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Delito de Opinião

In memoriam

Sérgio de Almeida Correia, 30.05.21

WhatsApp-Image-2021-05-27-at-23.32.56-696x870.jpeg(créditos: MNA)

 

Uma situação estranha para os leigos, incompreensível para todos, como algo que escapa definitivamente à lógica dos dias e das maleitas habituais. 

Um dia veio buscar-me ao escritório. Não sei ao certo de quem partira a ideia de incluir o meu nome. Se dele, se do Óscar, se da Filipa, embora o simpático convite viesse desta última. E lá fui fazer a apresentação do filme num ciclo de cinema cujo leitmotiv era a Justiça. Conhecêramo-nos havia algum tempo, mas creio que foi pela sétima arte que nasceu um maior entendimento mútuo.

Para além do direito e do cinema, em comum havia o gosto pelo futebol e a paixão pelo mesmo clube.

Discordávamos sempre em matéria de forma de governo. Ele era um monárquico profundo, zeloso da tradição, do peso da história e das instituições como cimento da unidade nacional em democracia, defendendo as suas posições com a educação, a elevação e o conforto próprios de quem se sente bem na sua pele e acredita que para lá das divergências só respeitando o outro se consegue passar a mensagem.

Admirava-o por essa sua franqueza, por vezes ingenuidade, simplicidade e cativante simpatia com que sempre terçávamos armas. E mesmo quando se posicionava do outro lado da barricada, o que algumas vezes aconteceu, nunca deixou de registar publicamente o seu apreço pelas posições que sempre defendi.

Parte cedo, muito cedo. E é sempre demasiado cedo quando se está na força da vida e se tem tanto para dar.

Que o seu Deus, em cuja generosidade sempre acreditou, e que tão injusto se mostrou para com ele e tantos outros, todos os dias, seja capaz de o acolher com a nobreza que merece, e olhe por aqueles que colhidos pela dor da sua súbita partida nos recordarão que continuará presente.

Como sempre permanecem todos aqueles que mesmo longe contribuem pela sua memória para tornarem menos penosos os nossos dias terrenos.

Que descanse em paz.

Dois reis medievais e “suas” cidades

Cristina Torrão, 07.01.20

Este postal não se insere na série das efemérides à volta da formação de Portugal, mas não quis deixar de assinalar o aniversário da morte de D. Dinis, pois ele e D. Afonso Henriques são os dois reis mais significativos da nossa Idade Média. Além disso, aproveito para falar da sua ligação às cidades com que os identificamos.

D. Dinis morreu a 7 de Janeiro de 1325, com sessenta e três anos, depois de um reinado longo e sobejamente preenchido. Apesar de ter sido coroado com apenas dezassete primaveras, D. Dinis estava, desde o início, perfeitamente vocacionado para a sua tarefa. Pode-se dizer que foi um monarca feliz, se exceptuarmos a recta final do reinado, marcada pela guerra civil contra o seu próprio herdeiro, conflito que tanto o amargurou e desgastou, que bem pode ter acelerado a sua morte.

De todas as medidas que tomou ao longo dos 46 anos de reinado, a fundação da Universidade é a que mais se recorda, levando-nos a acreditar que o Rei Poeta preferia a cidade de Coimbra, onde terá vivido a maior parte do seu tempo, escrevendo poemas nas margens românticas do Mondego. Esta imagem, porém, não passa de uma fantasia. Apesar de gostar de Coimbra (como gostava, ou amava, todo o seu reino), D. Dinis identificava-se, acima de tudo, com Lisboa, a sua cidade-natal e, de longe, a preferida. E foi precisamente na nova capital do reino (desde o tempo de seu pai, D. Afonso III) que a Universidade (inicialmente apelidada de Estudo Geral das Ciências) foi fundada.

A 12 de Novembro de 1288 redigiu-se, em Montemor-o-Novo, a carta ao papa Nicolau IV, pedindo autorização para a criação do Estudo Geral das Ciências em Lisboa. Em resposta, o papa emitiu, a 9 de Agosto de 1290, a bula De Statu Regno Portugaliae, confirmando o ensino de Cânones, Leis, Medicina e Artes e autorizando a concessão de grau de licenciado pelo bispo ou vigário da Sé lisbonense.

