O legado (20)
SIC, 5 de Janeiro
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SIC, 5 de Janeiro
É uma daquelas ideias soltas que nos assalta de vez em quando: a dada altura teremos feito algo pela última vez sem o sabermos, de tal forma que o mais provável é nem nos lembrarmos de tal ocasião por o seu momento não ter sido memorável. Lembramo-nos de inúmeras vezes em que brincámos na rua, em que saímos para o bar do costume, em que juntámos o grupo todo para um serão de conversa nas noites quentes de Verão - mas não nos lembramos do momento exacto em que o fizemos pela última vez.
Em Setembro assinalarei os vinte anos da minha vinda do Alentejo para Lisboa. Foram quase duas décadas a fazer viagens regulares de comboio entre a capital do país e a minha pequena aldeia natal no interior Sul. No primeiro par de anos que cá passei, o percurso era feito da estação da aldeia até ao Barreiro, sendo então a travessia do rio concluída de barco (e ainda apanhei os velhos barcos, apesar de ter beneficiado da transição para os catamarãs mais modernos). Era o tempo do extinto Inter-Regional que percorria toda a linha do Sul desde a margem do Tejo até à margem do Guadiana em Vila Real de Santo António. Esse comboio ainda tinha carruagens com compartimentos, que eu e os meus amigos por vezes conseguíamos ocupar nas idas para baixo (para cima não tínhamos hipóteses, claro). Às Sextas e aos Domingos o comboio enchia-se de rapazes e raparigas de dezoito, dezanove, vinte anos - estudantes da universidade e tropas no serviço militar. Hoje serão menos, uns e sobretudo outros.
No seguimento do Euro 2004, da travessia ferroviária do Tejo e da electrificação da Linha do Sul, vimos o "comboio da ponte" matar o Inter-Regional - com a ligação entre as estações centrais de Lisboa e o Pinhal Novo concretizada, a CP colocou automotoras eléctricas a fazer o percurso entre esta localidade do distrito de Setúbal e Faro, com automotoras mais antigas a assegurar as restantes ligações no Algarve. Não me lembro ao certo de quanto tempo durou esta solução, mas lembro-me bem de como acabou - com a CP a mudar os comboios para horários menos convenientes, até eliminar as ligações por uma "falta de procura" mais auto-inflingida do que qualquer outra coisa. E assim morreram pela segunda vez dezenas de pequenas estações e de diminutos apeadeiros - primeiro quando as instalações foram encerradas por falta de pessoas, e depois, em definitivo, quando os comboios deixaram de lá parar. Quem deles precisasse teria de se deslocar para longe - Alcácer do Sal, Grândola, Funcheira, Messines - para apanhar o Intercidades. No meu caso, o destino era a Funcheira, esse velho entroncamento votado à irrelevância pela desertificação inexorável do interior alentejano e pelo fim quase criminoso da ligação ferroviária a Beja, a nossa bela e longínqua capital de distrito. Há 30 anos podia ir e vir - como fui e vim, tantas e tantas vezes - de comboio da aldeia para Beja; uma das minhas memórias mais antigas é dos campos infinitos de girassóis que o comboio atravessava, um mar amarelo lindíssimo a contrastar com o azul profundo do céu alentejano. Não sei sei ainda se cultivam girassóis algures entre Ourique e Beja; mas se houver, ninguém os poderá apreciar da janela do comboio.
Quis a sorte, ou uma rara insistência dos presidentes das Juntas de Freguesia da minha região, que a estação da minha aldeia conhecesse uma ressureição parcial. Afinal, a Funcheira fica ainda no concelho de Ourique, e ficava mal a uma empresa pública como a CP, paga por todos nós, ter comboios a passar pelo maior concelho em território do país - Odemira - sem lá fazer uma única paragem. A estação não reabriu, claro - na minha memória ainda guardo a imagem da antiga bilheteira onde o Sr. Marques vendia os pequenos rectângulos de cartão coloridos que davam acesso ao comboio, bilhetes a sério, nada dos talões de compra que hoje em dia passam por bilhetes em todo o lado, dos comboios aos cinemas; essa porta está definitivamente fechada -, mas o comboio voltou a parar lá. E assim a viagem de quarenta quilómetros que o meu Pai fazia para me ir buscar à Funcheira às Sextas-feiras (e mais quarenta quilómetros para me ir levar, necessariamente) foi reduzida para um breve passeio de dois quilómetros da porta de casa à estação. Mais conveniente seria difícil.
