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Delito de Opinião

Carta ao Padre Portocarrero de Almada

Rui Rocha, 31.05.15

Reverendo Padre Portocarrero de Almada,  

Li com atenção o texto lúcido que haveis publicado sobre o Diabo. Através dele cheguei finalmente à explicação para uma questão que me atormentava: se Deus é bom e tudo criou, como pode ele ter criado o Diabo? E desta dúvida a questionar a própria existência do Diabo era, ai de mim, apenas um passo. O vosso texto, bondoso sacerdote, derramou definitivamente luz sobre o assunto. Antes de mais, fiquei com a certeza de que o Diabo existe. Pois se vós assim o afirmais, que mais dúvidas podem subsistir? O tema é de suma importância e vós não irieis mentir sobre tão melindroso assunto, isso está claro. O Diabo existe e pronto. E devo dizer-vos que ver assim confirmada a sua existência me deixa muito aliviado. Isto é, a ver se me explico para não ser mal interpretado. Não é que eu fique contente com o facto de o Diabo existir, valha-me Deus. Mas, se tem de existir, então que se assuma que é assim. O pior de tudo é andar na dúvida. Como eu andei até esbarrar no vosso texto: existe, não existe, é isto obra do Diabo ou estará a minha sogra a agir sozinha? Agora que vejo tudo com meridiana clareza até me custa perceber como pude ser tão imbecil: era humanamente impossível que uma mulherzinha de pouco mais de metro e sessenta pudesse acumular por si só tanta ronha. A segunda revelação que me haveis trazido com as vossas palavras sabiamente escritas é a solução para a tal questão que me acompanhava: Deus é efectivamente bom. E, por isso, todos somos ontologicamente bons. Incluindo o próprio Diabo. E a minha sogra. Outra coisa são as acções. O problema, assim o haveis esclarecido sem margem para dúvidas, não é de fabrico. É de utilização. Deus pode ir à sua vida ilibado de quaisquer acusações. Fez o que tinha de fazer e fez bem feito. Agora que ninguém o chateie. Até pode estar a jogar Candy Crush que não temos nada com isso.  A terceira boa notícia é a de que as possessões têm cura. Eu já tinha lido que Padre Sousa Lara  fazia exorcismos à sexta-feira nas traseiras do Santuário de Lamego. Não fiquei muito convencido porque na entrevista também dizia que o Sousa Lara júnior gostava de Coca-Cola. Mas, agora que o haveis confirmado, já não hesito. Dá-me ideia que o caso da minha sogra não vai lá só com orações. Para a semana, meto-a na carreira e vai até Lamego. Algo me diz que a coisa está tão avançada que vai ser preciso amarrá-la à cama. Mas nestas coisas não podemos vacilar. Faça-se o que tiver de ser feito. Agora, bondoso padre, confesso-vos que tenho comigo uma outra grande inquietação que sinto dever partilhar convosco. Contra o vosso sábio conselho, fiz aquela coisa do Charlie mexicano através da internet. Eu bem sei que o Diabo tem barbas. Mas confesso que fiquei muito surpreendido quando chamei por ele e o que me apareceu foi isto:

cesar.jpg

 

Por um punhado de romãs

Ivone Mendes da Silva, 05.09.11

Para quem não tem presente, eu conto: Proserpina ( vou usar o nome latino das personagens para não haver confusão ali com os dracmas do Rui)  andava a colher flores no campo. Plutão, deus ctónico, ascendeu à superfície para dar uma vista de olhos pelo mundos dos vivos. Subiu por uma fenda da terra (ex hiatu terrae  para quem ainda vem do tempo do Latim no liceu, lembram-se?), olhou em volta, viu a donzela e as flores e pensou que não era nada má ideia levá-la lá para baixo, para o meio das sombras gemebundas.  Os deuses da mitologia greco-latina são assim um bocadinho para o precipitado. Plutão nem se deu ao trabalho de pensar se a rapariga das flores tinha quem lhe chorasse a ausência. E tinha: era filha da deusa Ceres, a que dava as flores e os frutos aos homens. O resto da história é conhecido. A deusa, inconsolável, percorreu a terra em busca da filha, demanda essa que teve nefastas consequências, pois que Ceres, esquecida das suas atribuições, não fazia germinar as sementes nem crescer as árvores e, sobre a terra, a iminência da fome começava a fazer-se sentir.

Foi Júpiter quem teve de pôr fim àquele descalabro, concertando entre a mãe e o raptor uma solução: Proserpina passaria metade do ano nos Infernos e a outra metade à superfície. Pois é, a alternância das estações é apenas isso: quando Proserpina está junto de Plutão, as árvores perdem as folhas e a natureza parece chorar; depois, quando ela volta para a mãe, tudo reverdece e são abundantes os frutos e as flores.

Há, todavia, pormenores que não vinham no livro de Latim do liceu. Há sempre pormenores que não vêm nos livros do liceu. Quando Proserpina chegou lá abaixo, primeiro, achou que era um bocadinho escuro e frio e, enfim, um deus dos mortos também não há-de ser uma companhia muito calorosa, não sei, digo eu que nunca privei com deuses ínferos. Plutão, todavia, resolveu mostrar trabalho e rodeou a deusazita de cuidados. Arranjou-lhe um sítio bom para ficar, deu-lhe atenção, conversou com ela e, melhor ainda, trouxe-lhe rutilantes romãs que ia descascando, descascando, sem se cansar, que isto de ser deus sempre há-de ser uma vantagem. Proserpina comia os bagos doces e sedosos das romãs e esquecia, aos poucos, o mundo dos vivos. As romãs tinham essa propriedade desmemoriante na antiguidade; hoje em dia, não sei se ainda a possuem. Verdade seja dita, a moça já andava um bocado farta daquela euforia estival em que a mãe a arrastava de sol a sol.  Muita luz, muita festa, muita gente. Não sei se ela terá arranjado, lá no mundo dos mortos, alguma amiga a quem tenha feito confidências do género: “Ah, eu andava muito farta de toda aquela luz, aquela agitação. Aqui estou como se morasse no blogue do Filipe Nunes Vicente, λάθε  βιώσας, estou numa boa, sem confusões.”

Deduzo que se terá aborrecido com a decisão que tomaram sobre a vida dela sem a terem consultado.

Cá para mim, mais algumas romãs teriam feito toda a diferença. Talvez ela tivesse passado daquela ataraxia complacente e tivesse exigido, pelo menos, mais três meses longe do sol e do solo.

Mas isto digo eu, que gosto é do Outono.