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Delito de Opinião

Cheia

Maria Dulce Fernandes, 26.06.24

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Acabei de regressar de um rodízio de sardinhas assadas. 

Uma fatia de pão no prato e sardinhas, louras, gordas, muitas a chegarem nonstop, às três e três em cima da fatia. Comer o pão ensopado foi delicioso e rico em ómega 3.😁

Às dezasseis parei de contar. Sem batatas, só salada e no final um cafezinho e um passeio à beira-mar. Já vou na segunda garrafa de água com gás.

Comer (15)

A literatura que vai à cozinha

Pedro Correia, 10.05.24

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 O arroz de favas com galinha corada descrito por Eça no romance A Cidade e as Serras

(foto: blogue Outras Comidas)

 

1

Come-se pouco e mal na literatura portuguesa. E bebe-se ainda pior.

Percorremos centenas e centenas de páginas escritas pelos nossos mais reputados escritores sem deparar com um almocinho homérico ou um jantarinho opíparo. Falta vibração latina aos literatos lusos na hora de comer.

Por motivos que não vêm ao caso, tenho percorrido nas últimas semanas largas dezenas de obras de ficção de autores nacionais sem deparar com uma só refeição memorável. Tirando as excepções da praxe, Eça e Camilo sobretudo, dir-se-ia que os nossos romancistas fizeram votos perpétuos de castidade gastronómica.

Pessoa, Torga, Miguéis, Ferreira de Castro, Vergílio Ferreira, Régio, Sophia, Namora, Ruben A, Sena, Sttau Monteiro, Abelaira, Urbano, Carlos de Oliveira, Cardoso Pires, Santareno, Nuno Bragança: obra após obra, capítulo após capítulo, página após página sem um repasto digno de nota.

O mesmo para Saramago ou Lobo Antunes. De Aquilino, retive sobretudo as trutas – o que me parece coisa pouca.

Já nem menciono os neo-realistas puros e duros - um Redol, um Soeiro, um Manuel da Fonseca – para quem a frugalidade era uma bandeira e qualquer comezaina soava a pecado mortal no Portugal salazarista.

 

2

Desde quando a gula ficou arredada das letras pátrias?

Não era assim na época e na arte de Camilo, que nos legou inesquecíveis parágrafos de volúpia refeiçoeira – como bem documentou José Viale Moutinho na sua obra Camilo Castelo Branco e o Garfo (Âncora Editora, 2013). Ou nas incontáveis incursões de Eça pelos prazeres da boa mesa, culminando na ascensão de Jacinto a Tormes, onde comeu o melhor arroz de favas da sua vida.

 

3

Gostava que a literatura portuguesa se reconciliasse com a gastronomia, seguindo o excelente exemplo desses nossos maiores.

Gostava que nos legasse manjares perpétuos, como a magnífica paelha real invocada por Manuel Vázquez Montalbán no seu romance Os Pássaros do Sul (Los Mares del Sur, 1979) – «a do país autêntico, a que se fazia antes de ter sido corrompida pelos pescadores ao afogarem peixe em refogado». Com os ingredientes descritos assim: «Meio quilo de arroz, meio coelho, meio frango, um quarto de quilo de bajocons [variedade de feijão verde catalão], dois pimentos, dois tomates, salsa, alhos, açafrão, sal e nada mais. Tudo o resto são estrangeirismos.» Ou as superlativas beringelas gratinadas com gambas e presunto, descritas com minúcia na mesma obra. Tudo regado talvez com um Albariño Fefiñanes, «uma das melhores coisas que nos chegaram através da estrada de Santiago».

 

4

Gostava que a arte culinária deixasse de ser encarada como um pecado social pelos nossos escritores que cultivam uma prosa ensimesmada e meditabunda, sem vestígios de risos ou alegria. A ditadura passou há muito, mas legou-nos uma atmosfera de clausura que tarda em dissipar-se - como a nossa ficção literária bem demonstra.

Apetece-me pedir aos romancistas: deixem as vossas personagens comer e beber e gargalhar à vontade. Façam como Montalbán. Ou como Rex Stout, um dos mestres maiores da literatura que nunca se fica pela sala ou pelo quarto: entra sempre na cozinha.

«Quando terminámos o sumo das amêijoas, Fritz apareceu com a primeira dose de pastelinhos, quatro para cada um. Um dia gostaria de saber durante quanto tempo conseguiria comer os pastelinhos de Fritz, feitos com tutano de vaca picado, pão ralado, salsa (cebolinho, hoje), casca de limão ralada, sal e ovos, escalfados durante quatro minutos em caldo de carne forte. Se ele os escalfasse todos ao mesmo tempo, ficariam moles depois dos primeiros oito ou dez, mas ele só faz oito de cada vez, e continuam sempre a chegar.»

Deliciosas linhas contidas no romance Clientes a Mais (Too Many Clients, 1960). De ler e chorar por mais.

 

Texto reeditado

Comer (14)

Risoto de citrinos com coelho

Pedro Correia, 20.01.24

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Desta vez apeteceu-me coelho. Mas encontro cada vez menos esta carne, outrora abundante entre nós. Rica em proteínas, com baixo teor de gorduras, é nutritiva e fácil de digerir.

Mas nada fácil de encontrar cá na cidade.

Tive de encomendar no talho. Dizem-me: está a desaparecer devido às pressões animalistas. Vêem os coelhinhos como peluches, coisas fofas. Há mesmo quem considere que comer coelho equivale a comer cão. Em casos extremos, protestam por parecer «quase canibalismo».

Enfim, os chalupas ganham terreno em todas as frentes. Na frente alimentar também.

 

Pedi para me cortarem o coelho em pedaços. Usei metade, o resto rumou ao congelador. Para consumir noutro fim-de-semana.

Num tacho largo, preparei o refogado: fio de azeite, meia cebola picada, folha de louro, malagueta sem sementes. Adicionei o coelho. Depois, meio copo de vinho tinto. Enquanto noutro tacho a água fervia. 

Chega o momento de verter uma chávena do arroz apropriado para esta receita, de origem italiana. Segue-se uma colher de sopa de manteiga. Junto uma pitada de açafrão. Misturo. Rego com parte da água quente, em pequenas doses, e vou mexendo sempre para não colar ao fundo. Vai ficando numa textura cremosa.

Convém redobrar a paciência nesta fase: é por uma boa causa.

 

Daí a cerca de dez minutos apago o lume. Envolvendo tudo num generoso pedaço de queijo parmesão a que junto rodelas de lima e dois ou três gomos de laranja, já que estamos no tempo delas. Sem esquecer umas folhas de salsa - embora o manjericão seja mais recomendável.

Interessante, o contraste dos sabores.

Abro uma garrafa de Defesa (2021) - da Herdade do Esporão, castas Touriga Nacional e Syrah. Custou-me 4 euros numa loja cá do bairro.