Mas essa conveniência foi-se desvanecendo, sobretudo com a degradação do serviço da CP. Em cerca de quinze anos de Intercidades tenho a sensação de que as carruagens continuam a ser as mesmas, apenas mais e mais sujas (vi coisas inacreditáveis nestes anos, e fiz viagens em condições impensáveis para um país com pretensões de desenvolvimento). Os atrasos são constantes, e de há cinco meses para cá sempre que quis ou precisei de ir à terra vi-me condicionado por greves. Percebo os motivos, e apoio - o direito à greve é fundamental. Mas nesta fase da minha vida, e sobretudo da vida dos meus pais, não posso mais ficar dependente dos humores de uma empresa pública tão essencial como mal gerida.
Os bilhetes que fotografei não terão sido da última viagem que eu e a Ana fizemos de comboio até à nossa terra - não tenho dúvidas de que, mais cedo ou mais tarde, por um ou outro motivo, recorreremos de novo ao Intercidades. Mas marcam a última viagem regular de comboio entre a Lisboa onde (ainda) vivemos e as aldeias onde crescemos, e das quais saímos há mais de vinte anos. Voltámos no Domingo, conversámos sobre o fim-de-semana, sobre a semana que se avizinhava, lemos em silêncio durante um bocado - a minha companhia de leitura foi o canadiano Peter Watts e o estimulante Echopraxia. Terei saudades daquelas duas horas e quinze minutos (fora atrasos) de pouca-terra-pouca-terra a ler, a escrever, a ver o meu belíssimo Alentejo a passar para lá das janelas. Também por isso faço questão de me lembrar desta última viagem.
20 de Janeiro de 2017:
19 de Novembro de 2019:
Electrificação da Linha do Algarve está atrasada dois anos.
22 de Janeiro de 2021:
- Boa tarde. Dê-me um bilhete para o próximo comboio. Quero ir junto à janela, de frente para a linha.
- Já só temos lugares de costas.
- Ah, mas eu enjoo sempre quando vou de costas.
- Lamento, minha senhora, mas só há de costas.
- Ai meu Deus, que sou capaz de vomitar durante a viagem.
(como é difícil entender as mulheres...)
Fui passar o fim-de-semana à terra, aproveitando a passagem por lá tanto da minha irmã como de um amigo de infância emigrado. Normalmente, a ida à aldeia não serviria de pretexto à bloga (só talvez pela açorda de marisco na Zambujeira do Mar, que continua extraordinária), mas quando ontem já preparava o regresso a Lisboa esta notícia do Público fez-me pensar se a viagem de Intercidades prevista para as 19:25 não se revelaria atribulada.
Comboio Intercidades atropela ovelhas e fica parado quatro horas
O comboio saiu de Lisboa pouco depois das 14h e chegará ao Algarve com quatro horas de atraso.
Em circunstâncias normais, um acidente desta natureza com o comboio que faz o percurso Lisboa - Faro não devia causar atrasos na composição que faria o percurso inverso horas mais tarde, mas quem viaja com frequência na CP sabe que hoje em dia as circunstâncias da ferroviária serão tudo menos normais. Se o comboio acidentado a ir para baixo fosse o mesmo comboio que devia voltar para cima mais tarde, e se não houvesse uma composição de reserva, o atraso seria inevitável. Sabendo que a minha namorada estava nas imediações de Sete Rios, pedi-lhe que passasse na estação e tentasse saber alguma coisa.
"Aqui não têm qualquer informação de atraso", diz ela pelo telefone. "Dizem que os comboios não são os mesmos, e que o comboio não bateu num rebanho de ovelhas, mas apenas numa ovelha".