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Cerca de dezassete anos mais tarde, porém, é feito o pedido de transferência do Estudo Geral para Coimbra. Das razões, pouco se sabe. Na sua biografia de D. Dinis, o Professor José Augusto Pizarro refere conflitos com a Casa da Moeda em relação ao terreno que D. Dinis doara para a construção do edifício do Estudo Geral, no Campo da Pedreira à Lapa, perto do Mosteiro de São Vicente de Fora. Também haveria conflitos entre os estudantes e a população de Lisboa, embora, como referi, os motivos, tanto para uns, como para outros, não sejam hoje claros. A transferência foi autorizada por Clemente V a 26 de Fevereiro de 1308 e, a 15 de Fevereiro de 1309, pela Charta magna privilegiorum, D. Dinis estipulou os estatutos do Estudo Geral de Coimbra.

O assunto, no entanto, não ficou por aqui. A Universidade mudaria várias vezes de local, sempre entre Lisboa e Coimbra, e só ficou definitivamente instalada junto ao Mondego em 1537, mais de duzentos anos depois da morte do Rei Poeta.

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Fotografia: © UC | Ana Zayara

Para a identificação de D. Dinis com Coimbra contribuíram, não só a fundação da Universidade e a estátua inaugurada, nos anos 1950 como o facto de D. Isabel ter vivido recolhida, depois de enviuvar, no mosteiro de Santa Clara, junto ao Mondego, por ela própria mandado construir, e ter lá ficado sepultada. Ao contrário de D. Dinis, que preferiu ficar junto a Lisboa, no mosteiro de Odivelas, também por ele fundado.

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Túmulo de D. Dinis em Odivelas. Foto ©José Custódio Vieira da Silva

Na verdade, quem devia ser identificado com Coimbra era D. Afonso Henriques! Não ponho em causa a importância de Guimarães no início da nossa nacionalidade. Apesar de haver reservas quanto ao facto de o primeiro rei lá ter nascido, foi lá que ele assentou arraiais, ainda infante, ao afastar-se de sua mãe e de Fernando Peres de Trava. Como sabemos, o conflito viria a desembocar na Batalha de São Mamede, junto ao castelo de Guimarães, na sequência da qual D. Afonso Henriques atingiu o poder sobre o condado Portucalense. Lembremos, porém, que, à altura deste prélio, o nosso primeiro rei tinha apenas cerca de vinte anos. Viria a morrer com cerca de setenta e cinco - são mais de cinquenta anos de diferença… vividos em Coimbra.

Foi de facto na cidade junto ao Mondego que D. Afonso Henriques estabeleceu a sua corte, fundando o mosteiro dos Cónegos Regrantes de Santa Cruz, no início dos anos 1130, data a partir da qual poucas vezes terá estado em Guimarães, até à sua morte, em 1185.

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Afonso I - Óleo de Carlos Alberto Santos

 

Nota: O estado degradado em que se encontra a sepultura de D. Dinis, levou um grupo de cidadãos, há alguns anos, a criar uma página no Facebook, vamos salvar o túmulo do rei D. Dinis, a fim de alertar para a necessidade da sua recuperação. Graças a esta iniciativa, já se efectuaram alguns melhoramentos.

Dois países dentro do País

Pedro Correia, 16.08.19

Cheguei a Coimbra a hora já tardia para o almoço, cheio de apetite. Ia com vontade de matar saudades do Zé Manel dos Ossos, mas deparei com a porta fechada: está encerrado para férias.

Virei logo ali, à Rua da Sota. Eram quase 15 horas, entrei num restaurante ainda operacional que me pareceu com bom aspecto.

- O que há? - pergunto.

- Agora já só temos o menu do dia: sopa e frango.

- Venha isso.

E veio, sem demora. Comidinha caseira, como gosto. Sopa de legumes, frango na púcara (muito bem servido). Talhada de melão à sobremesa. Um jarrinho de vinho. Mais pão (que não comi) e café (que não bebi).

Tudo incluído: sete euros e meio.

Isto na baixa de Coimbra, onde por estes dias circulam muitos turistas estrangeiros. Comprovando que, a norte de Lisboa, os preços nos restaurantes caem - por vezes vertiginosamente. Enquanto a qualidade tantas vezes aumenta.

Dois países dentro do País.

Delito à mesa (7)

João André, 03.01.17

Confesso que há muito que não tenho o hábito de ir a restaurantes. Sempre gostei de o fazer com amigos mas afazeres profissionais, ter saído de Portugal e ter por perto menos dos amigos com quem gosto de partilhar estes momentos, além da vida familiar que por vezes torna difícil a ida a restaurantes, tudo isto tem conspirado para que eu não tenha renovado os meus hábitos comensais públicos. Na falta dos mesmos, recorro a um hábito já antigo a que volto sempre que posso (ou por lá passo).