Soube-me o melhor possível. Belo almoço de Inverno, enquanto a chuva teima em cair pelo terceiro mês consecutivo. Na televisão, o noticiário do costume menciona casos de "seca severa" e até "seca extrema". É em Portugal, mas sinto que me fala dum país distante.

Comer (13)

Tagliatelle com cogumelos

Pedro Correia, 04.11.23

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Houve um tempo em que não apreciava muito massas. Refiro-me às que se comem, não às tenebrosas maquias "capitalistas" que fazem espumar de raiva a doutora Mortágua. Como se ela vivesse de ar e vento. Como se nos países que lhe servem de referência as pessoas optassem por trocas directas, dispensando o dinheiro.

O nosso gosto vai evoluindo com o decorrer do tempo. Hoje aprecio muito alimentos que detestava em miúdo - do tomate às favas, passando pelo peixe em geral. Educamos o paladar, é certo. E se por um lado nos mantemos fiéis à chamada "comida da avó", não é menos certo que ao rasgarmos horizontes, nas diversas fases da nossa vida adulta, isso também nos faz mudar no campo alimentar.

Foi no Oriente que alterei a minha anterior indiferença a massas. Os chineses do sul comem-nas a toda a hora, de dia e de noite, em casa ou na rua. Massa de arroz, muito fina. Com pedaços de ovo, rebentos de bambu, fios de vegetais de todo o género. Com molho de soja e algum picante, para quem aprecie. 

Durante anos, algumas das minhas ceias em horário pós-laboral eram estas massinhas, a que chamávamos chau min para não complicar - à letra, massa frita. Concorrente directa do chau fan, arroz frito. Nas breves semanas de Inverno em Macau, o sólido passava a líquido, comia-se a massa em canja com pedacinhos de frango. Sabia bem.

 

Pensei nisto há dias, enquanto cozinhava aquela que é agora uma das minhas massas favoritas - tagliatelle. Fresca, de preferência. Bastam cinco ou seis minutos ao lume para ficar como deve, al dente. Era o que me apetecia, faltava ver o que havia em casa para cozinhar com ela. Cogumelos, claro: nunca faltam na despensa. E molho de tomate. Estava o repasto garantido.

Enquanto a massa cozia, verti um fio de azeite numa frigideira, uma colher de margarina vegetal, meia cebola e um alho picado. Mal estes alouravam, adicionei os cogumelos laminados - se forem de duas qualidades diferentes, complementando-se, tanto melhor. Fui mexendo. A chama estava alta, refresquei com um pequeno copo de vinho branco, deixei evaporar.

Já o molho fervia quando o reforcei com quatro ou cinco colheres de molho de tomate. Baixei o lume, aguardei cerca de cinco minutos. Antes de apagar, envolvi a massa noutra colher de margarina (pode ser manteiga, claro). 

Polvilhei com doses generosas de queijo - parmesão ou pecorino, tanto faz - e salsa fresca, por me faltar manjericão. Soube muito bem. E despertou-me saudades, já não de Macau mas de Itália. Como eu gostaria de andar por lá agora.

Comer (12)

Arroz selvagem com espargos, tomate-cereja e ovos

Pedro Correia, 28.10.23

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Longe vai o tempo em que comia quase sempre fora. Isso mudou, aliás antes da pandemia. Agora tornou-se raro o dia em que não cozinho. É uma actividade que cultivo, aprecio e recomendo - começando, aliás, na lista de compras já a pensar nas ementas. 

Como salientei no primeiro texto desta série, houve mudanças a outro nível. Sou hoje muito mais exigente naquilo que consumo à mesa. Bani quase por completo os fritos da minha alimentação diária e reduzi a carne à expressão ínfima. Adoro peixe, mas também fui reduzindo - neste caso sobretudo pelo preço, que se tornou proibitivo. Uma recente ida ao mercado, aliás quase vazio, deixou-me com certezas reforçadas nesta matéria. Não apenas no peixe, mas nos legumes: por um molho de espargos pediram-me o triplo do preço que costumo pagar no supermercado.

Vade retro, especuladores. Depois são os primeiros a debitar lamúrias perante as câmaras de televisão...

 

Partilho convosco um dos pratos de que mais gosto: todas as semanas o faço. Alterando uma vez por outra os ingredientes, mas sempre com a mesma base: arroz selvagem - rico em fibras, vegetais e anti-oxidantes. 

Exige três focos de atenção. Por um lado, o arroz vai cozendo, demorando um pouco mais do que o arroz tradicional: cerca de 20 minutos. Por outro, escaldamos espargos, devidamente cortados e despojados da base mais rija: cerca de quatro minutos bastam. Finalmente, numa frigideira, vamos salteando em azeite e louro uma curgete partida em pedaços. Quando estiverem dourados, dão lugar aos espargos, repetindo-se o processo.

À parte, numa tigela, depositamos fatias de queijo mozzarella (o vulgar queijo fresco também serve) com tomates-cereja cortados em metades. Tudo bem misturado e temperado. Com orégãos, um fio de azeite, algumas gotas de vinagre balsâmico e uma colher de sobremesa de pesto: tenho usado pesto alla calabrese, pelo seu inconfundível travo picante.

Entretanto o arroz cozeu e respirou durante alguns minutos antes de rumar à travessa. Vai servir de leito aos pedaços de curgete, aos espargos, ao queijo e ao tomate. Falta revolver tudo noutra colher de pesto. E escalfar dois ovos, que seguirão o mesmo rumo, cada qual de sua vez. Ficam no topo da travessa, juntamente com sementes de sésamo ou miolo de caju. Além das cabeças dos espargos, só para enfeite. 

 

Fácil, rápido, nutritivo e saboroso. Daí eu repetir tantas vezes este prato. Que não encontro em nenhuma ementa de restaurante. Nem sinto essa necessidade.

Para quê procurar fora aquilo que tenho em casa?

Comer (11)

Sem pressa, no Clube Naval da Ericeira, onde o peixe é rei

Pedro Correia, 19.08.23

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Verão, para mim, é sinónimo de peixe em termos gastronómicos. Assado, cozido, estufado. Em escabeche, em caldeirada. Mas sobretudo grelhado: cherne, garoupa, robalo, dourada, sargo, solha, peixe espada - o que houver vindo da lota. Em zona balnear, de preferência. Com mar à vista.

Assim fiz, assim tenho feito, num dos meus poisos favoritos: o Clube Naval da Ericeira. Situa-se em zona adjacente ao porto de pesca da vila que tão generosamente me acolhe há um par de anos. 

Condição obrigatória: chegar cedo. Vai-se formando fila à porta, a partir do meio-dia e pouco. Ouvem-se conversas de circunstância dos frequentadores habituais, sábios conhecedores do que ali se petisca.

Impera a boa disposição. O tempo convida a relaxar.