Não fiquei especialmente descansado, mas não havia muito mais a fazer (e dei por mim a pensar quão grande teria de ser uma ovelha capaz de rebentar com uma locomotiva). Perto da hora fui para a estação, encontrei um antigo colega de escola e entretemo-nos à conversa. Como era de esperar, às 19:25 não vimos nenhum comboio atravessar o arco da ponte da muito arruinada Estrada Nacional 266, logo antes de entrar na estação de Santa Clara - Sabóia. Os minutos foram passando. Nada de comboio, e nada de informação - a estação encontra-se há muito encerrada, funcionando apenas como apeadeiro, pelo que não há um empregado a quem se possa perguntar algo. Os altifalantes permaneceram em silêncio. O aparelho de contacto estava avariado ou desligado - premia-se um botão, ouvia-se um pi-pi-pi, e nada. A "linha de apoio" da CP continua muda - imagino que seja mais fácil comunicar com Proxima Centauri do que obter "apoio" da ferroviária. Perto das 20:00 (já com meia hora de atraso, portanto), lá soou qualquer coisa nos altifalantes roucos da estação: que ia chegar um comboio Intercidades às 20:30, perdão, às 20:10, e mais algumas palavras imperceptíveis. Mas era melhor do que nada - era, finalmente, uma informação.
Só quando vimos um comboio a vir de Norte quando devia vir de Sul é que percebemos mesmo o que se passava.
O comboio parou e, em menos de nada o revisor viu-se rodeado por todos os passageiros que aguardavam em Santa Clara - Sabóia. E esclareceu: aquele era o comboio que saíra de Lisboa pouco depois das 14:00 e que tivera o tal incidente com a ovelha ou as ovelhas. E aquele era também o comboio que partiria de Faro com destino a Lisboa, e que devia parar naquela estação às 19:25 (estaríamos perto das 20:15). Considerando que a viagem entre Sabóia e Faro leva uma hora e quinze minutos, é fazer as contas (para recordar as sábias palavras do Guterres) ao tempo que ainda teríamos de esperar ali, no meio de nenhures, numa estação fechada e muito pouco abrigada, com a noite já a cair. Perante os protestos, lá balbuciou um "eu entendo, mas não é culpa minha", enfiou-se na carruagem e partiu rumo ao Algarve.
Sendo da terra, pude voltar a casa dos meus pais para jantar (os outros passageiros não tiveram a mesma sorte), antes de regressar à estação para tentar a única alternativa a uma espera longa e incerta, ou ao adiar da viagem para o dia seguinte: apanhar um comboio "especial" que a CP faz às Sextas de Lisboa para Faro, e aos Domingos de Faro para Lisboa, e que devia parar ali às 21:25. Lá chegou com cinco minutos de atraso: uma automotora de três carruagens com todos os lugares ocupados e com dezenas de passageiros amontoados pelo chão. Foi assim que voltei da província para a capital neste Verão de 2019: sentado no chão de uma automotora, felizmente entretido a ler banda desenhada (ao contrário dos telemóveis e dos tablets, os livros e as bandas desenhadas nunca ficam sem rede ou sem bateria); à minha frente, um velhote de pé - saiu na Funcheira, sorte dele -, um homem de meia idade sentado no chão a olhar para o vazio e outro, de pernas cruzadas no chão, a fazer qualquer coisa num computador portátil. Dois estudantes sentavam-se nos degraus da porta e falavam de futebol, passando de craques recentes a partidas disputadas décadas antes de terem nascido. Havia crianças e idosos a permanecer de pé, gente sentada em cima de malas e no chão, a desviar-se sempre que alguém queria chegar à casa de banho, a levantar-se quando a posição se tornava insuportável. O revisor, esse, nunca apareceu - e imagino que terá mantido o mínimo contacto possível com os passageiros.
Lá cheguei a Lisboa minutos antes da meia-noite. E em Sete Rios, onde ninguém iria embarcar naquele comboio, já se sabia qualquer coisa: que o comboio Intercidades procedente de Faro com destino a Lisboa Oriente circulava com um atraso de três horas e trinta e tal minutos, e que a hora prevista de chegada seria à uma e dezoito da manhã (mais o pedido de desculpas "pelos incómodos causados"). Uma informação que, cinco horas antes, teria decerto sido útil para os passageiros que esperavam em Sabóia - e, imagino, nas Amoreiras e nas Ermidas (talvez na Funcheira ou em Messines se soubesse de alguma coisa, o que não será de todo garantido), mas que ali pouca utilidade teria. Quem habita no interior - naquele interior só lembrado quando há desgraças - não merece comboios pontuais, e muito menos informação sobre os atrasos. Esperem ou amontoem-se nos comboios, se quiserem. Da próxima vez que o Marcelo e o Costa se lembrarem de ir fazer propaganda para o interior, sugiro que viajem como eu e muitos outros viajámos hoje: sentados durante no chão sujo de uma automotora durante horas. Talvez lhes servisse de lição antes de dizerem asneiras e fazerem promessas vazias.