 

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O Zé Manel dos Ossos é uma instituição de Coimbra onde não há café no final da refeição, o vinho vem à escolha de branco ou tinto, copo ou jarro (garrafa também pode ser), as paredes estão escarrapachadas de papéis de toalha de mesa escrevinhados com saudações, poemas ou outras inspirações de rotundas barrigas, a fila à entrada pode ir dos 20 minutos à hora e meia para quem chega depois das 7 da noite e o espaço dá para uma meia dúzia de mesas e pouco mais. Quem quiser sofisticação e estilo bem pode ir a outro lado.

 

Conta a lenda que tudo começou quando o Sr. Zé Manel começou a recolher os ossos de um talho ao lado e a cozinhá-los com umas ervas, sal e outros truques que só serão transmissíveis em quintas-feiras de lua cheia depois de sacrificar um gato, um lagarto e um javali aos diversos deuses da gula nos intermináveis panteões da história universal. Facto é que os ossos, além do nome, dão o carácter ao restaurante. A maioria dos pratos incluem ossos de uma forma ou outra, mas os ossos a sério, aqueles que se pedem sem dizer nada mais além do número de convivas, esses são motivo só por si para uma espera de uma hora num beco de Coimbra aos 35 °C de uma noite de Verão.

 

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Os preços (além da qualidade) tornam o restaurante obrigatório entre estudantes, mas não se pense que enchem o espaço e o tornam impossivelmente "académico". Os simples factos de ser necessário enfrentar filas para entrar depois das 7 e meia da noite (ou tarde, depende da altura do ano), de se situar na Baixa (e fora dos circuitos habituais da Universidade) conspiram para controlar o fluxo de clientela e permitir que qualquer pessoa se sinta em casa. Uma vez dentro, há sempre o risco de o calor ser altíssimo e o espaço exíguo. Mas vale a pena aguentar tudo.

 

A melhor escolha inicial é dizer que se quer ossos. O empregado decide quanto vai trazer em função dos convivas à mesa (esqueçam as noções de doses se ali entram) e é possível ter tempo para decidir o que se vai comer. Mais uma vez, o ideal é escolher uma selecção de pratos e deixar que as quantidades fiquem à escolha da casa. Pessoalmente vou sempre pelas barriguinhas ou costeletas com arroz de feijão ou pela feijoada de javali. O vinho é despretensioso mas costuma ir muito bem com a comida e o ambiente.

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Não há pressão para se sair da mesa, apesar da fila que existe à porta. Há sempre contudo a oferta de mais bebidas, como que a lembrar-nos para consumirmos um pouco mais. Mas sem verdadeira pressão: a simpatia esteve sempre presente. No final não há café. A máquina ocupa espaço e, na realidade, ninguém lá vai para isso. E beber um café poderia ter o mesmo efeito que a folhinha de menta em The Meaning of Life.

 

A melhor demonstração do restaurante ocorreu quando um dia tive um jantar com os elementos de uma banda americana (que tinham dado um concerto organizado pela Ru( na noite anterior). Nesse dia alguns dos elementos da banda dormiram tarde e almoçaram já perto das seis da tarde. Vontade de jantar: perto de zero. Umas horas mais tarde tinham-se deliciado com a comida e iam rebolando alegremente para o hotel. Passados uns anos um amigo reencontrou um deles e foi imediatamente reconhecido com as palavras: «os ossos!».

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Resumindo: a visita ao Zé Manel dos Ossos vale sempre a pena. Sem pressas e com espaço no estômago. E escritas estas linhas, estou com vontade de marcar uma viagem a Coimbra para breve.

Quem não os conhecer que os compre

Laura Ramos, 03.02.14

 

Pois eu, por mim, não tenho problema algum em dividir a minha cidade com a estudantada.

 

Deploro os exageros escusados, o asneiredo de criar bicho, mas tenho muito boas memórias desse meu tempo, em que vivi a festa no melhor e mais enriquecedor sentido do termo.

Aliás, lutei, rigorosamente, por ela. Com a pele. O que não me faz subscrever os desvios comportamentais, longe disso.

Mas o que me dá um enfoque geracional muito interessante e suculento, para quem sabe reconhecer de onde vem o dedo de muitos degrenidores activos da soi-disant praxe académica (não confundir com os indignados passivos).

Infelizmente, há uns tantos anormais cujos actos permitiram que esses tais voltassem a pôr as unhas de fora.

Quem não os conhecer que os compre.