Não é espaço para sofisticações. Nem para aquela comida da moda - com fusões, tofu, muita rúcula, muita espuma que parece ser da barba, fruta tropical misturada com leguminosas e tretas do género.

Tudo clássico, à moda antiga. Pratos do dia escritos a giz num quadro, as gaivotas rondando quase como animais domésticos.

Alargando o olhar, confirmo: aqui o mar é mais azul.

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Há choco à lagareiro, sardinha assada, carapaus. Nos pratos de carne, nem reparo.

Vou para o linguado grelhado: é o que me está a apetecer. Ali ao lado os pescadores reparam as redes, secam peixes em estendais, trocam dois dedos de conversa: a faina do dia está cumprida. 

A casa já encheu. 

Vem para a mesa um jarro de vinho branco - fresco, não gelado. Como mandam as boas regras. Em sequência lógica, surge um queijinho fresco com o magnífico pão local. Confirmo: estou numa das zonas do País onde há melhor pão.

Lição fundamental à mesa em férias: mastigar bem, saborear, aproveitar cada momento prolongando o prazer de partilhar refeições sem agenda profissional para cumprir. Há quem não saiba desligar-se do ritmo laboral, sem perceber como é indispensável fazer pausas para que o trabalho renda plenamente. 

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Chega então o linguado. Vem como gosto: grelhado no ponto certo.

Em Portugal, quase todos se gabam de saber grelhar peixe. Estão profundamente equivocados: abundam os locais, alguns até com fama, em que a grelha mal calibrada ou um cozinheiro negligente secam o peixe, retirando-lhe o suco natural.

Aqui há manifesta competência nesta função: excepto as espinhas, nada se desaproveita deste elegante bicho que há menos de 24 horas nadava no oceano. Até a pele. 

Casa muito bem com as batatinhas cozidas com casca, o feijão verde que serve de complemento e a salada fresca temperada com abundante azeite, um golpe de vinagre, umas gotas de limão.

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A praia, ali a dois passos, pode esperar. A tarde é longa, há sol até depois das oito. 

Nada de pressas, como se tivéssemos todo o tempo do mundo.

Faz parte da magia do Verão: é quando mais vezes somos invadidos pela doce ilusão da eternidade. 

Hei-de voltar ao Clube Naval. Tem lugar cativo no meu roteiro gastronómico. Ponto de romagem sempre que as saudades do bom peixe apertam.

Doses fartas. A preços imbatíveis.

Por mais vezes que regresse, a conclusão é sempre a mesma: daqui nunca saio desiludido.

 

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Comer (10)

Da série ao prato: como cozinhar chakchuka

Pedro Correia, 12.02.23

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Às vezes os pratos que cozinhamos nascem assim: de um imprevisto que sabemos captar a tempo. Aconteceu-me com este. Estava seguir uma série israelita na Netflix chamada Atropelamento e Fuga ("Hit and Run" no idioma do império), quando vi duas personagens, já roídas pela fome, recorrerem à tradicional comida de rua, ali tão em voga. Comiam o quê? Algo chamado chakchuka. Popularíssimo não apenas naquele país, mas em toda aquela região do mundo, talvez com outros nomes e diferenças pontuais de ingredientes.

Fiz uma pesquisa rápida e tratei de passar aos actos. Não sei se convosco sucede o mesmo: gosto de descobrir a chamada cozinha "exótica" (só é exótica para quem a não conhece, podendo a nossa também ser classificada assim por aqueles que nunca a provaram). Tenho feito boas descobertas graças a esta curiosidade inata, aguçada pelo apetite. Foi o caso.

 

Será comida de rua, banal naquele contexto, mas é deliciosa. Com ingredientes muito simples: dois ovos, pimento, tomate, cebola, alho, umas fatias de pão. Condimentos: salsa, cominhos, pimenta, açúcar.

Começo por fritar a cebola em duas colheres de azeite, frigideira em chama alta. Junto meio pimento vermelho cortado em tiras, pico um alho e envolvo-o na cebola. Três minutos bastam antes de adicionar quatro tomates em pedaços, mantendo o lume alto até borbulhar. Avançam então os temperos: salsa, pimenta (malagueta, sem sementes, pode ser boa alternativa), uma colher de café de cominhos e uma colher de sobremesa de açúcar (ou mel) para cortar a acidez do tomate.

Tapo a frigideira, fica cerca de um quarto de hora em lume brando.

Entretanto vou cortando fatias de pão - calhou-me ser pão de gengibre, já encetado - e um pedaço de queijo feta. Cobrem a base do prato, aguardando companhia. Chegará após escalfar os ovos na frigideira abrindo ali duas pequenas covas para o efeito. Concluída esta etapa, fica pronto a servir.

Antes de verter o petisco, ainda o polvilho com manjericão e azeitonas.

 

Poder-se-á chamar a isto comida mediterrânica? Creio que sim. Israel fica à beira do Mediterrâneo.

Faz falta carne? De modo algum. 

E eis como uma banal série televisiva, com tiros e perseguições de automóvel, pode servir-nos de inspiração para um prato fácil, barato e muito saboroso. "Comida exótica", dirão os tais do império. Exótico, para mim, é comer bacon ao mata-bicho, hamburgers ao almoço e hot dogs ao jantar. Não me apanham nessa.

Comer (9)

Caril de abóbora, grão e coco

Pedro Correia, 26.11.22

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aqui confessei ter praticamente banido a carne da minha dieta alimentar. Não por qualquer simpatia pelo PAN, que é nula, nem por embarcar nas suas prédicas tele-evangélicas sobre o "bem-estar animal", mas simplesmente porque me sinto melhor assim. Cada vez cozinho mais em casa - e cozinho cada vez com maior recurso aos vegetais. O preço quase proibitivo de carne e peixe, nos dias que correm, contribui para juntar o útil ao agradável.

E agradável é este prato que aqui vos trago: caril de abóbora, grão e coco. Prato vegetariano, sim. Mas pouco me importam as etiquetas. Interessa é que seja apaladado e nutritivo. 

 

Comecemos por reunir os ingredientes: abóbora, cortada em cubos; um pedaço de gengibre fresco (tenho sempre algum no congelador); dois dentes de alho; um par de chalotas (cebola também serve); dois tomates em pedaços; uma lata de grão já cozido; uma lata de leite de coco; uma malagueta a que retiro quase todas as sementes.

E ainda arroz, pronto a cozer à parte. O ideal, para mim, é o basmati. Mas por questão de preço e de consciência ecológica (o basmati é produzido longe de Portugal), o nosso mui respeitável carolino serve também.

Não esquecer ainda: uma colher de sobremesa de caril e uma colher de chá de açafrão. Além de coentros, em talos e folhas.