O amigo emigrado que encontrei no fim-de-semana disse-me que na Alemanha, onde vive, os passageiros ficam fulos se um comboio se atrasa dois minutos. Pensei muito nisso hoje (ontem) à tarde. Talvez a culpa de todos estes atropelos até seja nossa: bufamos pelos atrasos e pelas supressões constantes, mas acomodamo-nos. Não reclamamos, não partimos a loiça, não abanamos umas carruagens, não fazemos um motim numa bilheteira, não cobrimos um ministro ou um secretário de estado de alcatrão e penas. Nada. Encolhemos os ombros a cada declaração autista de um (ir)responsável político. Gracejamos quando o atraso se repete (e repete). Cagamos umas larachas - para usar uma expressão da terra - nas redes sociais e ficamos por aí, apaziguados pela falsa empatia dos likes e dos emojis furiosos. Enfim, seremos ovelhas, também - e nesse sentido até teremos talvez sorte pelo atraso dos comboios, que pelo menos assim não nos colhem na linha.
ADENDA: Devia ter transcrito este post para as folhas do livro de reclamações, já que me saiu bem melhor. Pormenor interessante: um utente que queira fazer uma reclamação na Estação de Sete Rios terá de escrever de pé, sobre o balcão estreito, quase em cima de quem precisar de utilizar a bilheteira. Enfim, dadas as condições de viagem que a CP me proporcionou ontem, não deixa de ser ironicamente adequado ver-me obrigado a passar longos minutos de pé a preencher os formulários e a descrever o ocorrido.
Linha do Douro. Apanho de manhã o comboio em Ferradosa para seguir até ao Pinhão e mergulho na janela para um banho de beleza inesquecível. Esta linha tem a responsabilidade imensa de revelar ao mundo um dos nossos maiores tesouros paisagísticos. Em termos de interesse turístico, está no top.
Tirei da mochila uma daquelas barritas de cereais com mel, práticas para trazer em viagem. Com o calor estava peganhenta, de modo que quando terminei o meu frugal repasto decidi passar pelos lavabos do comboio para lavar as mãos. Este é o momento em que tenho de me desculpar por não me ter lembrado de voltar para trás, tirar o telemóvel da mochila e fazer uma foto para provar que o que descrevo a seguir é em rigor o cenário que se me deparou mal abri a porta: No chão jazia a tábua da sanita. O rolo de papel higiénico parecia ter sido desenrolado por um gato. A olho diria que estavam dois metros de papel espalhados pelo chão. O cheiro era tão nauseabundo que optei por travar a porta com o pé, para não ter que snifar aquele concentrado de urina em ambiente fechado. Cereja no bolo: água? Não havia.
Note-se que fiz este passeio de manhã, estava o comboio em circulação há um par de horas, se tanto. Por isso nem o argumento da sobrecarga de utentes pode valer à CP uma boa desculpa. Simplesmente vergonhoso!
Sim, pelos vistos a CP tem um serviço que permite a entidades públicas e privadas fretarem comboios. Sim, é possível que esses comboios tenham prioridade na passagem em relação às composições regulares que percorrem as linhas (não sei se têm ou não, nem julgo que esse seja o ponto pertinente). E não, em circunstâncias normais não seria sequer notícia o facto de o Partido Socialista fretar um comboio para levar os seus militantes em excursão até à festa do partido em Caminha - aliás, seria sem dúvida uma excelente escolha. O problema é que as circunstâncias presentes da CP e do seu serviço ferroviário (passe a generosidade) são tudo menos normais - e não houve uma alma no PS capaz de dizer em voz alta que uma viagem de ida e volta de Lisboa e Pinhal Novo até Caminha num comboio fretado à CP talvez não fosse a melhor ideia quando a CP tem sido notícia pelos atrasos e pelas supressões de comboios, pelas avarias constantes, pela falta de asseio nas composições, pelo ar condicionado avariado em dias de muito calor, pela falta de informações, pelo serviço Intercidades a ser feito por automotoras do serviço Regional, e pela degradação generalizada do serviço que presta de Norte a Sul do país.