Da importância do casaco comprido de Verão ou um post fútil em tarde de domingo

Ivone Mendes da Silva, 20.05.12
Houve um tempo em que eu tinha roupa. Agora tenho soluções. Nem sempre as melhores, nem sempre as que  quereria. Visto-me, sem que isso me mereça reflexão de maior e é o que vale, que a vida não está para pormenores. No entanto, ó mísera sorte, estranha condição, dias há que na alma nos põem nostalgias incómodas. Acordei hoje com desejos de vestir um casaco comprido de Verão. Passo a explicar o conceito a quem o achar estranho. O casaco comprido de Verão, ao contrário do de Inverno, não serve para aquecer, serve para compor. Dou a mão à palmatória: esta ideia de "roupa para compor" é um bocadinho obsoleta. O "vestir-se para" também será, embora, convenhamos, em virtude dessa consideração, vê-se cada figurinha .... adiante e vamos aos casacos. Eram feitos em tecidos leve, de manga pelo antebraço e, quando usados com umas luvas de cano curto, de uma elegância inenarrável. A minha mãe tinha um de tecido adamascado, num tom rosa-chá desmaiado, com uns botões em bege rosado. Usava-o com uns sapatos muito altos, com uns furinhos minúsculos na ponta, no exacto tom dos botões. Aqueles sapatos estragaram a minha vida para sempre. Passava horas a remirá-los.Acho que em cada sapato que comprei  ( e Deus sabe quantos ... ) eram aqueles que eu procurava. O casaco, esse vestia-o e olhava-me no espelho, imaginando-me crescida, longe da interdição materna de pintar as unhas de vermelho e senhora dos meus dias. Dias bons, claro, e havia uma razão para pensar assim. Sempre ouvi contar a história do meu tio José e da minha tia Celeste, que já lá estão. É uma história com casaco comprido de Verão. Esse meu tio, o mais velho do primeiro casamento da minha avó, tardava em assentar. Enfant gaté, o meu avó tratava filhos e enteados com condescendências que só visto, tardava em assentar. Fazia ladear a égua no empedrado das ruas, entregava olhares de esperança às raparigas com ideias de cama e pucarinho e lá ia à sua vida. Por volta das seis da tarde, no largo da estação, apeava e ficava com os amigos a ver quem chegava. Um dia, desceu do comboio a nova professora primária. Era Setembro de 1938. Contam que ela trazia um casaco comprido de Verão, com uma gola lindíssima. O meu tio disse para a entourage: "Estão a ver aquela do casaco bonito? É com ela que vou casar." E casou. Durante sessenta anos. 

A primeira vez que eu vi Maria Helena da Rocha Pereira, ela atravessava o átrio da Faculdade de Letras, no meus primeiros tempos de Coimbra. Eu estava no primeiro andar, encostada ao varandim. Era a hora em que o bar se enchia de gente (rapazes) das outras faculdades para um café a meio da manhã. Eu tinha-me tomado de amores por um finalista de Direito com Reais por fazer, um clássico portanto, e ouvia-lhe as torturas sofridas às mãos do mítico Orlando de Carvalho. Olhei para baixo e vi-a com um casaco comprido de Verão, azul ferrete. Parecia eterna. Pensei que a vida era aquilo, namorar encostada ao varandim do bar das Letras, enquanto os mitos, vestidos de símbolos azul ferrete, atravessavam o átrio daquela distante despreocupação.

Quando encontrei a minha costureira, pedi-lhe um casaco comprido de Verão. Ela compreendeu-me e Deus ma conserve, até porque, hoje em dia, pouco trabalho lhe dou. Para não a cansar, claro. Fez-me muitos casacos compridos de Verão. Usava-os por cima de um vestido, a deixar ver um pouco da saia, e sentia-me tão habillée; outras vezes, vestia-os sobre umas calças e uma camisa atada na cintura e sentia-me feliz. Ando a precisar de um casaco comprido de Verão.

Há muito pouco tempo, estive com Maria Helena da Rocha Pereira num funeral. Era preto o casaco que vestia, lindo, em linho pesado, de manga pelo antebraço, com o corte irrepreensível dos alfaiates do Porto. Ela continua eterna como no dia em que atravessou o átrio da Faculdade de Letras na véspera de o Orlando de Carvalho voltar a reprovar um namorado que abandonei meses depois; eu envelheci. Deve ter sido castigo.

A praça tem mais encanto...

João Carvalho, 23.10.11

 

... se for a de Coimbra. Sim, ter uma Praça do Comércio não é exclusivo de Lisboa, embora em finais dos anos 40, princípios de 50, o antigo Terreiro do Paço da capital tivesse outro ar de graça. Tinha, mas perdeu-o.

A Praça do Comércio de Coimbra pode não ser perfeita, mas ao menos não tem aquele campo de hóquei às moscas no centro, rodeado de ministérios. Está visto que não há presidente da câmara de Lisboa que se decida a alegrar o espaço.