 

O azeite começa a aquecer no tacho quando nele se incorporam o gengibre cortado em palitos finos, o alho laminado, a malagueta e as chalotas em pequenas rodelas. Dois ou três minutos em lume forte. Vai-se mexendo com a colher de pau: Bruxelas, felizmente, levantou o veto a tão indispensável ferramenta da nossa culinária. 

Há que verter então os talos de coentros e o caril, tudo frita ligeiramente. E logo ali mergulham os tomates e o açafrão, banhados pelo leite de coco, já o lume ficou brando. Convém esperar por um início de fervura: chegou o momento de enfiar abóbora e grão na panela.

Segue-se um quarto de hora em lume brando, talvez nem tanto. Há que espreitar para ver se necessita água para não secar nem colar ao fundo. Depois, apagar o lume e aguardar um pouco mais, de tacho descoberto, enquanto o molho engrossa.

 

À margem, cozemos o arroz no seu canónico quarto de hora que pode estender-se aos 18 minutos. Será polvilhado de pedaços de caju ou sultanas - foi desta vez o caso, conforme a foto documenta. Haverá ainda um resto de coentros para enfeitar. E o indispensável chutney - neste caso, de gengibre e manga: perfeito para acasalar com o picante.

Há quem prefira acompanhar com naan, pão indiano: também serve, como complemento ou alternativa ao arroz. Menos recomendável a quem esteja em dieta.

Prato simples, saudável e saboroso. Sabe muito bem a qualquer hora - seja almoço, seja jantar. E desmente a convicção, ainda entranhada em muitos, de que refeição sem carne é insípida e escassa de sustento. Deste meu posto de cozinheiro amador já capaz de tratar o fogão por tu, vos afianço: não acreditem nisso.

Comer (8)

Matar saudades de chanfana em Coimbra

Pedro Correia, 05.11.22

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Há petiscos que só consumo no local próprio. Espetada à madeirense, claro, na Madeira - em Câmara de Lobos comi uma inesquecível. Ensopado de borrego e pezinhos de porco de coentrada, apenas no Alentejo - recordarei sempre um manjar com estas iguarias no Luar de Janeiro, em Évora. Cataplanas é no Algarve. Leitão, só na Bairrada - nada de sucedâneos menores.

A melhor cabidela de pica-no-chão continua a ser a do pantagruélico Camelo, às portas de Viana. Para o arroz de polvo, com ou sem filetes do dito, vou ao Porto. Para o ensopado de enguias, opto pela Costa Nova. Se quero raia alhada, vou ao Carrossel, junto à praia da Cova Gala (Figueira da Foz). E nada bate o bacalhau à minhota do Chico, em Caminha. Nem o arroz de carqueja do meu Fundão. 

Lisboa possui a sua comida típica, ao contrário do que alguns supõem. As ervilhas com ovos, as pataniscas, o bacalhau à Brás, os peixinhos da horta, as iscas na frigideira. E não esqueçamos aqueles pratos que podem orgulhar-se de ter alcançado amplitude nacional, com ligeiras variantes regionais. Não esquecerei um magnífico arroz de pato no Cortiço, em Viseu, ou uma caldeirada à pescador em Peniche - almoço que se prolongou tarde adiante, amenizando um dia de chuva primaveril. 

 

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Por vezes a nostalgia de determinado acepipe vai apertando. Acontece-me mal chegamos a Janeiro, quando inicio a contagem decrescente para a época da lampreia, já com o roteiro traçado.

Confesso: às vezes estou anos sem matar saudades. Acontece-me com a chanfana: só consigo comê-la em Coimbra. E sei exactamente onde quero ir para o efeito.

Venho de lá agora. Desde Agosto de 2019 que não pernoitava na cidade do Mondego: a pandemia baralhou-me vários planos, até no campo gastronómico. Nem sabia que o Zé Manel dos Ossos, durante anos um dos emblemas da restauração na baixa coimbrã, tinha fechado de vez. 

Mas apontei para o Cantinho dos Reis, ali bem perto, no Terreiro da Erva. O que eu queria era a chanfana, três anos depois. E em boa hora lá voltei: continua a recomendar-se.

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O afável proprietário, agora com 78 anos, fez as honras da casa. Lá dentro, pois o espaço exterior estava invadido pela turba estudantil em dia de celebração académica. Disse-lhe ao que vinha, o que lhe iluminou a face num sorriso: «Haja alguém capaz de apreciar o que é bom. Hoje aparece cada vez menos gente a pedir chanfana. Preferem uma estrangeirice qualquer.»

O cozinheiro é de Poiares e confecciona o bicho da forma clássica. Vem macio e suculento e bem apaladado. Percebe-se que recebeu tratamento condigno na cozinha. Servido em dose generosa, com batatinhas e couves cozidas e apresentadas à parte. Como manda a sabedoria antiga.

Pede mastigação prolongada: só assim saboreamos devidamente.

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Regalei-me, como diria o Eça. O simpático anfitrião até me fez o favor de ligar a televisão para ver a bola, mas nessa noite eu estava mais virado para a arte gastronómica do que para a devoção futebolística. E lá me pus à conversa com ele sobre as tradições que se vão perdendo à mesa nacional.

«O senhor nem imagina, agora só querem picanha...»

Eis que chega uma família: pai, mãe, dois filhos. Mal olham para a ementa: é isso mesmo que encomendam. Picanha.

Eles não sabem nem sonham como é bom comer chanfana.

Até já, Cantinho dos Reis. Não tenciono estar mais três anos sem aí voltar.

Comer (7)

Leis da boca e leis do estômago

Pedro Correia, 14.08.22

Há uma diferença básica entre leis da boca e leis do estômago. Comer, para nós, está muito longe de ser apenas uma actividade física: é também algo que pertence em larga medida à esfera mental.

Um rato, por exemplo, é potencial fonte de proteínas, lípidos e sais minerais. Mas ninguém se imagina a comer um rato porque a mente impõe a sua escala de valores à lei da boca e esta prevalece sobre a lei do estômago. O que põe em causa um dos pilares da doutrina marxista quando ensina que a base material condiciona em absoluto o pensamento.

Comer (6)

"Müla", em Alvalade, com bênção de Santo António

Pedro Correia, 26.06.22

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                   Arroz de galo e cogumelos                                                  Arroz nero com camarão, lula e amêijoa

 

Ainda existe algum preconceito contra restaurantes situados em centros comerciais. Como tantos outros, também este não tem o menor fundamento. Foi nisto que pensei ao visitar o acolhedor Müla, recém-inaugurado no espaço exterior do centro comercial Alvalade, em Lisboa.

Aludir a espaço exterior parece mero pormenor, mas não é. Faz toda a diferença, um restaurante ter esplanada. Esta é aprazível, numa varanda com visão panorâmica da Praça de Alvalade, a que alguns chamam "praça do Santo António", apontando a estátua do célebre alfacinha que chegou a doutor da Igreja, concebida pelo escultor António Duarte e erguida em Outubro de 1972.