Bem vistas as coisas, não admira que tal não tenha ocorrido a ninguém. Abunda muita coisa no PS de António Costa - arrogância, prepotência, incompetência, esperteza saloia, uma profunda ignorância e um ainda mais profundo desprezo pelos cidadãos. Já a vergonha, essa, é mais difícil de apanhar por lá do que um comboio a horas na Linha do Algarve. Parafraseando Elisa Ferreira, "os comboios são da CP, são do PS".
Já não será talvez notícia o descalabro do serviço ferroviário da CP. São os atrasos diários e as supressões frequentes de comboios, com nenhum aviso e poucas alternativas. São as saunas forçadas nos dias mais quentes, em composições cujos sistemas de ar condicionado não funcionam quando as temperaturas exteriores ultrapassam os 40º (algo que, convenhamos, não é exactamente incomum em boa parte do país durante os meses de Verão). É a falta de limpeza de estações e carruagens - ainda há umas semanas, na viagem que fiz no Intercidades que liga Lisboa a Faro, deparei-me com uma casa-de-banho acabada de abrir coberta, literalmente, de mijo e merda. É a falta de manutenção dos comboios e a utilização de automotoras dos serviços Regionais em percursos feitos pelos Intercidades, sem que a redução de qualidade seja acompanhada pela redução do preço do bilhete*. E, claro, é a indiferença generalizada de quem está no poleiro para com a degradação evidente e inegável dos comboios de Portugal. Como disse, talvez nada disto seja notícia - mas nem por isso deve deixar de ser noticiado. Merece por isso destaque o Público pelas excelentes reportagens que tem vindo a publicar sobre o assunto, como se pode conferir na etiqueta comboios. Durante esta semana serão publicadas cinco reportagens sobre o serviço em algumas linhas de comboio, no dossier "A ver passar comboios" - arrancou hoje com a ligação cada vez mais precária no que resta da Linha do Alentejo*, num texto que deve ser acompanhado por esta excelente reportagem fotográfica. Aguardo pelas restantes com expectativa.
* No início do Verão, e quando o serviço da CP já estava a descarrilar, houve quem fosse para a comunicação social reclamar pelo fim da concessão à Fertagus - que presta um bom serviço, ainda que caro, aos habitantes da margem Sul do Tejo - e pela entrega desse percurso... à CP. Ele há coisas do arco da velha.
** Sobre a linha do Alentejo, convém não esquecer que a ligação directa por Intercidades entre Beja e Lisboa acabou no início de 2011, e a linha entre Beja e a Funcheira - e o Algarve, portanto - foi suprimida no final de 2011. Curiosamente, em 2011 foi inaugurado o Aeroporto... de Beja. Isto talvez já nem seja do arco da velha.
Parece que a CP vai fazer greve no Natal e no Ano Novo, algo que só será notícia para quem tenha andado muito distraído durante este ano. Seria certamente interessante comparar o calendário das greves de 2012 da CP com o calendário civil, e tomar nota de quantas greves coincidiram - puro acaso, certamente - com feriados, fins de semana prolongados e festividades avulsas. Para 2013, antes de se tentar fazer ver aos trabalhadores da CP o transtorno que causam a milhares de pessoas, talvez fosse boa ideia explicar-lhes a diferença entre os conceitos de "greve" e "férias", que pelos vistos estão muito confusos naquelas cabecinhas.
Gare do Oriente, meio dia menos dez. Um casal de meia idade e aspecto humilde acerca-se da bilheteira: "Podemos comprar aqui dois bilhetes para o comboio das quatro e tal para Irún?" Resposta seca e ríspida do funcionário: "Aqui, não. Só no guichê do lado, que está fechado, como podem ver. Só abre às 12 e 40."
-- E então o que podemos fazer? -- insiste o homem, provavelmente emigrante em França, de chapéu na mão.
-- Se querem comprar agora o bilhete terão de ir a Santa Apolónia.
Assim trata a CP os seus utentes: remetendo-os de um extremo ao outro de Lisboa. Só porque um guichê não está aberto por volta do meio-dia e o funcionário do guichê do lado pode vender bilhetes para uns destinos mas não para outros. Como se vivêssemos na era pré-digital, quando a informação não circulava em rede.
O casal lá se afastou, melancólico e cabisbaixo, procurando um lugar abrigado na inóspita gare para entreter o tempo. Faltavam 50 minutos para o guichê abrir e mais de quatro horas até o comboio passar.
