Padeço de um distúrbio da personalidade ainda não descrito, julgo eu, na literatura especializada: excesso de confiança em pequenos espaços fechados.
Descobri-o ontem em mim e para a sua manifestação concorreram dois factores:
A- Deito-me tarde e levanto-me cedo. Faço sempre um esforço para vir a casa durante a hora do almoço de modo a dormitar uns instantes. Bastam-me quinze, vinte minutos: mergulho funda e rapidamente no sono e venho logo à tona, devagarinho. Fico pronta para o resto do dia. Quando tal não acontece, tenho um momento difícil por volta das seis da tarde. Eu devia ser declarada inimputável entre as seis e as seis e meia nos dias em que não tenha sido possível reclinar-me para o meu fugaz repouso pós-prandial.
B- Os elevadores do meu prédio não têm quaisquer problemas. Têm, todavia, alguns caprichos. Alturas há em que se recusam a abrir a porta. Já aprendi que, pressionando a porta num determinado sentido, ela abre. Outras vezes não abre. Quando não abre, é ir carregando, com fé, nos botões que indicam os andares. Às vezes cedem e retomam a sua actividade normal. Fazem-no, igualmente, se alguém os chamar de outro piso.
Já me aconteceu, num desses momentos de birra ascendente ou descendente e após conseguir abrir a porta, dar de caras com uma parede. Ninguém me respondeu quando chamei a assistência técnica, de modo que pensei que já tinha visto muitos filmes e que, bem no fundo de mim, havia de haver uma Clarice Starling, uma agente da Mossad, ou qualquer coisa intermédia. Investiguei e lá consegui chegar com a ponta dos dedos a uma reentrância que me permitiu voltar a fechar a porta. E ele moveu-se.
Observação de sintomas - Ontem, não me deitei durante a tarde e tinha dormido pouco na noite anterior. Seriam seis e pouco quando desci para verificar se, na caixa de correio, estaria uma correspondência esperada. Não estava. Voltei para trás. Entrei no elevador e lá fui eu. Quando o gongo avisou a chegada ao meu andar, ignorou-o e permaneceu de porta cerrada. Tentei abri-la mas não consegui. Tentei as várias manobras já usadas em situações que tais e nada. Assistência técnica de ouvidos moucos e nem adiantaria ter o telemóvel comigo porque não há rede lá dentro. Pensei que alguém o havia de chamar e ele responderia solícito como é sua obrigação. Resolvi sentar-me no chão de pernas cruzadas que nem uma deusa hindu. Encostei-me e esperei.
É ainda Agosto, ainda há gente de férias: este prédio era, ontem, um veleiro quase deserto a flutuar sobre a avenida. Acordei com um solavanco de movimento e só tive tempo de me alinhar para aparecer sorridente e composta perante a minha vizinha do 4º andar. Pelas minhas contas, dormi uns três quartos de hora.
Conclusão - Isto não é normal. Quod erat demonstrandum.