Ignoro por que motivo o restaurante se chama Müla - assim mesmo, à alemã, com trema. Mas tem pelo menos a vantagem de ser um nome que se fixa de imediato. Está colado ao Mercantina, ali existente desde 2013 e que já se tornou referência entre os comensais do bairro, vocacionado sobretudo para comida italiana.

 

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A esplanada, com 40 lugares, é espaçosa. Sem o defeito, frequente em tantos outros poisos, de ter as mesas do lado demasiado próximas da nossa.

Aqui a comida tradicional portuguesa alia-se a sabores sul-americanos, com incursões na culinária espanhola. Havendo aposta deliberada em petiscos, que podem ser apreciados a partir das cinco da tarde. 

Já lá fui três vezes - e nunca saí decepcionado, longe disso. 

Na primeira, arrisquei bastante para noite de estreia. Optando por um prato que muito aprecio mas raras vezes consumo longe do Alentejo: sopa de cação. Passou no teste, com nota positiva. Pela espessura do caldo, pelo casamento do peixe com os coentros e pelo magnífico pão alentejano que lhe serve de complemento.

Na segunda incursão, decidi-me pelo arroz de galo e cogumelos em forno a lenha com manteiga de tomate seco e queijo da ilha. Imaginativo, ambicioso e suculento: teste superado também. Pela qualidade dos ingredientes e pelo esmero na confecção. A impressão muito favorável consolidou-se na terceira visita, quando experimentei um louvável arroz nero em forno de lenha com camarão, lula, amêijoa, mexilhão e tomate confitado. Respeitando os pergaminhos mediterrânicos que lhe servem de referência e daí rumaram à América de expressão castelhana. 

Os gulosos têm boas opções à escolha. Da acolhedora mousse de chocolate com praliné de avelã, azeite e flor de sal ao capitoso cheesecake da ilha, com goibada e bolacha de manteiga queimada - que deve ser partilhado para evitar excessos calóricos. Também a tarte de lima merengada justifica boa nota.

 

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Cheesecake da ilha com goiabada

 

Enfim, um local a que apetece regressar. Até por ser inspirador de boas conversas. Precisamos de recuperar a arte do convívio, que anda a ser desprezada nesta era em que tantos preferem passar o tempo de olhos fixos num ecrã. Esquecidos de que há mais mundo para além dos dispositivos tecnológicos e daquilo a que erradamente chamamos "redes sociais".

Verdadeira rede social é a que se estabelece em torno de uma mesa.

Comer (5)

Rápido e bom: atum à Brás

Pedro Correia, 19.06.22

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Conheço vários apreciadores de boa mesa que jamais sentiram curiosidade em indagar como se faz. Há até quem escreva sobre gastronomia sem saber estrelar um ovo, algo que sempre me fez confusão: como é possível ser-se crítico sem ter sequer conhecimentos rudimentares nesta matéria?

Só por irredutível preguiça alguém pode dizer-se incapaz de cozinhar. Tudo se resume à motivação. Nada melhor, para o efeito, do que respondermos a este repto mental: como faria eu para comer se todos os restaurantes que conheço fechassem ao mesmo tempo e me encontrasse sozinho em casa, impossibilitado de sair (devido a uma pandemia com estado de emergência e recolher obrigatório, por exemplo) e tendo apenas os ingredientes básicos na despensa ou no frigorífico?

Espírito de pioneiro: só isto nos leva a vencer a inércia. Não admito que um adulto, consciente e responsável, se confesse «incapaz de estrelar um ovo». Geralmente acontece com homens, embora vá encontrando cada vez mais mulheres que se proclamam «alérgicas à cozinha» e até pareçam sentir orgulho em dizer que mantêm relação nula com fogões. Sinal dos tempos: se é para exibirem «emancipação», vão por mau caminho. Assim ficarão sempre dependentes de alguém, disponível (ou não) a cozinhar para elas.

 

Comecemos pelo mais básico. Que costuma ser também o mais rápido - e nem por isso menos saboroso. Um dos dois ou três primeiros pratos que preparei é ainda daqueles a que recorro com frequência quando a fome aperta e o tempo escasseia. Atum à Brás: faz-se em minutos e exige poucos ingredientes. 

Começo por picar meia cebola: as receitas falam-nos sempre em cebola inteira, mas metade basta. O mesmo para os alhos: se sugerem dois dentes de alho, é garantido que um já cumpre a função. Segue também picado para a frigideira, onde já repousa a cebola mais uma folha de louro.

Rego com um fio de azeite, fica a alourar. Verto então meio copo de vinho branco e aguardo que ferva um minuto ou dois. Entretanto, bato um ovo por pessoa, com salsa e pimenta. Fica pronto a despejar sobre a cebolada, em lume brando. Há que mexer sempre: é nestes momentos que uma colher de pau se revela auxiliar imprescindível, digam os burocratas de Bruxelas o que disserem.

 

Mal o ovo esteja cremoso, termina a sucinta operação culinária. Resta juntar batata frita palha e envolvê-la na frigideira, apagando-se o lume. Há que agir com rapidez para evitar que o ovo seque.

Falta acrescentar o atum - também uma lata por pessoa. Prefiro o Santa Catarina, açoriano. Mas Minerva ou Bom Petisco também servem, em posta ao natural, sem azeite acrescido. 

Que mais? Polvilhar com salsa. Podemos também enfeitar com azeitonas: parece ainda mais português. E sabe sempre bem.

 

Há pratos que demoram mais tempo a fazer do que a comer: são quase todos. Com este, sucede o contrário.

É um dos motivos que me levam a recomendá-lo a quem queira iniciar-se. Para riscar de vez aquela expressão «nem sei estrelar um ovo»: deixemos isso para as dondocas que têm cozinheiro privativo ou para os grunhos que se gabam de nunca entrarem numa cozinha. Nem sabem o que perdem.

Portugal

jpt, 11.06.22

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Vieram do (magnífico) mercado vizinho, a 5 euros o quilo. Foram assadas com a consabida arte do mestre, sempre cioso das suas funções. Cruéis, durante o labor das brasas, rimo-nos dos turistas na própria terra que pagam, lá na capital, 2 euros por cada peixe esturricado. Depois saímos à mesa, com apetite patriótico. Também foram presentes os pimentos, oriundos das mesmas brasas, e outras saladas bem apepinadas. Acompanharam vários vinhos frios (mas jamais "catembes", sangrias e afins). O Dia de Portugal é quando um homem quiser...

Comer (4)

Ravioli com espargos e cogumelos salteados

Pedro Correia, 11.06.22

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O prazer de comer redobra quando sentimos prazer em cozinhar. Por vários motivos, desde logo este: aqueles alimentos concretos que vamos consumir estimularam a nossa criatividade antes de se materializarem em comida. Fomos nós que os adquirimos, fomos nós que os confeccionámos, foi na nossa cozinha que eles se tornaram requintados e apetecíveis.