Um quadro de meados do século XX em pleno século XXI. Exceptuando a noção elementar de serviço público: essa sim, perdeu-se pelo caminho. Descarrilou, para usar um termo mais apropriado à situação.
Diz o nosso João Campos aqui que diz o Daniel Oliveira no Expresso: «Não gostam da luta dos maquinistas? Aprendam a conduzir comboios.»
Ora, diz também o nosso João Campos — e diz muito bem — o seguinte: «No meu caso, e no caso de muita gente, não gostar da luta dos maquinistas (não é isso que está em causa, mas vá) não significa aprender a conduzir comboios (mesmo que o quisesse fazer, quem seria despedido para eu ter trabalho?), mas sim ser forçado a optar por transportadoras rodoviárias privadas.» E acrescenta que, «mais dia menos dia, com mais greve e menos comboio, a CP estoira de vez, e os maquinistas — estes mesmos que boicotaram o Natal de milhares de pessoas e que passaram 2011 a transtornar a vida a milhões — ficam desempregados».
O prognóstico é muito aceitável para uma mente linear. Já para o Daniel Oliveira talvez não seja, porque dá-se o caso de tudo isto resultar da actual gestão política do Estado, que ele parece que não aprecia muito.
Mas não faz mal. O Daniel não gosta da gestão do Estado? Ele que aprenda a fazer-se eleger para conduzir o país. Palpita-me que eu aprenderei muito mais depressa a conduzir comboios.
Diz o Daniel Oliveira no Expresso:
Quem defende a inevitabilidade da lei do mais forte só tem de aguentar. Não gostam da luta dos maquinistas? Aprendam a conduzir comboios.
A escola argumentativa do Bloco deve realmente ser fascinante, mas deixemos isso de lado por agora. A "luta" dos maquinistas foi em 2011 o calvário de milhares de portugueses. Houve mesmo algum mês em que os maquinistas não tenham feito greve? Note-se que o problema não é o direito à greve, é o abuso da greve, que neste caso em particular já passou há muito tempo todos os limites do ridículo. Se a lei prevê o direito à greve, também prevê a existência de serviços mínimos, coisa que os maquinistas nunca se preocupam em assegurar devidamente. Exemplo mais recente: no dia 23, houve um comboio no sentido Lisboa - Faro, e outro no sentido inverso. Mas nos dias 24 e 25 não houve um - um - comboio de longo curso a circular a Sul do Tejo (devem ser amigos do Mário Lino, os maquinistas). E no dia 26, quando supostamente já devia ter terminado a greve, apenas houve um comboio dos três previstos no sentido Faro - Lisboa. Naturalmente, estou a partir do princípio de que o Alentejo e o Algarve são regiões dignas de ter serviços mínimos, mas o mais certo é estar enganado.
Voltando à frase do Daniel Oliveira. No meu caso, e no caso de muita gente, não gostar da luta dos maquinistas (não é isso que está em causa, mas vá) não significa aprender a conduzir comboios (mesmo que o quisesse fazer, quem seria despedido para eu ter trabalho?), mas sim ser forçado a optar por transportadoras rodoviárias privadas. Foi o que tive de fazer para poder passar o Natal com a família e regressar a Lisboa a tempo de trabalhar na Segunda-feira. E não terei certamente sido o único. Podendo escolher entre o autocarro e o comboio, não hesito - antes o comboio, mil vezes o comboio. Mas a CP, com os seus especialistas em criar horários que não servem ninguém e eliminar horários que são realmente úteis (como os últimos Intercidades do dia para o Sul), já consegue por si só prestar um péssimo serviço às populações; com as suas greves constantes, os maquinistas só contribuem ainda mais para o mau serviço da CP, levando mais e mais gente a optar por o transporte rodoviário, público ou particular. É bom de ver onde isto vai acabar, mais cedo ou mais tarde.
A ironia é que, mais dia menos dia, com mais greve e menos comboio, a CP estoira de vez, e os maquinistas - estes mesmos que boicotaram o Natal de milhares de pessoas e que passaram 2011 a transtornar a vida a milhões - ficam desempregados (pelo menos os de longo curso). Da minha parte, que desde miúdo adoro comboios e que não encontro meio de transporte que se compare ao velhinho pouca-terra (nem o carro), lamento que assim seja. No entanto, quando tal acontecer, que não se queixem os maquinistas: a cama onde se vão deitar também foi feita por eles.
