger.

Não faltam comentários dados à estampa por discípulos espirituais do "Guia Genial dos Povos", responsável apenas por quatro milhões de condenações políticas - incluindo 800 mil execuções sumárias e cerca de 2,6 milhões de internamentos no Gulag - no seu glorioso consulado de três décadas à frente dos radiosos destinos da União Soviética, farol da Humanidade.

Alguns exemplos:

«Estalinismo é um conceito inventado pela direita e pela esquerda que ataca o leninismo.»

«O grande inimigo da pequena burguesia urbana é o camarada Estaline.»

«Construtor do socialismo, artifice da vitória dos povos na guerra contra o fascismo, defenor da independência e da soberania dos povos, arquitecto do comunismo, o maior defensor da paz e da felicidade do homem.

Hossana, camaradas, Hossana. A memória gloriosa do grande Estaline, pai dos povos e libertador de nações, permanecerá eternamente viva no coração dos verdadeiros comunistas.

Em Portugal também.

Tabaco, Putin e comunonazis

Pedro Correia, 22.06.22

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Os comunonazis que por estes dias debitam a cartilha em louvor de Putinitler, o carniceiro do Kremlin, recordam-me aqueles médicos e "cientistas" que durante décadas fizeram a apologia das virtudes do tabaco, considerando-o não apenas inócuo como benéfico para a saúde.

Charlatães, cada qual a seu modo: «Chesterfield é o melhor para vocês, Putin é o melhor para vocês.»

Cúmplices morais da morte de milhares de inocentes. Alguns sem o mais leve remorso, ontem como hoje. O que os torna mais repugnantes ainda.