Ao contrário de outras espécies animais, que vivem para comer, nós comemos para viver. O que faz toda a diferença. Com a passagem dos anos habituamo-nos a associar a arte culinária às pequenas alegrias quotidianas.

Mesmo quando já sabíamos disto em teoria, ganha significado quando é posto em prática. Quem cozinha, saboreia melhor a vida. Está um degrau acima daqueles que só se relacionam com a comida como seres passivos, consumindo o que outros lhes preparam.

 

Esta convicção reforça-se até quando o prato é simples. Por exemplo, o ravioli com espargos e cogumelos salteados que cozinho com frequência - por ser fácil, barato, pouco calórico e muito saboroso. E rápido: basta um quarto de hora.

Presto culto aos espargos - que não me recordo de consumir na infância - desde que um dia, na minha amada cidade de Évora, comi umas irrepetíveis migas de espargos com carne de alguidar.

Mais tarde fiquei a saber que tem propriedades nutritivas, é diurético e anti-oxidante. Tanto melhor, mas foi pelo sabor que este vegetal me conquistou.

 

Começo por amputar-lhes a base, mais fibrosa, e corto-os em pedaços de cerca de 5 cm. Irão ser escaldados por muito pouco tempo numa caçarola: assim amaciam sem perder consistência. Entretanto liberto os ravioli da embalagem e deposito-os numa panela com água a ferver. Ficarão ali apenas cinco minutos. Gosto desta massa fresca sobretudo quando é recheada de mozzarella e tomate.

Já retirados os espargos com uma escumadeira, ponho a frigideira ao lume com um fio de azeite e um dente de alho picado. Chama média. Vou lá depositando os cogumelos laminados, logo a seguir os espargos e uns pedaços de tomate seco cortados em tiras, temperando apenas com grãos de pimenta já moídos. Quem não resiste à carne pode lá depositar também umas raspas de chouriço.

Outros cinco minutos nisto. Até que envolvo os ravioli e salpico-os com duas ou três colheres de água da cozedura. Daí a nada, tudo pronto a comer.

 

Já fora do lume, polvilho com ervas aromáticas (manjericão, por exemplo) e algum queijo ralado. Quando me apetece, adorno com meia dúzia de tomates-cereja cortados em metades. Os olhos também comem.

Apetece repetir. É o que faço. Sem nunca enjoar. Sermos nós a preparar um prato faz toda a diferença. É tal qual vos digo: o prazer redobra. Quem nunca experimentou nem sabe o que perde.

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Comer (3)

"Nortada", na Praia Grande: paisagem inigualável

Pedro Correia, 05.06.22

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Por estes dias, como creio já ter dito, é muito raro comer fora. Cozinho quase sempre e sem sacrifício algum. Cozinhar tornou-se um dos meus passatempos favoritos. É um desafio que começa antes de me aproximar do fogão: também gosto de elaborar ementas, de preparar os ingredientes, de descobrir novas receitas. É algo que me relaxa enquanto me desafia não apenas na criatividade mas também na precisão: um minuto de diferença, a mais ou a menos, pode estragar um prato. 

Foi este o desafio que lancei a mim próprio ao iniciar-me nestas lides. Jurei jamais recorrer a um restaurante como via alternativa (tenho sete a poucos metros da porta de casa). Comeria sempre o que fizesse, fosse qual fosse o desfecho. Esta exigência pessoal reforçou a necessidade de me safar bem entre caçarolas e frigideiras.

 

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Mas por vezes abro uma excepção. Aconteceu há poucos dias: quis matar saudades de um dos meus restaurantes favoritos. O Nortada, a curta distância da Praia Grande, no concelho de Sintra.

Há uns tempos que lá não ia. Soube-me bem contemplar de novo aquela paisagem inigualável, na sala exterior do restaurante. É cenário que nunca me canso de desfrutar, mesmo em dias de Primavera envergonhada.

Sala espaçosa, desafogada, inundada de luz, com amplas vistas sobre o jardim adjacente e o oceano um pouco mais abaixo. Toalhas de pano - hoje quase um anacronismo. E talheres de peixe, como mandam as boas regras. Serviço irrepreensível.

A nosso lado, um pequeno grupo de italianos fazendo jus à gastronomia lusitana. À mesa, poucos como eles sabem apreciar o que é realmente bom.

 

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Começámos por partilhar uma entrada soberba, só disponível naquele dia: tártaro de atum com manga. Casamento perfeito entre o peixe cru, marinado com sapiência, e o doce fruto tropical. Por ser dia de aniversário, justificava-se a escolha de um vinho especial: veio o Cartuxa, um dos meus brancos de eleição.

Seguiram-se filetes de pescada com arroz de berbigão: polme discreto, sem vestígio de gordura em excesso, confecção apuradíssima da popular gramínea que alimenta metade da população do mundo. Seco, consistente, apaladado. É assim que gosto dele.

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Depois fizemos honras ao polvo assado com batata doce - confesso que raros petiscos me mobilizam tanto como o octópode, que congrega adeptos de norte a sul do país. Tenro e sápido, em perfeita comunhão com a batatinha de Aljezur a que apetece dedicar um hino.

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Aniversário justificava sobremesa: compareceu um magnífico leite creme em massa filo. Para encerrar a refeição com chave de ouro.

 

Despedi-me do Nortada com um "até já". Fazendo votos para que nunca figure num guia Michelin. Prefiro-o assim, sem ceder a padrões alheios, tão avessos à nossa tradição gastronómica e tão propícios a preços que se tornam proibitivos.

Para que possa haver outros dias de celebração como este. Com sol ameno e o mar amigo ali tão perto, num cíclico sussurro de parabéns.

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Comer (2)

Chamuças de Moçambique e cerveja da Ucrânia

Pedro Correia, 29.05.22

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Bani os fritos da minha dieta alimentar. Não me fazem falta alguma. É uma regra que admite excepções, aliás cada vez mais raras, mas tem carácter imperativo após o pôr-do-sol. E dou-me bem com isto.

Entre as excepções, figuram as chamuças que compro de vez em quando no mercado de Alvalade. De fabrico caseiro, adquiridas na banca dos congelados Zanugel, ali existente desde 1981. Só há aos sábados - e não são congeladas, estão prontas a comer, se formos cedo ainda as recebemos quentinhas. Estaladiças, com a massa vegetal adequada, o picante e a cebola no ponto certo.

Gosto tanto delas que por vezes tiro uma do cartucho para saboreá-la enquanto deambulo pelo melhor mercado de Lisboa. Que nas manhãs de sábado funciona também como ponto de encontro dos moradores do bairro. 

 

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Passei por lá ontem, já depois das onze: ainda havia. Pedi meia dúzia.