Aqui.
Lisboa – Castelo Branco em primeira classe. Chego ao cais e não encontro diferenças entre as carruagens. Depois noto que uma tem bancos de forro avermelhado, para satisfazer a noção de prestígio de quem cobra mais sete ou oito euros pelo trajecto. Infelizmente eu não procurava prestígio mas sossego — aspiração logo contrariada pela horda ululante que invade o compartimento. Claro, são os funcionários da CP e suas mulheres, filhos, noras e gatos, de sacos de plástico nas mãos, bifana entre os dentes, garrafão de vinho à ilharga e imprecações contra os gajos.
Os gajos que mandam neles. Os gajos que lhes permitem viajar gratuitamente à janela numa carruagem de primeira igual às outras, enquanto eu pago 23 euros encostado à coluna, de costas para a paisagem, suspirando em vão pela tranquilidade e pela vista que mais uma vez perdi. É sempre assim, só que nunca me lembro que é sempre assim.
Evidentemente, não culpo estes palermas. Tal como eles, também acredito que a culpa é dos gajos. Do gajo que dirige o marketing desta merda e ainda não percebeu nem quer perceber que alguns dos seus clientes precisam de trabalhar enquanto viajam. Do gajo que senta o cu no conselho de administração e nunca deve ter posto os pés num comboio, mesmo que mande numa empresa de transportes ferroviários. Do gajo responsável pelas relações laborais, que trocou aumentos por arranjinhos e prebendas em espécie de alcance familiar. Do gajo que nunca quis saber se era errado cobrar mais por um serviço que vale menos ou cortar linhas enquanto se sonha com o TGV. Do gajo que não quis saber se o site pelo qual pagou uma fortuna a um bandido qualquer amigo de um palhaço qualquer do seu partido de sempre aceita reclamações, excepto talvez no único browser que o gajo conhece.
A CP é o pior exemplo do que pode acontecer a uma empresa pública assolada por funcionários políticos e separada dos cidadãos. Merece bem o opróbrio e a ruína.
Já não me lembrava da extraordinária relação qualidade/preço das refeições servidas a bordo do serviço ALFA da CP. Creio que desta vez vou recordar-me durante muito tempo.
A confirmar-se, claro - com a CP, nunca é de fiar -, esta é uma excelente notícia: [Intercidades Lisboa-Faro] Novas paragens em Ermidas do Sado e Santa Clara. Já era tempo de o concelho de Odemira ter uma ligação à rede do Intercidades.
Deixem-me ver se percebi: «a CP ameaça com o fim do Comboio Histórico no Douro caso não encontre parceiros para ajudar a financiar este serviço que, este ano, custou 150.000 euros»? Há nisto alguns aspectos de que ainda estou a tentar recuperar.
1. Desde logo, a CP entrou agora numa fase em que lança (segundo a insuspeita Lusa) ameaças públicas. Isto requer que sejamos informados já sobre quem é a voz ameaçadora lá dentro.
2. Depois, a CP põe em causa a continuidade do comboio histórico se não arranjar parceiros que financiem o seu serviço. A gente é levada a pensar que a CP precisava que o Governo criasse uma Fundação do Comboio Histórico do Douro à sombra do Orçamento do Estado e que a coisa se resolvia, que é como quem diz: acabavam as ameaças.
3. Além disso, a CP põe-se a perorar por causa de 150 mil euros que a empresa pública diz ter gasto este ano com o serviço especial do Douro. Ou seja: parece que estamos perante uma CP de outro planeta e não perante aquela cujos prejuízos anuais se têm acumulado assustadoramente sem que lhe tenhamos escutado um único lamento pelo que isso custa a todos nós.
A minha dúvida não é menos assustadora: será que sempre vai em frente a compra da nova frota de carros de luxo para 13 directores da CP por quase o dobro do custo deste ano do comboio histórico do Douro?
Fotos — Caminhos de Ferro Vale da Fumaça
A propósito do post do nosso João Campos aqui por baixo (e deste de ontem da nossa Leonor Barros), acho muito pedagógico sublinhar mais este exemplo de comportamento ético que a CP nos dá: 13 carros de luxo encomendados para directores, porque toda a gente sabe que andar de comboio faz calo no sim-senhor dos macacos.
