Quando penso na tua história, lembro-me inevitavelmente de Cine Paradiso. Posso dizer, pois fui testemunha privilegiada, que o teu caso de paixão pelo cinema nada fica a dever ao do Salvatore, desse filme encantado de Giuseppe Tornatore. Fazes hoje 90 anos, longe vai o tempo em que tu, ainda criança, corrias para o cinema de Castelo Branco, onde cresceste. Nessa época as sobras dos filmes eram vendidas para as papelarias. Estranho costume que teve o mérito de te dar acesso à matéria prima da tua arte.
Como é que se transforma uma caixa de sapatos, uns cordéis e umas lentes em máquina de projectar? Nunca percebi bem como é que isso te foi possível mas entendi perfeitamente que só uma paixão assolapada te podia levar a tais requintes de improvisação e a trocar umas tardes de futebol com a rapaziada por um quarto escuro e umas tiras de celulóide.
Depois, aconteceu o que estava escrito nas estrelas. Tornaste-te cameraman e fizeste de tudo. Foste o primeiro em Portugal a filmar a cores e em cinemascope e provavelmente um dos poucos do mundo a rodar um filme - o celebrado D.Roberto, com Raul Solnado e Glicínia Quartin - com uma câmara que resgataste, cheia de caliça e com as lentes riscadas, de uma capoeira de galinhas.
Histórias como estas tens às dúzias. A tua carreira como director de fotografia foi pautada pelo cinema que se fazia na época: depois do período de ouro da Tóbis, com os filmes dos anos 40, as décadas seguintes são duras. Não há dinheiro para investir, as produções são paupérrimas. Vive-se do desenrascanço, de dívidas, às vezes do ar. Fazer carreira no cinema foi nesta época, mais do que em qualquer outra, um acto de resistência. E não é de política que falo, mas de paixão romântica.
Sabes, nunca te disse, mas seres o artista da família também fazia de mim em miudinha uma espécie de artista. Não tratava o Solnado, o Artur Semedo, o César Monteiro e o O'Neill e todos os outros de quem me falavas por tu, mas ao participar da tua intimidade ficava mais perto do mundo a que as "pessoas normais" não tinham acesso. Tornei-me, pois, por teu intermédio, uma artista por afinidade.
Incompatibilizei-me com os modelos de vida mais comuns - acredito que foi sobretudo por tua influência que fiquei avessa a gabinetes e secretárias e rotinas - e acabei numa profissão andarilha como a tua. Como hobby escolhi, é claro, a fotografia e como paixão, a par da literatura, só podia ter o cinema. E aqui estamos nós. Hoje completas 90 anos de uma vida cheia e eu deito contas à minha.
Fiquei com o teu vício. O de só querer fazer aquilo que me dá prazer. Isso nos tempos que correm é um luxo e um enorme risco. Mas quando vejo os teus olhos acenderem sempre que recordas as histórias que marcaram os teus dias, acredito que assim é que vale a pena. Parabéns, tio. Vê lá se apanhas o Manoel de Oliveira, que já vai nos 100!