Ia com a intenção de preparar um risoto de cogumelos para o almoço. Passei pelo supermercado para me abastecer do que faltava tendo também em vista as ementas da semana que vai seguir-se.

Mas à entrada do Pingo Doce encontrei um grupo de voluntárias do banco alimentar: mudei de ideias. Enchi um saco de compras - massas, arroz, enlatados - e deixei-o com elas. Nada trouxe para mim. 

 

Sobravam as chamuças. Serviram-me de almoço e jantar (jantei cedo, aguardando a final da Liga dos Campeões). Na melhor companhia líquida possível que uma chamuça pede: cerveja, geladinha. Bebo pouca cerveja, mas agora é sempre desta marca: Robert Doms. Porquê? Por ser da Ucrânia. 

Eis a globalização à mesa. Comes de origem goesa, via Moçambique, e bebes do extremo leste da Europa, agora terra de combate. Combinação perfeita para o sábado mais quente deste ano que tem andado tão enevoado.

Slava Ukraini!

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Comer (1)

Menemen, petisco turco fácil de fazer em casa

Pedro Correia, 22.05.22

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Há umas semanas, o José Teixeira falava aqui de um prato que vai servindo para desenrascar nos momentos de crise, baptizado aliás assim mesmo. Crise. Batatas fritas e um ovo estrelado. Popularizou-se naqueles anos da inflação galopante, em que expressões como "apertar o cinto" constavam do quotidiano português. Havia bandeiras negras a assinalar ilhas de fome. E pela primeira vez o terrífico conceito de "salários em atraso" se foi banalizando entre nós.

Somos muito daquilo que comemos. E temos hoje a certeza que não só pela boca morre o peixe: pode acontecer-nos o mesmo se abusamos da carne vermelha, dos doces e do sal, por exemplo. Há uns anos uma senhora foi crucificada nas redes ditas sociais só porque se atreveu a afirmar que não podíamos comer bife todos os dias. Credo, que horror, a desalmada senhora queria condenar os compatriotas à fome... Afinal limitou-se a proclamar o que qualquer dietista ou nutricionista perora de manhã à noite, entre acenos de concordância. 

Serve este intróito para dizer que ando a comer cada vez menos carne. Por opção própria. E dou-me bem com isso. Mas não só: cada vez cozinho mais em casa. Os benefícios financeiros desta opção são óbvios. E também para a saúde: sei sempre o que como e os ingredientes que utilizo. Morar perto de um dos melhores mercados de Lisboa facilita-me a aquisição de peixe e vegetais. Por ser frequentador assíduo do mercado percebo como os preços têm vindo a subir (a "escalar", como agora papagueiam os imbecis nas pantalhas). Peixe, portanto, também só de vez em quando.

 

No ano passado, falei aqui do que vou cozinhando. Nessa altura ainda não constava da minha ementa regular o menemen turco - exemplo clássico de comida de rua que encontramos em qualquer ponto de Istambul, por exemplo.

Este que invoco hoje: tornou-se um dos pratos que preparo com mais frequência. Simples, fácil, barato. Sem carne. E permite aproveitar pão com algum atraso.

 

Basta picar meia cebola - minha medida habitual - numa frigideira que começou por levar uma colher de sopa de azeite e outra de manteiga (prefiro creme vegetal, dos que servem para barrar o pão). A cebola refoga em dois minutos, com chama alta. Logo é reforçada por tiras de pimento vermelho, acrescidas de tomate em pedaços e duas colheres de polpa de tomate.

Baixo a chama, vai cozinhando durante sete minutos. Enquanto recebe temperos: pimenta moída, orégãos, meia colher de chá de paprica, umas gotas de molho inglês. 

Vou cortando fatias de pão - que pode ser de véspera ou de antevéspera - para ocupar a base do prato. E bato um ovo, que será envolvido na frigideira. Ali fica, abraçado à tomatada, durante três minutos. Convém ir mexendo. 

Depois é só derramar o conteúdo da frigideira no pão do prato. Salpico com salsa e acompanho com nacos de queijo feta: combina da melhor maneira com tudo o resto. Por vezes enfeito com azeitonas cortadas em metades.

 

Os ingredientes variam conforme os dias. Além dos pimentos, costumo juntar cogumelos laminados, por exemplo. Os indefectíveis amantes da carne podem adicionar raspas de chouriço.

Será prato de crise. Mas garanto que sabe sempre bem. E volto a manifestar a minha concordância com a tal senhora, outrora tão vilipendiada por aves canoras a pipilar no Twitter: não podemos comer bifes todos os dias. Nem devemos.

Fim de semana (13)

Pedro Correia, 18.12.21

 

Dois ou três anos antes da pandemia, comecei a ganhar gosto pela cozinha. Não enquanto apreciador de petiscos, pois sempre cultivei essa faceta, mas enquanto cozinheiro. Gosto aliás da palavra cozinheiro, agora tão em desuso porque os profissionais do ramo preferem intitular-se "chefes", com a palavra escrita à francesa para parecer très bien. Alguns fazem-no só para esmifrarem os clientes com maior requinte. 

Com os sucessivos confinamentos e as acrescidas dificuldades em abastecer-nos de comida já confeccionada fora de portas, intensifiquei o meu gosto pela culinária. Gosto de frequentar mercados, gosto de procurar receitas, gosto de planificar ementas, gosto de reunir os ingredientes, gosto de estar perto do fogão. 

Como já tinha anotado aqui, passei a cozinhar quase todos os dias. E - sem falsas modéstias - prefiro comer aquilo que cozinho. Reduzi drasticamente as minhas idas a restaurantes e, quando os frequento, não têm sido raras as vezes em que dou por mim a pensar que sou capaz de fazer melhor.

Pelo que verifico nas minhas navegações internéticas, comer com critério e bom gosto é hábito em desuso. Falei aqui em tempos de umas dondocas que aterraram num restaurante lisboeta especializado em comida goesa para «ficarem a conhecer» enquanto rejeitavam tudo quanto fosse picante. Acabaram a comer bife com batatas fritas.

Lembro-me sempre delas quando tropeço nos imbecis que vão pavonear-se no Tripadvisor comentando os bitoques demasiado bem passados ou as alheiras com batatas fritas em óleo de duvidosa qualidade que acabaram de manducar numa baiuca qualquer, armados em gourmets de fancaria. Sem perceberem que apenas exibem ignorância: quem abanca num restaurante para mastigar bitoque ou alheira - aquilo a que costumo chamar "comida de taxista" - é porque nem isso sabe preparar em casa. 

 

Chega outro sábado, é tempo de adquirir víveres e planificar os dias gastronómicos que vão seguir-se. Hoje irei experimentar frango no forno com canela e limão. Não há semana em que não experimente pelo menos uma receita nova: faz parte dos meus pequenos truques para colorir o quotidiano.