Parece que o Governo suspendeu a compra. Parece que o Governo não suspendeu os directores.
Não ia à terra desde Agosto. Andava desde meados de Setembro a planear por lá um fim-de-semana, que foi sistematicamente adiado - numa ocasião para assistir a uma apresentação, noutras por motivos de trabalho. Consegui, finalmente, marcar viagem para este fim-de-semana, mas acabei por, na sexta-feira, ter de pedir para sair uma hora mais cedo para poder apanhar o Intercidades que sai de Lisboa Às 17h20 com destino a Faro, que (ainda) pára na estação da Funcheira, no Alentejo. Isto porque a CP decidiu, uma vez mais, eliminar o último Intercidades do dia com destino a Sul, que partia da capital às 19h20.
Não percebo muito de gestão, mas não é preciso um mestrado para perceber o esforço enorme que a CP faz para prestar um mau serviço aos seus clientes - e para não ganhar dinheiro. Com destino ao Algarve, a CP tinha, diariamente, quatro comboios Intercidades - 10h20, 13h20, 17h20 e 19h20 - e dois comboios Alfa-Pendular - 08h42 e 18h42. Note-se que o serviço Alfa-Pendular não tem qualquer paragem no Alentejo (ao sair do Pinhal Novo, só volta a parar em Tunes), pelo que qualquer passageiro que tencione viajar para o Alentejo terá necessariamente de o fazer no Intercidades. A CP decide eliminar um comboio - e elimina justamente o último comboio diário com paragens verdadeiramente abrangentes. Podemos justificar a coisa com a necessidade de cortar custos, mas sendo este o objectivo, pelo menos à sexta-feira este seria sempre um serviço a manter, quanto mais não fosse pela enorme afluência de estudantes oriundos do Alentejo e do Algarve que estudam em Lisboa e vão frequentemente à terra no fim-de-semana, e também de pessoas como eu, que já não sendo estudantes, continuam a utilizar o serviço com alguma regularidade. A verdade é que o Intercidades das 17h20 na sexta-feira seguiu esgotado, e na estação da Funcheira - a única que serve a zona mais a Sul do Alentejo - saíram pelo menos 40 pessoas (que tinham boleia à espera, naturalmente - a Funcheira fica no meio de nenhures, e transportes públicos naquela zona são uma miragem).
Quando vim viver para Lisboa há oito anos, ia para o Alentejo às sextas-feiras no antigo Inter-regional Barreiro - Vila Real de Santo António das 19h30. Nunca vi esse comboio vazio - entre estudantes, tropas, pessoas que precisavam de vir a Lisboa e de regressar no mesmo dia, e pessoas que pretendiam apenas passar o fim-de-semana na terra, era até frequente ter alguma dificuldade em arranjar lugar sentado. Esse serviço acabou há muito - e a CP dedicou-se com afinco a destruir o serviço Regional do Sul até ao ponto em que estamos, com uma ligação Faro-Setúbal em horários ridículos que não servem para estudantes, trabalhadores ou militares. Parece ser a estratégia da CP para encerrar serviços - mudam os horários até à inutilidade, para justificar o encerramento com a "fraca procura". O Regional do Sul, palpite meu, deve estar entre os próximos.
Entretanto, quem deve ganhar com isto é a Rede Expressos, cujos autocarros até já têm Internet gratuita por Wi-Fi. E, claro, os directores da CP e empresas derivadas, que continuam a ganhar as benesses do costume à custa de todos nós, como mencionou a Leonor neste post.
«A conservação de um troço da Linha do Tua por voluntários e o "comboio-farmácia" são projectos para criar um novo modelo social dos caminhos-de-ferro — relatou o Movimento Cívico pela Linha do Tua (MCLT).» Portanto, isto não está a mudar, porque já o ex-ministro Mendonça queria comboios e mais comboios e, no fim, ficámos com menos comboios do que havia antes.
Bom... algo está a mudar: o ex-ministro Mendonça já não aparece nas televisões com balelas. Felizmente. De resto, Portugal já está a mudar: leiam a notícia toda a partir do link e vejam as ideias meritórias daquele MCLT, bem como a receptividade (mudança das mudanças) da CP às propostas.