Desconcerto
Quase todas as pessoas de qualidade com quem me cruzei atravessaram nas suas vidas períodos de dificuldades. Também conheci muitos videirinhos, que andavam sempre contentes. Há um poema de Luís de Camões, Esparsa ao Desconcerto do Mundo, cujos primeiros versos descrevem este fenómeno de forma exemplar:
Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
(…)
O poeta achava que este desconcerto era do mundo, não apenas português, mas o facto é que conheço pessoas de qualidade que, lá fora, cumpriram o potencial. Se tivessem ficado, estes indivíduos seriam como os outros, com as mesmas histórias de chefes tóxicos, frustrações acumuladas, trabalhos não reconhecidos; teriam sido ultrapassados pelo mandarete recomendado ou pelo medíocre temido; teriam sido bloqueados pela «apagada e vil tristeza» de um País que se arrasta na pantanosa incapacidade. Enfim, talvez o desconcerto seja mesmo do mundo: um pouco por todo o lado manifestam-se interesses poderosos, triunfam arrivistas e instalam-se coveiros de instituições. Certos conflitos estão a limitar as democracias e a transformar o exercício da liberdade em amálgamas indiferenciadas, sem identidade ou ética, onde os deuses do falso igualitarismo diluem e relativizam valores antigos. A sociedade fragmenta-se e o poder é efémero, a arte combate a beleza, cada tribo tem a sua interpretação da realidade. Admito que aquilo a que assistimos seja até a transição para um mundo melhor, mas o poema de Camões deixa a pairar a ideia de que o desconcerto é sobretudo sintoma de declínio ou da transformação do mundo dos fortes no mundo dos fracos, quando a esperança dos bons for substituída definitivamente pela tirania dos maus.