Nos próximos dias irei repetir algumas destas que agora partilho convosco. Com votos de boa semana pré-natalícia. Bom apetite!

 

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          Arroz de cabrito                                                              Raia alhada

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                                             Bife de atum com pimentos, tomate e batatas salteadas

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      Fettuccine all'arrabbiata                                                  Arroz de chouriço

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            Frango na púcara com cenouras e ervilhas                 Espetadas de salmão com grão-de-bico

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                                Fusilli com tiras da vazia, cogumelos laminados, tomate seco e manjericão

Mandar vir

Maria Dulce Fernandes, 17.06.21

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Levar a vida a correr ou pertencer ao culto do menor esforço?

Antigamente… bem, sejamos realistas, antigamente era um massacre!

Alvorada às cinco e meia, prepararmo-nos, preparar as crianças, preparar papas, engolir um café, mala à tiracolo, saco ao ombro, marsúpio ao peito.

Apresentar… filhos!!! E toca a correr avenida abaixo para o comboio, ansiando pelas folgas semanais. Ansiando? Porquê? Ou eram compras no super, ou cozinhados, ou manobrando aquele instrumento de tortura, criado para escravizar o belo sexo, chamado ferro de engomar.

Um massacre diário. Uma tortura semanal.

Chegadas em casa, pelas oito da noite, cozinhar era a última vontade, aquela que passamos em testamento para quem vier depois. Ah pois! Depois, não vem seja quem for, por isso se queres comer, olha… cozinha!

Está claro que todas estas arestas se vão limando com o tempo e passa muito por cultivar no cara-metade o gosto pelo malabarismo dos tachos e panelas, mesmo sabendo que não sabe fritar, ou cozer, ou mexer um simples ovo.

Mandar vir significava chegar a casa e ter tudo por fazer porque, por exemplo, estava a dar o Sporting na TV, e não conseguir ficar calada sentida que era a injustiça.

Mandar vir tem  presentemente todo um novo significado.

O que é o jantar? Não sei! O que te apetece? Olha… Mandamos vir!!

A oferta e a procura são muito equiparadas e há preços que compensam o tempo e o trabalho.

Se a qualidade e a quantidade não são importantes  porque não mandar vir?

É comida? É sim. É variada? É sim. É boa? Meh… no máximo escapatória.

E cozinhar? A arte da culinária, a 12.ª arte?

Muito provavelmente entrará em desuso, sendo apenas praticada na clandestinidade por um punhado de resistentes que se recusam a mandar vir.

Diário do coronavírus (10)

Pedro Correia, 15.05.20

 

Os restaurantes reabrirão na próxima segunda-feira. Não todos: cerca de um terço permanecerão fechados. Os proprietários decretaram falência, não aguentaram dois meses sem receitas, recusam acumular mais prejuízos. Porque, mesmo com a reabertura agora anunciada, os tempos serão muito difíceis. As pessoas desabituaram-se de comer fora e mantêm sérios receios sobre o rumo da pandemia. Quem não arrisca, não petisca - diz o ditado. Aqui é ao contrário: muitos dispensam o petisco, continuarão sem arriscar.

Tenho-me questionado, por estes dias, como será angustiante o quotidiano daqueles (ou daquelas, usemos o léxico em voga) que não cozinham. Conheço gente que não sabe estrelar um ovo, que é incapaz de fritar um bife, que ignora como se coze arroz. Nas filas das caixas de supermercado (soa já a antigo escrever assim), habituei-me a identificar as pessoas que cozinham por aquilo que compram. Se levam carne, peixe, ovos, legumes frescos - isso constitui um sério indício de que não se atrapalham entre panelas e frigideiras. Quem só leva latas e comida pré-confeccionada, evidencia elementar falta de perícia na cozinha. É o caso de muita gente jovem. Incluindo um número crescente de mulheres, algo impensável em gerações anteriores. 

 

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Se algo me trouxe de bom este já longo período de reclusão imposta pela força das circunstâncias, foi a redescoberta do prazer de cozinhar. Que inclui a planificação de ementas e a aquisição de víveres em função delas, além da preparação dos pratos em contínuas experiências culinárias para sacudir a modorra da rotina. Experiências bem-sucedidas, devo confessar com um grão de orgulho. E devidamente recompensadas, desde a fase em que irresistíveis odores vão invadindo a cozinha até ao momento em que a travessa chega à mesa. 

 

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Como já me puxa ao apetite enquanto escrevo estas linhas, apetece-me recordar aqui algumas das iguarias que tenho confeccionado com mais frequência nestas nove semanas sem frequentar restaurantes. 

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                                                                            Arroz de chouriço                                                                                                                           caldeirada de raia.jpg                                                                          Caldeirada de raia

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               Espargos, presunto e ovos                                Frango com mostarda e vinho do Porto

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           Massa com requeijão e cogumelos                    Ovas com pimentos e  milho doce

 

Acompanhei-as, por vezes, com leituras. De escritores gastrónomos, como Rex Stout ou Vásquez Montalbán. Ou Mario Vargas Llosa, que faz reiteradas e sempre entusiásticas referências à boa mesa. Já para não falar em vultos da nossa literatura, como o incomparável Aquilino Ribeiro, que se regalava com um petisco bem confeccionado, empurrado por pinga a preceito.

Aqui ficam três citações, com a devida vénia, ao mestre que nos legou monumentos à língua portuguesa e expressivas homenagens à arte culinária:

De Quando os Lobos Uivam: «Filomena tinha-lhes um bom caldo de grão-de-bico adubado com pespé de cerdo e uma arrozada de coelho bravo. Comeram-lhe bem, beberam-lhe melhor.» (p. 95).

De Volfrâmio: «Na trempe, como muito bem calculara, frigia uma boa febra de porco com fígado do mesmo, o fígado do suíno beirão que é melhor que de vitela e se dissolve formando um molho sobre o grosso que é o regalo dos regalos.» (p. 221)

D' A Casa Grande de Romarigães: «Desde esse momentinho entregaram-se gostosamente à tasquinhação. O Lopes Calheiros trazia um lombo de vinha d'alhos, que era a primeira maravilha do Minho gastronómico. E estavam discorrendo sobre receitas culinárias - não há como o arroz de lampreia, se lhe adicionarem uma colher de manteiga de pato; uma posta de salmão com salada de alface e rodelas de cebola tenra vale um ano de Paraíso, hem, Padre Tirteu? Deixem lá, perdiz com couve murciana fermentada bate todos os petiscos inventados e por inventar.» (pp. 260-261)

 

Grande Aquilino: depois dele, e de Agustina, quase só encontro escritores enfastiados cá na terra. Matutam imenso, mas manducar não é com eles.

Ora vão por mim, caríssimos: fastio, nem vê-lo: haja apetite, haja saúde. E que o vírus se mantenha à distância.