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Delito de Opinião

Passado presente (CCCXXIII)

Teresa Ribeiro, 21.05.11

Já fui a muitos encontros do género. De alguns gostei, outros desiludiram-me. Nem sempre é bom conviver com o passado assim que se esgota a adrenalina da primeira meia-hora. Mas este foi diferente, porque reuniu gente que eu não via desde o tempo em que esperava com impaciência por mim, de SG filtro nos dedos e bornal à tira-colo. De modo que reencontrá-los foi um daqueles paradoxos temporais que não se explicam. Com treze anos e a mostrar as fotos dos filhos. Casados, alguns pela segunda e terceira vez e ainda com medo de não saber dar o primeiro beijo.

O tempo fez-nos um favor, conservou-nos bem. Por isso foi fácil reconhecermo-nos, desembaraçar-nos dos fios de cabelos brancos, da atitude, das rugas de expressão, entre outra tralha que nos podia atrapalhar, e voltarmos a ser todos parvos.

Ainda hoje, quando me sinto mesmo feliz, faço coisas parvas. E agora, que penso nisso, acho que foi com eles que aprendi que felicidade, quanto mais parva, melhor.

Ando desde esse dia com uma miúda, que conheço de umas fotos bafientas, atrás de mim. Um dia destes tenho de voltar a pô-la no armário, deixar de procurar temas dos Bee Gees no You Tube e preocupar-me novamente com a execução do acordo financeiro e as eleições e o futuro, enfim com aquilo que interessa. 

No 90º aniversário de Abel Escoto

Teresa Ribeiro, 07.08.09

 

Quando penso na tua história, lembro-me inevitavelmente de Cine Paradiso. Posso dizer, pois fui testemunha privilegiada, que o teu caso de paixão pelo cinema nada fica a dever ao do Salvatore, desse filme encantado de Giuseppe Tornatore. Fazes hoje 90 anos, longe vai o tempo em que tu, ainda criança, corrias para o cinema de Castelo Branco, onde cresceste. Nessa época as sobras dos filmes eram vendidas para as papelarias. Estranho costume que teve o mérito de te dar acesso à matéria prima da tua arte.

Como é que se transforma uma caixa de sapatos, uns cordéis e umas lentes em máquina de projectar? Nunca percebi bem como é que isso te foi possível mas entendi perfeitamente que só uma paixão assolapada te podia levar a tais requintes de improvisação e a trocar umas tardes de futebol com a rapaziada por um quarto escuro e umas tiras de celulóide.

Depois, aconteceu o que estava escrito nas estrelas. Tornaste-te cameraman e fizeste de tudo. Foste o primeiro em Portugal a filmar a cores e em cinemascope e provavelmente um dos poucos do mundo a rodar um filme - o celebrado D.Roberto, com Raul Solnado e Glicínia Quartin - com uma câmara que resgataste, cheia de caliça e com as lentes riscadas, de uma capoeira de galinhas.

Histórias como estas tens às dúzias. A tua carreira como director de fotografia foi pautada pelo cinema que se fazia na época: depois do período de ouro da Tóbis, com os filmes dos anos 40, as décadas seguintes são duras. Não há dinheiro para investir, as produções são paupérrimas. Vive-se do desenrascanço, de dívidas, às vezes do ar. Fazer carreira no cinema foi nesta época, mais do que em qualquer outra, um acto de resistência. E não é de política que falo, mas de paixão romântica. 

Sabes, nunca te disse, mas seres o artista da família também fazia de mim em miudinha uma espécie de artista. Não tratava o Solnado, o Artur Semedo, o César Monteiro e o O'Neill e todos os outros de quem me falavas por tu, mas ao participar da tua intimidade ficava mais perto do mundo a que as "pessoas normais" não tinham acesso. Tornei-me, pois, por teu intermédio, uma artista por afinidade.

Incompatibilizei-me com os modelos de vida mais comuns - acredito que foi sobretudo por tua influência que fiquei avessa a gabinetes e secretárias e rotinas - e acabei numa profissão andarilha como a tua. Como hobby escolhi, é claro, a fotografia e como paixão, a par da literatura, só podia ter o cinema. E aqui estamos nós. Hoje completas 90 anos de uma vida cheia e eu deito contas à minha.

Fiquei com o teu vício. O de só querer fazer aquilo que me dá prazer. Isso nos tempos que correm é um luxo e um enorme risco. Mas quando vejo os teus olhos acenderem sempre que recordas as histórias que marcaram os teus dias, acredito que assim é que vale a pena. Parabéns, tio. Vê lá se apanhas o Manoel de Oliveira, que já vai  nos 100!